Capítulo 32

TIVE VONTADE DE CONGELAR AQUELE MOMENTO, de esquecer todas as preocupações que pairavam sobre a minha família e ameaçavam desabar sobre nós a qualquer momento. Mas a paz já tinha acabado na hora do jantar.
Alguns Selecionados que não participaram do jogo reclamaram porque não foram avisados. Alegavam que os que tinham participado conseguiram um tempo a mais comigo injustamente. Por isso, os ausentes pediram uma espécie de encontro em grupo com eles.
Elegeram Winslow para me dizer isso, e ele se apresentou diante de mim com um olhar de cachorro abandonado que revelava o abatimento coletivo do grupo. Estávamos do lado de fora da sala de jantar, e ele veio atrás de mim quando eu seguia para o quarto.
— Pedimos apenas outro encontro em grupo para manter a situação justa.
Esfreguei o rosto e tentei explicar:
— Não foi exatamente um encontro. Ninguém planejou nada, e a minha família ficou comigo a maior parte do tempo, até meus irmãos mais novos.
— Nós entendemos, e concordamos em planejar tudo desde que você concorde em comparecer.
Suspirei, frustrada.
— Quantas pessoas seriam exatamente?
— Apenas oito. Ean pediu para não ser incluído.
Ri sozinha. Claro que Ean não queria nada com um bando de garotos choramingando por mais tempo comigo. Tive vontade de arrastá-lo para um encontro só por despeito. Suspeitei que era exatamente isso que ele esperava.
— Vocês organizam o encontro. Eu faço o máximo para arrumar tempo.
Winslow ficou radiante.
— Obrigado, Alteza.
— Mas — emendei rápido — por favor, informe aos garotos que esse tipo de pressão não melhora o conceito que tenho de vocês. Quando muito, é meio infantil. Então é melhor prepararem o encontro da vida de vocês.
Winslow ficou sem chão, e eu o deixei para trás e tomei as escadas.
Mais dois meses. Eu conseguiria. Evidentemente, havia tantos baixos quanto altos, mas eu tinha a sensação de que o pior havia passado. Me sentia menos intimidada pelos garotos depois do jogo, e tinha certeza de que era capaz de dar ao meu pai o tempo necessário.
Só não sabia bem o que fazer com meus sentimentos.
Contornei as escadas para o terceiro andar e encontrei Ahren de saída do quarto. Ele havia trocado o paletó por um colete, e tive certeza de que seguia para a nova suíte de Camille.
— Você nunca para de sorrir? — perguntei, incapaz de acreditar que seu rosto pudesse sustentar aquela expressão por tantos dias seguidos.
— Não quando ela está aqui — ele respondeu, para em seguida ajeitar o colete. — Estou bem?
— Como sempre. Em todo caso, tenho certeza de que ela não liga. Ela está tão caidinha por você quanto você por ela.
Ele suspirou.
— Também acho. Espero estar certo.
Era como se ele já tivesse partido. Na cabeça dele, estava em Paris cobrindo Camille de beijos e discutindo qual seria o nome de seus filhos. Senti que ele me abandonava… e não estava pronta para isso.
Engoli em seco e ousei dizer o que estava pensando já fazia um tempo.
— Veja, Ahren, ela é ótima. Não há como negar. Mas talvez não seja ela.
O sorriso de meu irmão finalmente vacilou.
— O que você quer dizer?
— Que talvez você devesse considerar outras opções. Há tantas pretendentes em Illéa que você nem notou. Não tenha pressa para fazer algo que não pode ser desfeito. Se você e Camille terminassem, não aconteceria nada. Se vocês se divorciassem, poderíamos perder nossa aliança com a França.
Ahren me encarou.
— Eadlyn, sei que você hesita em se deixar envolver, mas sei o que sinto por ela. Só porque você tem medo…
— Não tenho medo! — insisti. — Só quero ajudar você. Amo você mais do que qualquer um. Faria quase qualquer coisa por você, e pensava que você faria o mesmo por mim.
Todo e qualquer vestígio de alegria deixou o rosto de Ahren.
— Eu faria. Você sabe que eu faria — afirmou.
— Então, por favor, pense nisso. É só o que peço.
Ele fez que sim, passou a mão na boca e na bochecha, parecia conturbado… quase perdido.
Ahren olhou para mim, deu um leve sorriso e abriu os braços para me envolver. Ele me abraçou forte, como se nunca precisasse tanto de um abraço na vida.
— Amo você, Eady.
— E eu amo você.
Ele me deu um beijo na cabeça e me soltou para retomar o caminho do quarto de Camille.


Neena me esperava com a camisola pronta.
— Algum plano para a noite, Alteza? Ou quer se trocar para dormir?
— Dormir — afirmei. — Mas espere só para ouvir o que esses rapazes estão aprontando agora.
Contei a ela sobre o encontro coletivo que os rapazes exigiram, acrescentando que Ean tinha pedido para não participar.
— Atitude esperta a dele — Neena concordou.
— Eu sei. Estou pensando se isso lhe dá direito a um encontro especial, só para ele.
— Um encontro de verdade ou de despeito?
Comecei a rir.
— Nem eu sei. Argh, o que vou fazer com todos esses garotos?
— Arrancá-los daqui. Olha! Ainda tem restos de grama que deixamos passar hoje à tarde — ela disse, exibindo as folhas antes de jogá-las no lixo.
— Foi tão divertido — falei. — Nunca vou esquecer o rosto da minha mãe na janela, torcendo por mim. E eu pensava que estaria encrencada.
— Queria ter visto.
— De verdade, você não precisa se esconder no meu quarto o dia inteiro. Está sempre limpo. E não gasto muito tempo para me vestir de manhã. Você devia me acompanhar, ver mais do palácio além do seu quarto e do meu.
Ela deu de ombros.
— Talvez.
Percebi pelo seu tom de voz que a possibilidade a deixava empolgada. Me perguntei se não deveria treinar Neena para viagens. Seria bom tê-la comigo da próxima vez que fosse para o exterior. Mas, se ela realmente tinha a intenção de sair em mais ou menos um ano, talvez não valesse a pena. Sabia que não poderia mantê-la como criada para sempre, mas lamentava a ideia de ter que substituí-la.
Desci para o café da manhã no dia seguinte e notei que Ahren não estava lá. Fiquei preocupada com a possibilidade de ter ficado chateado comigo. Nunca ficamos brigados por muito tempo, mas eu odiava quando acontecia. Às vezes sentia que ele era um pedaço de mim.
Demorei um pouco para notar que Camille também não tinha aparecido. Supus que uma de duas coisas tinha acontecido: Ahren havia recobrado o juízo e dito a ela que precisava considerar outras opções, e por isso os dois estavam se evitando… Ou tinham passado a noite juntos e talvez ainda estivessem na cama.
Fiquei pensando no que meu pai pensaria daquilo.
Então percebi que alguns garotos também estavam ausentes. Talvez Camille e Ahren não estivessem abraçados na cama, afinal. Era possível que houvesse alguma epidemia de gripe ou algo assim. Era bem mais provável… e bem menos empolgante.
Saí da sala de jantar e dei com Leeland e Ivan à minha espera. Ambos curvaram-se em profunda reverência.
— Alteza — saudou Ivan —, sua presença é requerida no Grande Salão para o maior encontro da sua vida.
— É mesmo? — perguntei com um sorriso irônico.
Leeland começou a rir.
— Passamos a noite inteira trabalhando nisso. Por favor, diga que tem tempo agora.
Conferi as horas no relógio da parede.
— Talvez tenha uma hora.
Ivan se animou.
— É mais que suficiente. Venha conosco.
Os dois ofereceram o braço. Agarrei os dois e me deixei conduzir até o Grande Salão.
Um palquinho havia sido montado contra a parede dos fundos, coberto com o que pareciam ser nossas toalhas de Natal. Os holofotes que às vezes usávamos em festas estavam apontados para o centro do palco. À medida que nos aproximávamos, os garotos pediam silêncio uns para os outros e se alinhavam.
Fui levada até uma cadeira solitária, posicionada bem diante do palco. Me sentei ao mesmo tempo curiosa e confusa.
Winslow abriu os braços e anunciou:
— Bem-vinda ao primeiro Show de Talentos da Seleção, estrelando um punhado de fracassados que competem pela sua atenção.
Eu ri. Pelo menos eles admitiam.
Calvin sentou-se ao piano e começou a tocar uma música que parecia uma modinha antiga. Então todos saíram do palco, exceto Winslow.
Ele fez uma reverência solene, mas ao levantar a cabeça exibiu um sorriso amplo e sacou três bolinhas de pano. E começou a fazer malabarismo. Era tão besta que acabei rindo. Winslow virou para o lado, e alguém dos bastidores lhe lançou uma quarta bolinha. Depois a quinta, a sexta. Ele conseguiu mantê-las no ar por uns segundos até que todas caíram; uma delas até acertou a cabeça dele.
Todos lamentaram, mas aplaudiram o esforço, inclusive eu.
Lodge arrumou um arco e flecha e um alvo coberto de balões e conseguiu acertar cada um deles. Quando estouravam, soltavam nuvens de purpurina que aos poucos cobriam o chão. Calvin continuou tocando e trocava a melodia a cada ato.
Fox – que me surpreendeu ao se meter em outro encontro coletivo – subiu ao palco para desenhar. Desenhar horrivelmente. Tinha certeza de que Osten fazia homens-palito melhores quando criança. Contudo, como a ideia do show era destacar os seus pontos fortes de um jeito burlesco ou desfiar suas fraquezas de maneira cômica, seu número acabou sendo bem simpático. Tentei até pensar em um jeito de pegar discretamente o desenho que ele fez de mim, que consistia em pouco mais que uma cabeça redonda e umas ondinhas marrons para representar meu cabelo. Eu já tinha sido desenhada e pintada de inúmeras maneiras… mas nenhuma delas era tão fofa.
Leeland cantou, Julian brincou de bambolê, Ivan fez embaixadinhas por um tempo incrivelmente longo e Gunner leu um poema:
“Querida princesa Eadlyn,
Essa rima é difícil para mim,
E apesar de sermos uns chatos,
Amamos você mesmo assim.”
Passei o tempo todo rindo, assim como a maior parte dos garotos.
grand finale veio quando os oito se amontoaram no palco para dançar. Ou melhor, para tentar dançar. Com muitos requebrados e rebolados, o que me fez corar algumas vezes. No final, fiquei bem impressionada. Eles tinham organizado tudo do dia para a noite, para me entreter e se desculpar ao mesmo tempo.
Havia muito carinho naquilo tudo.
Quando eles fizeram a reverência final, aplaudi de pé.
— Bem, preciso trabalhar… mas o que acham de eu pedir algumas bebidas e conversarmos um pouco em vez disso?
Todos concordaram ao mesmo tempo, e pedi para trazerem chá, água e refrigerantes. Não quisemos saber de mesas. Em vez disso, sentamos no chão. Às vezes, aqueles moleques chatos sabiam ser muito legais.


Ahren também não apareceu para jantar. Observei os Selecionados entrarem em fila, seguidos por todos os nossos convidados. Depois veio minha mãe, um pouco atrasada… mas nada de Ahren.
Meu pai se inclinou para mim e perguntou:
— Onde está seu irmão?
Dei de ombros e continuei cortando o frango.
— Não sei. Não o vi o dia inteiro.
— Isso não é do feitio dele.
Corri os olhos pela sala de jantar e vi os dezenove candidatos restantes. Kile piscou para mim, e Henri me deu um oi com a mão. Ao olhar para Gunner, só consegui pensar em seu poema bobo. Fox acenou com a cabeça quando nossos olhares se encontraram. E quando Raoul se espreguiçou, me lembrei do seu cuidado ao me ensinar a jogar beisebol.
Ah, não.
Tinha acontecido. Mesmo com os garotos com quem eu não tinha passado muito tempo. Soube naquele momento que cada um deles tinha algo de especial. Alguns deles já haviam ganhado um lugar especial no meu coração, eu tinha consciência disso, mas como foi que todos se tornaram importantes para mim?
Senti meu peito pesar. Teria saudades desses garotos estranhos e barulhentos. Porque, mesmo se eu milagrosamente escolhesse um deles para ficar comigo no final, não haveria como manter todos por perto.
Estava pensando em como, um mês antes, me preocupava com a ideia de perder a tranquilidade do meu lar, quando Gavril entrou. Atrás dele vinha um dos jornalistas da equipe do Jornal Oficial.
Ele fez uma reverência diante da mesa principal e encarou meu pai.
— Lamento incomodar, Majestade.
— Não incomoda. O que houve?
Gavril percebeu todos os olhares curiosos ao redor e pediu:
— Posso me aproximar?
Meu pai fez que sim com a cabeça, e Gavril cochichou algo em seu ouvido.
Meu pai franziu a testa, incrédulo.
— Casou? — ele perguntou em voz alta o suficiente para que apenas minha mãe e eu escutássemos.
Meu pai afastou a cabeça e olhou fixo para Gavril.
— A mãe dela aprovou. Está feito, tudo dentro da legalidade. Ele foi embora.
Congelei. Saí correndo da sala de jantar.
— Não, não, não — balbuciava, enquanto corria escada acima.
Fui primeiro ao quarto de Ahren. Nada. Tudo estava intacto, nenhum sinal de malas feitas às pressas ou de uma saída urgente. Mas, sobretudo, nenhum sinal do meu irmão.
Disparei em direção à suíte de Camille. Um dia antes eu tinha visto que sua bagagem transbordava com tantas opções de trajes, capazes de lotar meu closet. As malas ainda estavam lá, com exceção da menor delas. E nada de Camille.
Me apoiei contra a parede. Estava muito chocada para processar aquilo. Ahren tinha ido embora. Ele tinha fugido e me deixado ali sozinha.
Permaneci em uma espécie de transe. Será que eu podia trazê-lo de volta? Gavril disse algo sobre legalidade. O que isso queria dizer? Havia alguma maneira de desfazer aquilo?
Meu mundo ficou turvo, ligeiramente desalinhado e errado. Como eu poderia fazer qualquer coisa sem Ahren?
Acabei no meu quarto, sem nem saber como tinha caminhado até lá. Neena me mostrou um envelope.
— O mordomo de Ahren entregou isto há cerca de meia hora.
Arranquei o papel das mãos dela.

Eadlyn,
Caso as notícias não cheguem aos seus ouvidos antes desta carta, deixe-me explicar o que fiz. Fui para a França com Camille e, mediante a aprovação dos pais dela, pretendo me casar imediatamente. Perdoe-me por fugir sem você e por ter excluído nossos pais daquele que sempre soube que seria o dia mais feliz da minha vida, mas senti que não tinha opção.
Depois de falar com você ontem à noite, os últimos anos fizeram perfeito sentido para mim. Sempre pensei que sua antipatia por Camille era causada pelo fato de as duas estarem na mesma situação. Vocês são duas mulheres jovens e belas que herdarão tronos. E você e ela lidam com essa posição de maneiras completamente distintas. Ela é aberta a tudo, enquanto você mantém as pessoas afastadas. Ela usa seu poder com humildade, enquanto que você o empunha como uma espada.
Detesto ser tão franco, embora tenha certeza de que você já saiba disso. Ainda assim, não me alegra nem um pouco dizê-lo.
Mas a situação de vocês não é o motivo da sua antipatia. Você não gosta de Camille porque ela é a única pessoa capaz de me separar de você. Suas palavras me atingiram com muita força, Eadlyn. Porque eu queria acreditar em você. Queria ouvi-la e levar em conta suas sugestões. Sabia que, se o fizesse, um dia você me convenceria a abrir mão de tudo por você. Talvez até passasse a sua coroa para a minha cabeça. E, céus, eu teria aceitado. Eu faria qualquer coisa por você.
Então, antes que você pudesse pedir a minha vida, eu a entreguei a Camille.
Desejo que você encontre o amor, Eadlyn. Um amor inconsequente, incansável, que a consuma. Se isso acontecer, talvez você entenda. Espero que esse dia chegue.
Minha felicidade com Camille tem apenas uma mancha: a possibilidade de ficar afastado de você caso não me perdoe. Será uma grande tristeza, porém mais suportável do que me separar da minha alma gêmea.
Sinto saudades suas já enquanto escrevo estas linhas. Não consigo nos imaginar tão distantes. Por favor, encontre uma maneira de me perdoar e saiba que amo você. Talvez não tão profundamente como você gostaria, mas amo.
Como prova do meu desejo de estar sempre ao seu lado, quero lhe dar uma última informação, algo que pode ajudá-la nos próximos meses.
Há mais províncias protestando contra a monarquia do que você imagina. Não são todas, mas há várias. E apesar de sentir muito ao dizer isso, o problema do povo com a monarquia vem de uma pessoa: você.
Não sei o motivo – talvez a sua juventude, talvez por você ser mulher, talvez por motivos que nenhum de nós seja capaz de entender – mas é preocupante. Nosso pai aparenta mais anos do que realmente tem. Diante da enorme quantidade de coisas que ele conquistou, seu desgaste é maior que o de seus predecessores. As pessoas acham que você subirá logo ao trono. E elas não estão preparadas para isso.
Odeio dizer essas palavras, mas acho que você já suspeitava. Não queria que você ficasse se consumindo na esperança de superar o problema. E só digo isso porque a considero capaz de fazê-los mudar de ideia. Pare de manter todos distantes, Eadlyn. Você pode ser corajosa e ainda ser feminina. Pode liderar e ainda gostar de flores. E o mais importante: você pode ser rainha e ainda ter um marido.
Acho que aqueles que não a conhecem como eu finalmente vislumbrariam esse seu lado se você pensasse em encontrar um parceiro. Posso estar errado, mas caso esta seja a última vez que queira falar comigo, tenho que lhe dar o único conselho que posso.
Espero que você consiga me perdoar.
Seu irmão, seu gêmeo, sua outra metade,
Ahren

Nenhum comentário :

Postar um comentário

Atenção: para postar um comentário, escolha Nome/Url. Se quiser insira somente seu nome.

Please, no spoilers!

Expresse-se:
(◕‿◕✿) 。◕‿◕。 ●▽●

⊱✿◕‿◕✿⊰(◡‿◡✿)(◕〝◕) ◑▂◐ ◑0◐

◑︿◐ ◑ω◐ ◑﹏◐ ◑△◐ ◑▽◐ ●▂● 

●0● ●︿● ●ω● ●﹏● ●△● ●▽●

Topo