Capítulo 29

Quando alguém diz que sua estação do ano preferida é o outono, penso em dias assim: a névoa do amanhecer se tornando uma luminosidade límpida e fresca, montes de folhas varridas pelo vento nas esquinas, um cheiro rançoso de vegetação se decompondo aos poucos. Tem gente que diz que não dá muito para notar as estações na cidade, que os inúmeros prédios cinzentos e o microclima criado pela poluição do trânsito não permitem que a diferença seja muito grande. Só há o interior e o exterior, o molhado ou o seco. Mas, no telhado, o outono ficava em evidência. Não só na enorme extensão do céu, como também nos pés de tomate que Lily tinha plantado, os quais passaram semanas dando grandes frutos vermelhos, e os vasos pendurados de morango forneciam uma variedade ocasional de belas surpresas. As flores já secas depois de despontar e desabrochar, o novo tom de verde do início do verão substituído por talos finos e sem folhas. No telhado, dava para detectar o mais leve sinal da brisa do inverno que se aproximava. Um avião deixava um rastro de vapor pelo céu e notei que as luzes da rua estavam acesas desde a noite anterior.
Minha mãe surgiu no telhado de calça social, olhando ao redor para os convidados e sacudindo da roupa as gotículas de umidade da escada de incêndio.
— Esse seu espaço é mesmo incrível, Louisa. Dá para receber cem pessoas aqui em cima. — Ela carregava uma sacola com várias garrafas de champanhe e colocou-a no chão com cuidado. — Já falei que a considero muito corajosa de arranjar forças para subir aqui de novo?
— Ainda não acredito que você conseguiu cair — comentou minha irmã, que estava enchendo os copos. — Só você seria capaz de cair de um espaço tão grande assim.
— Bem, ela estava muito bêbada, lembra? — Minha mãe se virou para a escada de incêndio. — Onde você arranjou todo esse champanhe, Louisa? Isso é incrível.
— Meu chefe me deu.
Algumas noites antes, estávamos fechando a caixa registradora, conversando (passamos a nos falar bastante, principalmente depois que o filho de Richard nascera. Eu sabia mais sobre a retenção de líquidos da Sra. Percival do que ela consideraria aceitável). Eu mencionara meus planos, mas meu chefe desaparecera, como se não estivesse escutando. Eu estava prestes a considerar isso só mais um exemplo de como, no fundo, ele continuava sendo um idiota, mas, alguns minutos depois, Richard voltou da adega com uma caixa que continha meia dúzia de garrafas de champanhe.
— Aqui. Sessenta por cento de desconto. A última do pedido. — Ele me entregou a caixa e deu de ombros. — Na verdade, deixe para lá. Pode levar. Vá em frente. Você mereceu.
Eu gaguejara um agradecimento e ele murmurara algo sobre não ser uma safra maravilhosa e a última da linha, mas suas orelhas ganharam um tom cor-de-rosa revelador.
— Você poderia tentar parecer um pouco feliz por eu não ter realmente morrido — falei, entregando uma bandeja de copos para Treena.
— Ah, já faz séculos que superei aquela minha neura de “queria ser filha única”. Bem, talvez há uns dois anos.
Minha mãe se aproximou com um pacote de guardanapos. Falou num sussurro exagerado:
— Olhe, você acha que esses estão bons?
— Por que não estariam?
— São os Traynor, não é? Eles não usam guardanapos de papel. Usam de linho. Talvez com um brasão bordado ou algo assim.
— Mãe, eles vieram para o telhado de um antigo prédio comercial no leste de Londres. Então não acho que estejam esperando um serviço cinco estrelas.
— Ah — disse Treena. — E eu trouxe o edredom e o travesseiro extras de Thom. Achei que poderíamos começar a trazer algumas coisinhas toda vez que viéssemos. Amanhã tenho uma reunião para tratar das atividades extracurriculares dele.
— Acho maravilhoso vocês terem resolvido tudo, meninas. Treena, se você quiser, posso cuidar do Thom. Só me avisar.
Fizemos nosso trabalho, arrumando os copos e os pratos de papel, até minha mãe desaparecer para buscar mais guardanapos inadequados.
Abaixei o tom de voz para que ela não conseguisse me ouvir:
— Treen? Papai não vem mesmo?
Minha irmã fez uma careta, e tentei não parecer tão triste quanto me sentia.
— As coisas não melhoraram?
— Espero que, quando eu sair de casa, eles tenham que se falar. Os dois ficam se evitando e falam apenas comigo ou com Thom na maioria das vezes. É de enlouquecer. Mamãe finge que não está chateada por ele não ter vindo com a gente, mas sei que está.
— Achei realmente que ele viria.
Eu tinha visto minha mãe duas vezes desde o tiroteio. Ela se matriculara num curso novo, de poesia inglesa moderna, no centro educacional de adultos, e passou a ficar melancólica diante de símbolos em qualquer lugar.
Cada folha morta era um sinal de decrepitude iminente, cada pássaro no ar, um sinal de esperanças e sonhos. Tínhamos ido a uma leitura de poesia na Margem Sul, onde ela ficara sentada extasiada e aplaudira duas vezes em meio ao silêncio, e uma vez ao cinema, depois ao toalete do hotel elegante, onde ela se sentara nas poltronas do vestiário para dividir sanduíches com Maria. Nas duas vezes em que ficamos sozinhas, ela pareceu muito suscetível.
— Não estamos nos divertindo muito? — perguntava minha mãe o tempo todo, como se me desafiasse a discordar.
Depois ficava em silêncio ou se impressionava com o preço louco dos sanduíches em Londres.
Treena puxou o banco, afofando as almofadas que trouxera lá de baixo.
— É com vovô que estou preocupada. Ele não gosta de toda essa tensão. Troca de meia quatro vezes por dia e já quebrou dois botões do controle remoto de tanto apertar.
— Nossa... Mas essa é uma questão. Quem ficaria com a custódia dele?
Minha irmã me encarou horrorizada.
— Não olhe para mim — dissemos em uníssono.
Fomos interrompidas pela chegada dos primeiros membros do Grupo Seguindo em Frente. Sunil e Leanne subiam os degraus de ferro e comentavam sobre o tamanho do terraço e a vista inesperadamente magnífica do lado leste da City.
Lily chegou ao meio-dia em ponto. Foi logo me abraçar e deixou escapar um discreto grunhido de felicidade.
— Amo esse vestido! Você ficou deslumbrante. — Ela parecia sincera.
Estava bronzeada e sardenta, com os pelos dos braços descoloridos, usando um vestido azul-claro e sandália gladiadora. Notei que ela ficou observando o terraço, visivelmente encantada por estar ali outra vez.
Camilla, subindo devagar pela escada de incêndio logo atrás, endireitou o casaco e veio até mim com uma discreta expressão de censura.
— Você podia ter esperado, Lily.
— Por quê? Você não é nenhuma velha.
Camilla e eu trocamos olhares irônicos, e depois, quase por impulso, me inclinei à frente e lhe dei um beijo na bochecha. Ela tinha o mesmo cheiro daquelas lojas de departamento caras, e seu cabelo estava perfeito.
— Que bom que você veio.
— Você até cuidou das minhas plantas. — Lily estava observando tudo ao redor. — Achei que mataria todas. Ah, e isso! Adorei. São novos?
Ela apontou para os dois vasos que eu havia comprado no mercado de flores na semana anterior para decorar o telhado. Eu não quisera vaso de flores, nem nada que pudesse morrer.
— São gerânios — disse Camilla. — Não vai querer deixá-los aqui em cima no inverno.
— Ela poderia cobri-los com fleece. Esses vasos de barro são pesados para carregar lá para baixo.
— Mesmo assim não sobreviveriam — afirmou Camilla. — Estão expostos demais.
— Na verdade — falei —, Thom está vindo morar aqui e não temos certeza se ele ficaria em segurança no telhado, considerando o que aconteceu comigo. Então vamos fechar o acesso. Se quiser levar esses depois...
— Não — disse Lily, após refletir um instante. — Vamos deixar aqui. Vai ser bom poder imaginar o terraço assim. Como era.
Ela me ajudou a abrir uma mesa de cavalete e falou sobre a escola – estava feliz, mas sofrendo um pouco com o trabalho – e sobre a mãe, que aparentemente estava dando em cima de um arquiteto espanhol chamado Felipe, que comprara a casa ao lado da dela em St. John’s Wood.
— Estou quase com pena do Pentelho. Não sabe o que o espera.
— Mas você está bem? — perguntei.
— Estou ótima. A vida está boa. — Ela enfiou um salgadinho na boca. — Já contei que vovó me levou para visitar o bebê? — Devo ter parecido espantada, porque Lily acrescentou: — Eu sei. Mas ela disse que alguém precisava agir como adulto. Ela até foi comigo. Legal à beça. Eu não devia saber disso, mas ela comprou um casaco Jaeger especialmente para a ocasião. Acho que precisava de mais confiança do que dizia. — Ela olhou para Camilla, que conversava com Natasha perto da mesa das comidas. — Na verdade, fiquei um pouco triste pelo meu avô. Quando ele achava que ninguém estava vendo, ficava olhando para ela, parecia triste com o jeito que tudo acabou.
— E como era o bebê?
— É um bebê. Quer dizer, são todos iguais, não? Mas acho que os adultos se comportaram muito bem. Foi mais ou menos: “E como vai o colégio, Lily? Você gostaria de escolher uma data para passar um tempo aqui? E gostaria de segurar sua tia?” Como se isso não fosse totalmente bizarro.
— Você vai visitá-los de novo?
— Provavelmente sim. São legais, eu acho.
Olhei para Georgina, que estava conversando educadamente com o pai. Ele ria um pouco alto demais. Mal saíra de perto dela desde que a filha chegara.
— Ele me liga duas vezes por semana para conversar sobre assuntos aleatórios, e Della fica falando que quer que eu “construa uma relação” com o bebê, como se um bebê fosse capaz de outra coisa além de chorar e fazer cocô.
Ela fez uma careta. Eu ri.
— O que foi? — perguntou ela.
— Nada. — respondi. — É bom ver você.
— Ah. Trouxe uma coisa para você.
Fiquei esperando enquanto ela tirava uma caixinha da bolsa e me entregava.
— Vi isso numa feira de antiguidades chatíssima para onde vovó me obrigou a ir, e pensei em você.
Abri a caixa com cuidado. No interior, em cima do veludo azul-escuro, havia uma pulseira art déco com contas cilíndricas alternando entre o preto do azeviche e o amarelado do âmbar. Peguei-a e coloquei na palma da mão.
— É um pouco exótica, não é? Mas me fez lembrar a...
— Meia-calça.
— A meia-calça. É um agradecimento. Só, sabe, por tudo. Você é a única pessoa que conheço que gostaria disso. Ou eu, aliás. Enfim. Na verdade, ela combina muito com seu vestido.
Estiquei o braço e ela colocou a pulseira no meu pulso. Girei-a devagar.
— Amei.
Ela chutou algo no chão e ficou séria.
— Bem, acho que lhe devo algumas joias.
— Você não me deve nada.
Olhei para Lily, com sua nova confiança e os olhos do pai, e pensei em tudo o que ela me proporcionara sem sequer se dar conta. Depois ela me deu um soco bastante forte no braço.
— Muito bem. Pare de ficar toda esquisita e emotiva. Senão vai estragar meu rímel. Vamos descer e buscar o resto da comida. Eca, sabia que tem um pôster dos Transformers no meu quarto? E outro da Katy Perry? Quem é que você arranjou para dividir o apartamento, caramba?

* * *

O resto do Grupo Seguindo em Frente chegou, subindo os degraus de ferro com diferentes níveis de agitação ou alegria. Daphne passou para o telhado com ruidosas exclamações de alívio, Fred entrou segurando seu braço, William pulou com displicência o último degrau enquanto Natasha revirava os olhos atrás dele. Outros pararam para exclamar diante dos balões de gás brancos, que subiam e desciam sob a luz fraca. Marc beijou minha mão e me disse que era a primeira vez que algo como aquilo acontecia desde que ele criara o grupo. Achei graça ao notar que Natasha e William passaram muito tempo conversando a sós.
Colocamos a comida sobre a mesa de cavalete. Jake estava tomando conta do bar, servindo champanhe e parecendo curiosamente satisfeito com essa responsabilidade. Lily e ele se evitaram a princípio, um fingindo que o outro era invisível, como os adolescentes fazem quando estão reunidos com um grupo pequeno de pessoas, cientes de que todo mundo espera que eles conversem. Quando Lily finalmente se aproximou dele, estendeu a mão com uma deferência exagerada, e Jake passou um instante olhando para aquela mão antes de abrir um sorriso devagar.
— Parte de mim gostaria que eles fossem amigos. A outra não consegue pensar em nada mais apavorante — murmurou Sam no meu ouvido.
Enfiei a mão no seu bolso de trás.
— Ela está feliz.
— Está maravilhosa. E ele acabou de terminar com a namorada.
— O que aconteceu com o lema de viver intensamente, moço? — Ele deixou escapar um grunhido. — Ele está a salvo. Ela passa quase o ano todo escondida em Oxfordshire.
— Ninguém está a salvo com vocês duas. — Ele baixou a cabeça e me beijou, e deixei que tudo o mais desaparecesse por um ou dois segundos. — Gostei desse vestido.
— Não é muito infantil?
Levantei a saia de prega listrada. Aquela parte de Londres era cheia de brechós. Eu passara o sábado anterior imersa em antigas araras de seda e pluma.
— Eu gosto. Mas estou um pouco triste por você não estar usando aquela roupa sexy de duende.
Ele recuou quando minha mãe se aproximou, trazendo mais um pacote de guardanapos de papel.
— Como vai, Sam? Está se recuperando bem?
Ela havia visitado Sam no hospital duas vezes. Ficara muito preocupada com sua dificuldade de depender da comida do hospital, e levava para ele rolinhos de salsicha e sanduíches recheados com salada de ovo que ela mesma fazia.
— Estou quase bom, obrigado.
— Não se esforce demais hoje. Nada de carregar peso. As meninas e eu damos conta muito bem.
— Talvez a gente devesse começar — sugeri.
Mamãe conferiu outra vez o relógio, depois deu uma olhada no terraço.
— Será que esperamos mais cinco minutos? Para garantir que todo mundo esteja com uma bebida?
Seu sorriso – constante e alegre demais – era de partir o coração. Sam notou isso. Ele deu um passo à frente e segurou seu braço.
— Josie, acha que poderia me mostrar onde vocês colocaram as saladas? Acabei de me lembrar que eu não trouxe o molho lá de baixo.
— Cadê ela?
Um murmúrio percorreu o pequeno grupo reunido perto da mesa. Nós nos viramos na direção da voz que berrava.
— Nossa, é aqui em cima mesmo ou Thom está me mandando outra vez atrás de uma coisa que não existe?
— Bernard! — Minha mãe largou os guardanapos.
Meu pai surgiu sobre o parapeito, observando o terraço. Ele subiu os últimos degraus de ferro e inflou as bochechas enquanto analisava a vista.
Uma fina camada de suor brilhava em sua testa.
— Não sei por que você teve que fazer essa droga aqui em cima, Louisa. Cruz credo.
— Bernard!
— Isso não é uma igreja, Josie. E tenho um recado importante.
Mamãe olhou em volta.
— Bernard. Agora não é a...
— E meu recado é... este.
Meu pai se abaixou e, com um cuidado exagerado, puxou as pernas da calça. Primeiro a esquerda, depois a direita. De onde eu estava, do outro lado da caixa d’água, notei que as canelas dele estavam pálidas e havia algumas manchinhas. O telhado ficou em silêncio. Todo mundo olhava fixo.
Ele esticou uma das pernas.
— Lisinha como bumbum de bebê. Venha, Josie, pode tocar.
Minha mãe deu um passo nervoso à frente e se abaixou, percorrendo os dedos pela canela do meu pai. Depois deu tapinhas em volta da perna.
— Você disse que me levaria a sério se eu depilasse as pernas. Pois bem. Pronto. Já depilei.
Minha mãe olhou para ele, incrédula.
— Você depilou as pernas?
— Depilei. E se eu soubesse que você passava por tamanho sofrimento, querida, eu teria ficado quieto. Que tortura é essa? Quem acha que isso é uma boa ideia, caramba?
— Bernard...
— Não me importo. Sofri horrores, Josie. Mas depilo outra vez se isso significar que podemos fazer as coisas voltarem ao normal. Sinto sua falta. Muito. Não me importo se você quiser fazer cem cursos universitários, de política feminina, sobre o Oriente Médio, peças de macramê para cães, o que for, desde que a gente fique junto. E para provar até onde eu iria por você, já marquei outra sessão para semana que vem, para as costas, o saco e... o que mais?
— Os fundilhos — completou minha irmã, sem qualquer animação.
— Ai, meu Deus. — Minha mãe levou a mão até o pescoço.
Ao meu lado, Sam começou a tremer em silêncio.
— Mande eles pararem — murmurou. — Meus pontos vão arrebentar.
— Eu faço o que for. Viro um frango depenado se isso mostrar o que você significa para mim.
— Ah, meu Deus, Bernard.
— Estou falando sério, Josie. Estou desesperado.
— E é por isso que não há romance em nossa família — murmurou Treena.
— O que é uma depilação dos fundilhos? — perguntou Thomas.
— Ah, querido, senti muito sua falta.
Minha mãe passou os braços em volta do pescoço do meu pai e lhe deu um beijo. O alívio no rosto dele era quase palpável. Apoiou a cabeça no ombro dela e a beijou outra vez, na orelha, no cabelo, segurando suas mãos, como um garotinho.
— Que nojento — comentou Thomas.
— Então não preciso fazer o...
Minha mãe afagou o rosto do meu pai.
— Vamos desmarcar a sessão.
Meu pai relaxou visivelmente.
— Bem — falei, quando as coisas se acalmaram, e pela palidez de Camilla Traynor ficou óbvio que Lily tinha acabado de lhe explicar exatamente o que meu pai planejara suportar em nome do amor —, acho que devíamos dar uma última conferida nos copos de todo mundo, e depois quem sabe... começar?

* * *

Com a alegria pelo gesto magnânimo do meu pai, a explosiva troca de fraldas da bebê Traynor e a descoberta de que Thomas andara jogando sanduíches de ovo lá embaixo, na varanda do Sr. Antony Gardiner (e em sua espreguiçadeira chique novinha), demorou mais vinte minutos para o silêncio reinar no telhado. Lendo disfarçadamente algumas anotações e pigarreando, Marc se posicionou no centro. Ele era mais alto do que eu me lembrava, afinal eu só o vira sentado.
— Sejam todos bem-vindos. Primeiro, eu gostaria de agradecer a Louisa por nos oferecer este espaço agradável para nossa cerimônia de fim de semestre. É bem oportuno estar assim tão perto do céu... — Ele fez uma pausa para as risadas. — Esta é uma cerimônia de encerramento inusitada para todos nós. Pela primeira vez temos a presença de algumas pessoas que não fazem parte do grupo, mas acho que é uma ótima ideia nos abrir e comemorar entre amigos. Todo mundo aqui sabe o que é ter amado e perdido alguém. Por isso, hoje somos todos membros honorários do grupo.
Jake estava em pé ao lado do pai, um homem sardento e louro.
Infelizmente, eu não conseguia olhar para ele sem imaginá-lo chorando após o sexo. Nesse momento, o homem esticou o braço e puxou o filho para perto. Jake encontrou meus olhos e revirou os dele. Mas sorriu.
— Gosto de dizer que, embora o nome do grupo seja Seguindo em Frente, nenhum de nós segue em frente sem olhar para trás. Seguimos em frente sempre levando aqueles que perdemos. O que temos a intenção de fazer em nosso pequeno grupo é assegurar que trazê-los conosco não é um fardo impossível de carregar, um peso que nos mantém empacados no mesmo lugar. Queremos sentir a presença dessas pessoas como uma dádiva.
“E o que aprendemos compartilhando nossas memórias, nossas tristezas e nossas pequenas vitórias é que não há problema em ficar triste. Ou perdido. Ou com raiva. É normal sentir certas coisas que os outros podem não entender, e algumas vezes por bastante tempo. Todo mundo tem um percurso próprio. Nós não julgamos.
— A não ser os biscoitos — resmungou Fred. — Julgo, sim, aqueles biscoitos. São terríveis.
— E, embora a princípio isso pareça impossível, todos nós vamos chegar ao ponto em que conseguiremos ficar alegres por essas pessoas sobre quem discutimos, por quem choramos e sofremos terem existido e convivido conosco. E não importa se essa pessoa nos foi tirada depois de seis meses ou sessenta anos, nós tivemos a sorte de tê-la conhecido. — Ele balançou a cabeça para enfatizar. — Tivemos essa sorte.
Olhei em volta para o rosto das pessoas a quem eu me apegara, todas extasiadas, prestando atenção, então pensei em Will. Fechei os olhos e me lembrei do seu rosto, do seu sorriso e de sua risada, e pensei no quanto me custou amá-lo, mas principalmente em tudo o que ele me proporcionara.
Marc observou nosso pequeno grupo. Daphne enxugava disfarçadamente o canto do olho.
— Então... em geral agora nós dizemos algumas palavras para nos situar. Não precisa ser muita coisa. É só uma porta se fechando nesse pequeno trecho do nosso percurso. Ninguém precisa fazer isso, mas, se fizerem, será uma coisa boa.
O grupo trocou sorrisos constrangidos e, por um instante, pareceu que ninguém falaria nada. Então Fred deu um passo à frente. Ajeitou o lenço no bolso do blazer e se empertigou de leve.
— Eu só gostaria de dizer obrigado, Jilly. Você foi uma mulher incrível e eu fui um homem de sorte durante trinta e oito anos. Sentirei sua falta todos os dias, querida.
Ele recuou, um pouco sem jeito, e Daphne articulou em silêncio:
— Muito lindo, Fred. — Ela ajustou seu lenço de seda e depois também deu um passo à frente. — Eu só queria dizer... Desculpe, Alan. Você foi um homem muito gentil e eu gostaria de ter sido sincera sobre tudo. Queria ter conseguido ajudar você. Eu queria, hum, espero que você esteja bem, e que... tenha um bom amigo, onde quer que esteja.
Fred deu tapinhas no braço de Daphne. Jake coçou a nuca, depois se adiantou, corando, e encarou o pai.
— Nós dois sentimos sua falta, mãe. Mas estamos chegando lá. Não quero que se preocupe nem nada.
Quando terminou, o pai o abraçou, beijando o topo da sua cabeça e piscando com força. Sam e ele trocaram discretos sorrisos de compreensão.
Leanne e Sunil foram logo depois, cada um dizendo algumas palavras, com os olhos fixos no céu para esconder as lágrimas constrangedoras ou, com um aceno de cabeça, dando força um ao outro em silêncio.
William também deu um passo à frente e, sem dizer nada, deixou uma rosa branca ao lado do pé. Sem palavras, algo que não era típico dele, ficou um instante olhando para a flor, o rosto impassível, e depois recuou.
Natasha lhe deu um breve abraço e ele fez barulho ao engolir em seco de repente, cruzando os braços em seguida.
Marc olhou para mim, e senti a mão de Sam apertar a minha. Sorri para ele e balancei a cabeça.
— Eu, não. Mas Lily gostaria de dizer algumas palavras, se não tiver problema.
Mordendo o lábio, ela foi para o centro. Olhou para um pedaço de papel em que anotara alguma coisa, depois pareceu mudar de ideia e amassou o bilhete.
— Hum, perguntei a Louisa se eu podia falar apesar de, vocês sabem, não fazer parte do grupo. Não conheci meu pai e não pude me despedir dele no enterro, então achei que seria bom dizer algumas palavras agora que acho que o conheço um pouco melhor. — Ela sorriu com nervosismo e afastou uma mecha de cabelo do rosto. — Então, Will... Pai. Assim que descobri que você era meu verdadeiro pai, fiquei um pouco apavorada, para ser sincera. Eu imaginava que meu verdadeiro pai fosse um homem sábio, bonito, que ia querer me ensinar coisas, me proteger e viajar comigo para me mostrar lugares incríveis que ele amava. Mas o que arranjei foi um homem irritado numa cadeira de rodas que, sabe, simplesmente se matou. Mas por causa de Lou e da sua família, nos últimos meses comecei a compreender você um pouco melhor.
“Sempre vou me sentir triste e talvez até um pouco zangada por nunca ter conhecido você, mas agora quero agradecer. Você me deu muita coisa, mesmo sem saber. Acho que tenho muitas qualidades suas e provavelmente alguns defeitos também. Você me deu olhos azuis, a cor do cabelo, contribuiu para minha aversão à pasta de levedura Marmite, para a habilidade de descer nas pistas de esqui mais difíceis e... Bem, aparentemente também herdei um pouco do seu mau humor. Essa é a opinião dos outros, pelo menos. Não a minha.
As pessoas riram.
— Mas, principalmente, você me deu uma família que eu não sabia que tinha. O que é muito legal. Porque, para ser sincera, as coisas não estavam indo tão bem antes de eles aparecerem. — Ela deu um sorriso trêmulo.
— Ficamos muito felizes por você ter aparecido — gritou Georgina.
Senti os dedos de Sam apertarem os meus. Ele não devia passar tanto tempo em pé, mas, como ele costumava fazer, se recusou a se sentar. Não sou um inválido. Apoiei a cabeça nele, lutando contra o nó que se formara na minha garganta.
— Obrigada, G. Então, hum, Will... Pai, não vou me estender muito porque discursos são chatos e também porque o bebê vai começar a chorar a qualquer instante, o que vai acabar com o clima. Mas quero dizer obrigada, da sua filha, e que eu... amo você e sempre vou sentir sua falta. Espero que, se estiver olhando para cá e puder me ver, você fique feliz. Por eu existir. Porque minha presença meio que significa que você continua aqui, não é? — Lily ficou com a voz embargada e os olhos cheios d’água. Olhou para Camilla, que fez um pequeno gesto de cabeça. A menina fungou e ergueu o queixo. — Será que agora não seria uma boa hora para todo mundo soltar os balões?
As pessoas suspiraram de forma quase imperceptível e deram alguns passos abafados. Atrás de mim, alguns membros do Grupo Seguindo em Frente cochichavam entre si, esticando o braço para pegar um barbante.
Lily foi a primeira a dar um passo à frente, segurando seu balão de gás branco. Ergueu o braço, e então, como se isso só tivesse lhe ocorrido depois, colheu uma pequena flor de um dos vasos e amarrou-a cuidadosamente no barbante. Em seguida, levantou a mão e, após uma hesitação imperceptível, soltou seu balão.
Observei Steven Traynor chegar em seguida e notei Della apertar com delicadeza seu braço. Camilla soltou o dela, seguida por Fred, Sunil e então Georgina, de braço dado com a mãe. Depois foi a vez de minha mãe, Treena, papai, assoando ruidosamente o nariz no lenço, e Sam. Ficamos em silêncio no telhado observando os balões subirem um a um pelo límpido céu azul, se afastando até sumirem no infinito.
Então soltei o meu.

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