Alguns dias depois Bruno estava deitado na cama em seu
quarto, olhando para o teto
sobre a cabeça. A tinta branca estava rachada e descamando
de uma maneira bastante
desagradável, ao contrário da pintura da casa em Berlim, que
nunca ficava arranhada e
recebia uma segunda demão de tinta todo verão, quando a mãe
trazia os decoradores.
Naquela tarde em especial ele ficou lá deitado olhando para
as rachaduras em forma de teia
de aranha, estreitando os olhos para imaginar o que haveria
para além delas. Pensou que
poderia haver insetos morando no espaço entre o teto e a
tinta, e o movimento deles seria
responsável por forçar a pintura, inchando-a por dentro,
provocando as rachaduras,
tentando abrir uma brecha grande o bastante para que eles
pudessem atravessar e procurar a
saída pela janela, por onde escapariam. Nada, pensou Bruno,
nem mesmo os insetos jamais
optaria por ficam em Haja-Vista.
“Tudo aqui é horrível”,
ele disse em voz alta, embora não houvesse ninguém presente no
quarto para escutar e, de alguma maneira, ele se sentiu
melhor por ter ouvido as palavras
ditas, fosse como fosse. “Eu odeio esta casa, odeio meu
quarto e odeio até mesmo a pintura.
Odeio tudo aqui. Absolutamente tudo.”
Assim que ele
terminou de falar, Maria entro pela porta carregando uma braçada de
roupas devidamente lavadas, secas e passadas. Ela hesitou
por um instante quando o viu ali
sentado, mas depois fez uma reverência com a cabeça e
caminhou em silêncio até o guardaroupa.
“Olá”, disse Bruno,
pois, embora conversar com uma criada não fosse a mesma coisa do
que ter amigos com quem conversar, não havia mais ninguém
para lhe fazer companhia e
era bem mais saudável falar com ela do que ficar falando
sozinho. Gretel não estava por
perto e ele começou a se preocupar, temendo que pudesse
enlouquecer por causa do tédio.
“Senhor Bruno”, disse
Maria em voz baixa, separando as camisas das calças e das roupas
de baixo e guardando tudo em gavetas e prateleiras
separadas.
“Imagino que você
esteja tão incomodada com as novidades quanto eu”, disse Bruno, e
ela se voltou para encará-lo com uma expressão que sugeria
não saber do que se tratava.
“Tudo aqui. É horrível, não é? Você não odeia tudo isso,
como eu?”
Maria abriu a boca
para dizer alguma coisa, mas fechou-a com a mesma rapidez. Ela
parecia estar pensando cuidadosamente na resposta,
escolhendo as palavras certas,
preparando-se para dizê-las, e então pensou melhor e
dispensou-as por completo. Bruno a
conhecia por quase toda a sua vida – ela viera trabalhar
para sua família quando ele tinha
apenas três anos – e eles sempre se deram bem juntos, embora
ela jamais demonstrasse
grandes sinais de vida. Seguia com seu trabalho, lustrando
os móveis, lavando as roupas,
ajudando na cozinha e nas compras, por vezes levando-o à
escola e buscando-o na saída,
apesar de isso ter sido mais comum quando ele ainda tinha
oito anos; ao completar nove
anos, ele decidiu que já tinha idade suficiente para ir e
voltar sozinho da escola.
“Então você não gosta
daqui?”, disse ela afinal.
“Se eu não gosto
daqui?”, respondeu Bruno com uma leve risada. “Gostar daqui?”, ele
repetiu, mais alto desta vez. “É claro que eu não gosto
daqui! É horrível. Não há nada para
se fazer, não há ninguém com quem conversar, ninguém para
brincar comigo. Não vá me
dizer que você está contente por termos nos mudado para cá.”
“Eu sempre gostei do
jardim da casa de Berlim”, disse Maria, respondendo a uma
pergunta completamente diferente. “Às vezes, quando a tarde
era quente, eu me sentava ali
ao sol e almoçava sob a hera junto ao lago. As flores lá
eram muito bonitas. Seus perfumes.
As abelhas que flutuavam ao redor delas e nunca nos incomodavam
se as deixássemos em
paz.”
“Então você também
não gosta daqui?”, perguntou Bruno. “Acha tão horrível quanto eu
acho?”
Maria franziu o
cenho. “Não importa”, ela disse.
“O que não importa?”
“O que eu acho.”
“Como assim, é claro
que importa”, disse Bruno, irritado, como se ela estivesse
deliberadamente dificultando as coisas. “Você é parte da
família, não é?”
“Não estou certa de
que seu pai concordaria com isso”, disse Maria, permitindo-se um
sorriso, pois ficara comovida com o que o menino acabara de
dizer.
“Bem, você foi
trazida para cá contra sua vontade, assim como eu. Se quer saber,
estamos todos no mesmo barco. E ele está afundando.”
Por um instante Bruno
achou que Maria fosse de fato lhe dizer o que estava pensando.
Ela depositou o resto das roupas sobre a cama e seus punhos
se cerravam, como se
estivesse muito brava por causa de alguma coisa. A boca se
abriu, mas congelou por um
momento, como se Maria tivesse medo de tudo o que poderia
dizer se permitisse a si
mesma começar.
“Por favor, Maria,
diga-me”, disse Bruno. “Quem sabe, se todos nós nos sentimos assim
poderemos convencer o papai a nos levar de volta para casa.”
Ela desviou o olhar
dele por alguns instantes silenciosos e balançou a cabeça,
entristecida, antes de encará-lo novamente. “Seu pai sabe o
que é melhor para nós”, ela
disse. “Você precisa confiar nele.”
“Não tenho tanta
certeza disso”, disse Bruno. “Acho que ele cometeu um terrível
engano.”
“Então é um engano
com o qual teremos que conviver.”
“Quando eu me engano,
sou castigado”, Bruno insistiu, irritado pelo fato de que as regras
que se aplicavam às crianças pareciam nunca se aplicar aos
adultos (apesar de serem eles
que aplicavam as regras). “Pai idiota”, disse em voz baixa.
Os olhos de Maria se
arregalaram e ela deu um passo na direção dele, cobrindo a própria
boca com as mãos num momento de horror. Ela olhou ao redor
para certificar-se de que
ninguém os estava ouvindo nem ouvira o que Bruno acabara de
dizer. “Nunca diga isso”,
ela disse. “Jamais fale uma coisa dessas sobre seu pai.”
“Não vejo por que
não”, disse Bruno; ele estava um pouco envergonhado de si por ter
dito tais palavras, mas a última coisa que faria era sentar
e receber uma bronca quando
ninguém parecia se importar com as suas opiniões.
“Porque o seu pai é
um bom homem”, disse Maria. “Um homem muito bom. Ele cuida
de todos nós.”
“Trazendo-nos até
este fim de mundo, no meio do nada, você quer dizer? É isso que você
chama de tomar conta da gente?”
“Há muitas coisas que
o seu pai fez”, disse ela. “Muitas coisas das quais você deveria se
orgulhar. Se não fosse pelo seu pai, onde eu estaria, afinal
de contas?”
“De volta a Berlim,
imagino”, disse Bruno. “Trabalhando numa bela casa. Almoçando
sob a hera e deixando as abelhas em paz.”
“Você não se lembra
de quando eu vim trabalhar para vocês, não é?”, ela perguntou em
voz baixa, sentando-se por um instante ao lado dele na cama,
coisa que jamais havia feito
antes. “Como poderia se lembrar? Você tinha apenas três
anos. Seu pai me acolheu e me
ajudou quando eu precisava dele. Deu-me um emprego, um lar,
comida. Você nunca passou
fome, não é?”
Bruno franziu o
cenho. Ele queria mencionar que estava um pouco faminto naquele
momento, mas por fim olhou para Maria e percebeu, pela
primeira vez, que nunca a havia
considerado inteiramente como uma pessoa, com uma vida e uma
história próprias. Afinal,
ela jamais fizera outra coisa (até onde ele sabia) além de
ser a criada da família. Ele nem
sequer conseguira se lembrar se já a havia visto trajando
outras roupas que não o uniforme
de empregada. Mas ao pensar no assunto, como fazia agora,
era obrigado a admitir que
deveria haver mais na vida dela, além de servir a ele e à
sua família. Ela devia ter
pensamentos na cabeça, assim como ele. Devia haver coisas
das quais ela sentia falta,
amigos que gostaria de rever, assim como ele. E devia ter
chorado toda noite até dormir,
como teriam feito meninos bem menores e menos corajosos do
que ele. Bruno notou que
ela era até bonita, o que provocou nele uma sensação
engraçada.
“Minha mãe conheceu
seu pai quando ele era um menino da sua idade”, disse Maria após
alguns momentos. “Ela trabalhava para sua avó. Cuidava das
roupas dela, enquanto ela
viajava pela Alemanha, quando era mais jovem. Preparava
todas as roupas para os
concertos – lavava-as, passava-as, consertava-as. Todos
vestidos maravilhosos. E a costura,
Bruno! Cada modelo parecia uma obra de arte. Não se
encontram mais costureiras como
aquelas hoje em dia.” Ela balançou a cabeça e sorriu,
pensando naquelas memórias,
enquanto Bruno escutava pacientemente. “Ela se certificava
de que todos os vestidos
estivessem arrumados e prontos para serem usados a qualquer
momento que sua avó
entrasse no camarim, antes de um espetáculo. E, depois que
sua avó se aposentou, é claro
que as duas continuaram amigas e minha mãe até recebia uma
pensão dela, mas era uma
época difícil e o seu pai me ofereceu um emprego, o primeiro
que eu tive. Alguns meses
mais tarde minha mãe ficou muito doente e precisou de muitos
cuidados hospitalares, e o
seu pai cuidou de tudo, mesmo não sendo obrigação dele. Ele
pagou tudo do próprio bolso,
porque ela fora amiga da mãe dele. E me acolheu no seu lar
pelo mesmo motivo. E, quando
ela morreu, ele também pagou por todas as despesas do
funeral. Então não chame seu pai
de idiota, Bruno. Não perto de mim. Isso eu não permitirei.”
Bruno mordeu os
lábios. Ele esperava que Maria ficasse ao seu lado na campanha para
sair de Haja-Vista, mas agora percebia por quem de fato ela
tinha lealdade. E era obrigado a
admitir que ficara orgulhoso do pai ao escutar aquela
história.
“Bem”, ele falou,
incapaz de pensar em algo inteligente para dizer, “acho que foi gentil
da parte dele.”
“Sim”, concordou
Maria, levantando-se e caminhando até a janela, aquela através da
qual Bruno enxergava as cabanas e as pessoas lá longe. “Ele
foi muito bom para mim
naquela época”, ela prosseguiu em voz baixa, olhando pela
janela e observando as pessoas
e os soldados ao longe cuidando de suas vidas. “Ele tem
muita bondade na alma, tem
mesmo, o que me faz imaginar...” A voz dela sumiu enquanto
os observava, e depois emitiu
um soluço repentino como se fosse chorar.
“Imaginar o quê?”,
perguntou Bruno.
“Imaginar o que
ele... como ele pode...”
“Como ele pode o
quê?”, insistiu Bruno.
O barulho de uma
porta batendo veio do andar de baixo e reverberou tão alto pela casa –
como o disparo de uma arma – que Bruno deu um salto e Maria
soltou um pequeno grito.
Bruno distinguiu passos golpeando os degraus da escada vindo
na direção deles, cada vez
mais rápido, e rastejou de volta à cama, apertando-se contra
a parede, subitamente temendo
o que poderia acontecer a seguir. Prendeu a respiração,
esperando alguma encrenca, mas
era apenas Gretel, o Caso Perdido. Ela meteu a cabeça no vão
da porta e pareceu surpresa
ao encontrar o irmão e a criada da família conversado.
“O que está
havendo?”, perguntou Gretel.
“Nada”, disse Bruno
na defensiva. “O que você quer? Saia daqui.”
“Saia você”, ela
respondeu, embora estivessem no quarto dele, e então a menina se
voltou para Maria, estreitando os olhos desconfiados.
“Prepare-me um banho, está bem,
Maria?”, pediu ela.
“Por que você não
prepara o próprio banho?”, retrucou Bruno, ríspido.
“Porque ela é a
criada”, devolveu Gretel, olhando para ele. “É para isso que ela está
aqui.”
“Ela não está aqui
para isso”, gritou Bruno, levantando-se e marchando na direção dela.
“Ela não está aqui simplesmente para fazer coisas para nós o
tempo todo, sabia?
Especialmente coisas que podemos fazer sozinhos.”
Gretel encarou-o como
se ele tivesse enlouquecido e então olhou para Maria, que
rapidamente balançou a cabeça.
“Mas é claro, dona
Gretel”, disse Maria. “Assim que terminar de arrumar as roupas de
seu irmão, eu irei prontamente atendê-la.”
“Bem, não demore!”,
disse Gretel, grossa – pois, ao contrário de Bruno, ela jamais
parava para pensar que Maria era uma pessoa com sentimentos
exatamente como os seus -,
antes de marchar de volta ao próprio quarto e fechar a porta
atrás de si. Os olhos de Maria
não a acompanharam, mas suas bochechas haviam adquirido uma
coloração rósea.
“Continuo achando que
ele cometeu um terrível engano”, disse Bruno em voz baixa após
alguns minutos, quando ele teve a sensação de que queria
pedir desculpas pelo
comportamento da irmã mas não sabia ao certo se essa era a
coisa certa a fazer. Situações
como aquela sempre deixavam Bruno num grande desconforto,
porque, em seu coração, ele
sabia que não havia motivo para faltar com a educação a
ninguém, mesmo que a pessoa
trabalhasse para você. Afinal, era para isso que existiam as
boas maneiras.
“Mesmo assim, é
melhor não dizer isso em voz alta”, disse Maria rapidamente,
caminhando na direção dele com cara de quem queria lhe meter
algum juízo na cabeça.
“Prometa-me que não dirá.”
“Mas por quê?”,
perguntou ele, franzindo o cenho. “Estou apenas dizendo o que sinto.
Eu sou livre para fazer isso, não?”
“Não”, disse ela.
“Não é, não.”
“Não sou livre para
dizer o que sinto?”, ele repetiu, incrédulo.
“Não”, ela insistiu,
a voz áspera enquanto tentava explicar a situação a ele. “Apenas não
fale neste assunto, Bruno. Não percebe quanta encrenca você
poderia causar? Para todos
nós?”
Bruno a encarou.
Havia algo em seus olhos, uma espécie de preocupação histérica, que
ele jamais vira antes e que o inquietava. “Bem”, o menino
murmurou, agora de pé e
caminhando na direção da porta, de repente ansioso por
deixá-la, “estava apenas dizendo
que não gosto daqui, é só isso. Só estava jogando conversa
fora, enquanto você arrumava as
roupas. Não é como se eu estivesse planejando fugir ou coisa
assim. Muito embora eu ache
que, se fugisse, não poderia ser criticado por isso.”
“E matar de
preocupação seu pai e sua mãe?”, perguntou Maria. “Bruno, se você tiver
um pingo de juízo, vai ficar quieto e se concentrar nos
estudos e fazer tudo o que o seu pai
disser. Temos que nos manter a salvo até que tudo isto
termine. Pelo menos essa é a minha
intenção. Além disso, o que mais podemos fazer? Não cabe a
nós mudar as coisas.”
Subitamente, e sem
conseguir pensar num motivo em particular, Bruno sentiu uma
irresistível vontade de chorar. Até ele ficou surpreso,
piscando os olhos rapidamente
algumas vezes para que Maria não percebesse seus
sentimentos. Apesar disso, quando seus
olhos tornaram a se encontrar, ele pensou que talvez
houvesse algo de estranho no ar aquele
dia, pois os olhos dela também pareciam estar se enchendo de
lágrimas. Tudo isso o fez
sentir-se estranho, e então o menino deu as costas a ela e
rumou até a porta.
“Aonde você vai?”,
perguntou Maria.
“Lá fora”, disse
Bruno, com raiva. “Se é que você se importa.”
Ele andou devagar,
mas, depois que deixou o quarto, aumentou o ritmo rumo às escadas
e desceu em alta velocidade, com a repentina sensação de
que, se não saísse logo da casa,
desmaiaria. Em segundos já estava do lado de fora, e começou
a correr para lá e para cá
pelo passeio que levava à estrada, ansioso por alguma
atividade, algo que fosse cansá-lo um
pouco. À distância, viu o portão que levava à estrada que
levava à estação de trem que
levava à sua casa, mas a idéia de ir até lá, a idéia de
fugir e ficar abandonado à própria sorte
sem ninguém para ajudá-lo, pareceu ainda mais desagradável
do que a idéia de ficar em
Haja-Vista.
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