Dezesseis

AO EMERGIR DA ESCADARIA que me levou à segurança na noite anterior, ficou claríssimo que os sulistas haviam estado ali. Mesmo no corredor curto que dava para meu quarto, havia uma pilha imensa de destroços que tive de escalar para chegar à porta.
Geralmente, a pior parte da destruição já tinha sumido quando nos liberavam. Dessa vez, porém, parecia haver trabalho demais para os funcionários, e se fôssemos esperar, passaríamos o dia no pavimento subterrâneo. Ainda assim, queria que eles se esforçassem mais. Observei um grupo de criadas tentando apagar com esfregões uma pichação gigante em uma parede: ESTAMOS CHEGANDO.
A frase repetia-se por todo o corredor; às vezes escrita com lama, outras vezes com tinta; uma parecia escrita com sangue. Senti calafrios, e me perguntei o que ela significaria.
Enquanto observava, minhas criadas correram até mim.
— A senhorita está bem? — perguntou Anne.
Levei um susto com aquela aparição repentina.
— Hmm, sim. Bem — e tornei a olhar para as palavras na parede.
— Venha, senhorita, vamos arrumá-la — insistiu Mary.
As segui obedientemente, ainda meio impressionada com tudo o que vira e confusa demais para fazer qualquer outra coisa. As três trabalharam com dedicação, como quando queriam me acalmar por meio da rotina matinal. Algo em suas mãos firmes – mesmo nas de Lucy – era reconfortante.
Quando terminaram de me arrumar, uma criada me acompanhou até a parte externa do palácio; aparentemente, era lá que trabalharíamos naquela manhã. Era tão fácil esquecer o vidro quebrado e a pichação assustadora sob o sol de Angeles. Mesmo Maxon e o rei se sentaram em uma mesa ao sol com seus conselheiros para analisar montes de documentos e tomar decisões.
Em uma tenda, a rainha lia alguns papéis e chamava a atenção de uma criada para os detalhes. Em uma mesa perto da rainha, Elise, Celeste e Natalie planejavam sua recepção. Estavam tão envolvidas que pareciam ter se esquecido completamente da noite difícil que tivéramos.
Kriss e eu estávamos do outro lado do quintal, sob uma tenda similar, mas nosso trabalho avançava devagar. Era difícil para mim conversar com ela e ao mesmo tempo lutar para arrancar da cabeça a cena de Maxon e ela em seu momento a sós. Apenas a assistia sublinhando trechos dos documentos dados por Silvia e rascunhando umas frases nas margens do papel.
— Acho que descobri como fazer com as flores — comentou ela, sem tirar os olhos do papel.
— Ah. Que bom.
Deixei meus olhos chegarem a Maxon. Ele tentava parecer mais ocupado do que realmente estava. Qualquer pessoa atenta perceberia que o rei fingia não ouvir seus comentários. Não entendi aquilo. Se o rei preocupava-se com a questão de seu filho tornar-se um bom líder, o que tinha que fazer era ensiná-lo de verdade, e não impedi-lo de fazer qualquer coisa por medo de eventuais erros.
Maxon repassou alguns documentos e levantou os olhos. Nossos olhares se cruzaram e ele acenou. Quando fui erguer a mão, vi pelo canto do olho que Kriss respondia ao aceno cheia de entusiasmo. Voltei a concentrar-me nos papéis, tentando esconder minhas bochechas coradas.
— Ele não é bonito?
— Claro.
— Fico imaginando como serão nossos filhos com os cabelos dele e os meus olhos.
— Como vai o tornozelo?
— Ah — disse ela. — Dói um pouco, mas o doutor Ashlar disse que ficarei boa até a recepção.
— Que bom — falei, finalmente olhando em seus olhos. — Ninguém gostaria de vê-la mancando por aí quando os italianos chegarem.
Eu tentei soar amistosa, mas notei que Kriss duvidava de meu tom de voz. Ela abriu a boca para falar algo, mas logo desviou o olhar. Olhei para onde ela olhava e vi Maxon aproximar-se da mesa com um lanche que os mordomos haviam preparado para nós.
— Já volto — Kriss disse com rapidez, antes de mancar até Maxon com uma velocidade acima da que eu considerava possível.
Não consegui tirar os olhos. Celeste se aproximou também, e os três conversavam calmamente enquanto se serviam de água e fatias de sanduíche. Celeste disse algo que fez Maxon rir. Kriss parecia sorrir, mas claramente estava aborrecida por Celeste interromper seu divertimento.
Eu quase agradeci Celeste naquela hora. Ela podia ser mil coisas que eu odiava, mas em compensação nunca se intimidava. Bem que eu precisava ser um pouco assim.
O rei berrou algo para um de seus conselheiros, e minha cabeça voltou-se imediatamente para ele. Não captei exatamente as palavras, mas ele parecia nervoso. Por trás dele, pude avistar Aspen, que fazia a ronda.
Ele me olhou rapidamente e arriscou uma piscada rápida. Sabia que sua ideia era diminuir minha preocupação, e até que funcionou um pouco. No entanto, não pude deixar de pensar sobre o que teria acontecido na noite passada para deixá-lo mancando um pouco e com um esparadrapo próximo ao olho.
Enquanto eu tentava descobrir um meio imperceptível de chamá-lo para o meu quarto esta noite, o telefone tocou dentro do palácio.
— Rebeldes! — gritou um guarda. — Corram!
— O quê? — gritou outro guarda, confuso.
— Rebeldes! Dentro do palácio! Estão chegando!
As palavras do guarda fizeram a ameaça na parede surgir na minha mente: ESTAMOS CHEGANDO.
As coisas aconteceram muito rápido. As criadas escoltaram a rainha para o lado mais distante do palácio. Algumas puxavam-na pelas mãos para que se movesse mais depressa, ao passo que outras correram atrás dela, como era seu dever, para evitar que fosse atacada.
O vestido vermelho de Celeste faiscou atrás da rainha, pois provavelmente aquela seria a rota para o lugar mais seguro. Maxon levantou Kriss e a botou no colo do guarda mais próximo, que por acaso era Aspen.
— Corra! — ele gritou para Aspen. — Corra!
Aspen, leal ao extremo, correu carregando Kriss como se ela não pesasse nada.
— Maxon, não! — gritou ela por cima dos ombros de Aspen.
Ouvi um estouro alto vindo das portas abertas do palácio e gritei. Entendi o que era aquele som ao ver chegarem vários guardas em uniformes escuros com armas nas mãos. Mais dois estouros e congelei de pavor, capaz apenas de observar o fluxo de pessoas movendo-se ao meu redor. Os guardas empurravam as pessoas para os lados, pedindo-lhes que abrissem caminho enquanto um enxame de pessoas vestindo calças reforçadas e casacos grossos corriam do lado de fora com mochilas e sacolas lotadas. Outro tiro.
Por fim, tomei consciência de que precisava me mexer. Dei meia-volta e corri sem pensar.
Com aqueles rebeldes inundando o palácio, o mais lógico pareceu-me correr deles. Mas isso implicava partir em direção à grande floresta com um bando de malvados atrás de mim. Levei alguns tombos por causa das sapatilhas, e cheguei a pensar em arrancá-las. No fim das contas, decidi que sapatilhas escorregadias eram melhor que andar descalça.
— America — chamou Maxon — não! Volte!
Arrisquei olhar para trás e vi o rei agarrar Maxon pelo colarinho do paletó, arrastando-o para outro lugar. Percebi o terror nos olhos de Maxon, que continuavam fixos em mim. Outro disparo.
— Abaixe-se! — Maxon gritou. — Vocês vão acertá-la! Cessar fogo!
Houve mais disparos, e Maxon continuou a gritar suas ordens até eu estar muito longe para entendê-las. Corri pelo campo aberto e percebi que estava só. Maxon fora contido pelo rei, e Aspen desempenhava seu papel de soldado. Qualquer guarda que desse comigo estaria à caça de rebeldes. Tudo o que eu podia fazer era correr para me salvar.
O medo me fez ser rápida, e me surpreendi com a destreza dos meus movimentos assim que entrei na floresta. O solo estava seco e firme, rachado por causa dos meses de estiagem. Sentia de leve os arranhões em minhas pernas, mas não quis diminuir o ritmo para checar se estavam muito feios.
Suava tanto que o vestido colava no meu peito. O bosque era mais frio e, a cada passo meu, ficava mais escuro; mas eu estava quente. Em casa, às vezes eu corria por diversão, para brincar com Gerad ou apenas para sentir as dores do esforço. Só que eu já estava há meses acomodada no palácio, comendo comida de verdade pela primeira vez, e pude sentir as consequências: meus pulmões queimavam e minhas pernas latejavam. Ainda assim, eu corria.
Após me embrenhar pela floresta, olhei para trás para conferir quão longe estariam os rebeldes. Não conseguia ouvi-los por causa do sangue que pulsava em minhas orelhas; tampouco pude vê-los. Decidi que aquela era a melhor oportunidade de esconder-me antes de eles notarem um vestido brilhante no meio do bosque sombrio.
Não parei até encontrar uma árvore grande o suficiente para me esconder. Fui para trás dela e logo notei um galho baixo em que podia subir. Arranquei os sapatos e os atirei para longe, torcendo para que não conduzissem os rebeldes até mim. Subi, embora não muito alto, e apoiei as costas na árvore, encolhida o máximo que podia.
Me esforcei para diminuir o ritmo da respiração com medo de que o som entregasse minha localização. Mas mesmo depois disso, houve silêncio por uns instantes. Imaginei tê-los deixado para trás. Não me mexi, à espera de uma confirmação. Segundos mais tarde, escutei as folhas farfalharem loucamente.
— Devíamos ter vindo à noite — alguém, uma voz de menina, bufou.
Espremi meu corpo contra a árvore, rezando para que nenhum galho estalasse.
— Eles não estariam do lado de fora à noite — replicou um homem.
Eles ainda corriam, ou pelo menos tentavam correr. Suas vozes davam a impressão de que aquilo lhes custava muito.
— Deixe-me carregar alguns — ele se ofereceu.
Pareciam estar muito próximos.
— Eu consigo.
Prendi a respiração e observei-os passarem bem debaixo da minha árvore. Logo quando pensava estar a salvo, a sacola da garota rasgou e uma pilha de livros caiu no chão da floresta. O que ela fazia com tantos livros?
— Droga — xingou e pôs-se de joelhos.
Ela usava uma jaqueta jeans com uma espécie de flor bordada.
— Eu disse para você me deixar ajudar.
— Fica quieto!
A garota empurrou as pernas do rapaz, e por esse gesto brincalhão pude notar quanto amor havia entre os dois.
Ao longe, alguém assoviou.
— Será Jeremy? — ela perguntou.
— Parece — respondeu ele, abaixado para recolher os livros.
— Vá buscá-lo. Estou logo atrás de você.
Ele hesitou por um momento, mas concordou; beijou a testa da moça e correu em direção ao assovio.
A garota juntou o resto dos livros. Com uma faca, cortou a alça da bolsa e usou-a para amarrá-los.
Tive uma sensação de alívio quando ela se levantou; esperava que ela se pusesse a caminho. Mas ela jogou o cabelo para trás e olhou para o alto.
E me viu.
Nenhum silêncio ou imobilidade adiantariam. Se eu gritasse, será que os guardas viriam? Ou será que o resto dos rebeldes estaria perto demais?
Nos encaramos. Esperei que chamasse os outros, torcendo para que seu plano, fosse qual fosse, não doesse muito.
Mas ela não fez um som. Apenas riu baixo, por causa da situação curiosa em que nos encontrávamos.
Ouviu-se outro assovio, um pouco diferente do último, e ambas olhamos na direção do som antes de nos encararmos mais uma vez.
E então, na mais inesperada das atitudes, ela jogou uma perna para trás da outra e abaixou-se graciosamente para me fazer uma reverência. Arregalei os olhos, completamente impressionada. Ela se ergueu, sorrindo, e correu rumo ao assovio. Observei-a até que as centenas de flores bordadas desapareceram por entre os arbustos.
Quando supus que mais de uma hora havia se passado, decidi descer. Fiquei parada ao pé da árvore e me dei conta de que não sabia onde estavam meus sapatos. Contornei a raiz da árvore a fim de localizar as pequenas sapatilhas brancas, mas foi em vão. Desisti e decidi tomar o caminho para o palácio.
Olhei à minha volta. Era evidente que isso não ia acontecer. Eu estava perdida.

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