Caixa de Pássaros - Capítulo 8

Malorie acorda no quarto novo. Está escuro. Por um último momento abençoado, ela acorda com a sensação de que todas as notícias sobre criaturas e loucura foram apenas um pesadelo.
Zonza, lembra-se de Riverbridge, de Tom, de Victor, da viagem, mas nada disso está claro até ela perceber, ao encarar o teto, que nunca havia acordado naquele quarto.
E Shannon continua morta.
Sentando-se devagar na cama, ela olha para a única janela do quarto. Um cobertor preto está pregado à parede, mantendo-a a salvo do mundo exterior. À frente dos seus pés há uma velha penteadeira. A cor rosada da madeira está desbotada, mas o espelho parece limpo. No reflexo, Malorie está mais pálida do que o normal. Por isso, seu cabelo preto parece ainda mais escuro. Na base do espelho há mais pregos, parafusos, um martelo e uma chave inglesa.
Com exceção da cama, a penteadeira é o único móvel do quarto.
Ao levantar-se, Malorie passa os pés pela beira do colchão e vê, no carpete cinza, outro cobertor preto, dobrado com esmero. Este sobrou, pensa. Ao lado dele, há uma pequena pilha de livros.
Ela olha para a porta do quarto e ouve vozes vindo do primeiro andar. Ainda não conhece aquelas pessoas e não sabe dizer quem está falando, a não ser que seja Cheryl, a única mulher, ou Tom, cuja voz a guiará durante anos.
Quando fica de pé, o carpete parece áspero e velho sob seus pés. Ela atravessa o quarto e espia o corredor. Sente-se bem. Descansada. Não está mais zonza. Usando as mesmas roupas com as quais desmaiou na noite anterior, Malorie desce as escadas até a sala de estar.
Pouco antes de chegar ao piso de madeira, Jules passa, carregando uma pilha de roupas.
— Oi — cumprimenta ele.
Malorie o observa caminhar até o banheiro no fim do corredor. Depois, escuta-o mergulhar as roupas num balde de água.
Ao se virar para a cozinha, ela vê Cheryl e Don perto da pia. Malorie entra na cozinha enquanto Don tira um copo com água de um balde. Cheryl a escuta e se vira.
— Você deixou a gente preocupado ontem à noite — diz ela. — Está se sentindo melhor?
Malorie, ao perceber que desmaiou na noite anterior, fica um pouco envergonhada.
— Estou, estou bem. É só muita coisa para assimilar.
— Foi assim com todos nós — explica Don. — Mas você vai se acostumar. Logo, logo vai estar dizendo que a gente tem uma vida de luxo.
— Don é um cínico — afirma Cheryl com simpatia.
— Não sou nada — responde Don. — Adoro este lugar.
Malorie toma um susto quando Victor lambe sua mão. Ao se ajoelhar para fazer carinho no cachorro, ela ouve uma música vir da sala de jantar. Atravessa a cozinha e olha para o outro cômodo. Não tem ninguém, mas o rádio está ligado.
Ela olha de volta para Cheryl e Don próximos à pia. Atrás deles fica a porta para o porão.
Malorie está prestes a perguntar sobre ele quando ouve a voz de Felix vindo da sala de estar.
Ele está recitando o endereço da casa.
— Shillingham, 273... Meu nome é Felix... Estamos procurando qualquer pessoa que esteja viva... Sobrevivendo...
Malorie espia a sala de estar. Felix usa o telefone fixo.
— Ele está ligando para números aleatórios.
Malorie leva outro susto, desta vez ao ouvir a voz de Tom, que agora observa a sala de estar ao lado dela.
— Não temos uma lista telefônica? — pergunta ela.
— Não. E isso é uma constante fonte de frustração para mim.
Felix está discando outro número. Tom, segurando um pedaço de papel e um lápis, pergunta:
— Quer ir até a despensa comigo?
Malorie o segue até a cozinha.
— Você vai conferir o estoque? — pergunta Don enquanto Tom abre a porta do porão.
— Vou.
— Me diga como está a situação.
— Claro.
Tom entra primeiro. Malorie o segue pela escada de madeira. O piso do porão é de terra batida. No escuro, ela consegue sentir o cheiro da terra e tateá-la com os pés descalços.
O cômodo se ilumina de repente quando Tom puxa a cordinha de uma lâmpada. Malorie fica assustada com o que vê. O lugar lembra mais um depósito do que uma despensa.
Prateleiras de madeira que parecem infinitas estão lotadas de alimentos enlatados. Do chão de terra ao teto, o lugar parece um bunker.
— George construiu isso tudo — diz Tom, indicando as prateleiras de madeira com a mão. — Ele realmente estava à frente na situação.
À esquerda, apenas parcialmente iluminada pela luz, Malorie vê uma cortina de tapeçaria transparente pendurada. Atrás dela ficam uma lavadora e uma secadora.
— Parece muita comida — explica Tom, apontando para as latas. — Mas não é. E é Don quem mais se preocupa com a quantidade que ainda temos.
— Com que frequência vocês conferem o estoque? — pergunta Malorie.
— Uma vez por semana. Mas, às vezes, quando fico inquieto, desço para conferir as coisas um dia depois de ter feito isso.
— Está frio aqui.
— Está. Um clássico porão frio para estocagem. É o ideal.
— O que acontece se ficarmos sem comida?
Tom a encara. Os traços dele parecem suaves àquela luz.
— Vamos buscar mais. Vasculhar mercados. Outras casas. Tudo o que conseguirmos.
— Entendi — responde ela, assentindo.
Enquanto Tom escreve no papel, Malorie examina o porão.
— Então este deve ser o cômodo mais seguro da casa — diz ela.
Tom faz uma pausa. Ele pensa a respeito.
— Acho que não. Acho que o sótão é mais seguro.
— Por quê?
— Você notou a tranca daqui? A porta é muito antiga. Dá para trancar, mas é frágil. Parece que este porão foi construído primeiro, há anos, antes de decidirem acrescentar uma casa a ele. Mas a porta do sótão... Aquela tranca é incrível. Se precisássemos nos proteger, se uma daquelas coisas entrasse na casa, eu diria que é para o sótão que gostaríamos de ir.
Malorie instintivamente olha para cima. Ela coça os ombros.
Se precisássemos nos proteger.
— A julgar pela comida que ainda temos — continua Tom —, vamos conseguir viver mais três ou quatro meses com isso. Parece bastante tempo, mas passa muito rápido aqui. Os dias começam a se misturar. Foi por isso que fizemos o calendário na parede da sala de estar. Sabe, o tempo não significa mais nada, de certa forma. Mas é uma das poucas coisas que restaram das nossas antigas vidas.
— A passagem do tempo?
— É. E o que fazemos com ele.
Malorie vai até um banquinho de madeira e se senta. Tom ainda está fazendo anotações.
— Vou lhe explicar todas as tarefas que temos quando voltarmos lá para cima — diz ele, e então aponta para o espaço entre as prateleiras e a cortina. — Está vendo aquilo ali?
Malorie olha, mas não entende o que ele quer dizer.
— Venha aqui.
Tom a leva até a parede, onde alguns dos tijolos estão quebrados. Uma terra surge por trás deles.
— Não sei se isso me dá medo ou se acho bom — afirma ele.
— Como assim?
— Bem, o chão está exposto. Será que isso significa que a gente poderia começar a cavar? Construir um túnel? Outro porão? Mais espaço? Ou esse é só mais um jeito de entrar na casa?
Os olhos de Tom ficam nítidos e brilhantes à luz do porão.
— O problema é que, se as criaturas realmente quisessem entrar na nossa casa... não encontrariam dificuldade para fazer isso. E acho que já teriam feito.
Malorie encara o buraco com terra aparente. Ela se imagina se arrastando por túneis, grávida. Imagina as minhocas.
Depois de um breve silêncio, pergunta:
— O que você fazia antes disso acontecer?
— Meu trabalho? Eu era professor. Do oitavo ano.
Malorie assente.
— Bem que eu achei que você parecia professor.
— Sabia que já ouvi isso? Muitas vezes! Acho que gosto dessa história.
Ele finge que está ajeitando o colarinho da camisa.
— Turma — diz —, hoje vamos aprender tudo sobre comida enlatada. Então, por favor, calem a porra da boca.
Malorie ri.
— O que você fazia? — pergunta Tom.
— Eu ainda não tinha chegado tão longe — responde ela.
— Você perdeu a sua irmã, não foi? — indaga Tom gentilmente.
— Perdi.
— Sinto muito — diz ele, e então completa: — Perdi uma filha.
— Meu Deus, Tom...
Ele hesita, como se refletisse se deveria contar mais ou não. Mas então prossegue:
— A mãe da Robin morreu no parto. Pode ser cruel estar contando isso, por causa da sua condição. Mas, se a gente vai se conhecer de verdade, é uma história que você precisa saber. Robin era uma criança incrível. Mais esperta do que o pai já aos oito anos. Ela gostava das coisas mais estranhas. Do manual de um brinquedo mais do que do próprio brinquedo, por exemplo. Dos créditos de um filme em vez do próprio filme. Da maneira como alguma coisa era escrita. De uma expressão minha. Uma vez ela me disse que me achava parecido com o sol por causa do meu cabelo. Perguntei se eu brilhava como o sol e ela me respondeu: “Não, papai, você brilha mais como a lua, quando está escuro lá fora.”
“Quando os casos foram noticiados e as pessoas começaram a levar aquilo a sério, fui um daqueles pais que disse que não ia viver com medo. Eu me esforcei muito para continuar com a nossa rotina. E mais que tudo quis passar essa ideia para Robin. Ela ouvira coisas na escola. Eu só não queria que ela sentisse tanto medo. Mas, depois de um tempo, não consegui mais fingir. Logo os pais começaram a tirar as crianças da escola. Depois a própria escola fechou. Temporariamente. Ou até que tivesse ‘a confiança da comunidade para continuar a fornecer um ambiente seguro para as crianças’. Foram dias muito difíceis, Malorie. Eu também era professor, você sabe, e a escola em que trabalhava fechou as portas mais ou menos na mesma época. Então, de repente, começamos a passar muito tempo juntos em casa. Percebi como ela tinha crescido. Sua mente estava se desenvolvendo tanto... Mesmo assim, era nova demais para entender como as histórias nos jornais eram assustadoras. Fiz o que pude para não esconder nada dela, mas o pai dentro de mim algumas vezes não conseguiu se segurar e mudou de estação.”
“O rádio acabou sendo demais para ela. Robin começou a ter pesadelos. Eu passava muito tempo acalmando minha filha. Sempre sentia que estava mentindo para ela. Concordamos que nenhum de nós olharia mais pela janela. Concordamos que ela não sairia mais sem a minha permissão. De alguma forma, eu tinha que fazer com que ela acreditasse que as coisas eram seguras e absurdamente perigosas ao mesmo tempo.”
“Ela começou a dormir na minha cama, mas, certa manhã, acordei e ela não estava lá. Robin tinha falado na noite anterior que queria que as coisas voltassem a ser como eram. Dissera que queria a mãe, que nunca conheceu. Aquilo acabou comigo, ouvi-la falar daquele jeito. Tinha apenas oito anos e já me dizia que a vida era injusta. Quando acordei e não a encontrei, disse a mim mesmo que ela só estava se acostumando com a situação. Com aquela vida nova. Mas acho que talvez Robin tenha perdido um pouco da sua inocência na noite anterior, quando percebeu, antes de mim, como era grave a situação ao nosso redor.”
Tom faz uma pausa. Olha para o chão.
— Eu a encontrei na banheira, Malorie. Flutuando. Os pequenos pulsos cortados com a gilete com a qual ela tinha visto eu me barbear milhares de vezes. A água estava vermelha. O sangue pingava da borda da banheira. Havia sangue nas paredes. Era uma criança. Oito anos. Será que olhou pela janela? Ou ela mesma simplesmente decidiu fazer aquilo? Nunca vou saber a resposta.
Malorie se aproxima de Tom e o abraça.
Mas ele não chora. Em vez disso, depois de um instante, vai até a prateleira e volta a fazer anotações no papel.
Malorie pensa em Shannon. Ela também morreu no banheiro. Também tirou a própria vida.
Quando termina, Tom pergunta se Malorie está pronta para voltar lá para cima. Enquanto estende a mão para puxar a cordinha da lâmpada, ele percebe que ela está olhando para o buraco aberto na parede.
— Dá medo, não dá? — pergunta Tom.
— Dá.
— Bem, não deixe que dê. É só um dos medos do velho mundo que a gente persiste em carregar.
— Que medo?
— O do porão.
Malorie assente.
Então Tom puxa a cordinha e a luz se apaga.

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