Durante muitas semanas a chuva começou e parou e começou e
parou, e Bruno e Shmuel
não puderam se encontrar tanto quanto desejavam. Quando se
encontraram, Bruno
percebeu que estava preocupado com o amigo, pois ele parecia
mais magro a casa dia, e o
seu rosto, mais cinza. Às vezes ele trazia consigo um pouco
de pão e queijo para levar a
Shmuel, e conseguiu até mesmo esconder um pedaço do bolo de
chocolate no bolso, mas a
caminhada da casa até o ponto na cerca onde os dois
costumavam se encontrar era longa, e
às vezes Bruno sentia fome no meio do caminho. Ele acabou
descobrindo que uma mordida
de bolo levava a outra, que por sua vez levava a outra e,
quando restava apenas um bocado,
sabia que não seria certo oferecer tão pouco a Shmuel,
porque apenas serviria para abrir-lhe
o apetite sem satisfazê-lo.
O aniversário do pai
estava chegando, e, embora ele tivesse dito que não queria
estardalhaço nenhum, a mãe preparou uma festa para todos os
oficiais que estavam
servindo em Haja-Vista, e houve grande estardalhaço nos
preparativos. Toda vez que ela se
sentava para fazer mais planos para a festa, o tenente
Kotler estava ao seu lado para auxiliá-
la, e os dois pareciam fazer listas e mais listas, muito
mais do que seriam necessárias.
Bruno decidiu fazer
sua própria lista. Uma lista de todos os motivos pelos quais ele não
gostava do tenente Kotler.
Antes de tudo, havia
o fato de que ele nunca sorria e sempre parecia procurar alguém
para esfaquear de acordo com sua vontade.
Nas raras ocasiões em
que se dirigia a Bruno, tratava-o de “homenzinho”, o que era
simplesmente um desaforo, pois, como a mãe já afirmara, o
menino ainda não tivera o seu
estirão de crescimento.
Sem falar no fato de
que ele estava sempre com a mãe na sala de estar fazendo piadas,
das quais ela ria mais do que das piadas do pai.
Certa vez, quando
estava observando o campo da janela de seu quarto, Bruno viu um
cachorro se aproximar da cerca e começar a latir bem alto.
Quando o tenente Kotler o
ouviu, marchou direto para o cão e atirou nele. E ainda
havia todas as besteiras que vinham
de Gretel sempre que ele estava por perto.
E Bruno ainda não se
esquecera do que ocorrera naquela noite com Pavel, o servente que
na verdade era médico, e de como o jovem tenente havia
ficado bravo.
Além disso, sempre
que o pai era chamado a Berlim para uma viagem e passava a noite
fora, o tenente ficava na casa como se estivesse no comando:
estava lá quando Bruno ia
para a cama e estava de volta pela manhã, antes mesmo de o
menino acordar.
Havia muito mais
razões pelas quais Bruno não gostava do tenente Kotler, mas estas
foram as primeiras que lhe vieram à mente.
Na tarde anterior à
festa de aniversário, Bruno estava no seu quarto, com a porta aberta,
quando ouviu o tenente Kotler chegando na casa e falando com
alguém, embora não
ouvisse ninguém responder. Alguns minutos mais tarde, quando
estava descendo as
escadas, ele escutou a voz da mãe passando instruções quanto
ao que deveria ser feito e o
tenente Kotler dizendo: “Não se preocupe, este aqui sabe
quais botas lamber”. E depois deu
uma horrível gargalhada.
Bruno foi até a sala
de estar com o novo livro que o pai havia lhe dado, chamado A ilha
do tesouro, com a intenção de sentar-se por lá durante uma
ou duas horas para lê-lo, mas,
ao passar pelo corredor, deu de cara com o tenente Kotler,
que estava saindo da cozinha.
“Olá, homenzinho”,
disse o soldado, caçoando dele como de costume.
“Olá”, disse Bruno,
franzindo o cenho.
“O que está aprontando?”
Bruno olhou para ele
e começou a pensar em mais sete motivos para detestá-lo. “Vou até
ali para ler meu livro”, disse ele, apontando para a sala de
estar.
Sem dizer uma
palavra, Kotler tomou o livro das mãos de Bruno e se pôs a folheá-lo. “A
ilha do tesouro”, disse ele. “É sobre o quê?”
“Bem, há uma ilha”,
disse Bruno lentamente, para certificar-se que o soldado estava
acompanhando. “E há um tesouro nela.”
“Isso eu poderia ter
adivinhado”, disse Kotler, olhando para Bruno como se houvesse
coisas que faria ao menino se fosse filho dele e não o filho
do comandante. “Diga algo a
respeito dele que eu ainda não saiba.”
“Há um pirata”, disse
Bruno. “Chamado Long John Silver. E um menino chamado Jim
Hawkins.”
“Um menino inglês?”,
perguntou Kotler.
“Sim”, disse Bruno.
“Hmpf”, grunhiu
Kotler.
Bruno encarou-o e
pensou quanto tempo demoraria até que recebesse o livro de volta. O
soldado não parecia interessado na história, mas quando
Bruno estendeu a mão para pegá-
lo, ele afastou o livro do menino.
“Desculpe”, ele
disse, deixando o livro ao alcance de Bruno; contudo, quando este
estendeu a mão para pegá-lo, ele afastou o livro novamente.
“Oh, eu sinto muitíssimo”,
disse Kotler, repetindo o gesto, mas desta feita Bruno
tomou-o da mão do soldado mais
rápido do que este poderia afastá-lo.
“Rapidinho, hein?”,
murmurou entre os dentes o tenente Kotler.
Bruno tentou passar
por ele, porém por algum motivo o tenente Kotler parecia querer
conversar com o menino naquele dia.
“Estamos todos
preparados para a festa amanhã?”, ele perguntou.
“Bem, eu estou”,
disse Bruno, que estivera passando mais tempo na companhia de Gretel
ultimamente e desenvolvera o gosto pelo sarcasmo. “Não posso
falar por você.”
“Haverá muita gente
aqui”, disse o tenente Kotler, respirando pesado e olhando ao redor
como se aquela fosse a sua casa, e não a de Bruno.
“Ficaremos bem comportadinhos, não
é?”
“Bem, eu ficarei”,
disse Bruno. “Não posso falar por você.”
“Você tem muito a
dizer para um homenzinho tão pequeno”, disse o tenente Kotler.
Bruno estreitou os
olhos e desejou ser mais alto, mais forte e oito anos mais velho. Uma
bola de raiva explodiu dentro dele e o fez desejar que
tivesse a coragem de dizer
exatamente o que queria dizer. Ele decidiu que uma coisa era
ser mandado pela mãe e pelo
pai – o que era perfeitamente razoável e de se esperar -,
mas outra coisa completamente
diferente era ser mandado por outra pessoa. Mesmo que fosse
alguém com um título
importante como “tenente”.
“Oh, Kurt, querido,
você ainda está aqui”, disse a mãe, saindo da cozinha e vindo na
direção deles. “Tenho um pouco de tempo livre agora se...
Oh!”, disse ela ao notar Bruno
ali de pé. “Bruno! O que está fazendo aqui?”
“Estava indo até a
sala de estar para ler meu livro”, disse Bruno. “Ao menos era o que eu
estava tentando fazer.”
“Bem, entre na
cozinha por um instante”, disse ela. “Eu preciso ter uma conversa a sós
com o tenente Kotler.”
Fumegando de raiva,
Bruno entrou na cozinha e teve a maior surpresa de toda a sua vida.
Ali, sentado à mesa, muito longe do outro lado da cerca,
estava Shmuel. Bruno mal podia
acreditar nos próprios olhos.
“Shmuel!”, disse ele.
“O que você está fazendo aqui?”
Shmuel ergueu os
olhos e o seu rosto aterrorizado deu lugar a um grande sorriso quando
viu o amigo ali com ele. “Bruno!”, ele disse.
“O que você está
fazendo aqui?”, repetiu Bruno, pois, embora ainda não entendesse
exatamente o que acontecia do outro lado da cerca, havia
algo a respeito das pessoas que
ficavam lá que fazia Bruno pensar que elas não deveriam
estar ali na casa dele.
“Ele me trouxe aqui”,
disse Shmuel.
“Ele?”, perguntou
Bruno. “Está falando do tenente Kotler?”
“Sim. Ele disse que
havia um serviço para mim aqui.”
E, quando Bruno olhou
para baixo, viu sessenta e quatro pequenas taças, do tipo que a
mãe usava para tomar seus tragos de xerez medicinal,
dispostas sobre a mesa da cozinha, e
ao lado delas uma tigela de água quente e ensaboada e muitos
guardanapos de papel.
“Mas o que você está
fazendo?”
“Eles me pediram para
lustrar as taças”, disse Shmuel. “Disseram que precisavam de
alguém com dedos pequenos.”
Como se quisesse
provar algo que Bruno já sabia, ele estendeu a mão, e Bruno não pôde
deixar de reparar que era como a mão do esqueleto de mentira
que herr Liszt trouxera certo
dia quando estavam estudando a anatomia humana.
“Eu nunca tinha
reparado antes”, disse ele numa voz incrédula, quase para si mesmo.
“Nunca tinha reparado
no quê?”, perguntou Shmuel.
Em resposta, Bruno
estendeu a própria mão de maneira que as pontas de seus dedos
médios quase se tocaram. “Nossas mãos”, disse ele. “São tão
diferentes. Veja!”
Os dois meninos
olharam para baixo ao mesmo tempo e a diferença era evidente.
Embora Bruno fosse pequeno para idade, e certamente não era
gordo, sua mão parecia
saudável e cheia de vida. As veias não eram visíveis através
da pele, os dedos não eram
pouco mais do que galhos retorcidos e moribundos. A mão de
Shmuel, entretanto, contava
uma história muito diferente.
“Como ficou assim?”,
perguntou Bruno.
“Não sei”, disse
Shmuel. “Antigamente ela era mais parecida com a sua, mas eu não
percebi a mudança. Todos do meu lado da cerca são assim
agora.”
Bruno franziu o
cenho. Pensou a respeito de todas aquelas pessoas de pijama listrado e
imaginou o que estaria acontecendo em Haja-Vista e, o que
quer que fosse, devia ser uma
má idéia, uma vez que fazia as pessoas ficarem com um
aspecto tão debilitado. Nada
daquilo fazia sentido para ele. Não querendo mais olhar para
a mão de Shmuel, Bruno deu
meia-volta e abriu a geladeira, procurando descobrir alguma
coisa para comer. Havia meia
galinha recheada que sobrara do almoço, e seus olhos
faiscaram deleitados pela visão, pois
havia pouquíssimas coisas na vida de que ele gostasse mais
do que galinha fria com recheio
de sálvia e cebola. Pegou uma faca na gaveta e cortou para
si alguns pedaços respeitáveis,
cobrindo-os com o recheio, antes de voltar a atenção
novamente para o amigo.
“Fico muito contente
por vê-lo aqui”, disse ele, falando de boca cheia. “Pena que você
tem que lustrar estas taças, senão eu poderia mostrar-lhe o
meu quarto.”
“Ele me disse para
não sair desta cadeira ou haveria encrenca.”
“Eu não daria muita
bola se fosse você”, disse Bruno, tentando parecer mais corajoso do
que realmente era. “Esta não é a casa dele, é a minha, e
quando meu pai está fora sou eu
quem manda aqui. Acredita que ele nunca leu A ilha do
tesouro?”
Shmuel parecia não
estar ouvindo o que o outro dizia; seus olhos estavam focados nos
pedaços de galinha recheada que Bruno lançava casualmente à
boca. Após um instante,
Bruno se deu conta de que o amigo estava olhando para a sua
comida e imediatamente
sentiu-se culpado.
“Desculpe-me,
Shmuel”, disse ele rapidamente. “Eu deveria ter lhe oferecido um pouco
de galinha também. Está com fome?”
“Esta é uma pergunta
que você nunca precisa me fazer”, disse Shmuel, que, apesar de
não ter conhecido Gretel, também sabia alguma coisa de
sarcasmo.
“Espere um pouco, vou
servir umas fatias para você”, disse Bruno, abrindo a geladeira e
cortando mais três pedaços generosos.
“Não, se ele
volta...”, disse Shmuel, virando a cabeça rapidamente, olhando ora para
Bruno, ora para a porta.
“Se quem voltar? Está
falando do tenente Kotler?”
“Eu só vim lustrar as
taças”, ele disse, olhando desesperado para a bacia de água diante
de si e para as fatias de galinha que Bruno estava
oferecendo.
“Ele não vai se
importar”, disse Bruno, que estava confuso por causa da evidente
ansiedade de Shmuel. “É apenas comida.”
“Não posso”, disse
Shmuel, balançando a cabeça e dando a impressão de que ia chorar.
“Ele vai voltar, eu sei que vai”, prosseguiu o menino, as
frases rápidas e embaralhadas. “Eu
devia ter comido quando você ofereceu pela primeira vez,
agora é tarde demais, se eu
aceitar ele vai voltar e...”
“Shmuel! Tome!”,
disse Bruno, dando um passo adiante e pondo as fatias na mão do
amigo. “Apenas coma. Tem muito mais para a hora do chá – não
precisa se preocupar com
isso.”
O menino olhou
primeiro para a comida em sua mão e depois para Bruno com olhos
arregalados e agradecidos, porém aterrorizados. Ele deu uma
última olhada na direção da
porta e então pareceu ter tomado uma decisão, porque meteu
os três pedaços de uma só vez
na boca e os engoliu em exatos vinte segundos.
“Bom, também não
precisa comer tão depressa”, disse Bruno. “Assim vai passar mal.”
“Não me importo”,
disse Shmuel, sorrindo levemente. “Obrigado, Bruno.”
Bruno sorriu de volta
e estava prestes a oferecer-lhe mais um pouco de comida, quando o
tenente Kotler reapareceu na cozinha e se deteve ao ver os
dois meninos conversando.
Bruno olhou para ele, sentindo a atmosfera fica tensa, vendo
os ombros de Shmuel se
abaixarem enquanto o menino procurava outra taça e começava
a lustrá-la. Ignorando
Bruno, o tenente Kotler marchou até Shmuel e ficou olhando
ameaçadoramente para ele.
“O que está
fazendo?”, gritou ele. “Eu não mandei lustrar as taças?”
Shmuel acenou com a
cabeça rapidamente e começou a tremer enquanto pegava outro
guardanapo e o mergulhava na água.
“Quem disse que você
podia falar nesta casa?”, prosseguiu Kotler. “Ousa me
desobedecer?”
“Não, senhor”, disse
Shmuel em voz baixa. “Desculpe-me, senhor.”
Ele ergueu os olhos
para o tenente Kotler, que franziu o cenho, projetando-se levemente
para a frente e inclinando a cabeça ao examinar o rosto do
garoto. “Você andou
comendo?”, perguntou numa voz baixíssima, como se nem
pudesse acreditar naquilo.
Shmuel balançou a
cabeça.
“Andou comendo, sim”,
insistiu o tenente Kotler. “Roubou alguma coisa daquela
geladeira?”
Shmuel abriu a boca e
a fechou. Abriu-a novamente, procurando as palavras, mas não as
encontrou. Ele olhou para Bruno, seus olhos implorando por
ajuda.
“Responda!”, gritou o
tenente Kotler. “Roubou alguma coisa daquela geladeira?”
“Não, senhor. Foi ele
quem me deu”, disse Shmuel, as lágrimas se juntando em seus
olhos enquanto lançava um olhar de soslaio para Bruno. “Ele
é meu amigo”, acrescentou.
“Seu...?”, começou o
tenente Kotler, olhando confuso para Bruno do outro lado da
cozinha. Ele hesitou. “Como assim, ele é seu amigo?”,
perguntou. “Conhece este menino,
Bruno?”
Bruno abriu a boca e
tentou se lembrar de como eram os movimentos quando se quer
dizer a palavra “sim”. Ele jamais vira alguém tão
aterrorizado quanto Shmuel naquele
instante e queria dizer a coisa certa para melhorar a
situação, mas então percebeu que não
conseguia, pois estava tão aterrorizado quanto o amigo.
“Conhece este
menino?”, repetiu Kotler numa voz mais alta. “Esteve conversando com
os prisioneiros?”
“Eu... ele estava
aqui quando entrei”, disse Bruno. “Estava limpando as taças.”
“Não foi o que eu
perguntei”, disse Kotler. “Já o viu antes? Conversou com ele? Por que
ele diz que vocês são amigos?”
Bruno queria poder
fugir. Ele odiava o tenente Kotler, que agora avançava sobre ele, e
tudo o que Bruno conseguiu se lembrar foi da tarde em que
vira o tenente atirar no cachorro
e da noite em que ele ficara tão bravo com Pavel que...
“Diga, Bruno!”,
gritou Kotler com o rosto vermelho. “Não perguntarei pela terceira vez.”
“Nunca falei com
ele”, disse Bruno imediatamente. “Nunca o vi antes em minha vida.
Não o conheço.”
O tenente Kotler
balançou a cabeça e pareceu ficar satisfeito com a resposta. Lentamente
ele voltou a cabeça para olhar para Shmuel, que não estava
mais chorando; o menino
apenas olhava para o chão, dando a impressão de que tentava
convencer sua alma a não
mais habitar o pequeno corpo e a fugir pela janela e voar
bem alto até o céu, indo o mais
longe possível.
“Termine de lustrar
estas taças”, disse o tenente numa voz muito baixa, tão baixa que
Bruno quase não pôde ouvi-lo. Foi como se toda a sua raiva
tivesse se transformado em
outra coisa. Não o oposto, mas em algo inesperado e
assustador. “E depois eu virei buscá-lo
e o levarei de volta ao campo, onde teremos uma conversa
sobre o que acontece com
meninos que roubam. Entendido?”
Shmuel fez que sim
com a cabeça, pegou outro guardanapo e começou a lustrar outra
taça; Bruno observou como seus dedos tremiam e soube quanto
medo ele tinha de acabar
quebrando uma delas. Parecia que seu coração ia afundar,
mas, por mais que quisesse, não
conseguia desviar os olhos.
“Venha, homenzinho”,
disse o tenente Kotler, indo na direção de Bruno e colocando um
braço pouco amigável ao redor do ombro do garoto. “Vá até a
sala de estar ler o seu livro e
deixe o pequeno... terminar seu trabalho.” Ele usou a mesma
palavra que usara para se
referir a Pavel quando o mandou à procura do pneu.
Bruno assentiu, deu
meia-volta e saiu da cozinha sem olhar para trás. Seu estômago
estava revirado por dentro, e ele pensou por um instante que
fosse vomitar. Jamais se
sentira tão envergonhado em toda sua vida; nunca imaginou
que seria capaz de se
comportar com tamanha crueldade. Perguntou-se como poderia
um menino que pensava ser
uma boa pessoa agir de maneira tão covarde em relação a um
amigo. Ele se sentou na sala
de estar durante muitas horas, mas não conseguiu se
concentrar no livro nem ousou voltar à
cozinha até bem mais tarde, quando o tenente Kotler já havia
voltado e levado Shmuel de
novo ao campo.
Nas tardes seguintes,
Bruno retornou ao ponto da cerca onde os dois costumavam se
encontrar, mas Shmuel nunca mais apareceu. Depois de quase
uma semana ele se
convenceu de que o que havia feito fora tão terrível que
jamais seria perdoado, porém no
sétimo dia ficou extasiado ao ver Shmuel esperando por ele,
sentado de pernas cruzadas no
chão, como sempre, e olhando para a poeira debaixo de si.
“Shmuel’, disse ele,
correndo na direção do amigo e sentando-se, quase chorando de
alívio e arrependimento. “Eu sinto tanto, Shmuel. Não sei
por que fiz aquilo. Diga que me
perdoa.”
“Tudo bem”, disse
Shmuel, olhando para ele. Seu rosto estava todo machucado e Bruno
fez uma careta, por um instante se esquecendo das desculpas
que estava pedindo.
“O que aconteceu com
você?”, ele perguntou, mas não esperou pela resposta. “Foi a
bicicleta?” Porque uma vez isso aconteceu comigo lá em
Berlim há uns dois anos. Eu caí da
bicicleta quando estava indo rápido demais e fiquei todo
roxo durante semanas. Está
doendo?”
“Nem sino mais”,
disse Shmuel.
“Parece que dói.”
“Já não sinto mais
nada”, disse Shmuel.
“Bem, sinto muito
pela semana passada”, disse Bruno. “Eu odeio aquele tenente Kotler.
Ele pensa que é o manda-chuva, mas não é.” Bruno hesitou por
um instante, sem querer
perder o fio da meada. Sentiu que deveria dizer mais uma vez
e com muita sinceridade. “Eu
sinto muitíssimo, Shmuel”, disse numa voz bem clara. “Não
posso acreditar que não contei
a ele a verdade. Nunca desapontei um amigo dessa maneira
antes. Shmuel, estou
envergonhado de mim mesmo.”
Quando Bruno disse
isso, Shmuel sorriu e balançou a cabeça e Bruno soube que estava
perdoado. Então Shmuel fez algo que nunca havia feito antes:
ele ergueu a parte de baixo
da cerca como sempre fazia quando o amigo lhe trazia comida,
mas desta vez ele estendeu
a mão por baixo e a manteve lá, esperando até que Bruno
fizesse o mesmo. Os dois
meninos apertaram as mãos e sorriram um para o outro.
Foi a primeira vez
que eles se tocaram.
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