Vinte e Seis

DESCI PARA O CAFÉ ATRASADA. Não queria me arriscar a cruzar com Maxon ou com outra das garotas. Antes de chegar à escadaria, vi Aspen, que vinha subindo. Fiquei um pouco sem ar quando o vi olhar para os lados antes de se aproximar.
— Por onde você esteve? — perguntei, em voz baixa.
— Trabalhando, Meri. Sou um guarda. Não posso controlar meus horários ou postos. Já não estou sendo mais convocado para fazer a ronda do seu quarto.
Quis perguntar por quê, mas não havia tempo.
— Preciso falar com você.
Ele pensou por uns instantes.
— Às duas, vá para o final do corredor do primeiro andar, depois da ala hospitalar. Posso ficar lá, mas não por muito tempo.
Fiz que sim com a cabeça, e ele fez uma reverência rápida e seguiu seu caminho antes que qualquer pessoa notasse nossa conversa. Já eu desci as escadas, nada satisfeita.
Fiquei com vontade de gritar. O sábado significava passar o dia inteiro no Salão das Mulheres. Uma injustiça. Os poucos visitantes vinham para ver a rainha, não para nos ver. Quando uma de nós se tornasse princesa, isso provavelmente mudaria, mas por ora eu estava condenada a ficar observando Kriss se desdobrar para sua apresentação mais uma vez. Também as outras garotas liam – notas ou relatórios – o que me deixava doente. Precisava de uma ideia logo. Tinha certeza que Aspen me ajudaria a pensar em alguma.
Como se pudesse ler meus pensamentos, Silvia, que esteve fazendo visitas com a rainha, parou ao me ver.
— Como vai a minha aluna-estrela? — perguntou em um tom de voz baixo para que as outras não percebessem.
— Ótima.
— Como vai seu projeto? Precisa de ajuda para acertar algum detalhe?
Acertar detalhes? Como eu ia acertar os detalhes de nada?
— Vai muito bem. Você vai amar, tenho certeza — menti.
Ela inclinou um pouco a cabeça para o lado.
— Fazendo um misteriozinho, hein?
— Um pouco — sorri.
— Muito bem. Você tem feito um ótimo trabalho ultimamente. Tenho certeza de que este também será fantástico — ela disse, depois me deu uns tapinhas no ombro e saiu.
Eu estava tão encrencada.
Os minutos passaram devagar, como uma espécie de tortura. Um pouco antes das duas, pedi licença e segui pelo corredor. Bem no final, havia um confortável sofá vinho embaixo de uma janela enorme. Me sentei para esperar. Não avistei nenhum relógio por ali, mas os minutos passaram devagar demais para meu gosto. Por fim, Aspen apareceu na curva do corredor.
— Já era tempo — resmunguei.
— O que foi? — perguntou ele, de pé junto ao sofá, para que nossa conversa parecesse oficial.
“Tantas coisas”, pensei. “Tantas coisas que não posso contar para você.”
— Temos uma tarefa, e eu não sei o que fazer. Não consigo pensar em nada, estou estressada e com insônia — desembuchei.
Ele achou graça.
— E qual é a tarefa? Desenhar uma tiara?
— Não — grunhi, fuzilando Aspen com um olhar frustrado. — Temos que apresentar um projeto, algo de bom para o país. Como o trabalho da rainha Amberly com os deficientes.
— É isso que tem preocupado você? — perguntou, balançando a cabeça. — Como isso pode ser estressante? Parece legal.
— Eu também pensei isso, mas não consigo ter nenhuma ideia. O que você faria?
Aspen pensou por um momento.
— Já sei! Você deveria propor um sistema de intercâmbio de castas — ele disse, com os olhos brilhantes de entusiasmo.
— Um o quê?
— Um sistema de intercâmbio de castas. As pessoas das castas superiores trocam de lugar com as pessoas de castas inferiores para saberem como é estar na nossa pele.
— Não acho que isso vá funcionar, Aspen. Pelo menos, não para esse projeto.
— É uma grande ideia — ele insistiu. — Você é capaz de imaginar uma pessoa como Celeste quebrando as unhas para organizar prateleiras? Seria bom para eles.
— Mas o que aconteceu com você? Por acaso alguns guardas já não eram Dois desde o nascimento e mesmo assim são seus amigos agora?
— Não aconteceu nada comigo — ele se defendeu. — Sou o mesmo de sempre. Você é quem se esqueceu de como é morar em uma casa sem aquecimento.
Endireitei as costas.
— Não esqueci. Acontece que estou tentando propor um projeto humanitário que acabe com esse tipo de coisa. Mesmo se eu voltar para casa, alguém pode querer usar minha ideia, então tem que ser boa. Quero ajudar as pessoas.
— Não se esqueça, Meri — Aspen me implorou com uma paixão serena nos olhos. — Este governo cruzou os braços quando você ficou sem comida. Deixou meu irmão ser espancado na praça. Toda conversa do mundo não mudará o que nós somos. Nos encurralaram de tal maneira que nunca conseguiremos sair sozinhos. E eles não têm pressa de nos tirar de lá. Meri, eles simplesmente não entendem.
Respirei fundo e me levantei.
— Aonde você vai? — perguntou ele.
— De volta para o Salão das Mulheres — respondi, já a caminho.
Aspen veio atrás.
— A gente está mesmo brigando por causa de um projeto idiota?
Virei para ele e disse:
— Não. A gente está brigando porque você também não entende. Eu sou uma Três agora. E você é um Dois. Em vez de guardar rancor pelo jeito como fomos tratados, por que você não vê a oportunidade que tem em mãos? Você pode mudar a vida da sua família. Provavelmente, pode mudar um monte de vidas. E tudo o que você quer é empatar o jogo. Isso não vai nos levar a lugar algum.
Aspen saiu sem dizer nada. Tentei não ficar irritada com ele por sua defesa apaixonada daquilo que acreditava e buscava. Afinal, não era essa uma qualidade admirável? Além do mais, comecei a pensar sobre as castas e sobre como era impossível acabar com elas. Comecei a ficar zangada com a situação.
Nada mudaria. Por que me preocupar?


Toquei violino. Tomei banho. Tentei cochilar. Passei parte da noite no lugar mais silencioso possível. Me sentei na sacada.
Nada disso importava. Meu atraso começava a ficar perigoso. Ainda não tinha nada para o projeto.
Passei horas deitada na cama, tentando dormir, também sem sucesso. Continuava a relembrar as palavras zangadas de Aspen, sua luta constante contra seu fardo na vida. Pensei em Maxon e seu ultimato, sua exigência para que eu me comprometesse. E perguntei-me também se isso importava; estava certa de que voltaria para casa assim que aparecesse na sexta-feira sem nada para apresentar.
Dei um suspiro e puxei os cobertores. Evitava ler o diário de Gregory de novo. Tinha medo que ele me trouxesse mais dúvidas que soluções. Mas talvez algo nele me desse uma direção, algo que falar no Jornal Oficial.
Além disso, mesmo se a leitura não me ajudasse em nada, precisava saber o que acontecera à sua filha. Tinha certeza de que se chamava Katherine, então passei a folhear o livro em busca de qualquer menção a ela, ignorando todo o resto. Encontrei uma foto de uma garota de pé ao lado de um homem muito mais velho. Talvez fosse apenas minha imaginação, mas parecia que ela tinha chorado.

Katherine finalmente casou-se hoje com Emil de Monpezat da Noruécia. Ela choramingou ao longo de todo o caminho para a igreja até eu deixar claro que, se ela não se ajeitasse para a cerimônia, pagaria caro depois. Sua mãe não está feliz, e suspeito que Spencer esteja irritado agora que tomou consciência de que sua irmã não queria passar por isso. Mas Spencer é brilhante. Penso que vai alinhar-se a mim tão logo veja as possibilidades que lhe abri. E Damon é tão prestativo; gostaria de poder tirar seja lá o que for do seu sangue e injetar no resto da população. Há algo que dizer sobre os jovens. Foi a geração de Spencer e Damon que mais me ajudou a chegar onde estou. Seu entusiasmo é incansável, e as massas preferem ouvir eles a ouvir uns velhos frágeis insistindo que estamos indo pelo caminho errado. Fico imaginando se haverá um meio de silenciá-los para sempre sem manchar meu nome.
Em todo caso, a coroação está agendada para amanhã. Agora que a Noruécia conseguiu o que queria – a amizade da poderosa União Norte-Americana – posso ter o que quero: uma coroa. Acho a troca justa. Por que pleitear o título de presidente Illéa se posso ser rei Illéa? Por minha filha, fiz-me nobre.
Tudo está no lugar. Depois de amanhã, não haverá mais volta.

Ele a vendeu. O porco vendeu a filha para um homem que ela odiava a fim de obter o que desejava.
Meu primeiro impulso foi fechar o livro, fechá-lo de vez. Mas me forcei a folheá-lo e ler passagens aleatórias. Em uma página, havia um esboço do diagrama das castas, inicialmente imaginadas com seis níveis em vez de oito. Noutra, Gregory planejava mudar os sobrenomes das pessoas para separá-las de seu passado. Uma linha deixava evidente sua intenção de castigar os inimigos atribuindo-lhes castas inferiores e premiar os leais com as castas superiores.
Fiquei imaginando se meus tataravós simplesmente não tinham dinheiro ou se foram contra aquilo. Esperava que fosse a segunda alternativa.
Como teria sido meu sobrenome? Será que meu pai sabia?
Ao longo de toda a vida, tinha sido levada a pensar que Gregory Illéa era um herói, o homem que salvou nosso país quando estávamos à beira da extinção. Claramente, ele não passava de um monstro sedento de poder. Que tipo de homem manipularia as pessoas assim? Que tipo de homem negociava sua filha por simples conveniência?
Reli as anotações mais antigas sob uma nova luz. Ele nunca disse que queria ser um grande homem de família; ele só queria parecer ser. Ele jogaria as regras de Wallis por um momento. Ele usava os colegas dos filhos para ganhar apoio. Ele estava blefando desde o começo.
Senti enjoo. Levantei e comecei a andar em círculos para juntar todas aquelas peças em minha cabeça.
Como uma história inteira poderia ter sido esquecida? Como é possível que ninguém jamais tenha falado dos antigos países? Onde estaria toda essa informação? Por que ninguém sabia?
Olhei para o céu. Parecia impossível. Com certeza, alguém teria discordado, teria contado a verdade a seus filhos. E, de fato, talvez isso tenha acontecido. Sempre me perguntei por que meu pai nunca me deixara falar sobre aquele livro puído de história que tinha em seu quarto; por que a história que eu não conhecia sobre Illéa nunca fora impressa. Talvez porque, se alguém escrevesse que Illéa tinha sido um herói, as pessoas se rebelariam. Mas se tudo fosse especulação – uns insistindo que as coisas eram de um jeito enquanto outros negavam – como alguém se agarraria à verdade?
Fiquei pensando se Maxon sabia daquilo.
De repente, me veio à mente uma lembrança. Não havia muito, Maxon e eu demos nosso primeiro beijo. Foi tão inesperado que me afastei, deixando Maxon envergonhado. Então, quando me dei conta de que queria ser beijada por ele, sugeri que apagássemos aquela lembrança e criássemos outra nova.
“America”, disse ele, “acho que não podemos mudar a história.” Ao que respondi: “Claro que podemos. Afinal, quem vai saber disso além de nós dois?”. Minha intenção tinha sido fazer uma piada. Com certeza, se acabássemos juntos, recordaríamos o que verdadeiramente aconteceu não importa o quão idiota tenha sido. Jamais o substituiríamos por uma história mais perfeita em nome das aparências.
Só que a Seleção inteira girava em torno de aparências. Se nos perguntassem sobre o nosso primeiro beijo, será que Maxon e eu contaríamos a verdade? Ou manteríamos aquele pequeno detalhe como um segredo entre nós? Quando morrêssemos, ninguém saberia, e aquele fragmento do tempo, tão importante para nossa identidade, estaria perdido.
Seria assim tão simples? Contar uma história à geração seguinte e repeti-la até que fosse aceita como fato? Alguma vez perguntei a alguém mais velho que meus pais sobre o que sabiam ou sobre o que os pais deles haviam visto? Eles eram velhos. O que poderiam saber? Era tão arrogante da minha parte ignorá-los pura e simplesmente. Me sentia tão burra.
Mas o ponto importante não era como eu me sentia com relação ao problema; era o que eu faria com ele.
Tinha passado a vida inteira dentro de um buraco de nossa sociedade. Como amava música, nunca reclamei. Mas eu queria ter ficado com Aspen e, por ele ser um Seis, as coisas eram mais difíceis do que deveriam ser. Se Gregory Illéa não tivesse projetado friamente as leis do nosso país, sentado confortavelmente à sua escrivaninha anos atrás, Aspen e eu não teríamos brigado e eu nunca teria chegado a gostar de Maxon. Maxon sequer seria príncipe. As mãos de Marlee ainda estariam intactas, e ela e Carter não viveriam em um cômodo onde mal cabia a cama. Gerad, meu irmão caçula, poderia estudar toda a ciência que quisesse em vez de forçar-se a aprender artes pelas quais não tinha paixão.
Ao conquistar uma vida confortável em uma bela casa, Gregory Illéa roubara para sempre da maior parte do país a possibilidade de um dia tentar o mesmo.
Maxon disse que se eu quisesse saber quem ele era, bastava perguntar. Tinha temido encarar a possibilidade de ele ser esse tipo de pessoa, mas tinha que saber. Se era para eu decidir entre fazer parte da Seleção ou ir para casa, precisava saber do que ele era feito.
Botei pantufas e roupão e saí do quarto, cruzando com um guarda desconhecido pelo caminho.
— A senhorita está bem?
— Sim. Volto em breve.
Ele deu a impressão de querer falar mais, mas eu parti tão depressa que ele não teve tempo de falar. Subi as escadas até o terceiro andar. Diferentemente dos outros andares, os guardas ficavam no último degrau da escadaria, de modo que eu sequer podia caminhar até a porta de Maxon.
— Preciso falar com o príncipe — disse, tentando soar firme.
— É muito tarde, senhorita — observou o guarda da esquerda.
— Maxon não se incomodará — prometi.
O da direita abriu um sorrisinho malicioso.
— Acho que ele não gostaria de ter companhia neste momento, senhorita.
Franzi a testa, pensativa, repetindo a frase mentalmente.
Ele estava com outra garota.
Fui forçada a pensar que se tratava de Kriss. Lá estava ela, sentada no quarto dele, rindo ou talvez abrindo mão daquela regra imbecil dos beijos.
Uma criada surgiu no corredor com uma bandeja nas mãos e passou por mim ao descer as escadas. Abri caminho, tentando decidir se devia empurrar os guardas para avançar ou desistir. Quando estava prestes a abrir minha boca novamente, o guarda interrompeu:
— A senhorita deve voltar para a cama.
Quis gritar com eles, fazer alguma coisa. Me senti tão impotente. Mas não adiantaria nada e por isso saí. Escutei um dos guardas – o do sorriso malicioso – murmurar algo enquanto eu me afastava, o que piorou as coisas. Ele estava caçoando de mim? Sentindo dó? Eu não precisava da pena dele. Já me sentia mal o bastante sozinha.
No caminho de volta, me assustei ao deparar com a criada que passara por mim, agachada como se ajeitasse o sapato, mas na verdade estava claro que não era por isso que ela estava nessa posição. Quando cheguei perto, ela ergueu a cabeça, pegou sua bandeja e caminhou lado a lado comigo.
— Ele não está no quarto — sussurrou.
— Quem? Maxon?
Ela confirmou com a cabeça.
— Tente no andar de baixo.
Abri um sorriso e balancei a cabeça, surpresa.
— Obrigada.
Ela encolheu os ombros.
— Ele não está em nenhum lugar que você não encontraria se procurasse. Além disso — completou, com os olhos cheios de admiração — nós gostamos de você.
Ela se distanciou rapidamente pelo caminho até o primeiro andar. Fiquei imaginando a quem exatamente aquele “nós” se referia, mas por ora, me contentei com sua gentileza. Fiquei parada por uns instantes e depois desci as escadas.
O Grande Salão estava aberto, mas vazio, bem como a sala de jantar. Inspecionei o Salão das Mulheres, imaginando que seria um lugar engraçado para um encontro amoroso, mas eles também não estavam lá. Perguntei aos guardas na porta, e eles asseguraram que Maxon não tinha ido ao jardim. Verifiquei outras bibliotecas e salas de estar antes de começar a pensar que ele e Kriss já teriam voltado para seus respectivos quartos ou para o quarto dele.
Desisti. Voltei pelo corredor e fui em direção à escadaria de trás, que estava mais perto do que a principal. Não via nada, mas à medida que me aproximava, comecei a ouvir um sussurro. Diminuí o passo porque não queria ser invasiva e por não saber ao certo de onde vinha aquele som.
Outro sussurro.
Uma risadinha sedutora.
Um suspiro ardente.
Os sons ficaram mais nítidos e eu já tinha certeza da sua origem. Dei um passo à frente, olhei para a esquerda e vi um casal se agarrando na sombra. Quando as duas figuras ganharam contornos mais estáveis e meus olhos se ajustaram à luz, veio o choque.
O cabelo loiro de Maxon era inconfundível, mesmo na escuridão. Quantas vezes eu já não tinha visto aquela luminosidade? Mas o que eu jamais tinha visto, nem imaginado, era aqueles cabelos sendo acariciados pelos dedos longos e de unhas vermelhas de Celeste.
Maxon estava praticamente imobilizado contra a parede pelo corpo de Celeste. Ela esfregava o peito nele, ao passo que sua perna estava enlaçada na dele. O corte do vestido revelava sua longa perna, ligeiramente azul sob a escuridão da sala. Ela recuava um pouco apenas para se atirar contra Maxon novamente, aparentemente para provocá-lo.
Fiquei à espera de que ele lhe dissesse para sair de cima, que não era ela quem ele queria. Mas ele não disse. Em vez disso, ele a beijava. Essa demonstração de afeto a fez entrar em êxtase e soltar outro risinho. Maxon cochichou algo em seu ouvido, o que fez Celeste projetar-se para cima dele e beijá-lo mais intensamente do que antes. A alça do vestido dela escorregou do ombro, deixando à mostra o que pareciam quilômetros de pele até o fim de suas costas. Nenhum dos dois quis saber de ajeitar isso.
Fiquei petrificada. Quis gritar e chorar, mas fiquei com um nó na garganta. Por que, dentre todas, tinha que ser ela?
Os lábios de Celeste foram descendo até chegarem ao pescoço de Maxon. Ela soltou outra risadinha detestável e o beijou uma vez mais. Maxon fechou os olhos e sorriu. Como Celeste já não estava com o rosto na frente dele, fiquei em seu campo de visão.
Pensei em correr. Pensei em desaparecer, evaporar. Mas permaneci ali.
Então, ao abrir os olhos, Maxon me viu.
Enquanto Celeste desenhava uma trilha de beijos ao redor do pescoço dele, Maxon e eu apenas olhávamos um nos olhos do outro. Já sem o sorriso nos lábios, Maxon ficou paralisado. O espanto em seus olhos finalmente fez com que eu enfim conseguisse me mover. Celeste não percebeu o encontro, e eu recuei silenciosamente, sem ousar respirar.
Quando tive certeza de que já não podiam me ouvir, desatei a correr, passando como uma flecha pelos guardas e mordomos do turno da noite. As lágrimas vieram antes de eu chegar ao topo da escadaria principal.
Endireitei o corpo e caminhei rapidamente para o meu quarto. Passei reto pelo guarda preocupado, pela porta e sentei na cama, com o rosto voltado para a sacada. Na silenciosa calma do meu quarto, senti meu coração doer. Como você é burra, America. Tão burra.
Voltaria para casa. Esqueceria que tudo isso tinha acontecido. E casaria com Aspen.
Aspen era a única pessoa com quem eu podia contar.
Não demorou muito para que eu ouvisse batidas na porta e Maxon entrasse sem esperar resposta. Ele se agitava com violência pelo quarto, aparentemente tão zangado quanto eu.
Falei antes que ele pudesse dizer qualquer coisa.
— Você mentiu para mim.
— O quê? Quando?
— Como pode a mesma pessoa que falava em me pedir em casamento ser pega no flagra com alguém como ela?
— O que faço com ela não tem absolutamente nada a ver com meus sentimentos por você.
— É brincadeira, certo? Ou o fato de você ser o próximo rei torna aceitável ter mulheres seminuas a tiracolo sempre que desejar?
Maxon pareceu ferido.
— Não. Não é nada disso.
— Por que ela? — perguntei, com os olhos cravados no teto. — Por quê, dentre todas as mulheres do planeta, você a desejaria?
Olhei para Maxon à espera de uma resposta, mas ele apenas balançava a cabeça e olhava para os lados.
— Maxon, ela é uma atriz, uma farsa. Você tem que ser capaz de enxergar por baixo de toda aquela maquiagem. E um sutiã que faça os seios parecerem maiores não significa nada além de uma garota que quer manipular você para conseguir o que deseja.
Maxon esboçou uma risada.
— Na verdade, eu sei disso.
Sua calma me deixou desarmada.
— Então por que...
Mas eu já tinha minha resposta. Claro que ele sabia. Ele tinha sido criado aqui. Os diários de Gregory provavelmente eram lidos para ele antes de dormir. Não sei por que esperei o contrário.
Quão ingênua eu estava sendo? Quando pensava que havia uma opção melhor que eu para o cargo de princesa, imaginava Kriss. Ela era amável e paciente e mais um milhão de coisas que eu não era. Mas não a via ao lado deste Maxon. Para o homem que haveria de seguir as pegadas de Gregory Illéa, a única mulher era Celeste. Ninguém mais teria tanto prazer em manter o país a seus pés.
— Já chega — afirmei, também com um gesto. — Você queria uma decisão, pois aqui está: é o fim. É o fim da Seleção, o fim de todas as mentiras; principalmente, é o meu fim com você. Meu Deus, não consigo acreditar que fui tão burra.
— Não é o fim, America — ele me contradisse rapidamente, e seu porte comunicava tanto quanto suas palavras. — Será o fim apenas quando eu disser que é o fim. Você está nervosa agora, mas não é o fim para você.
Agarrei meus cabelos com a sensação de que dentro de alguns segundos arrancaria todos pela raiz.
— O que há de errado com você? Você está delirando? O que o faz pensar que algum dia acharei que não há nada de errado no que acabo de ver? Eu odeio aquela garota. E você a beijou. Não quero ter mais nada a ver com você.
— Santo Deus, mulher, você nunca me deixa falar!
— E o que você poderia dizer para justificar aquilo? Só quero que você me mande para casa. Não quero mais ficar aqui.
— Não.
Fiquei irada. Ele não tinha me pedido exatamente isso?
— Maxon Schreave, você não passa de uma criança que segura um brinquedo que não quer, mas não suporta que outra pessoa o tenha.
Com calma, Maxon começou a falar.
— Entendo a sua raiva, mas...
Fuzilei:
— Estou além da raiva!
Maxon parecia tranquilo.
— America, não me chame de criança nem me provoque.
Fuzilei de novo:
— E o que você vai fazer?
Maxon agarrou meus pulsos e imobilizou meus braços atrás das costas. Dava para ver a raiva em seus olhos. Fiquei contente de ele sentir isso. Queria que ele me desafiasse. Queria um motivo para machucá-lo. Eu era capaz de cortá-lo em pedaços naquele momento.
Mas não havia ódio em Maxon. Em vez disso, senti aquela chispa de eletricidade, aquela que estava desaparecida havia um bom tempo. O rosto de Maxon estava a centímetros do meu. Seus olhos procuravam os meus, talvez para saber como ele seria recebido; talvez sem se importar com nada. Embora tudo estivesse errado, eu ainda queria. Meus lábios se desgrudaram antes de eu me dar conta do que estava acontecendo.
Chacoalhei a cabeça, com o intuito de clarear minhas ideias, e recuei até a sacada. Ele não tentou me conter. Respirei fundo algumas vezes antes de encará-lo novamente.
— Você vai me mandar embora? — perguntei sem alarde.
Maxon negou com a cabeça, sem vontade ou condições de falar.
Arranquei o bracelete que ele me dera e lancei contra a parede do quarto.
— Então saia — pedi em voz baixa.
Dei meia-volta e continuei na sacada. Esperei alguns segundos até ouvir o barulho da porta. Assim que ele saiu, deitei no chão e comecei a soluçar.
Ele e Celeste eram tão iguais. Tudo para eles era um espetáculo. E eu sabia que Maxon era capaz de passar o resto da vida induzindo as pessoas a acreditar que ele era maravilhoso com suas palavras doces. Isso ao mesmo tempo em que as mantinha presas em suas posições. Exatamente como Gregory.
Sentei no chão e cruzei as pernas. Por mais zangada que estivesse com Maxon, estava ainda mais comigo mesma. Deveria ter lutado mais. Deveria ter feito mais. Não deveria estar ali parada, sentindo-me derrotada.
Enxuguei as lágrimas e analisei a situação. Não queria mais nada com Maxon, mas ainda estava no palácio. Não queria mais competir, mas ainda tinha uma apresentação a fazer. Aspen podia pensar que eu não era forte o bastante para ser princesa – e estava certo – mas tinha certeza de que ele botava fé em mim. Assim como meu pai. Assim como Nicoletta.
Já não estava lá para ganhar. Então, como poderia sair em grande estilo?

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