Já fazia quase um ano desde o dia em que Bruno chegara em
casa e encontrara Maria
empacotando suas coisas, e as suas memórias da vida em
Berlim haviam se desvanecidos
quase completamente. Quando tentava se lembrar, sabia que
Karl e Martin eram dois de
seus três melhores amigos, mas não conseguia mais se lembrar
do nome do terceiro. E
então aconteceu uma coisa que fez com que ele passasse dois
dias longe de Haja-Vista e
retornasse à casa antiga: a avó tinha morrido e a família
fez a viagem de volta para o
funeral.
Enquanto esteve lá,
Bruno se deu conta de que não era mais tão pequeno, pois agora
conseguia ver por cima das coisas de um modo que não
conseguia antes e, quando
pernoitaram na antiga casa, ele pôde olhar através da
janela, no último andar, e ver Berlim
sem ter que ficar na ponta dos pés.
Bruno não vira mais a
avó desde que deixaram Berlim, mas pensava nela quase todos os
dias. As coisas de que mais se lembrava eram os esquetes que
ela, ele e Gretel encenavam
durante o Natal e os aniversários, e como ela sempre tinha o
figurino certo para qualquer
papel que se fosse representar. Quando pensava que eles
nunca mais poderiam fazer aquilo
de novo, Bruno ficara realmente muito triste.
Os dois dias que
passaram em Berlim também foram muito tristes. Houve o funeral, e
Bruno e Gretel e o pai e a mãe e o avô sentaram-se na
primeira fila, o pai vestindo seu mais
importante uniforme, aquele engomado e passado cheio de
condecorações. O pai estava
especialmente triste, a mãe contou a Bruno, porque havia
brigado com a avó e eles não
fizeram as pazes antes de ela morrer.
Muitas coroas
funerárias foram entregues na igreja, e o pai ficou muito orgulhoso em
saber que uma delas fora mandada pelo próprio Fúria; no
entanto, quando a mãe ficou
sabendo, disse que a avó se reviraria no túmulo se soubesse
daquilo.
Bruno ficou quase
feliz de voltar a Haja-Vista. A casa ali já se tornara o seu lar e ele
havia parado de se preocupar se ela tinha cinco andares ou
apenas três, e não se importava
tanto com os soldados indo e vindo como se fossem os donos
do lugar. Ele lentamente se
deu conta de que as coisas não eram tão más assim por ali,
principalmente depois de ter
conhecido Shmuel. Bruno sabia que havia muitas coisas com as
quais se alegrar, como, por
exemplo, o fato de que o pai e a mãe pareciam mais felizes,
e a mãe não precisava de tantas
sonecas pela tarde nem de tantos tragos do xerez medicinal.
E Gretel estava passando por
uma nova fase – nas palavras da mãe – e sua tendência era
ficar fora do caminho dele.
Havia também o fato de
o tenente Kotler ter sido transferido para longe de Haja-Vista,
portanto ele não estava mais por perto para atormentar Bruno
e irritá-lo o tempo todo. (A
sua partida ocorrera subitamente e causara grande gritaria
entre a mãe e o pai durante a
noite, mas ele se foi, disso não havia dúvida, e não ia
voltar mais; Gretel ficou
inconsolável.) Este era outro motivo de felicidade: ninguém
mais o chamava de
“homenzinho”.
Mas o melhor de tudo
é que ele tinha um amigo chamado Shmuel.
Ele adorava caminhar
ao longo da cerca todas as tardes e ficou satisfeito em ver que o
amigo parecia muito mais feliz ultimamente, e os seus olhos
não estavam mais tão fundos,
embora o corpo ainda fosse ridículo de tão magro, e o rosto
de uma desagradável tonalidade
cinza.
Certo dia, enquanto
estavam sentados no lugar de sempre, um de frente para o outro,
Bruno comentou: “Esta é a amizade mais estranha que já
tive.”
“Por quê?”, perguntou
Shmuel.
“Porque com todos os
outros meninos com os quais eu fiz amizade eu podia brincar”,
respondeu ele. “E nós nunca podemos brincar juntos. Tudo o
que podemos fazer é ficar
aqui sentados conversando.”
“Eu gosto de ficar
aqui sentado conversando”, disse Shmuel.
“Bom, eu também
gosto, é claro”, disse Bruno. “Mas é uma pena que não possamos
fazer algo mais divertido de vez em quando. Talvez explorar
um pouco. Ou jogar futebol.
Nunca sequer nos vimos sem esta cerca de arame no caminho.”
Bruno freqüentemente
fazia comentários desse tipo porque preferia fingir que o incidente
de alguns meses antes, quando ele negou ser amigo de Shmuel,
jamais tivesse acontecido.
Aquilo ainda o assombrava e o fazia sentir-se mal a respeito
de si mesmo, embora Shmuel,
para seu crédito, parecesse ter esquecido de tudo
completamente.
“Quem sabe um dia nós
possamos”, disse Shmuel. “Se é que vão nos deixar sair.”
Bruno começou a
pensar mais e mais sobre os dois lados da cerca e o motivo de sua
existência. Ele pensou em perguntar à mãe e ao pai a
respeito dela, mas suspeitava que eles
ou ficariam bravos por mencioná-la ou lhe diriam algo
desagradável sobre Shmuel e sua
família, e então ele decidiu fazer algo bastante incomum.
Decidiu conversar com o Caso
Perdido.
O quarto de Gretel
havia mudado consideravelmente desde a última vez em que ele
estivera lá. Não havia uma única boneca à vista. Certa
tarde, mais ou menos um mês antes,
perto da época em que o tenente Kotler se foi de Haja-Vista,
Gretel decidira que não
gostava mais de bonecas e as colocou todas dentro de quatro
grandes sacolas e as jogou
fora. Em seu lugar havia pendurado mapas da Europa que o pai
lhe dera, e todo dia ela
espetava pequenos pinos sobre eles, os quais se movia
constantemente depois de consultar
o jornal do dia. Bruno pensou que talvez a irmã estivesse
enlouquecendo. Ainda assim, ela
não o provocava nem incomodava tanto quanto antes, o que o
fez pensar que talvez não
fosse má idéia conversar com ela.
“Olá”, disse ele,
batendo educadamente na porta, pois sabia como ela ficava brava
quando ele simplesmente ia entrando.
“O que você quer?”,
perguntou Gretel, que estava sentada à cômoda, experimentando
novos penteados.
“Nada”, disse Bruno.
“Então vá embora.”
Bruno balançou a
cabeça, mas entrou do mesmo jeito e sentou-se na lateral da cama.
Gretel observou-o com o canto dos olhos, mas não disse nada.
“Gretel”, disse ele
afinal, “posso perguntar uma coisa?”
“Se for rápido,
pode”, disse ela.
“Tudo aqui em
Haja-Vista”, começou ele, mas ela o interrompeu imediatamente.
“Não é Haja-Vista,
Bruno”, disse Gretel com raiva, como se fosse o pior erro jamais
cometido na história da humanidade. “Por que você não
consegue pronunciar direito?”
“O nome é
Haja-Vista”, protestou ele.
“Não é”, disse ela, pronunciando
corretamente o nome do campo para ele.
Bruno franziu o
semblante e deu de ombros ao mesmo tempo. “Pois foi o que eu disse”,
disse ele.
“Não foi, não. Seja
como for, não vou discutir com você”, disse Gretel, já perdendo a
paciência, coisa que ela nunca teve muita. “O que é, afinal?
O que quer saber?”
“Quero saber sobre a
cerca”, disse ele com firmeza, decidindo que essa era a coisa mais
importante para começo de conversa. “Quero saber por que
está lá.”
Gretel voltou-se na
cadeira e olhou-o com curiosidade. “Quer dizer que não sabe?”,
perguntou ela.
“Não”, disse Bruno.
“Não entendo por que não podemos ir ao outro lado. O que há de
errado conosco a ponto de não podermos ir até o outro lado
da cerca e brincar?”
Gretel encarou-o e
então começou a rir, parando apenas quando percebeu que Bruno
estava falando absolutamente sério.
“Bruno”, disse ela
numa voz infantil, como se aquilo fosse a coisa mais óbvia do mundo,
“a cerca não está lá para nos impedir de ir ao outro lado. É
para impedi-los de virem até
aqui.”
Bruno avaliou a
resposta, entretanto ela não melhorou seu entendimento. “Mas por
quê?”, perguntou ele.
“Porque eles têm que
ser mantidos juntos”, explicou Gretel.
“Com suas famílias,
você quer dizer?”
“Bem, sim, com suas
famílias. Mas principalmente com a sua própria laia.”
“Como assim, sua
própria laia?”
Gretel suspirou e
balançou a cabeça. “Com os outros judeus, Bruno. Não sabia disso? É
por isso que precisam ficar juntos. Eles não podem se
misturar com a gente.”
“Judeus”, disse
Bruno, testando a nova palavra. Ele bem que gostou do som. “Judeus”,
repetiu ele. “Aquelas pessoas todas do outro lado da
cerca... são judeus.”
“Sim, é isso mesmo”,
disse Gretel.
“E nós, somos
judeus?”
Gretel abriu a boca
espantada, como se tivesse recebido um tapa no rosto. “Não, Bruno”,
disse ela. “Nós absolutamente não somos judeus. E você não
devia sequer dizer uma coisa
dessas.”
“Mas por que não? O
que nós somos, então?”
“Nós somos...”,
começou Gretel, mas então teve que, parar e pensar a respeito.
“Somos...”, repetiu, ainda sem saber qual era a resposta
para essa pergunta. “Bem, não
somos judeus”, disse ela afinal.
“Já sei que não
somos”, disse Bruno, frustrado. “Estou perguntando: já que não somos
judeus, o que nós somos então?”
“Somos o contrário”,
disse Gretel, respondendo rapidamente e parecendo mais satisfeita
com esta resposta. “Sim, é isso. Nós somos o contrário.”
“Certo”, disse Bruno,
feliz porque finalmente esclareceu o problema. “E o contrário
mora deste lado da cerca, e os judeus, daquele lado.”
“É isso mesmo,
Bruno.”
“Os judeus não gostam
do contrário, então?”
“Não, estúpido, somos
nós que não gostamos deles.”
Bruno enrugou a
testa. Gretel já fora repreendida incontáveis vezes por chamar o irmão
de estúpido, e mesmo assim insistia.
“Então, por que não
gostamos deles?”, perguntou ele.
“Porque são judeus”,
disse Gretel.
“Entendi. E o
contrário e os judeus não se dão bem.”
“Não, Bruno”, disse
Gretel, mas disse-o lentamente porque acabara de descobrir algo
esquisito no cabelo e estava examinando aquilo com toda
atenção.
“Bem, será que não dá
para alguém chamá-los para conversar e...”
Bruno foi
interrompido pelo som de Gretel soltando um grito agudo, que acordou a mãe
de sua soneca vespertina e a trouxe correndo até o quarto
querendo descobrir qual de seus
filhos assassinara o outro.
Enquanto
experimentava diferentes penteados, Gretel encontrou um minúsculo ovo, do
tamanho da cabeça de um alfinete. Ela o mostrou para a mãe,
que vasculhou o cabelo dela,
separando rapidamente algumas mechas, antes de marchar até
Bruno e fazer o mesmo com
ele.
“Oh, eu não posso
acreditar”, disse ela, brava. “Eu sabia que aconteceria uma coisa
dessas num lugar como este.”
Ela descobriu que
tanto Gretel como Bruno tinham piolhos nos cabelos. A menina
precisou de um tratamento com um xampu especial que tinha
cheiro muito ruim e depois
ficou horas em seu quarto, chorando e chorando.
Bruno também precisou
do xampu, mas então o pai decidiu que seria melhor para ele
começar do zero e pegou uma navalha e raspou todo o cabelo
do menino, o que o fez
chorar. Não demorou muito, e ele detestou ver o cabelo
flutuando da cabeça e aterrissando
no chão aos seus pés, mas o pai disse que aquilo tinha de
ser feito.
Mais tarde Bruno foi
olhar no espelho do banheiro e se sentiu mal. Sua cabeça toda
parecia deformada agora que estava careca, e os olhos davam
a impressão de ser grandes
demais para o rosto. Ele quase teve medo do próprio reflexo.
“Não se preocupe”,
encorajou o pai. “Vai crescer de novo. Basta esperar algumas
semanas.”
“Foi toda essa
sujeira daqui que provocou isto”, disse a mãe. “Se certas pessoas ao
menos percebessem o efeito que este lugar está tendo sobre
todos nós.”
Quando se viu no
espelho, Bruno não pôde evitar de pensar em como estava parecido
com Shmuel, e ele se perguntou se as pessoas do outro lado
da cerca teriam piolhos
também e se era por isso que todas tinham as cabeças
raspadas.
Ao ver o amigo no dia
seguinte, Shmuel começou a rir da aparência de Bruno, o que não
ajudou muito a restaurar-lhe a autoconfiança abalada.
“Agora fiquei
parecido com você”, disse Bruno, triste, como se aquela fosse uma coisa
terrível de se admitir.
“Só que mais gordo”,
acrescentou Shmuel.
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