Caixa de Pássaros - Capítulo 9

Criaturas, pensa Malorie. Que palavra boba.
As crianças estão quietas, e as margens, silenciosas. Ela consegue ouvir os remos cortando a água. O ritmo das remadas está em sintonia com as batidas de seu coração, mas depois se perde. Quando as cadências se opõem, ela sente que poderia morrer.
Criaturas.
Malorie nunca gostou dessa palavra. De alguma forma parece errada. Acha que as coisas que a assombram há mais de quatro anos não são criaturas. Uma lesma de jardim é uma criatura. Um porco-espinho também. Mas o que se esgueirava por trás das janelas cobertas e a manteve vendada não é do tipo que um exterminador de pestes poderia matar.
“Bárbaro” também não é bom. Um bárbaro é imprudente. Assim como um brutamontes.
A distância, um pássaro canta, bem alto no céu. Os remos cortam a água, balançando a cada remada.
“Gigante” não se pode provar. Elas podem ser tão pequenas quanto uma unha.
Apesar de a família estar no início da jornada pelo rio, os músculos de Malorie doem de tanto remar. Sua camisa está encharcada de suor. Seus pés estão frios. A venda continua a irritá-la.
“Demônio.” “Diabo.” “Vampira.” Talvez tudo isso.
A irmã dela morreu porque viu uma dessas coisas. Os pais devem ter encontrado o mesmo destino.
“Capeta” é bondoso demais. “Selvagem”, humano demais.
Malorie não está só com medo das coisas que podem entrar no rio. Elas também a fascinam.
Será que sabem o que fazem? Será que querem fazer o que fazem?
Naquele instante, ela sente que o mundo inteiro está morto. Sente como se aquele barco a remo fosse o único lugar onde há vida humana. O resto do mundo se espalha a partir da ponta do barco, um mundo vazio, florescendo desabitado a cada remada.
Se não sabem o que fazem, não podem ser “vilões”.
As crianças estão quietas há muito tempo. Ouve-se outro canto de pássaro no céu. Um peixe pula. Malorie nunca viu este rio. Como será que ele é? Será que as árvores ocupam as margens? As casas margeiam a costa?
São monstros, pensa Malorie. Mas ela sabe que são mais do que isso. São o infinito.
— Mamãe! — grita o Garoto de repente.
Uma ave de rapina grasna. O eco atravessa o rio.
— O que foi, Garoto?
— Parece um motor.
— O quê?
Malorie para de remar imediatamente. Ela ouve com atenção.
Ao longe, além do curso do rio, surge o som de um motor.
Malorie o reconhece no mesmo instante. É o barulho de outro barco se aproximando.
Em vez de ficar animada com a possibilidade de encontrar outro ser humano no rio, Malorie sente medo.
— Abaixem-se, vocês dois — ordena.
Ela deixa os remos descansarem em seus joelhos. O barco flutua.
O Garoto ouviu, diz a si mesma. O Garoto ouviu porque você o criou bem e agora ele escuta melhor do que jamais vai conseguir enxergar.
Respirando fundo, Malorie espera. O barulho do motor fica mais alto. O barco está viajando rio acima.
— Ai! — reclama o Garoto.
— O que foi?
— Minha orelha! Uma árvore bateu em mim.
Para Malorie, isso é bom. Se uma árvore bateu no Garoto, o barco deve estar próximo de uma das margens. Talvez, por alguma providência divina, a folhagem dê cobertura a eles.
O outro barco está muito mais perto agora. Malorie sabe que, se abrisse os olhos, poderia vê-lo.
— Não tirem a venda — ordena ela.
E então o barulho do barco está no mesmo volume que o do deles. Ele não segue o rio.
Quem quer que seja, pensa Malorie, pode nos ver.
O motor do barco é desligado de repente. O ar cheira a gasolina. Passos atravessam o que deve ser o deque.
— Olá! — diz uma voz.
Malorie não responde.
— Olá! Está tudo bem. Podem tirar as vendas! Sou só um homem comum.
— Não, não podem — afirma Malorie para as crianças.
— Não tem nada aqui além de nós, senhora. Pode acreditar em mim. Estamos sozinhos.
Malorie fica parada. Por fim, sentindo que não tem alternativa, responde:
— Como o senhor sabe?
— Senhora — diz ele. — Estou olhando para vocês. Fiquei de olhos abertos durante toda a viagem de hoje. E a de ontem também.
— Não dá para simplesmente olhar — afirma ela. — O senhor sabe disso.
O estranho ri.
— É sério. Não há nada a temer. Pode confiar em mim. Somos apenas nós dois neste rio. Só duas pessoas comuns que se cruzaram.
— Não! — grita Malorie para as crianças.
Ela solta a Menina e pega os remos de novo. O homem suspira.
— Não precisa viver assim, senhora. Pense nessas crianças. Você tiraria delas a chance de ver um dia lindo e alegre como este?
— Fique longe do nosso barco — diz Malorie, com a voz firme.
Silêncio. O homem não responde. Malorie se prepara. Ela se sente presa. Vulnerável.
Naquele barco atracado à margem. Naquele rio. Naquele mundo.
Alguma coisa pula na água. Malorie se sobressalta.
— Senhora — diz o homem —, a vista é incrível, se não se importar com um pouco de neblina. Quando foi a última vez que olhou para fora? Já faz anos? Você já viu este rio? O céu? Aposto que nem se lembra de como é o céu.
Ela se lembra muito bem do mundo exterior. Lembra-se de voltar andando para casa depois da escola e passar por um túnel de flores amareladas pelo outono. Lembra-se dos quintais e jardins e das casas dos vizinhos. Lembra-se de deitar na grama do quintal com Shannon e decidir quais nuvens pareciam os meninos e as meninas da sua turma.
— Vamos manter as vendas — informa Malorie.
— Eu desisti disso, senhora — afirma ele. — Já superei. Por que não faz o mesmo?
— Deixe a gente em paz agora — ordena ela.
O homem suspira de novo.
— Não podem assombrar você para sempre — argumenta o homem. — Não podem forçar você a viver assim para sempre. Sabe disso, não é, senhora?
Malorie posiciona o remo direito em um ponto de onde acredita que pode empurrar a margem.
— Eu mesmo deveria tirar essas vendas de vocês — diz o homem de repente.
Malorie não se mexe.
Ele parece ranzinza. Um pouco irritado.
— Somos só duas pessoas — continua. — Que se encontraram nesse rio. Quatro, se incluirmos os pequenos. E eles não podem ser culpados pela maneira como você os cria. Sou o único aqui que tem coragem suficiente para olhar para fora. A sua preocupação só mantém você a salvo para que possa ficar ainda mais preocupada.
A voz dele está vindo de outro lugar. Malorie acha que o homem foi para a frente do barco.
Ela só quer passar por ele. Só quer se afastar mais da casa onde estava de manhã.
— E vou lhe dizer uma coisa — afirma o sujeito de repente, de um lugar terrivelmente perto. — Eu vi um deles.
Malorie agarra o Garoto e o puxa pelas costas da camisa. Ele bate no fundo do barco e grita.
O homem ri.
— Não são tão feios quanto você imagina, senhora.
Ela lança o remo na direção da margem. E se atrapalha. É difícil achar alguma coisa sólida. Parecem gravetos e raízes. Lama.
Ele vai ficar maluco, pensa Malorie. E vai machucar vocês.
— Para onde você vai? — grita o homem. — Vai chorar toda vez que ouvir um graveto quebrar?
Malorie não consegue liberar o barco.
— Não tirem as vendas! — berra para as crianças.
O homem disse que viu um deles. Quando? Quando?
— Você acha que estou maluco, não acha?
Por fim, o remo bate com força na terra. Malorie empurra a margem, grunhindo. O barco se movimenta. Ela acha que pode ter conseguido soltá-lo. Então ele bate no barco do homem e ela grita.
Ele prendeu você.
Será que vai forçá-los a abrir os olhos?
— Quem é o louco aqui? Olhe só para você. Duas pessoas se encontram num rio...
Malorie se balança para a frente e para trás. Ela sente um espaço atrás do seu barco, uma espécie de abertura.
— Uma delas olha para o céu...
Malorie sente o remo afundar na terra.
— A outra tenta guiar um barco vendada.
O barco a remo está quase livre.
— Então, tenho que me perguntar...
— Vá embora! — berra Malorie.
— Quem é que enlouqueceu?
O homem dá uma gargalhada. A risada parece subir até o céu do qual ele fala. Ela pensa em perguntar: Há quanto tempo você viu uma das criaturas? Mas não faz isso.
— Deixe a gente em paz! — grita ela.
Por causa do esforço que ela faz para se afastar da margem, a água fria do rio espirra dentro do barco. A Menina berra. Malorie pede a si mesma: Pergunte ao homem há quanto tempo ele viu a coisa. Talvez a loucura não tenha se instalado ainda. Talvez o processo seja mais lento com ele. Quem sabe ele possa fazer uma última boa ação antes de perder toda a noção de realidade.
O barco se solta.
Tom uma vez disse que devia ser diferente para cada um. Disse que uma pessoa que já era maluca podia não ficar ainda mais louca. E que a mais sã podia levar mais tempo para enlouquecer.
— Abra os olhos, pelo amor de Deus! — grita o homem.
A voz dele mudou. Ele parece bêbado, diferente.
— Pare de fugir, senhora. Abra os olhos! — implora.
— Não escutem o que ele diz! — berra Malorie.
O Garoto está abraçando a mãe e a Menina choraminga atrás dela. Malorie treme.
— É a sua mãe que é maluca, crianças. Tirem essas vendas.
O homem de repente urra, fazendo ruídos com a garganta. Parece que alguma coisa morreu dentro dele. Quanto tempo vai levar para começar a se estrangular com a corda do próprio barco ou se jogar na hélice giratória do motor?
Malorie rema furiosamente. Sua venda não parece estar apertada o suficiente.
O que ele viu está por perto. O que ele viu está aqui no rio.
— Não tirem as vendas! — grita ela de novo enquanto passa pelo barco a motor do homem. — Vocês entenderam? Respondam!
— Entendemos! — diz o Garoto.
— Entendemos! — diz a Menina.
O homem urra outra vez, mas agora está mais longe deles. Parece que está tentando gritar, mas esqueceu como se faz isso.
Depois que o barco navega por mais quarenta metros e o som do motor atrás deles quase desaparece, Malorie estende a mão para a frente e encosta no ombro do Garoto.
— Não se preocupe, mamãe — diz ele.
Então Malorie estende o braço para trás e encontra a mão da Menina. Ela a aperta. Depois, soltando ambos, pega os remos de novo.
— Estão secos? — pergunta.
— Não — responde a Menina.
— Usem o cobertor para se secar. Agora.
O ar parece limpo outra vez. As árvores. A água.
A fumaça do combustível ficou para trás.
Você se lembra do cheiro da casa?, pensa Malorie.
Apesar do horror de ter encontrado o homem no barco, ela se lembra. O ar parado e abafado da casa. Já era assim no dia em que ela chegou. E nunca melhorou.
Ela não odeia o homem do barco. Só se sente triste por ele.
— Vocês se saíram muito bem — diz às crianças, tremendo enquanto rema para ainda mais longe pelo rio.

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