“Tudo o que eu sei é o seguinte”, começou Shmuel. “Antes de
virmos para cá eu morava
com minha mãe e meu pai e meu irmão Josef num pequeno
apartamento sobre a loja onde
papai fazia seus relógios. Todo dia tomávamos o café da
manhã juntos às sete horas, e,
enquanto íamos à escola, papai consertava os relógios que as
pessoas lhe traziam e fazia
alguns novos também. Eu tinha um lindo relógio que ele me
deu, mas não está mais
comigo. Era dourado, e toda noite eu dava corda nele antes
de dormir, e ele sempre
marcava a hora certa.”
“O que aconteceu com
ele?”, perguntou Bruno.
“Eles o tomaram de
mim”, disse Shmuel.
“Quem?”
“Os soldados, é
claro”, disse Shmuel, como se fosse a coisa mais óbvia do mundo.
“E então um dia as
coisas começaram a mudar”, ele prosseguiu. “Eu voltei da escola, e
minha mãe estava costurando braçadeiras para nós, feitas de
um tecido especial, e
desenhando uma estrela sobre cada uma delas. Como esta.” Usando
a ponta do dedo, ele
reproduziu o desenho no chão poeirento.
“E sempre que saíamos de casa, ela dizia, tínhamos de usar
uma daquelas braçadeiras.”
“Meu pai também usa
uma”, disse Bruno. “Em seu uniforme. É bem bonita. É de um
vermelho brilhante, com um desenho branco e preto feito por
cima.” Usando a ponta do
dedo ele reproduziu o outro desenho na poeira do chão do seu
lado da cerca.
“É, mas elas são diferentes, não?”, disse Shmuel.
“Ninguém jamais me
deu uma braçadeira”, disse Bruno.
“Mas eu nunca pedi
para usar uma delas”, disse Shmuel.
“Mesmo assim”, disse
Bruno, “acho que bem que eu gostaria de usar uma. Não sei qual
delas eu preferiria, se a sua ou a do meu pai.”
Shmuel balançou a
cabeça e continuou sua história. Ele não costumava mais pensar
naquelas coisas, uma vez que relembrar a antiga vida sobre a
loja de relógios o entristecia
muito.
“Usamos as
braçadeiras durante alguns meses”, ele disse. “E então as coisas mudaram
novamente. Cheguei em casa um dia, e a mamãe disse que não
poderíamos mais morar na
nossa casa...”
“Isso também
aconteceu comigo!”, gritou Bruno, deleitando-se com o fato de não ser o
único menino que fora obrigado a se mudar. “O Fúria veio
para o jantar, sabe, e pouco
depois nós tivemos que nos mudar para cá. E eu odeio este
lugar”, ele acrescentou numa
voz exaltada. “Por acaso ele foi até sua casa e fez o
mesmo?”
“Não, mas quando nos
disseram que não podíamos mais morar na nossa casa, tivemos
que nos mudar para outra parte de Cracóvia, onde os soldados
haviam construído um
grande muro, e minha mãe e meu pai e meu irmão e eu, todos
tínhamos que morar no
mesmo quarto.”
“Vocês quatro”,
perguntou Bruno. “Vivendo num único quarto?”
“E não éramos apenas
nós”, disse Shmuel. “Havia lá outra família morando conosco, e a
mãe e o pai estavam sempre brigando, e um de seus filhos era
maior do que eu e batia em
mim, mesmo quando eu não havia feito nada de errado.”
“Não é possível que
tenham morado todos no mesmo quarto!”, disse Bruno, balançando
a cabeça. “Não faz o menor sentido.”
“Todos nós nos mesmo
quarto”, disse Shmuel, acenando afirmativamente. “Éramos onze
ao todo.”
Bruno abriu a boca
para contradizê-lo novamente – ele não podia acreditar que onze
pessoas pudessem viver juntas num mesmo quarto -, mas mudou
de idéia.
“Moramos lá por mais
alguns meses”, continuou Shmuel, “todos nós naquele único
quarto. Havia apenas uma pequena janela, só que eu não
gostava de olhar através dela
porque, então, via o muro, e eu odiava o muro, porque nossa
verdadeira casa ficava do
outro lado. E aquela parte da cidade era a parte ruim,
porque havia sempre muito barulho e
era impossível dormir. E eu odiava o Luka, que era o menino
que continuava me batendo,
mesmo quando eu não tinha feito nada de errado.”
“Gretel me bate às
vezes”, disse Bruno. “É a minha irmã”, acrescentou ele. “E também
um Caso Perdido. Mas logo eu serei maior e mais forte e,
então, ela não vai nem mesmo
saber de onde veio o tapa.”
“Então, um dia vieram
os soldados e seus gigantescos caminhões”, continuou Shmuel,
que não parecia muito interessado em Gretel. “E todos
tiveram que deixar suas casas.
Muitas pessoas não queriam ir e se esconderam em qualquer
lugar que puderam encontrar,
mas, afinal, acho que pegaram todos. E os caminhões nos
levaram a um trem, e o trem...”
Ele hesitou por um instante e mordeu o lábio. Bruno pensou
que ele ia começar a chorar e
não entendeu por quê.
“O trem era
horrível”, disse Shmuel. “Havia muitos de nós nos vagões, para começar. E
não havia ar para respirar. E o cheiro era terrível.”
“Mas isso é porque
vocês estavam amontoados num único trem”, disse Bruno,
lembrando-se dos dois trens que vira na estação no dia em
que deixou Berlim. “Quando
viemos para cá, havia outro trem no lado oposto da
plataforma, só que ninguém parecia vê-
lo. Foi neste que nós entramos. Você devia ter subido neste
trem também.”
“Acho que não
seríamos admitidos”, disse Shmuel, balançando a cabeça. “Não podíamos
sair do vagão.”
“As portas ficam no
final”, explicou Bruno.
“Não havia portas”,
disse Shmuel.
“É claro que havia
portas”, disse Bruno num suspiro. “Ficam no final”, repetiu ele.
“Logo depois do restaurante.”
“Não havia portas”,
insistiu Shmuel. “Se houvesse, teríamos todos descido.”
Bruno murmurou alguma
coisa em voz baixa como “É claro que havia”, mas não muito
alto e Shmuel não pôde ouvi-lo.
“Quando finalmente o
trem parou”, prosseguiu Shmuel, “estávamos num lugar muito frio
e tivemos que caminhar até aqui.”
“Nós tínhamos um
carro nos esperando”, disse Bruno, agora em voz alta.
“E levaram minha mãe
embora, e papai, Josef e eu fomos colocados nas cabanas logo ali
e é onde ficamos desde então.”
Shmuel parecia muito
triste ao contar sua história e Bruno não sabia ao certo por quê;
para ele não parecia algo tão terrível e, afinal, muito do
que acontecera a um acontecera ao
outro.
“Há muitos outros
meninos do seu lado da cerca?”, perguntou Bruno.
“Centenas”, disse
Shmuel.
Os olhos de Bruno se
arregalaram. “Centenas?”, ele disse estupefato. “Não é justo. Deste
lado da cerca não há ninguém com quem brincar. Nem uma única
pessoa.”
“Nós não brincamos”,
disse Shmuel.
“Não brincam? Mas por
que vocês não brincam?”
“De que
brincaríamos?”, perguntou ele, seu rosto parecendo confuso só de pensar na
idéia.
“Bem, eu não sei”,
disse Bruno. “De qualquer coisa. Futebol, por exemplo. Ou
exploração. Como é a exploração aí do seu lado da cerca? É
legal?”
Shmuel balançou a
cabeça e não respondeu. Ele olhou de volta para as cabanas e se
voltou para Bruno. Não queria fazer a próxima pergunta, mas
a dor em seu estômago o
obrigou a fazê-la.
“Trouxe alguma comida
com você?”, ele perguntou.
“Infelizmente não”,
disse Bruno. “Eu pensei em trazer um pedaço de chocolate, mas
esqueci.”
“Chocolate”, disse
Shmuel bem devagar, sua língua saindo de trás dos dentes. “Só comi
chocolate uma vez na vida.”
“Uma vez? Eu adoro
chocolate. Não consigo enjoar, se bem que minha mãe diga que
isso faz os dentes apodrecerem.”
“Trouxe algum pão?”
Bruno balançou a
cabeça. “Nada mesmo”, disse ele. “O jantar só é servido às seis e meia.
A que horas servem o seu jantar?”
Shmuel deu de ombros
e se levantou. “Acho melhor voltar”, ele disse.
“Quem sabe você possa
vir jantar conosco uma noite qualquer”, disse Bruno, embora não
estivesse certo de que seria uma boa idéia.
“Quem sabe”, disse
Shmuel, apesar de não ter soado muito convincente.
“Ou eu poderia ir até
aí”, disse Bruno. “Quem sabe você me apresenta aos seus amigos”,
acrescentou ele, esperançoso. Ele torceu para que Shmuel
abraçasse sua idéia, mas
aparentemente ele não o faria.
“É que você está do
lado errado da cerca”, disse o outro menino.
“Eu poderia rastejar
por baixo dela”, disse Bruno, abaixando-se e agarrando o arame e o
erguendo do chão. No meio, entre os postes telegráficos de madeira,
o arame levantava
facilmente e um menino no tamanho de Bruno conseguiria
passar sem dificuldade.
Shmuel observou-o
fazendo isso e afastou-se, nervoso. “Tenho que voltar”, disse ele.
“Quem sabe numa outra
tarde”, disse Bruno.
“Eu não deveria estar
aqui. Se me pegarem, estarei encrencado.”
Ele se voltou e
caminhou na direção oposta e Bruno constatou como seu novo amigo era
pequeno e magro. Ele nada comentou sobre isso porque sabia
muito bem como é
desagradável ser criticado por uma coisa tão boba quanto a
própria altura, e a última coisa
que ele queria era ofender Shmuel.
“Voltarei amanhã”,
gritou Bruno para o menino que o deixava, e Shmuel não respondeu;
na verdade ele começou a correr na direção do campo,
deixando Bruno sozinho.
Bruno decidiu que já
explorara mais do que o suficiente para um dia e foi para casa
animado pelo que acontecera e desejoso de contar à mãe a ao
pai e à Gretel – que teria tanta
inveja que era capaz de explodir – e à Maria e ao cozinheiro
e a Lars tudo sobre sua
aventura naquela tarde com seu novo amigo de nome engraçado
e que fazia aniversário no
mesmo dia que ele; contudo, quanto mais se aproximava da
casa, mais ele pensava que
talvez essa não fosse uma boa idéia.
Afinal, Bruno
raciocinou, era possível que eles não quisessem mais que ele e Shmuel
fossem amigos, e, se isso acontecesse, eles o impediriam de
sair de lá para o que quer que
fosse. Quando passou pela porta da frente e sentiu o cheiro
do filé que estava assando no
forno para o jantar, já tinha decidido que o melhor era
ficar quieto sobre o que havia
acontecido e não dizer uma palavra a respeito. Seria o seu
segredo. Bem, o segredo dele e
de Shmuel.
Bruno era da opinião
de que, em se tratando de pais, e especialmente em se tratando de
irmãs, tudo o que eles não sabiam não podia feri-los.
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