Caixa de Pássaros - Capítulo 5

Faltam seis meses para as crianças nascerem. A barriga de Malorie já está aparecendo.
Cobertores tapam todas as janelas da casa. A porta da frente nunca fica destrancada nem aberta. Relatos de acontecimentos inexplicáveis têm surgido com uma frequência alarmante. O que antes era manchete duas vezes por semana agora acontece todos os dias. Os porta-vozes do governo são entrevistados na TV. Com histórias vindas de todos os cantos, do Maine à Flórida, ambas as irmãs estão tomando precauções. Shannon, que acessa uma dezena de blogs diariamente, teme uma confusão de ideias, um pouco de tudo que lê. Malorie não sabe no que acreditar. Novas histórias aparecem na internet de hora em hora. É a única coisa sobre a qual as pessoas falam nas redes sociais e o único tema abordado nas páginas dos jornais. Sites recém-criados dedicam-se inteiramente a acompanhar o assunto. Um deles exibe apenas um mapa-múndi com pequenos rostos vermelhos sobre as cidades onde algo aconteceu. Da última vez que Malorie conferiu havia mais de trezentos rostos. Na internet, a situação está sendo chamada de “o Problema”. Existe uma teoria bem disseminada segundo a qual, seja lá qual for “o Problema”, ele sem dúvida começa quando uma pessoa vê alguma coisa.
Malorie se recusou a acreditar enquanto pôde. As irmãs brigavam constantemente, com Malorie citando as páginas que ridicularizavam a histeria em massa e Shannon citando todo o resto. No entanto, Malorie teve que ceder quando os sites que acessava começaram a publicar histórias sobre os entes queridos dos autores dos blogs e eles passaram a admitir que estavam preocupados.
Dúvidas, pensou ela na época. Até entre os céticos.
Durante alguns dias, Malorie vivia uma espécie de vida dupla. Nenhuma das irmãs saía mais de casa. As duas mantinham as janelas cobertas. Assistiam à CNN, à MSNBC e à Fox News até não conseguirem mais ver as mesmas histórias sendo repetidas. Só que enquanto Shannon ficava mais séria, e até mais sombria, Malorie se agarrava a um fio de esperança de que tudo aquilo simplesmente acabaria.
Mas não acabou. E ficou pior.
Depois de três meses vivendo como ermitãs, o pior medo de Malorie e Shannon se concretizou quando seus pais pararam de atender ao telefone. E também deixaram de responder aos e-mails.
Malorie queria ir de carro até a Península Superior. Mas Shannon recusou a ideia.
— Só podemos torcer para que estejam seguros, Malorie. Vamos ter que torcer para que o telefone tenha sido cortado. Dirigir para qualquer lugar agora seria burrice. Ir até o mercado já seria. Dirigir nove horas, então, seria suicídio.
“O Problema” sempre resultava em um suicídio. A Fox News havia mencionado essa expressão com tanta frequência que passou a usar sinônimos. “Autodestruição.” “Autoimolação.” “Haraquiri.” Um âncora descreveu a situação como um “apagamento pessoal”, expressão que não pegou. Instruções do governo eram constantemente exibidas. Um toque de recolher nacional foi decretado. As pessoas foram aconselhadas a trancar as portas, tapar as janelas e, acima de tudo, a não olhar para fora. No rádio, as músicas foram totalmente substituídas por debates.
É um blecaute, pensa Malorie. O mundo, o exterior, está sendo desligado.
Ninguém tem respostas. Ninguém sabe o que está acontecendo. As pessoas estão vendo alguma coisa que as leva a machucar os outros. A machucar a si mesmas.
As pessoas estão morrendo.
Mas por quê?
Malorie tenta se acalmar pensando na criança que está crescendo dentro dela. Parece estar sofrendo de todos os sintomas mencionados no livro sobre bebês, Grávida. Sangramento leve.
Seios sensíveis. Cansaço. Shannon critica as mudanças de humor de Malorie, mas são os desejos que a estão enlouquecendo. Receosas demais para irem ao mercado, as irmãs têm que se contentar com os alimentos que estocaram pouco depois de comprarem o teste de gravidez.
Mas o gosto de Malorie mudou. Alimentos comuns lhe dão nojo. Por isso ela mistura coisas. Brownies de laranja. Frango ao molho cocktail. Torradas com peixe cru. Ela sonha com sorvete. Muitas vezes, ao olhar para a porta da frente, pensa em como seria fácil entrar no carro e dirigir até o mercado. Sabe que levaria apenas quinze minutos. No entanto, toda vez que está prestes a fazer isso, a TV anuncia outra história devastadora. Além do mais, como saber se os funcionários do mercado ainda estão indo trabalhar?
— O que você acha que as pessoas estão vendo? — pergunta Malorie a Shannon.
— Não sei, Mal. Realmente não sei.
As irmãs fazem essa pergunta uma para a outra o tempo todo. É impossível contar o número de teorias que surgiram na internet. Todas deixam Malorie apavorada. Doenças mentais causadas pelas ondas de rádio dos aparelhos sem fio é uma delas. Um salto evolutivo errôneo da humanidade é outra. Os integrantes do movimento Nova Era dizem que a humanidade está tendo contato com um planeta prestes a explodir ou com um sol que está morrendo.
Alguns acreditam que existem criaturas por aí.
O governo não diz nada a não ser: “Tranquem as portas.”
Malorie, sozinha, está sentada no sofá, acariciando a barriga lentamente, enquanto assiste à TV. Está preocupada porque não há nada de positivo para assistir, e o bebê pode sentir sua ansiedade. Grávida lhe disse que isso poderia acontecer. O bebê sente as emoções da mãe.
Mesmo assim, ela não consegue tirar os olhos da tela. Numa mesa encostada na parede atrás do sofá, o computador está ligado. O rádio toca baixinho. Juntos, os aparelhos fazem Malorie se sentir como se estivesse num centro de operações de guerra. No meio de tudo, enquanto o mundo desmorona. É sufocante. E está ficando aterrorizante. Não há mais comerciais. E os âncoras fazem interrupções longas nos noticiários, sem vergonha de revelar a própria surpresa ao receberem atualizações ao vivo.
Acima desse zumbido midiático, Malorie ouve Shannon andando no segundo andar.
Então, enquanto Gabriel Townes, um dos principais âncoras da CNN, lê um papel que acabou de ser entregue a ele, Malorie ouve um barulho no andar de cima. Ela fica imóvel.
— Shannon! — grita. — Você está bem?
Gabriel Townes não parece bem. Ele tem aparecido muito na TV nos últimos tempos. A CNN avisou que muitos de seus repórteres pararam de ir ao estúdio. Townes tem dormido lá. “Vamos superar isso juntos” é seu novo slogan. O cabelo do âncora não está mais perfeito. Ele usa pouca maquiagem. Mais preocupante é a maneira exausta como narra as notícias. Townes parece deprimido.
— Shannon. Venha aqui. Parece que Townes recebeu uma notícia.
Mas não há resposta. Apenas silêncio no andar de cima. Malorie se levanta e baixa o som da TV.
— Shannon!
Baixinho, Gabriel Townes anuncia uma decapitação em Toledo. Fica a menos de cento e trinta quilômetros de onde Malorie está assistindo à TV.
— Shannon! O que você está fazendo aí em cima?
Nenhuma resposta. Townes fala baixinho na TV. Não há gráficos acompanhando a notícia.
Nem música. Ou qualquer imagem.
Malorie, parada no meio da sala, olha para o teto. Ela baixa ainda mais o volume da TV, então desliga o rádio e vai até a escada.
Ao lado do corrimão, olha lentamente para cima, para o chão acarpetado. As luzes estão apagadas, mas um raio fino do que parece ser a luz do sol se espalha pela parede. Apoiando a mão no corrimão, Malorie pisa no carpete. Olha por cima do ombro, para a porta da frente, e imagina uma mistura de todas as notícias que ouviu.
Ela sobe a escada.
— Shannon.
Malorie chega ao segundo andar. Tremendo. Ao atravessar o corredor, vê a luz do sol vindo do quarto de Shannon. Devagar, alcança a porta aberta e olha para dentro.
A quina da janela está exposta. Uma parte do cobertor, solta, está pendurada.
Malorie desvia o olhar rapidamente. Não há movimento no quarto, e um zumbido fraco vem da TV ligada no andar de baixo.
— Shannon.
No fim do corredor, a porta do banheiro está aberta. A luz, acesa. Malorie vai até lá. Então prende a respiração e se vira para olhar.
Shannon está no chão, o rosto virado para o teto. Há uma tesoura enfiada em seu peito.
Sangue a circunda, formando uma poça nos ladrilhos do chão. Parece haver mais sangue do que o corpo dela poderia conter.
Malorie grita, agarrando o batente, e escorrega no chão, chorando desesperadamente. A luz severa do banheiro expõe cada detalhe. A fixidez dos olhos da irmã. A maneira como a camisa de Shannon afunda em seu peito com as lâminas da tesoura.
Malorie se arrasta até a banheira e vomita. O sangue da irmã gruda em seu corpo. Ela tenta acordá-la, mas sabe que isso não vai funcionar. Malorie se levanta, falando com Shannon, dizendo que vai procurar ajuda. Limpando o sangue das mãos, corre para o primeiro andar e encontra seu celular no sofá. Liga para a polícia. Ninguém atende. Liga de novo. Ninguém atende. Então liga para os pais. Mais uma vez, ninguém atende. Ela se vira e corre para a porta da frente. Precisa conseguir ajuda. A mão agarra a maçaneta, mas Malorie percebe que não consegue girá-la.
Meu Deus, pensa. Shannon nunca faria isso por vontade própria. Meu Deus, é verdade! Tem alguma coisa lá fora.
E, o que quer que Shannon tenha visto, deve estar perto da casa.
Um pedaço de madeira é tudo que separa Malorie daquilo que matou sua irmã. Do que sua irmã viu.
Para além da floresta, ela ouve o vento. Não há outros sons. Nenhum carro. Nenhum vizinho. Apenas silêncio.
Ela está sozinha. Então, desesperada, percebe que precisa de alguém. Precisa ter segurança. Tem que achar um jeito de sair daquela casa.
Com a imagem de Shannon vívida na cabeça, Malorie corre para a cozinha. Puxa uma pilha de jornais de sob a pia. Folheia-os que nem uma maníaca. Ofegante, com os olhos arregalados, confere o verso de cada um.
Por fim, encontra.
O anúncio. Riverbridge. Estranhos convidando estranhos para sua casa. Malorie o lê mais uma vez. Então lê de novo. Cai de joelhos, agarrando o jornal.
Riverbridge fica a vinte minutos dali. Shannon viu alguma coisa lá fora e aquilo a matou.
Malorie precisa levar o filho a um lugar seguro.
De repente, sua respiração ofegante se transforma em um fluxo interminável de lágrimas.
Malorie não sabe o que fazer. Nunca sentiu tanto medo. Tudo dentro dela parece quente, como se estivesse pegando fogo.
Chora compulsivamente. Através dos olhos molhados, lê o anúncio mais uma vez.
E suas lágrimas caem no papel.

Nenhum comentário :

Postar um comentário

Atenção: para postar um comentário, escolha Nome/Url. Se quiser insira somente seu nome.

Please, no spoilers!

Expresse-se:
(◕‿◕✿) 。◕‿◕。 ●▽●

⊱✿◕‿◕✿⊰(◡‿◡✿)(◕〝◕) ◑▂◐ ◑0◐

◑︿◐ ◑ω◐ ◑﹏◐ ◑△◐ ◑▽◐ ●▂● 

●0● ●︿● ●ω● ●﹏● ●△● ●▽●

Topo