Caixa de Pássaros - Capítulo 12

Tom está construindo alguma coisa com um velho estojo de violão e uma almofada do sofá.
Olympia dorme no segundo andar, no quarto ao lado do de Malorie. Felix deixou o quarto para ela assim como Tom cedeu o dele para Malorie. Felix está dormindo no sofá da sala. Na noite anterior, Olympia contou quais itens ela tem em casa e Tom fez anotações detalhadas. O que começou como uma conversa esperançosa terminou com os companheiros de casa decidindo que as poucas coisas úteis não valiam o risco de ir buscá-las. Papel. Outro balde. A caixa de ferramentas do marido de Olympia. Mesmo assim, como afirmou Felix, se e quando a necessidade daqueles objetos fosse maior do que o risco, eles poderiam buscá-los. Algumas coisas, lembrou Don, seriam necessárias mais cedo ou mais tarde. Nozes, atum, massa, condimentos em lata. Enquanto discutiam sobre comida, Tom contou aos outros quantas latas ainda havia na despensa. Como era uma quantidade finita, Malorie ficou bastante preocupada.
Jules está dormindo no fim do corredor. Está em um colchão que foi colocado no chão num canto do quarto. O de Don fica no outro canto. Entre eles, há uma mesa alta de madeira com os pertences dos dois. Victor está no quarto com ele. Jules ronca. Uma música suave toca num pequeno toca-fitas. Vem da sala de jantar, onde Felix e Don jogam baralho com cartas do personagem Pee-Wee Herman. Cheryl está lavando roupa num balde na pia da cozinha.
Malorie está sozinha com Tom no sofá da sala.
— O homem que era dono dessa casa — diz ela. — Era George o nome dele? Foi ele que publicou o anúncio? Ele estava aqui quando você chegou?
Tom, que está tentando fazer uma proteção acolchoada para o para-brisa de um carro, encara Malorie nos olhos. O cabelo dele parece ainda mais louro à luz da lâmpada.
— Fui o primeiro a responder ao anúncio — conta Tom. — George era ótimo. Ele convidou estranhos para a sua casa enquanto todo mundo trancava as portas. E era um progressista também, um grande pensador. Estava sempre tendo novas ideias. Como a de que talvez a gente pudesse olhar pela janela através de lentes. Ou de um vidro refratário. Telescópios. Binóculos. Essa era a grande ideia dele. Se o problema é a visão, talvez a gente só precise alterar nosso modo de ver. Ou mudar a maneira física como enxergamos alguma coisa. Ao olhar através de um objeto, talvez as criaturas não nos machuquem. Nós dois estávamos realmente procurando um jeito de resolver isso. E George, por ser o homem que era, não ficava satisfeito só discutindo. Queria que a gente testasse essas teorias.
Enquanto Tom fala, Malorie pensa no rosto das fotos dispostas ao longo da escada.
— Na noite em que Don chegou, nós três estávamos sentados na cozinha, ouvindo rádio, quando George sugeriu que deveria haver alguma variação de “vida” que estava causando essas coisas. Isso foi antes da MSNBC propor essa teoria. George disse que tirou a ideia de um livro antigo, Possibilidades impossíveis. Era sobre tipos de vida incompatíveis. Dois mundos cujos componentes fossem completamente diferentes poderiam causar danos um ao outro caso se cruzassem. E se essa outra forma de vida conseguisse chegar aqui... Bem, era isso que George dizia que tinha acontecido. Que eles haviam mesmo encontrado uma maneira de chegar aqui, intencionalmente ou não. Eu adorei a ideia. Mas Don não gostou. Na época, ele passava muito tempo na internet, pesquisando produtos químicos, raios gama, qualquer coisa invisível que pudesse causar danos caso alguém olhasse porque não se saberia para que se estaria olhando. É, Don foi muito rígido com a gente sobre isso. Ele é muito impetuoso. Você já deve ter percebido que fica muito irritado. Mas George era do tipo de pessoa que, quando tinha uma ideia, precisava testá-la, não importava quão perigoso fosse.
“Quando Felix e Jules chegaram, George já estava pronto para testar sua teoria sobre a visão refratada. Li com ele tudo que descobriu na internet. Muitos sites sobre a visão, como os olhos funcionam, sobre ilusões de ótica e luz refratada, sobre como funcionam exatamente telescópios e tal. Falávamos sobre isso o tempo todo. Enquanto Don, Felix e Jules dormiam, George e eu ficávamos sentados à mesa da cozinha e desenhávamos esquemas. Ele andava de um lado para outro, depois parava, se virava para mim e perguntava: ‘Você sabe se alguma das vítimas usava óculos? Talvez uma janela fechada pudesse nos proteger, caso aplicássemos determinados ângulos ao vidro.’ Então discutíamos a questão por mais uma hora.”
“Todos nós assistíamos ao jornal o tempo todo, torcendo por uma nova pista, uma informação que poderíamos usar para encontrar um jeito de as pessoas se protegerem. Mas os relatos começaram a se repetir. E George ficou impaciente. Quanto mais ele falava sobre testar sua teoria da ‘visão alterada’, mais vontade tinha de tentar. Eu estava com medo, Malorie. Mas George era como o capitão de um navio naufragando e não tinha medo de morrer. E se funcionasse? Bem, isso significaria que ele teria ajudado o planeta a curar sua epidemia mais assustadora.”
Enquanto Tom fala, a luz da lâmpada dança em seus olhos azuis.
— O que ele usou? — pergunta Malorie.
— Uma câmera — explica Tom. — Tinha uma lá em cima. Uma daquelas antigas de VHS. Fez tudo sem nos contar. Certa noite, ele a instalou atrás de um dos cobertores pendurados na sala de jantar. Fui o primeiro a acordar de manhã e encontrei George dormindo no chão. Quando me ouviu, ele se levantou e correu para a câmera. “Tom”, disse, “eu consegui. Gravei cinco horas de vídeo. Está bem aqui, aqui, nessa câmera. Posso estar guardando a cura para essa coisa. A visão indireta. Vídeo. Temos que assistir a isso.”
“Eu disse que achava uma má ideia. Também pensei que ele talvez não tivesse captado nada em apenas cinco horas. Mas George tinha um plano que contou para a gente. Disse que precisava que um de nós o amarrasse a uma cadeira num dos quartos do segundo andar. Ele assistiria ao filme lá. Achou que, amarrado à cadeira, não seria capaz de se machucar se as coisas dessem errado. Don ficou muito irritado. Disse ao George que ele era uma ameaça para todos. Disse, e estava certo, que não sabíamos com o que estávamos lidando e que, se alguma coisa acontecesse a George, poderia acontecer a todos nós. Mas Felix e eu não nos opusemos. Votamos. Don foi o único que não quis que George fizesse aquilo. Ele chegou a ameaçar ir embora. A gente o convenceu a não fazer isso. Por fim, George disse que não precisava de permissão para fazer o que quisesse na própria casa. Então falei que o amarraria à cadeira.
— E você o amarrou?
— Amarrei.
Seus olhos miraram o carpete.
— Começou com George arquejando. Como se tivesse alguma coisa presa na garganta. Fazia duas horas que estava lá e não tinha emitido som algum. Depois começou a berrar para a gente: “Tom, seu merda! Venha aqui. Venha aqui.” Ele ria, depois berrava e então urrava. Parecia um cachorro. Ouvimos a cadeira bater com força no chão. Ele gritava obscenidades. Jules se levantou para ir ajudá-lo e eu agarrei o braço dele para impedir. Não podíamos fazer nada além de ouvir. E ouvimos a coisa toda. Tudo, até a cadeira quebrar e os gritos pararem. Então a gente esperou. Esperou por um bom tempo. Por fim, subimos juntos até o segundo andar. Vendados, desligamos o vídeo cassete e abrimos os olhos. Vimos o que George havia feito consigo mesmo. Ele havia forçado tanto as cordas que elas haviam atravessado os músculos e chegado até os ossos. O corpo inteiro dele parecia uma cobertura de bolo, sangue e pele dobrados por cima das cordas no peito, na barriga, no pescoço, nos pulsos, nas pernas... Felix vomitou. Don e eu nos ajoelhamos ao lado de George e começamos a limpar. Quando terminamos, Don insistiu que queimássemos a fita. Foi o que fizemos. E, enquanto ela queimava, eu não conseguia parar de pensar que nossa primeira teoria concreta ia por água abaixo. Parece que, não importa sob que ângulo vemos as criaturas, elas sempre nos machucam.
Malorie está em silêncio.
— Mas quer saber? Ele tinha razão. De alguma maneira. Formulou a hipótese de que eram criaturas muito antes de os jornais dizerem isso. Obviamente estava no caminho certo. Se tivesse feito alguma coisa diferente, George poderia ter sido o cara que mudou o mundo.
Há lágrimas nos olhos de Tom.
— Você sabe o que mais me preocupa nessa história, Malorie?
— O quê?
— A câmera só ficou ligada por cinco horas e gravou alguma coisa. Quantos deles estão lá fora?
Malorie olha para os cobertores que tapam as janelas. Depois volta o olhar para Tom. Ele continua ajustando o protetor de para-brisa que está montando. A música soa baixinho na sala de jantar.
— Bem — diz Tom, erguendo o objeto nas mãos. — Espero que uma dessas coisas ajude. Sabe, não podemos parar de tentar só porque George morreu. Às vezes acho que isso afetou Don. Com certeza provocou alguma coisa nele.
Tom se levanta e exibe o que construiu. Malorie escuta um estalo e a coisa se desmonta aos pés dele.
Ele se vira para Malorie.
— Não podemos parar de tentar.

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