Capítulo 27

— É RUIM.
Eu estava encolhida na cama de Ahren que, sentado, me contava tudo o que nossos pais não queriam que eu soubesse.
— Diga logo.
Ele engoliu em seco.
— Parece que sempre começa nas províncias mais pobres. Não estão se rebelando, não como na época em que eles eram jovens… Estão mais é se levantando contra nós.
— O que isso quer dizer, exatamente?
— Estão se unindo para acabar com a monarquia. Ninguém conseguiu o que queria com a dissolução das castas, e eles acham que não ligamos.
— Não ligamos? — perguntei, estupefata. — O papai está fazendo das tripas coração para tentar consertar as coisas. Estou saindo com estranhos por causa deles!
— Eu sei. E não faço ideia de onde você tirou a apresentação desta noite, mas foi espetacular.
Fiquei orgulhosa e aceitei o elogio, mas comecei a refletir sobre o quanto minha apresentação tinha sido planejada e o quanto tinha sido autêntica.
— Mesmo assim — Ahren continuou —, o que vamos fazer? Distraí-los para sempre?
— Ha-ha! — zombei. — Como se já tivessem pedido a você para servir de distração alguma vez. Seria sempre eu, e não aguento. Já me sinto sufocada do jeito que as coisas vão.
— Nós podemos abdicar — meu irmão comentou. — Mas aí o que aconteceria? Quem tomaria o poder? E se não abdicarmos, eles vão nos expulsar?
— Eles fariam isso? — pensei alto.
Ahren olhou para o nada.
— Não sei, Eady. As pessoas já fizeram coisas muito piores por estarem passando fome, exaustas ou sem dinheiro.
— Mas não podemos alimentar todos. Não podemos fazer todos ganharem o mesmo. O que eles querem de nós?
— Nada — ele disse com sinceridade. — Só querem mais para si. Não posso culpá-los, mas as pessoas estão confusas. Acham que a vida deles está em nossas mãos, mas não está.
— Está nas mãos deles próprios.
— Exatamente.
Permanecemos em silêncio por um longo tempo, pensando no que aquilo significaria para nós.
Contudo, para ser sincera, eu sabia que seria a mais atingida caso as pessoas levassem isso adiante.
Não sabia como coisas assim aconteciam, mas governos mudavam. Reinos surgiam e desapareciam; uma ideologia tomava conta de tudo e deixava as outras de lado. Será que eu seria abandonada na sarjeta?
Tremi ao tentar imaginar como seria minha vida nesse caso.
— Eles já jogaram comida em mim — balbuciei.
— O quê?
— Fui tão idiota — respondi, balançando a cabeça. — Cresci acreditando que era adorada… mas o povo não me ama. Assim que nossos pais renunciarem, não consigo pensar numa maneira de evitar que o país se livre de mim.
A sensação era tangível: antes eu tinha uma ideia que me mantinha nas nuvens. Agora que sabia que era uma mentira, sentia meu corpo mais pesado.
Ahren estava visivelmente preocupado. Esperei ele me contradizer, mas não conseguiu.
— Você pode conquistar o amor deles, Eadlyn.
— Não sou charmosa como você, nem inteligente como Kaden, nem um pestinha adorável como Osten. Não tenho nada de especial.
Ele bateu a cabeça contra a cabeceira da cama e gemeu.
— Eadlyn, é brincadeira, né? Você é a primeira herdeira. Você é diferente de tudo o que esse país já conheceu. Só precisa aprender a usar isso, a lembrá-los de quem é.
Sou Eadlyn Schreave. Nenhuma pessoa é tão poderosa quanto eu.
— Não sei se gostariam de mim se me conhecessem de verdade.
— Se vai começar a choradeira, expulso você daqui.
— Vou mandar chicotearem você.
— Você me ameaça com isso desde os seis anos.
— Um dia vai acontecer. Aguarde.
Ele riu.
— Não se preocupe, Eady. As chances de as pessoas se organizarem a ponto de fazer qualquer coisa são mínimas. Estão só extravasando. Quando o ódio diminuir, tudo voltará ao normal, você vai ver.
Fiz que sim com a cabeça e suspirei. Talvez eu estivesse em pânico por nada, mas ainda podia ouvir os gritos furiosos durante o desfile e lembrava dos comentários maldosos sobre meu beijo com Kile. Com certeza aquela não seria a última vez que ouviríamos falar sobre a abolição da monarquia.
— Não conte aos nossos pais que eu sei, certo?
— Se você insiste.
Levantei com um salto e beijei a bochecha de Ahren. Senti pena das garotas sem irmão.
— Até amanhã.
Ele abriu um sorriso.
— Durma uma pouco.
Saí do quarto dele com a intenção de voltar ao meu. Mas, no meio do caminho, percebi que estava com fome. Passei a gostar da cozinha depois daquela visita. Me lembrei das frutas e do queijo na geladeira. Sem dúvida já era tão tarde que ninguém se incomodaria, então apertei o passo e segui em direção às escadas no fundo da sala de jantar.
Errei ao supor que a cozinha estaria completamente vazia. Havia um punhado de moças e rapazes batendo massas e picando legumes. Contemplei a cena por um momento, hipnotizada pela eficiência e concentração deles. Adorei aquilo: apesar da hora, todos pareciam despertos e contentes, conversando entre si enquanto realizavam seu trabalho.
Era tão interessante que levou um bom tempo até eu notar a cabeleira loira e cacheada que se agitava em um dos cantos. Henri tinha pendurado a camisa em um gancho e estava com uma camiseta azul coberta de farinha. Caminhei devagar, mas os funcionários foram aos poucos me reconhecendo e se curvando à medida que eu avançava, o que alertou Henri sobre minha presença.
Ao me ver, ele tentou limpar a bagunça na roupa, mas falhou miseravelmente. Jogou o cabelo para trás e sorriu para mim, como sempre.
— Sem Erik?
— Ele dormir.
— Por que você não dorme?
Ele apertou os olhos, concentrando-se para tentar juntar as palavras.
— Hum, perdão. Eu cozinhar?
Fiz que sim com a cabeça.
— Posso cozinhar também?
Ele apontou a pilha de maçãs e a massa sobre a mesa.
— Quer? Você cozinhar?
— Sim.
Ele ficou radiante e confirmou com a cabeça. Em seguida, do nada, trocou de posição comigo e hesitou um pouco antes de pegar a camisa e amarrar as mangas atrás de meu pescoço. Um avental. Ele queria que eu usasse um avental.
Sorri comigo mesma. Era só um vestido simples que eu estava usando antes de dormir, mas nossa comunicação limitada não dava brecha para discussões.
Ele pegou uma maçã e tirou a casca inteira de uma vez. Quando terminou, deixou a fruta na bancada e trocou de faca.
— Pidäveitsi näin — ele disse, indicando o modo como segurava o cabo.
Ele abriu a outra mão como se fosse uma garra, segurou a maçã de modo a esconder a ponta dos dedos e explicou:
— Pidäomena huolellisesti.
Então começou a cortar.
Mesmo com a minha inexperiência, era evidente que ele usava o mínimo de força para realizar o trabalho e que aquela posição simples protegia seus dedos da faca.
— Você — ele disse, me entregando a faca.
— O.k. Assim? — perguntei ao ajeitar a mão na posição que ele ensinara.
— Bom, bom.
Minha velocidade não era nem metade da dele, e minhas fatias também não tinham metade da uniformidade. A maneira como ele sorria, porém, dava a impressão de que eu tinha preparado um banquete sozinha.
Ele terminou de fazer a massa e acrescentou canela e açúcar. Em seguida, preparou uma das frigideiras penduradas na parede.
Fiquei pensando se ele era o responsável pelas sobremesas em seu trabalho ou se apenas gostava muito de prepará-las.
Ajudei a despejar as maçãs e rechear a massa e, embora tivesse muito medo de óleo fervente, ajudei a fritar um dos pasteizinhos. Dei um gritinho quando o óleo começou a borbulhar, pulando na panela. Henri riu só um pouquinho, o que foi uma gentileza da parte dele.
Quando finalmente pôs a bandeja à minha frente, eu já estava morrendo de fome e ansiosa demais para esperar. Mas esperei, e ele indicou com um gesto que eu provasse. Peguei um dos pasteizinhos fritos e mordi.
Foi o paraíso, melhor até do que os pãezinhos do outro dia.
— Ah! Hummm! — exclamei enquanto mastigava.
Henri deu risada e pegou um dos pasteizinhos. Ele pareceu bem satisfeito, mas notei que estava avaliando sua criação.
Eu achei perfeita.
— Como se chamam?
— Ahn?
— Err… Nome? — e apontei o doce.
— Ah, omenalörtsy.
— Omenalortsi?
— Bom!
— É?
— Bom.
Sorri comigo mesma. Teria que contar a Kaden mais tarde que já dominava o nome de várias sobremesas noruecas.
Comi duas e me senti um pouco estufada. Henri passou a bandeja entre os cozinheiros, e todos ficaram admirados com seu talento. Lamentei profundamente que Henri não entendesse as palavras que usavam para elogiá-lo.
Um deleite. Indefectível. Perfeito.
Fiquei com a impressão de que, se tivesse entendido, Henri diria que todos estavam sendo generosos demais. Mas era difícil ter certeza. Esse era só o meu palpite sobre quem ele era. Na verdade, eu não sabia.
E, lembrei a mim mesma, nem quero saber.
Estava ficando cada vez mais difícil ter que lembrar disso.
Quando Henri parou de circular e a bandeja retornou, sem uma migalha para contar a história, abri um sorriso tímido.
— Preciso dormir.
— Você dormir?
— Sim.
— Bom, bom.
— Err… Hoje? O Jornal Oficial? — perguntei, tentando manter as coisas simples.
— Jornal, sim — ele confirmou.
Pus a mão em seu peito e elogiei:
— Você foi um doce.
— Doce? Hum, o açúcar?
— Sim. Como açúcar — confirmei, rindo.
Ele colocou a mão sobre a minha, que ainda repousava sobre seu coração. Seu sorriso se desfez.
Ele me olhou e engoliu em seco. Um calafrio percorreu seu corpo, mas ele parecia querer fazer o momento durar. Segurou minha mão por uma eternidade, e percebi que não parava de pensar em palavras para dizer, se esforçando ao máximo para encontrar uma que eu pudesse compreender… Mas não havia.
Queria demonstrar que eu entendia o que ele estava sentindo. Eu notava em cada sorriso e em cada gesto que ele se importava comigo. E, contra todos os meus esforços, também me importava com ele. Me preocupava o quanto lamentaria o que estava prestes a fazer, mas só havia uma forma de expressar aquele sentimento.
Diminuí o espaço entre nós e levei a mão até sua bochecha. Ele me olhou fundo nos olhos, como se tivesse descoberto algo realmente valioso, tão raro que talvez jamais voltasse a ver. Acenei com a cabeça e ele baixou a boca até a minha.
Henri estava com medo. Eu podia sentir. Medo de me tocar, de me segurar, de se mover. Não sei se porque eu era uma princesa ou porque nunca tinha feito aquilo antes, mas aquele beijo parecia vulnerável.
O que me fez gostar ainda mais.
Apertei os lábios contra os dele, na tentativa de dizer sem palavras que estava tudo bem, que queria ser abraçada por ele. E, por fim, após um momento de hesitação, ele reagiu. Henri me envolveu como se eu fosse delicada, como se eu pudesse me desfazer se ele apertasse demais. E o beijo dele transmitia a mesma sensação, só que não mais por medo: era impulsionado por uma espécie de reverência. Um afeto quase insuportável de tão belo.
Recuei, levemente tonta. Os olhos dele pareciam sofrer, mas os lábios denunciavam um sorriso discreto.
— Preciso ir — repeti.
Ele fez que sim com a cabeça.
— Boa noite.
— Boa noite.
Caminhei devagar até sair de seu campo de visão. Então corri. Minha cabeça girava e eu não compreendia o que estava sentindo. Por que tinha ficado tão incomodada quando Gavril implicou com Henri? Por que mantive Fox quando ele deveria ter saído? Por que Kile – céus, Kile! – não saía da minha cabeça?
E por que eu ficava tão apavorada só de fazer essas perguntas?
Ao chegar no quarto, me joguei na cama; estava desorientada. Por mais brava que estivesse com Gavril por mencionar o assunto, realmente me incomodava o fato de que não podia conversar com Henri, não podia comunicar nada íntimo porque precisaria passar pelo desconforto de falar com Erik antes. Por mais desconfortável que a ideia parecesse, se eu tivesse que contar algo pessoal para alguém, seria para Henri. Me sentia segura perto dele, e sabia que ele era inteligente, e admirava sua paixão. Henri era bom.
Mas eu não falava finlandês. E isso era ruim.
Rolei na cama, frustrada, e soltei um gemido ao sentir algo no pescoço. Tateei e senti o nó: ainda estava usando a camisa de Henri.
Desamarrei-a e, apesar de ser um absurdo, levei-a ao nariz. Claro. Claro que ela tinha cheiro de canela, mel e baunilha. Claro que ele tinha cheiro de sobremesa.
Confeiteiro norueco idiota com suas especiarias idiotas.
A Seleção estava me tornando uma mula!
Por isso o amor era uma ideia terrível: ele enfraquecia as pessoas.
E não havia nenhuma pessoa no mundo tão poderosa quanto eu.

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