Várias semanas depois de Bruno ter chegado a Haja-Vista com
sua família e sem
nenhuma perspectiva de uma visita de Karl, Daniel ou Martin
no horizonte, ele decidiu que
era melhor inventar alguma maneira de se divertir, ou então
acabaria enlouquecendo aos
poucos.
Bruno conhecera apenas uma pessoa que ele considerava louca,
e era herr Roller, um
homem mais ou menos da idade de seu pai, que morava na
esquina do seu quarteirão da
casa velha em Berlim. Era freqüentemente visto na rua
andando para lá e para cá a qualquer
hora do dia ou da noite, discutindo sozinho, exaltado. Às
vezes, no meio dessas discussões,
a disputa saída do controle e o homem tentava atingir a
sombra que ele próprio projetava na
parede. De tempos em tempos herr Roller lutava com tamanha
fúria que os punhos
sangravam de tanto bater contra as paredes de tijolo, e
então ele caía de joelhos, chorando
alto e batendo as mãos contra a cabeça. Em algumas ocasiões
Bruno o ouvira proferindo
aquelas palavras que ele próprio não podia usar e, nessas
vezes, tinha que se controlar para
não rir.
“Não ria do pobre
herr Roller”, dissera-lhe a mãe numa tarde em que ele relatara sua
última aventura. “Você não faz idéia do que ele passou nessa
vida.”
“Ele é louco”, disse
Bruno, descrevendo com o dedo círculos ao lado da cabeça e
assoviando para indicar quão louco ele achava ser o homem.
“Outro dia ele se aproximou
de um gato e o convidou para tomar o chá da tarde.”
“E o que disse o
gato?”, perguntou Gretel, que estava preparando um sanduíche na
cozinha.
“Nada”, explicou
Bruno. “Era um gato.”
“Estou falando
sério”, insistiu a mãe. “Franz era um jovem maravilhoso – eu o conheci
quando ainda era uma garotinha. Era gentil e atencioso e
atravessava o salão de dança como
se fosse Fred Astaire. Mas sofreu um terrível ferimento
durante a Grande Guerra, um
ferimento na cabeça, e é por isso que age assim agora. Não é
motivo de piada. Vocês não
fazem idéia do que passaram os jovens daquela época. Não
imaginam o sofrimento dele.”
Bruno tinha, então,
apenas seis anos e não sabia ao certo a que a mãe estava se referindo.
“Foi há muitos anos”, explicou ela quando ele perguntou a
respeito. “Antes de você nascer.
Franz era um dos jovens que lutaram por nós nas trincheiras.
Seu pai o conhecia muito bem
naquela época; acredito que eles serviram juntos.”
“E o que aconteceu
com ele?”, perguntou Bruno.
“Não importa”, disse
a mãe. “A guerra não é um assunto digno de conversa. Temo que
em breve passaremos tempo demais conversando sobre a
guerra.”
Aquilo tudo ocorrera
três anos antes de todos eles chegarem a Haja-Vista, e Bruno não
havia pensado muito em herr Roller nesse ínterim, mas de
repente ele se convenceu de que,
se não tomasse alguma atitude, se não fizesse alguma coisa
que lhe ocupasse a mente,
então, antes que pudesse perceber, acabaria igualmente
vagando pelas ruas e lutando
consigo mesmo e convidando animais domésticos para ocasiões
sociais.
Para manter-se
distraído, Bruno passou uma longa manhã e a tarde de um sábado criando
para si uma nova diversão. A certa distância da casa – do
lado de Gretel e impossível de se
ver da janela de seu próprio quarto – havia um grande
carvalho, de tronco bastante
alentado. Uma árvore alta, de galhos robustos, fortes o
suficiente para suportar um menino
pequeno. Parecia tão velha que Bruno estava certo de que
fora plantada em algum momento
da baixa Idade Média, um período que ele estudara há pouco
tempo e descobrira ser muito
interessante – em especial as partes que falavam de
cavaleiros que saíam para terras
desconhecidas em busca de aventuras e desvendavam mistérios
curiosos durante o
processo.
Bruno precisava
apenas de duas coisas para criar seu divertimento: um pedaço de corda e
um pneu. A corda foi bastante fácil de encontrar, pois havia
rolos no porão da casa e não
demorou para que ele fizesse algo extremamente perigoso:
encontrando uma faca afiada,
cortou tantos pedaços de corda julgou serem necessários.
Levou-os até o carvalho e deixouos
no chão para utilizá-los futuramente. O pneu já era outra
história.
Naquela manhã em
particular, nem a mãe nem o pai estavam em casa. A mãe saíra cedo
para tomar o trem até uma cidade próxima e passaria o dia
respirando outros ares, enquanto
o pai fora visto pela última vez indo na direção das cabanas
e das pessoas que ficavam à
distância, do outro lado da janela de Bruno. Mas, como de
costume, havia muitos
caminhões e jipes dos soldados estacionados nas proximidades
da casa, e, embora ele
soubesse que seria impossível roubar um pneu de qualquer um
deles, existia sempre a
possibilidade de encontrar um estepe em algum lugar.
Quando estava saindo,
viu Gretel conversando com o tenente Kotler e, sem grande
entusiasmo, decidiu que seria ele a pessoa certa a quem
pedir o favor. O tenente Kotler era
o jovem oficial que Bruno vira durante seu primeiro dia em
Haja-Vista, o soldado que
aparecera no andar de cima da casa e o encarara por um
instante antes de acenar com a
cabeça e seguir caminho. Bruno o havia visto em muitas
ocasiões desde então – ele entrava
e saía da casa como se fosse o dono do lugar, e parecia
óbvio que o escritório do pai não era
proibido para ele -, porém os dois não haviam conversado
muito. Bruno não sabia ao certo
por quê, mas sabia que não gostava do tenente Kotler. Havia
uma atmosfera ao redor dele
que fazia com que o menino sentisse frio e tivesse vontade
de vestir um macacão. Ainda
assim, não havia mais a quem pedir e então marchou na
direção deles para dizer oi,
reunindo toda a confiança de que era capaz.
Na maioria dos dias o
jovem tenente tinha um aspecto muito vistoso, desfilando por ali
num uniforme que parecia ter sido passado enquanto ele o
vestia. As botas pretas sempre
reluziam de tão polidas e o cabelo loiro era repartido de
lado e mantido perfeitamente no
lugar por alguma coisa que destacava as marcas do pente,
parecendo um campo recémarado.
Ele também usava tanta loção pós-barba que tornava possível
farejar sua
aproximação a uma distância considerável. Bruno aprendeu a
evitar encontrá-lo no sentido
contrário ao vento, ou acabaria arriscando-se a desmaiar por
causa do cheiro.
Naquela manhã em
particular, entretanto, por ser sábado e por causa do sol intenso, ele
não estava tão impecavelmente arrumado. Ao invés disso,
vestia um paletó branco sobre as
calças e o cabelo pendia sobre a testa, exausto. Os braços
eram surpreendentemente
bronzeados e tinham o tipo de músculos que Bruno desejava
para si. Ele parecia tão jovem
naquele dia que Bruno até ficou surpreso; na verdade ele o
fazia lembrar dos meninos mais
velhos da escola, aqueles que sempre evitava. O tenente
Kotler estava envolvido numa
conversa com Gretel, e o quer que estivesse dizendo devia
ser irresistivelmente engraçado,
pois ela ria alto e enrolava o cabelo ao redor dos dedos,
formando anéis.
“Olá”, disse Bruno ao
se aproximar deles, e Gretel lançou-lhe um olhar irritado.
“O que você quer?”,
perguntou ela.
“Eu não quero nada”,
devolveu Bruno, fuzilando-a com o olhar. “Só vim dizer oi.”
“Por favor, desculpe
o meu irmão mais novo, Kurt”, disse Gretel ao tenente Kotler.
“Sabe como é, ele só tem nove anos.”
“Bom dia,
homenzinho”, disse Kotler, estendendo a mão e – para desgosto do menino –
passando-a pelo cabelo de Bruno, um gesto que o deixou com
vontade de empurrá-lo no
chão e saltar sobre sua cabeça. “E qual motivo o tira da
cama tão cedo numa manhã de
sábado?”
“Não tem nada de ‘tão
cedo’”, disse Bruno. “São quase dez horas.”
O tenente Kotler deu
de ombros. “Quando eu tinha a sua idade, minha mãe não
conseguia me tirar da cama antes da hora do almoço. Ela
dizia que eu jamais cresceria e
ficaria forte, se passasse a vida toda dormindo.”
“Bem, ela parece ter
se enganado completamente, não?”, Gretel deu um sorriso afetado.
Bruno olhou enojado para ela. A menina fazia uma voz de boba
que dava a impressão de
que ela não tinha nada da cabeça. Não havia nada que Bruno
quisesse mais do que deixar os
dois para trás sem participar da conversa deles, mas não
tinha escolha, a não ser priorizar os
seus interesses e pedir ao tenente Kotler o impensável. Um
favor.
“Eu imaginava se
poderia lhe pedir um favor”, disse Bruno.
“Pode pedir”, disse o
tenente Kotler, fazendo Gretel rir de novo, embora isso não fosse
especialmente engraçado.
“Eu queria saber se
não há algum pneu estepe sobrando”, prosseguiu Bruno. “Quem sabe
de um dos jipes. Ou de um dos caminhões. Algum que vocês não
estejam usando.”
“O único pneu que eu
vi sobrando por aqui nos últimos tempos pertence ao sargento
Hoffschneider, e ele o traz ao redor da cintura”, disse o
tenente Kotler, os lábios assumindo
uma forma parecida com um sorriso. Para Bruno aquilo não
fazia o menor sentido, mas
parecia divertir tanto Gretel que ela estava quase dançando.
“Bem, ele está usando
o pneu?”, perguntou Bruno.
“O sargento
Hoffschneider?”, perguntou o tenente Kotler. “Temo que sim. Ele é muito
apegado ao seu estepe sobressalente.”
“Chega, Kurt”, disse
Gretel, secando os olhos. “Ele não entende. Só tem nove amos.”
“Dá para você ficar
quieta, por favor?”, gritou Bruno irritado, encarando a irmã. Já era
ruim o bastante ter que vir ate o tenente Kotler pedir-lhe
um favor, mas ficava ainda pior
com a irmã provocando-o durante a história toda. “Você
também só tem doze anos”,
acrescentou ele. “Então pare de fingir que é mais velha.”
“Eu tenho quase treze
anos, Kurt”, retrucou ela, sem rir, o rosto congelado de pavor.
“Farei treze em poucas semanas. Serei uma adolescente. Como
você.”
O tenente Kotler
sorriu e acenou com a cabeça, mas não disse nada. Bruno voltou os
olhos para ele. Se fosse qualquer outro adulto ali na sua
frente, ele teria girado os olhos
sugerindo que ambos sabiam o quanto as meninas eram bobas, e
as irmãs, ainda mais
ridículas. Porém não se tratava de qualquer outro adulto.
Era o tenente Kotler.
“Enfim”, disse Bruno,
ignorando o olhar de ódio que Gretel lhe lançava, “além desse
pneu, há mais algum lugar onde eu possa encontrar um estepe
sobrando?”
“É claro”, disse o
tenente Kotler, que havia parado de sorrir e parecia subitamente
entediado. “Mas o que você vai fazer com o pneu afinal?”
“Eu pensei em fazer
um balanço”, disse Bruno. “Sabe, com um pneu e um pouco de
corda amarrada aos galhos de uma árvore.”
“É claro” disse o
tenente Kotler, acenando a cabeça com ar de sabedoria, como se tais
coisas fossem apenas memórias distantes agora, ainda que,
conforme Gretel dissera, ele
próprio não passasse de um adolescente. “Sim, eu mesmo fiz
muitos balanços quando era
criança. Meus amigos e eu passamos muitas tardes felizes
brincando assim.”
Bruno ficou
estupefato ao perceber que havia algo em comum entre eles (e ainda mais
surpreso em saber que o tenente Kotler já tivera amigos na
vida). “O que me diz?”, ele
perguntou. “Será que tem algum por aí?”
O tenente Kotler
olhou para ele e pareceu estar pensando na resposta, como se não
soubesse se iria lhe dar uma resposta direta ou se tentaria
irritá-lo como costumava fazer.
Mas então ele viu Pavel – o velho que vinha todas as tardes
ajudar a descascar os legumes
na cozinha antes de vestir o paletó branco e servi-los à
mesa – caminhando na direção da
casa, e isso pareceu dar-lhe clareza quanto ao que fazer.
“Ei, você!”, gritou
ele, acrescentando, então, uma palavra que Bruno não entende.
“Venha cá, seu...” Ele disse a tal palavra novamente, e
alguma coisa no tom rude com que a
entoava fez Bruno se sentir envergonhado e desviar os olhos,
não querendo tomar parte no
que estava acontecendo.
Pavel veio na direção
deles e Kotler falou-lhe com insolência, apesar de ser jovem o
bastante para ser seu neto. “Leve este homenzinho até o
depósito atrás da casa principal.
Enfileirados junto à parede, estão alguns pneus velhos. Ele
escolherá um deles, e você o
carregará para onde quer que ele lhe peça, entendido?”
Pavel segurou o boné
nas mãos diante de si e acenou com a cabeça, fazendo-a abaixar
ainda mais. “Sim, senhor”, disse em voz baixa, tão baixa que
era como se não tivesse dito
nada.
“E depois, quando
voltar para a cozinha, lave essas mãos antes de tocar na comida, seu
imundo...” O tenente Kotler repetiu a palavra que já tinha
usado duas outras vezes e cuspiu
um pouco enquanto falava. Bruno procurou com o olhar a irmã,
que estivera maravilhada
observando os raios do sol refletidos no cabelo do tenente
Kotler, mas agora, como ele,
parecia bastante incomodada com o que acontecera. Nenhum dos
dois havia conversado
com Pavel antes, mas sabiam que ele era um bom servente, e
os bons serventes, segundo o
pai, não nasciam em árvores.
“Pode ir, então”,
disse o tenente Kotler, e Pavel voltou-se indicando o caminho até o
depósito, seguido por Bruno, que de tempos em tempos olhava
para trás na direção de sua
irmã e do jovem soldado e sentia um grande ímpeto de voltar
e tirar Gretel de lá, apesar de
ela ser irritante e egocêntrica e desagradável com ele na
maioria das vezes. Esse era o
trabalho dela, afinal. Era a irmã dele. Mas ele detestava a
idéia de deixá-la a sós com um
homem como o tenente Kotler. Não havia outra maneira de
dizê-lo: aquele sujeito era
absolutamente desprezível.
O acidente aconteceu
algumas horas mais tarde, depois que Bruno havia encontrado o
pneu adequado, e Pavel o arrastara até o grande carvalho que
ficava do lado do quarto de
Gretel, e depois que Bruno subiu e desceu e subiu e desceu e
subiu e desceu pelo tronco
para amarar as cordas bem apertadas ao redor dos galhos e do
próprio pneu. Até então, a
operação tinha sido um estrondoso sucesso. Ele já havia
construído um desses antes, mas
naquela ocasião tivera a ajuda de Karl e Daniel e Martin.
Desta vez ele estava fazendo tudo
sozinho, o que tornava o trabalho certamente mais
complicado. E ainda assim ele
conseguiu, e em poucas horas estava contente, instalado no
centro do pneu e balançando
para a frente e para trás como se não tivesse uma única
preocupação na vida, embora
estivesse ignorando o fato de que aquele era um dos balanços
mais desconfortáveis em que
já estivera.
Bruno se deitou
atravessado no centro do pneu e usou os pés para ganhar impulso a partir
do chão. Cada vez que o balanço recuava, erguia-se no ar e
quase atingia o tronco da
árvore, próximo o suficiente para usar os pés a fim de dar
novo impulso, subindo cada vez
mais alto e mais rápido a cada balançada. Esse procedimento
funcionou muito bem, até que
ele escorregou um pouco do pneu, bem na hora em que com os
pés dava impulso na árvore
e, antes que ele percebesse, seu corpo voltou-se para
dentro, e Bruno caiu, com um pé ainda
dentro do pneu, enquanto aterrissava de cara contra o chão,
provocando um ruído alto e
surdo.
Tudo escureceu por um
momento e depois retomou o foco. Ele se sentou no chão, bem
na hora em que o pneu balançava de volta, atingindo-o na
cabeça, o que o fez soltar um
gemido e sair do caminho. Quando se levantou, percebeu que o
braço e a perna estavam
ambos bastante doloridos, pois caíra pesadamente sobre eles,
mas não a ponto de ele pensar
tê-los quebrado. Inspecionou a mão e viu que estava coberta
de arranhões e, quando olhou
para o cotovelo, viu que havia nele um belo corte. A perna
era o que mais incomodava e,
quando olhou para o joelho logo abaixo de onde terminavam as
calças curtas, havia ali um
enorme talho que parecia estar apenas esperando que ele
olhasse, pois, assim que toda a
atenção de Bruno foi focalizada no ferimento, este começou a
sangrar bastante.
“Oh, céus”, disse
Bruno em voz alta olhando para a ferida sem saber o que fazer a seguir.
Não precisou ficar indeciso durante muito tempo, uma vez que
havia construído o balanço
no mesmo lado da casa em que ficava a cozinha, e Pavel, o
servente que o havia ajudado a
encontrar o pneu, estivera à janela descascando os legumes e
viu o acidente acontecer.
Quando Bruno olhou para cima de novo, viu Pavel vindo
rapidamente em sua direção e, só
quando ele chegou, Bruno ficou seguro o bastante para deixar
a sensação de embriaguez
que o rondava dominá-lo por completo. Ele chegou a desabar,
mas desta vez não caiu no
chão, pois Pavel o pegou no colo.
“Não sei o que
aconteceu”, disse o menino. “Não parecia ser perigoso.”
“Você estava
balançando muito alto”, disse Pavel numa voz baixa que imediatamente
transmitiu a Bruno uma grande segurança. “Eu vi tudo. Achei
que a qualquer momento lhe
aconteceria um imprevisto.”
“E aconteceu”, disse
Bruno.
“Certamente
aconteceu.”
Pavel carregou-o pela
grama de volta a casa. Levou-o até a cozinha e o acomodou numa
das cadeiras de madeira.
“Onde está minha
mãe?”, perguntou Bruno, procurando a primeira pessoa a quem ele
buscava quando sofria um acidente.
“Sua mãe ainda não
voltou, infelizmente”, disse Pavel, ajoelhando-se no chão diante dele
e examinando seu joelho. “Sou o único que está aqui.”
“O que vai acontecer
comigo, então?”, perguntou Bruno, sentindo o pânico crescer
dentro de si, uma emoção que poderia levá-lo às lágrimas. “É
capaz de eu sangrar até a
morte.”
Pavel sorriu
gentilmente e balançou a cabeça. “Você não vai sangrar até a morte”, disse o
servente, puxando um banco e acomodando sobre ele a perna de
Bruno. “Fique parado um
instante. Há um estojo de primeiros socorros bem ali.”
Bruno observou-o se
movimentar pela cozinha, procurar um estojo verde de primeiros
socorros debaixo de uma cômoda, trazê-lo e encher uma
pequena tigela com água,
testando-a antes com a ponta dos dedos para certificar-se de
que não estava fria demais.
“Terei de ir ao
hospital?”, perguntou Bruno.
“Não, não”, disse
Pavel ao retomar a posição anterior, de joelhos, mergulhando um pano
seco na tigela e passando-o delicadamente sobre o joelho de
Bruno, o que o fez encolher-se
de dor, apesar de não doer tanto assim. “É apenas um pequeno
corte. Nem precisará de
pontos.”
Bruno franziu o cenho
e mordeu os lábios nervosamente, enquanto Pavel limpava o
sangue da ferida; depois ele pressionou contra ela outro
pano, com força, durante alguns
minutos. Quando o retirou, com todo o cuidado, o sangramento
havia estancado, e ele sacou
do estojo de primeiros socorros um pequeno frasco que
continha um líquido verde, o qual
borrifou sobre a ferida, coisa que doeu consideravelmente e
fez Bruno dizer “Ai”
sucessivas vezes.
“Não dói tanto
assim”, disse Pavel numa voz gentil e delicada. “Não torne as coisas
piores, pensando que dói mais do que você realmente está
sentindo.”
De alguma maneira
isso fez sentido para Bruno e ele resistiu ao ímpeto de dizer “Ai” de
novo. Quando Pavel terminou de aplicar o líquido verde,
tirou do estojo de primeiros
socorros uma bandagem e grudou-a sobre o corte.
“Pronto”, disse ele.
“Bem melhor agora, não?”
Bruno acenou com a
cabeça e envergonhou-se um pouco por não ter agido com tanta
coragem quanto gostaria. “Obrigado”, disse ele.
“Não foi nada”, disse
Pavel. “Agora você precisa ficar aí sentado um pouco, antes de sair
andando novamente, está bem? Deixe a ferida repousar. E não
chegue perto daquele
balanço outra vez, pelo menos hoje.”
Bruno concordou e
manteve a perna estendida sobre o banquinho, enquanto Pavel foi até
a pia lavar as mãos cuidadosamente, limpando até sob as
unhas com uma escova de arame,
antes de secá-las e voltar para os legumes.
“Você dirá à mamãe o
que aconteceu?”, perguntou Bruno, que havia passado os últimos
minutos imaginando se seria considerado um herói, por sofrer
um acidente, ou um vilão,
por ter construído uma armadilha mortal.
“Acho que ela
perceberá tudo sozinha”, disse Pavel, que trouxe as cenouras até a mesa e
sentou-se de frente para Bruno, enquanto as descascava sobre
um jornal velho.
“É, acho que sim”,
disse Bruno. “Talvez ela ache melhor me levar ao médico.”
“Acho que não”, disse
Pavel em voz baixa.
“Nunca se sabe”,
disse Bruno, que não queria ver reduzida tão facilmente a importância
de seu acidente. (Afinal, era a coisa mais emocionante que
havia lhe acontecido desde que
chegara lá.) “Pode ser pior do que parece.”
“Não é”, disse Pavel,
que mal parecia estar escutando o que Bruno falava, as cenouras
tomando toda a sua atenção.
“E como você sabe?”,
perguntou rapidamente Bruno, irritado agora, apesar de aquele ser
o mesmo homem que o resgatara do chão, o trouxera para casa
e cuidara dele. “Você não é
médico.”
Pavel parou de
descascar as cenouras por um instante e olhou para Bruno do outro lado
da mesa, a cabeça baixa, erguendo os olhos, como se
estivesse pensando no que responder.
Ele suspirou e pareceu ponderar a questão por um longo tempo
antes de dizer: “Sou, sim.”
Bruno encarou-o,
surpreso. Aquilo não fazia sentido para ele. “Mas você é um servente”,
disse ele lentamente. “E você descasca os legumes para o
jantar. Como pode ser também
um médico?”
“Jovem rapaz”, disse
Pavel (e Bruno gostou da cortesia de ele o chamar de ‘jovem
rapaz’, e não de ‘homenzinho’, como fazia o tenente Kotler),
“eu sou, de fato, médico. Só
porque um homem olha para o céu à noite, isso não faz dele
um astrônomo, sabia?”
Bruno não fazia idéia
do que Pavel queria dizer, mas havia algo no que ele dissera que
fez o menino observá-lo atentamente pela primeira vez. Era
um homem de porte pequeno,
bastante magro, de dedos longos e traços angulosos. Era mais
velho que o pai, porém mais
novo do que o avô, o que ainda lhe conferia bastante idade,
e, embora Bruno jamais o
tivesse visto antes de chegar a Haja-Vista, havia algo no
rosto dele que sugeria que, no
passado, Pavel usara barba.
Não mais.
“Não entendo”, disse
Bruno, querendo chegar ao fundo da questão. “Se você é médico,
então por que está servindo à mesa? Por que não trabalha em
algum hospital?”
Pavel hesitou por um
longo tempo antes de responder, durante o qual Bruno nada disse.
Ele não sabia ao certo por quê, mas sentiu que o mais
educado seria esperar até que Pavel
estivesse pronto para responder.
“Antes de vir para
cá, eu praticava a medicina”, disse afinal.
“Praticava?”,
perguntou Bruno, que não estava familiarizado como termo. “Você não era
bom, então?”
Pavel sorriu. “Eu era
muito bom”, disse ele. “Sempre quis ser médico, sabe? Desde
quando era um menino pequeno. Desde que tinha a sua idade.”
“Eu quero ser um
explorador”, disse Bruno rapidamente.
“Desejo-lhe sorte”,
disse Pavel.
“Obrigado.”
“Já descobriu alguma
coisa?”
“Lá na casa de Berlim
havia muita exploração para se fazer”, relembrou Bruno. “Mas é
porque era uma casa muito grande, maior do que você poderia
imaginar, então havia muitos
lugares para serem explorados. Mas aqui é diferente.”
“Tudo aqui é
diferente”, concordou Pavel.
“Quando você chegou a
Haja- Vista?”, perguntou Bruno.
Pavel largou as
cenouras e o descascador por um momento e pensou a respeito. “Acho
que sempre estive aqui”, disse ele afinal, em voz baixa.
“Você cresceu aqui?”
“Não”, disse Pavel,
balançando a cabeça. “Não cresci aqui.”
“Mas você acabou de
dizer que...”
Antes que pudesse
prosseguiu, a voz da mãe fez-se ouvir do lado de fora. Assim que a
ouviu, Pavel saltou rapidamente da cadeira e voltou para a
pia com as cenouras e o
descascador e o jornal cheio de cascas, dando as costas a
Bruno, abaixando a cabeça e
emudecendo.
“Meu Deus, o que
aconteceu com você?”, perguntou a mãe ao aparecer na cozinha,
inclinando-se para examinar o curativo que cobria o corte de
Bruno.
“Eu fiz um balanço,
mas caí dele”, explicou Bruno. “E depois o balanço me atingiu na
cabeça, e eu quase desmaiei, mas Pavel veio me ajudar, e me
trouxe para casa, e limpou
meus machucados, e fez um curativo em mim, que doeu muito,
mas eu não chorei. Não
chorei nem uma lágrima, não é mesmo, Pavel?”
Pavel voltou o corpo
levemente na direção deles, mas não ergueu a cabeça. “A ferida
está limpa”, disse em voz baixa, sem responder à pergunta de
Bruno. “Não há com o que se
preocupar.”
“Vá para o seu
quarto, Bruno”, disse a mãe, que demonstrava claramente seu desagrado.
“Mas eu...”
“Não discuta comigo –
vá para o seu quarto!”, insistiu ela, e Bruno desceu da cadeira,
jogando o peso sobre o que decidiu chamar de perna ruim, e
sentiu um pouco de dor. Ele se
voltou e saiu da cozinha, mas ainda pôde ouvir a mãe
agradecendo a Pavel, enquanto
caminhava na direção das escadas, o que deixou Bruno feliz
porque era óbvio que, se não
fosse por causa de Pavel, ele teria sangrado até a morte.
Ele ouviu uma última
coisa antes de subir as escadas: a última frase que a mãe disse ao
servente que afirmava ser médico.
“Se o comandante
perguntar, diremos que fui eu quem cuidou do Bruno.”
O que pareceu a Bruno
uma coisa terrivelmente egoísta, e uma maneira de a mãe levar o
crédito por algo que não fez.
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