Vinte e Quatro

NOS DOIS DIAS SEGUINTES, fiz todas as refeições em meu quarto, com o intuito de evitar Kriss até o jantar de quarta-feira. Pensei que não nos sentiríamos constrangidas depois de alguns dias. Mas eu estava errada. Nos cumprimentamos com um sorriso discreto, mas não consegui falar. Quase desejei sentar na outra mesa, entre Celeste e Elise. Quase.
Um pouco antes de servirem a sobremesa, Silvia entrou correndo o mais rápido que seus saltos lhe permitiram. Fez uma reverência particularmente breve antes de aproximar-se da rainha e falar-lhe ao pé do ouvido. A rainha resfolegou e correu com Silvia para fora da sala de jantar, deixando-nos sozinhas. Fomos ensinadas a nunca levantar a voz, mas não conseguimos aguentar aquela situação.
— Alguém sabe o que está acontecendo? — perguntou Celeste, com um ar de preocupação anormal para ela.
— Você não acha que eles estão feridos, acha? — foi a pergunta de Elise.
— Oh, não — Kriss balbuciou antes de encostar a cabeça na mesa.
— Está tudo bem, Kriss. Pegue um pedaço de torta — ofereceu Natalie.
Eu não tinha palavras. Não queria pensar no que aquilo tudo podia significar.
— E se eles foram capturados? — gemeu Kriss.
— Acho que os neoasiáticos não fariam isso — afirmou Elise, embora sua preocupação fosse evidente.
Eu não sabia ao certo se ela estava preocupada com a segurança de Maxon ou com a possibilidade de as agressões por parte de gente com quem ela tinha contato arruinarem as suas chances no palácio.
— E se o avião deles caiu? — Celeste pensou alto.
Ela levantou os olhos e eu fiquei surpresa de ver uma preocupação autêntica em seu rosto. Foi o bastante para todas ficarmos em silêncio.
E se Maxon tivesse morrido?
A rainha Amberly voltou com Silvia logo atrás. Olhamos para ela, ansiosas. Para o nosso grande alívio, ela estava radiante.
— Boas notícias, senhoritas. O rei e o príncipe voltam para casa esta noite! — anunciou.
Natalie bateu palmas, ao passo que Kriss e eu relaxamos em nossas cadeiras. Não tinha me dado conta de como meu corpo tinha estado tenso durante esses minutos.
Silvia tomou a palavra:
— Como os dois tiveram dias muito intensos, decidimos abrir mão de grandes comemorações. Dependendo do horário em que deixarem a Nova Ásia, talvez nem os vejamos antes da hora de dormir.
— Obrigada, Silvia — a rainha disse, com paciência.
Mas quem se importaria com festas naquele momento? A rainha continuou:
— Desculpem-me, senhoritas, mas tenho trabalho a fazer. Por favor, aproveitem as sobremesas e tenham uma noite maravilhosa — disse, para em seguida virar-se e passar pela porta tão depressa que seus pés mal tocavam o chão.
Kriss saiu da sala logo em seguida. Talvez estivesse preparando um cartão de boas-vindas.
Depois disso, terminei minha refeição rapidamente e subi as escadas. No caminho, vi um vulto de cabelos loiros sob um chapéu branco e com a camisa preta do uniforme das criadas correr para o outro lado das escadas. Era Lucy, e ela parecia chorar. Estava tão determinada em passar despercebida que decidi não chamá-la. Ao dobrar a esquina do corredor, vi a porta do meu quarto escancarada. Sem a porta para abafar as vozes, a discussão de Anne e Mary espalhava-se pelo corredor, de onde ouvi tudo.
— ...por que você pega tão pesado com ela? — reclamou Mary.
— E o que você queria que eu dissesse? Que ela poderia ter tudo o que quisesse? — retrucou Anne.
— Sim! O que em outras palavras seria você dizer que bota fé nela.
O que estava acontecendo? Seria esse o motivo de elas parecerem tão distantes entre si ultimamente?
— Ela sonha alto demais! — Anne acusou. — Seria maldade alimentar falsas esperanças.
— Ah, e você só disse coisas boas a ela, não é? Acontece que você é uma amargurada! — retrucou Mary, com a voz carregada de sarcasmo.
— O quê? — Anne disse.
— Amargurada. Não aguenta vê-la mais perto do que você de algo que você também quer — gritou Mary. — Você sempre menosprezou Lucy por ela não ter tantos anos de palácio como você. E sempre teve inveja de mim, que nasci aqui. Por que você não se contenta com o que é em vez de pisar nela para se sentir melhor?
— Não era essa minha intenção! — exclamou Anne, com a voz embargada.
Os soluços curtos bastaram para calar Mary. Também eu pararia diante deles. Ver Anne chorar parecia algo impossível.
— É tão ruim eu querer mais que isso? — perguntou ela, com a voz mais grave por causa do choro. — Sei que tenho um cargo de honra; fico feliz com meu trabalho. Mas não quero isso para o resto da minha vida. Quero mais. Quero um marido. Quero... — e sua fala foi vencida pela tristeza.
Meu coração se partiu em milhares de pedaços. O único caminho para sair desse emprego era o casamento. E não era provável que um grupo de Três e Quatros fosse desfilar pelos corredores do palácio em busca de uma criada para tomar como esposa. Anne estava realmente presa.
Respirei, me endireitei e entrei no quarto.
— Senhorita America — disse Mary, fazendo uma reverência, que Anne imitou.
Pelo canto do olho, notei que enxugava os olhos energicamente.
Sabendo do orgulho dela, não achei que comentar a cena fosse uma boa ideia, então passei pelas duas e me pus diante do espelho.
— Como você está? — continuou Mary.
— Muito cansada. Acho que vou direto para a cama — disse, concentrada nos grampos de meu cabelo. — Querem saber? Por que vocês duas não vão descansar? Posso cuidar de mim mesma.
— A senhorita tem certeza? — perguntou Anne, fazendo um esforço monstruoso para manter a voz firme.
— Total. Vejo vocês amanhã.
Elas não precisaram de mais incentivo que esse, ainda bem. Naquele momento, eu não queria que cuidassem de mim provavelmente tanto quanto elas. Assim que tirei o vestido, me deitei na cama e passei longos momentos pensando em Maxon.
Eu nem sabia direito o que pensava sobre ele. Era tudo um pouco vago e flutuante, mas recordava uma ou outra vez a minha felicidade extrema ao saber que ele chegara bem de viagem. E um pedaço de mim perguntava se ele tinha pensado em mim enquanto estava fora.
Rolei por horas na cama sem encontrar posição. Por volta de uma da manhã, decidi que, como não conseguiria dormir, podia muito bem ler. Acendi o abajur e peguei o diário de Gregory. Pulei algumas anotações para escolher uma entrada de fevereiro.

Às vezes, quase acho graça de como tudo foi tão simples. Se algum dia houver um livro didático sobre como derrubar países, eu seria a estrela. Ou, provavelmente, o próprio autor. Não saberia como explicar o primeiro passo, já que não é possível forçar uma invasão estrangeira ou colocar idiotas no poder do que está aí. Todavia, com certeza eu animaria os candidatos a líder a obter quantidades quase escandalosas de dinheiro, por todos os meios possíveis.
O fascínio pelo dinheiro não seria suficiente, porém. É preciso ter dinheiro e estar em condições de escravizar os demais por meio dele. Minha falta de experiência na política não foi empecilho para fazer alianças. De fato, posso dizer que evitar esse setor completamente foi um dos meus pontos mais fortes. Ninguém confia em políticos. Por que confiariam? Há anos Wallis faz promessas vazias na esperança de cumpri-las um dia. E nem no inferno há chances de elas tornarem-se realidade. Eu, por outro lado, ofereço uma ideia maior. Nada de garantias; apenas o pálido brilho de um otimismo de que a mudança virá. Não importa sequer que mudança, a essa altura. Estão tão desesperados que não se importam. Nem pensam em perguntar.
Talvez a chave seja manter-se calmo enquanto os outros entram em pânico. Wallis é tão odiado agora. Abriu mão de tudo para mim; só falta entregar-me a presidência. E não há uma alma que reclame. Não digo nada, não faço nada, e exibo um sorriso agradável enquanto todos os outros se afundam em histerias. Basta ver uma vez o covarde ao meu lado para não haver dúvidas de que fico melhor nos palanques ou cumprimentando primeiros-ministros. E Wallis está tão desesperado por ter alguém que o povo ame ao seu lado que, tenho certeza, serão necessários apenas dois ou três acordos verbais secretos para que eu passe a administrar tudo.
Este país é meu. Sinto-me como um garoto diante de um tabuleiro de xadrez com a certeza de que vai ganhar. Sou mais inteligente, mais rico e bem mais qualificado aos olhos de um país que me adora por motivos que ninguém saberia nomear. No momento em que alguém parar para pensar, não importará mais. Posso fazer o que quiser, e não restou ninguém para impedir-me. Então, o que virá depois?
Sinto que é tempo de derrubar o sistema. A patética república já está em destroços e mal funciona. A verdadeira pergunta é: a quem alinhar-me? Como transformar isso em algo pelo qual o povo implore?
Tenho uma ideia. Minha filha não vai gostar, mas não me importa. Já é tempo de ela servir para alguma coisa.

Fechei o livro com força. Estava confusa e frustrada. Havia algo que eu não sabia? Derrubar que sistema? Escravizar pessoas? Por acaso a estrutura do nosso país não era uma necessidade, mas uma conveniência?
Pensei em revirar o livro a fim de saber o que aconteceu com sua filha, mas já estava tão desorientada que achei melhor não. Em vez disso, fui à sacada, na esperança de que o ar fresco me ajudasse a compreender as palavras que acabara de ler.
Olhei para o céu. Tentava processar tudo aquilo, mas não sabia por onde começar. Soltei um suspiro e corri os olhos pelo jardim, até me deter em um ponto branco. Maxon caminhava sozinho pelos jardins. Finalmente tinha chegado. Estava com a camisa para fora, sem paletó ou gravata. O que fazia lá fora tão tarde? Notei que carregava uma de suas câmeras. A noite devia estar sendo difícil para ele também.
Hesitei por uns instantes, mas com quem mais poderia conversar sobre isso?
— Pssssiu!
Ele moveu a cabeça para os lados à procura do ruído. Chamei-o de novo, acenando com os braços até ele me ver. Um sorriso surpreso brilhou em seu rosto e ele acenou de volta. Cutuquei a orelha, na esperança de que ele pudesse me ver. Ele fez o mesmo. Apontei para ele e em seguida para o meu quarto. Ele fez que sim com a cabeça e ergueu o dedo indicador para dar a entender que em um minuto estaria lá. Eu confirmei com a cabeça e entrei enquanto ele fazia o mesmo.
Vesti o roupão e corri os dedos pelo cabelo para ficar ao menos um pouco arrumada, como ele. Não tinha muita certeza de como abordaria o assunto: basicamente, eu queria perguntar a Maxon se ele sabia que estava no topo de algo bem menos solidário do que o povo tinha sido levado a crer.
Bem quando me perguntava do porquê de sua demora, ele bateu à porta.
Corri para abrir e fui saudada pelas lentes de sua câmera, que registraram um dos meus sorrisos assustados. Minha expressão mudou e manifestou o quão insatisfeita fiquei com aquela pequena travessura. E Maxon tirou outra foto, rindo.
— Você é ridículo. Entre logo — ordenei, agarrando-o pelo braço.
Ele obedeceu.
— Desculpe. Não pude resistir.
— Você demorou — reclamei, enquanto me sentava à beira da cama.
Ele sentou-se ao meu lado, mantendo uma distância suficiente para que pudéssemos olhar um na cara do outro.
— Precisei passar no quarto.
Ele pôs a câmera sobre a cabeceira da cama, fazendo o jarro da moedinha vibrar um pouco. Ele emitiu um som parecido com um riso e voltou-se para mim, sem explicar o motivo da distração passageira.
— Ah, e como foi sua viagem?
— Esquisita — ele confessou. — Acabamos indo para uma parte rural da Nova Ásia. Meu pai disse que havia alguma disputa local. Só que quando chegamos lá, tudo estava bem.
Ele balançou a cabeça e prosseguiu.
— Sinceramente, não fez nenhum sentido. Passamos uns dias caminhando por cidades antigas e falando com os nativos. Meu pai ficou bastante decepcionado com meu domínio da língua e insistiu para que eu estudasse mais. Como se eu já não tivesse estudado bastante nos últimos dias — ele concluiu, soltando um suspiro.
— Isso é meio estranho.
— Acho que era algum tipo de teste. Ele tem feito alguns comigo do nada nos últimos tempos. Nem sempre tenho consciência de que são testes. Talvez esse tenha sido um teste de tomada de decisões ou situações inesperadas. Não tenho certeza. Em qualquer um dos casos — ele disse, com os ombros encolhidos — tenho certeza de que fracassei.
Ele esfregou as mãos por uns segundos e prosseguiu:
— Ele também queria muito falar sobre a Seleção. Acho que ele pensou que a distância me faria bem, me daria outra perspectiva e tal. Na verdade, estou cansado de ouvir todos falarem sobre uma decisão que cabe a mim.
Eu tinha certeza de que a “perspectiva” que o rei tinha em mente era a de me tirar da cabeça de Maxon. Eu tinha visto seu modo de sorrir às outras e de cumprimentá-las nos corredores. Ele nunca agiu assim comigo. Me senti imediatamente constrangida e sem saber o que fazer.
Ao que tudo indicava, Maxon também não sabia.
Decidi não lhe perguntar sobre o diário ainda. Maxon aparentava ser tão humilde em relação a essas coisas – o modo de liderar, o tipo de rei que desejava ser – que eu não podia exigir-lhe respostas sobre coisas que não tinha a menor certeza que pudesse dar. Um cantinho no meu cérebro não conseguia se livrar da preocupação de que ele sabia bem mais do que estava disposto a revelar. Só que eu mesma precisava conhecer mais antes de falar.
Maxon limpou a garganta e sacou um pequeno cordão de contas do bolso.
— Como eu disse, caminhamos por várias cidades, e vi isto numa loja de rua de uma velhinha. É azul — acrescentou, dizendo o óbvio. — E você parece gostar de azul.
— Eu amo azul — sussurrei.
Olhei para aquele pequeno bracelete. Alguns dias antes, Maxon caminhava do outro lado do mundo e viu isso em uma loja... e pensou em mim.
— Não encontrei mais nada para as outras, então peço que isso fique entre nós.
Concordei com a cabeça.
— Você nunca foi de contar vantagem — ele comentou.
Eu não conseguia deixar de olhar para o bracelete. Era tão discreto, com pedras polidas que não chegavam a ser joias. Estendi a mão e senti com o dedo uma das contas ovais. Maxon chacoalhou o bracelete em sua mão, o que me fez rir.
— Quer que eu ponha em você? — ele propôs.
Fiz que sim e estendi o pulso que não tinha o botão de Aspen. Maxon encostou as pedras frias contra minha pele e atou a fitinha que as unia.
— Lindo — disse ele.
E lá estava ela, apesar de todas as preocupações: a esperança.
Ela ergueu as partes pesadas de meu coração e me fez sentir falta dele. Quis apagar tudo desde o Halloween, voltar àquela noite e me fixar naquelas duas pessoas na pista de dança. E ao mesmo tempo, sentia meu coração encolher. Se ainda estivéssemos no Halloween, eu não teria motivos para duvidar daquele presente.
Mesmo se eu fosse tudo o que meu pai dizia que eu era; tudo o que Aspen dizia que eu não era... eu não podia ser Kriss. Kriss era melhor.
Estava tão cansada, estressada e confusa que comecei a chorar.
— America? — ele perguntou, hesitante. — O que há?
— Não entendo.
— O que você não entende? — Maxon perguntou calmamente.
Em um parêntese mental, reparei que ele tinha passado a lidar bem melhor com mulheres em prantos.
— Você — admiti. — Estou muito confusa com relação a você agora.
Limpei uma lágrima do olho, e a mão de Maxon, com enorme delicadeza, enxugou as demais.
De certa forma, era estranho sentir seu toque novamente. Por outro lado, aquilo era tão familiar que pareceria errado ele decidir omitir respostas. Parei de chorar, mas Maxon manteve sua mão próxima a meus olhos e passou a acariciar meu rosto.
— America — disse ele, sério — se você quiser saber qualquer coisa sobre mim, sobre o que acho importante e sobre quem sou, só precisa perguntar.
Ele parecia tão sincero que quase perguntei. Quase implorei para me contar tudo: se ele via Kriss como uma possibilidade desde o começo; se ele sabia dos diários; e sobre o que significava aquele bracelete perfeito que o tinha feito pensar em mim.
Mas como eu saberia que a resposta seria verdadeira? E – porque aos poucos me dava conta de que ele era a escolha mais certa – quanto a Aspen?
— Não sei se estou pronta para isso ainda.
Depois de um instante de reflexão, Maxon olhou para mim.
— Compreendo. Mas muito em breve precisaremos conversar sobre assuntos muito sérios. Quando você estiver pronta, estarei aqui.
Ele não me abraçou. Em vez disso, se levantou e me saudou com um gesto de cabeça antes de pegar sua câmera e caminhar até a porta. Olhou para trás uma última vez e desapareceu pelo corredor. Fiquei surpresa com a dor que senti ao vê-lo sair.

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