Capítulo 10

Mandei um e-mail para Nathan. Recebi a resposta:

Lou, você está tomando remédios fortes? Q p é essa?

Mandei outro e-mail para ele, dando mais detalhes, e ele pareceu recuperar seu comedimento habitual.

Ah, aquele safado. Ainda tinha surpresas para nós, hein?

Passei dois dias sem notícias de Lily. Uma parte de mim estava preocupada, a outra, um pouco aliviada por ter um breve interlúdio de calma. Eu me perguntava se, assim que ela se libertasse das ideias fantasiosas sobre a família de Will, poderia ficar mais propensa a formar laços com a própria família. Então questionei se o Sr. Traynor ligaria diretamente para ela com o intuito de acalmar as coisas. Eu queria saber onde Lily estava e se a ausência dela tinha alguma relação com o rapaz que a ficara observando em frente ao meu prédio. Havia algo nele, na atitude evasiva de Lily quando perguntei sobre ele, que eu não conseguia esquecer.
Tinha pensado muito em Sam, arrependida de ter saído apressada.
Quando me lembrava da situação agora, fugir dele daquele jeito parecia esquisito e emocional demais. Devo ter passado a impressão de ser exatamente a pessoa que eu afirmava não ser. Resolvi que da próxima vez que o visse após um encontro do Grupo Seguindo em Frente eu reagiria com muita calma, talvez o cumprimentasse com um sorriso enigmático de alguém nem um pouco deprimido.
O trabalho estava se arrastando. Uma nova garota havia começado: Vera, uma lituana séria, que terminava todas as tarefas do bar exibindo um meio sorriso característico de quem considerava a possibilidade de terem colocado uma bomba atômica ali por perto. Ela classificava todos os homens como “animais imundos, imundos” quando estava longe dos ouvidos de Richard.
Ele havia começado a dar sermões “motivacionais” pela manhã, após os quais todos nós tínhamos que dar um soco no ar, um pulo e gritar: “YEAH!”, o que sempre deslocava minha peruca cacheada, fazendo Richard franzir a testa, como se a movimentação da minha peruca fosse, de certa forma, um fracasso que denotasse minha personalidade, não um risco recorrente quando se usava uma peruca de náilon que não ficava muito firme na cabeça. A de Vera permanecia imóvel. Talvez sua peruca tivesse muito medo de cair.
Certa noite, quando cheguei em casa, pesquisei na internet sobre problemas de adolescentes, tentando descobrir se eu tinha como dar um jeito no estrago do fim de semana. Mas encontrei muita coisa sobre alterações hormonais e nada sobre o que fazer depois de ter apresentado uma menina de dezesseis anos que eu mal conhecia à família de seu falecido pai tetraplégico. Às dez e meia, desisti, olhei em volta do quarto, onde metade das minhas roupas continuava encaixotada, e prometi a mim mesma que naquela semana faria algo quanto a isso. Depois de me convencer, peguei no sono.

* * *

Acordei às duas e meia da manhã com o barulho de alguém tentando forçar a porta do meu apartamento. Eu me levantei tropeçando da cama, peguei um esfregão e olhei pelo olho mágico, com o coração disparado.
— Vou chamar a polícia! — gritei. — O que você quer?
— É Lily. Dã!
Quando abri a porta, ela tombou para dentro da sala, dando risada, fedendo a cigarro e com o rímel borrado ao redor dos olhos.
Eu me enrolei no robe e tranquei a porta.
— Nossa, Lily. É de madrugada.
— Quer ir dançar? Achei que a gente podia sair para dançar. Adoro dançar. Na realidade, isso não é totalmente verdade. Gosto mesmo de dançar, mas não é por isso que estou aqui. Minha mãe não quer me deixar entrar em casa. Trocaram as fechaduras. Dá para acreditar?
Fiquei tentada a responder que, com meu despertador programado para as seis da manhã, por mais incrível que parecesse, eu conseguia acreditar, sim.
Lily esbarrou com força na parede.
— Ela nem quis abrir a maldita porta. Só gritou comigo pela abertura para cartas. Como se eu fosse um... mendigo. Então... pensei em ficar aqui. Ou a gente podia ir dançar... — Ela passou cambaleando por mim, seguindo na direção do aparelho de som, e colocou o volume numa altura ensurdecedora. Eu me apressei para abaixar, mas ela agarrou minha mão.
— Vamos dançar, Louisa! Você precisa se mexer um pouco! Está sempre tão triste... Se solte! Vamos!
Puxei a mão de volta e diminuí o volume, bem a tempo de ouvir as primeiras batidas indignadas vindo do andar de baixo. Quando me virei, Lily já estava no quarto de hóspedes, onde cambaleou e finalmente desabou, de bruços, na cama.
— Ai. Meu. Deus. Essa cama é muuuuito ruim.
— Lily? Você não pode simplesmente entrar aqui e... Ah, pelo amor de Deus.
— Só um minutinho. — Sua resposta saiu abafada. — É só uma parada rápida. Depois vou dançar. Nós vamos dançar.
— Lily. Tenho que trabalhar de manhã.
— Eu te amo, Louisa. Já disse isso? Te amo de verdade. Você é a única que...
— Não pode simplesmente desabar aqui como...
— Hum... Um cochilo antes da balada...
Ela não se mexeu. Toquei seu ombro.
— Lily... Lily?
Ela roncou baixinho. Suspirei, esperei alguns minutos, depois tirei com cuidado suas sapatilhas surradas, esvaziei seus bolsos (cigarros, celular, uma nota amassada de cinco libras) e levei tudo para o meu quarto.
Coloquei-a deitada de lado e, por fim, totalmente acordada às três da manhã, sabendo que o mais provável era que eu não conseguiria dormir com medo de que ela se engasgasse, sentei-me na cadeira para vigiá-la.
O semblante de Lily estava tranquilo. A testa franzida de preocupação e o sorriso histérico superansioso haviam se transformado em algo sobrenatural e belo, o cabelo espalhado pelos ombros. Por mais enlouquecedor que seu comportamento fosse, eu não podia ficar brava.
Não tinha me esquecido da sua expressão magoada naquele domingo. Lily era o extremo oposto de mim. Ela não alimentava mágoas, nem as guardava. Ficava agressiva, se embebedava, fazia sabe Deus o que para tentar esquecer. Era mais parecida com o pai do que eu pensara.
O que você acharia disso, Will?, perguntei em silêncio.
Porém, por mais que eu tivesse me esforçado para ajudá-la, eu não sabia o que fazer por ela. Não sabia como melhorar aquela situação.
Pensei nas palavras da minha irmã: Você sabe que não vai conseguir lidar.
E, só por alguns instantes silenciosos antes de amanhecer, fiquei com ódio dela por ter razão.

* * *

Instauramos uma rotina em que Lily ia me visitar no intervalo de alguns dias. Eu nunca tinha certeza de qual versão dela eu encontraria à minha porta: a histericamente alegre, exigindo que saíssemos para comer num restaurante ou fôssemos olhar o gato deslumbrante no muro lá embaixo, ou que dançássemos na sala ao som de alguma banda que ela acabara de descobrir; ou a Lily calma e preocupada, que ao entrar me cumprimentava em silêncio com a cabeça, depois se deitava no sofá e assistia à televisão. Às vezes, ela fazia perguntas aleatórias sobre Will: de que programas ele gostava? (Ele mal via televisão. Preferia filmes.) Ele tinha uma fruta preferida? (Uva sem caroço. Vermelha.) Quando foi a última vez que o viu rir? (Ele não ria muito. Mas seu sorriso... eu conseguia visualizar imediatamente, um raro lampejo de dentes brancos e retos, os olhos franzidos.) Eu nunca tinha certeza se ela considerava minhas respostas satisfatórias.
Depois, mais ou menos a cada dez dias, surgia a Lily bêbada, ou coisa pior (eu nunca sabia muito bem), que batia com força na minha porta de madrugada, ignorando meus protestos em relação à hora e ao sono perdido, passava por mim aos tropeções com as bochechas borradas de rímel e um sapato faltando e desabava na sua pequena cama, recusando-se a acordar quando eu saía de manhã.
Ela parecia não ter hobbies nem muitos amigos. Falava com qualquer pessoa na rua, pedindo favores com a naturalidade espontânea de uma criança destemida. Mas não atendia o telefone em casa e achava que ninguém fosse gostar dela.
Considerando que a maioria das escolas particulares estava fechada porque era verão, perguntei onde ela ficava quando não estava no meu apartamento ou visitando a mãe, e, após uma breve pausa, ela respondeu:
— Na casa do Martin.
Ao perguntar se ele era seu namorado, ela fez a expressão universal de quando os adolescentes reagem a algo que um adulto diz que não é apenas incrivelmente idiota, mas revoltante também.
De vez em quando, ela ficava zangada, outras vezes, era grosseira. Mas eu nunca deixava de recebê-la. Por mais caótico que seu comportamento fosse, eu tinha a sensação de que meu apartamento era um porto seguro. Comecei a procurar pistas: bisbilhotando seu celular em busca de mensagens (bloqueado por senha), seus bolsos em busca de drogas (nenhuma, com exceção daquele único baseado). Uma vez, dez minutos após ela ter chegado, bêbada e com o rosto marcado pelas lágrimas, ficou olhando para o carro diante do meu prédio, que buzinou sem parar por quase uma hora.
Por fim, um dos vizinhos desceu e bateu no vidro com tanta força que o motorista ligou o carro e saiu dali.
— Sabe, não estou julgando, mas não é uma boa ideia ficar tão bêbada a ponto de não saber mais o que está fazendo, Lily — falei certa manhã, ao fazer café para nós duas.
Lily passava tanto tempo comigo que precisei adaptar minha vida a ela: fazer compras para duas pessoas, catar a bagunça que não era minha, preparar duas bebidas quentes, me lembrar de fechar a porta do banheiro para evitar gritos como: Ai, meu Deus. Que nojento!
— Você está julgando, sim. Isso é exatamente o que “não é uma boa ideia” significa.
— Estou falando sério.
— Eu digo o que você deve fazer com a sua vida? Digo que esse apartamento é deprimente e que você se veste como alguém que perdeu a vontade de viver, menos quando está de duende pornô manco? Digo? Digo? Não. Não falo nada disso, então me deixe em paz.
Eu fiquei com vontade de contar a ela. Quis lhe dizer o que acontecera comigo nove anos antes, numa noite em que eu tinha bebido demais e minha irmã me levara de madrugada para casa, descalça e chorando baixinho. Mas, sem dúvida, ela reagiria a isso com o mesmo desdém infantil que dedicava a grande parte das minhas revelações, e eu só tinha conseguido ter essa conversa com uma pessoa. Uma pessoa que não estava mais aqui.
— Também não é justo me acordar no meio da noite. Tenho que levantar cedo para trabalhar.
— Então me dê uma chave. Assim eu não acordo você.
Ela usou aquele sorriso vitorioso comigo. Era raro, deslumbrante e tão parecido com o de Will que acabei lhe dando uma chave. Assim que a entreguei, já sabia o que minha irmã diria sobre isso.

* * *

Durante esse período, falei duas vezes com o Sr. Traynor. Ele parecia ansioso para saber se Lily estava bem, e tinha começado a se preocupar com o que ela faria da vida.
— Quer dizer, dá para perceber que é uma menina inteligente. Não é uma boa ideia abandonar a escola aos dezesseis anos. Os pais dela têm alguma coisa a dizer sobre isso?
— Pelo que parece não há muito diálogo.
— Será que eu devia falar com eles? Acha que ela precisa de uma provisão para a faculdade? Você precisa saber que as coisas estão um pouco mais apertadas do que antes do divórcio, mas Will deixou um bom dinheiro. Então pensei que essa pudesse ser... uma forma adequada de usá-lo. — Ele baixou o tom de voz: — Mas talvez seja prudente não contarmos nada ainda para Della. Não quero que ela fique com a impressão errada.
Resisti à vontade de lhe perguntar qual seria a impressão correta.
— Louisa, você acha que consegue convencer Lily a voltar? Não paro de pensar nela. Eu gostaria que a gente tentasse outra vez. Sei que Della também adoraria conhecê-la melhor.
Lembrei-me da expressão de Della enquanto estávamos na cozinha e me perguntei se o Sr. Traynor estava deliberadamente cego ou se ele não passava de um eterno otimista.
— Vou tentar — prometi.

* * *

Há um silêncio peculiar num apartamento quando ficamos sozinhos na cidade durante um fim de semana quente de verão. Eu trabalhava no primeiro turno, que terminava às quatro da tarde, portanto chegava em casa às cinco, exausta e, no fundo, ficava agradecida pelo fato de ter, por algumas horas, meu apartamento só para mim. Tomava um banho, comia uma torrada, fazia uma pesquisa na internet para conferir se havia algum emprego que pagasse mais que o salário mínimo ou que o contrato de trabalho não fosse uma exploração declarada, depois me sentava na sala com todas as janelas abertas para encorajar a entrada do vento, ouvindo os barulhos da cidade subirem com o ar quente.
Na maior parte do tempo eu me sentia razoavelmente satisfeita com a minha vida. Já tinha comparecido a várias sessões de grupo para saber que era importante ser grato pelos simples prazeres. Eu tinha saúde. Eu me reaproximara da minha família. Estava trabalhando. Se não havia feito as pazes com a morte de Will, pelo menos me sentia como se talvez estivesse saindo da sombra dele.
Mas mesmo assim...
Algo doía dentro de mim em noites como essa, em que havia vários casais passeando nas ruas e pessoas risonhas saindo dos pubs, já planejando refeições, noitadas, viagens. Algo primitivo me dizia que eu estava no lugar errado, que estava perdendo alguma coisa.
Era nesses momentos que eu mais me sentia deixada para trás.
Arrumei um pouco a casa, lavei meu uniforme e depois, justo quando comecei a sentir uma melancolia silenciosa, o interfone tocou. Levantei-me e atendi com cansaço, esperando que fosse um motorista da UPS perguntando sobre um endereço ou uma pizza havaiana entregue no apartamento errado, mas, em vez disso, ouvi uma voz masculina.
— Louisa?
— Quem é? — perguntei, embora tivesse reconhecido no mesmo instante quem era.
— Sam. O Sam da ambulância. Eu estava voltando do trabalho e simplesmente... Bem, você foi embora tão depressa naquela noite, então pensei em perguntar se estava tudo bem.
— Quinze dias depois? A essa altura eu já poderia ter sido comida por gatos.
— Pelo visto não foi.
— Não tenho gato. — Um breve silêncio. — Mas estou bem, Sam da ambulância. Obrigada.
— Ótimo... Fico feliz de ouvir isso.
Eu me aproximei da tela do pequeno monitor para poder ver sua imagem granulada e em preto e branco. Ele estava usando uma jaqueta em vez do uniforme de paramédico e se apoiava na parede com uma das mãos, que afastou em seguida, se virando para a rua. Eu o vi suspirar, e esse pequeno movimento me levou a perguntar:
— E aí... O que você tem feito?
— Pouca coisa. Tenho tentado conversar com alguém por um interfone, mas não estou tendo sucesso.
Ri rápido demais. E muito alto.
— Desisti disso há séculos — falei. — Dificulta muito quando queremos convidar a pessoa para tomar um drinque.
Vi que ele riu. Olhei em volta do meu apartamento silencioso. E, sem pensar, falei:
— Fique aí. Vou descer.

* * *

Eu ia de carro, mas, quando ele estendeu um capacete extra, pareceu frescura insistir no meu meio de transporte. Enfiei as chaves no bolso e fiquei esperando um gesto dele para subir na garupa.
— Você é paramédico. E anda de moto.
— Eu sei. Mas esse é o único vício que me restou. — Ele deu um sorriso malicioso. Senti um frio na barriga. — Você não se sente segura comigo?
Não havia resposta adequada para essa pergunta. Sustentei o olhar dele e montei na garupa. Se ele fizesse algo perigoso, tinha as habilidades necessárias para dar um jeito depois.
— Então, o que eu faço? — perguntei, colocando o capacete. — Nunca andei de moto.
— Segure as alças do assento e faça o mesmo movimento da moto. Não se apoie em mim. Se não estiver gostando, dê um tapinha no meu ombro que eu paro.
— Aonde vamos?
— Você é boa em decoração?
— Sou um caso perdido. Por quê?
Ele ligou o motor.
— Pensei em lhe mostrar minha casa nova.
Logo depois estávamos no meio do tráfego, ziguezagueando entre os carros e os caminhões, seguindo as placas em direção à autoestrada. Tive que fechar os olhos, encostar o corpo nas costas dele e torcer para que não me ouvisse gritar.

* * *

Seguimos para o subúrbio da cidade, onde os jardins eram mais extensos, depois se transformavam em campos, e as casas tinham nomes em vez de números. Atravessamos um vilarejo que não era propriamente separado do anterior, e Sam diminuiu a velocidade diante de uma porteira, até que, por fim, desligou o motor, fazendo sinal para que eu saltasse. Tirei o capacete ainda ouvindo meu coração, e tentei levantar o cabelo suado com dedos que continuavam retesados de agarrar as alças da garupa.
Sam abriu a porteira e me deixou passar. Metade do campo era pasto, a outra consistia numa confusão irregular de concreto e tijolos. No canto fora da obra, abrigado por uma sebe alta, havia um vagão de trem e, ao lado, um galinheiro onde várias aves pararam para nos olhar cheias de expectativa.
— Minha casa.
— Legal! — Olhei em volta. — Hum... Cadê?
Sam começou a andar pelo campo.
— Lá. Lá estão as fundações. Levei quase três meses para assentar isso.
— Você mora aqui?
— Moro.
Observei as tábuas de concreto. Quando olhei para ele, algo em sua expressão me fez desistir do que eu ia dizer. Cocei a cabeça.
— Então... você vai ficar a tarde inteira parado aí? Ou vai me levar para uma visita guiada?
Banhados pelo sol da tarde, cercados pelos aromas de relva e lavanda e pelo zumbido preguiçoso das abelhas, íamos passando devagar de uma tábua a outra, Sam apontando para onde seriam as janelas e as portas duplas.
— Esse é o banheiro.
— Venta um pouco aqui.
— É. Preciso resolver isso. Cuidado. Essa não é uma porta de verdade. Você acabou de entrar no chuveiro.
Ele passou por cima de uma pilha de tijolos e subiu em outra grande tábua cinza, estendendo a mão para que eu também pudesse passar com segurança pelos tijolos.
— E aqui é a sala. Se você olhar por aquela janela ali — ele formou um quadrado com os dedos —, verá o campo aberto.
Olhei para a paisagem tremeluzindo lá embaixo. Tive a sensação de estarmos a milhões de quilômetros da cidade, e não a quinze. Respirei fundo, aproveitando o fator inesperado de tudo aquilo.
— É bonito, mas acho que seu sofá está no lugar errado — falei. — Você precisa de dois. Um aqui e talvez um lá também. E imagino que tenha uma janela aqui, não?
— Ah, sim. É preciso ter vista para os dois lados.
— Hum. E você realmente precisa reconsiderar a sua despensa.
O mais absurdo de tudo foi que, durante os poucos minutos de passeio e conversa, consegui visualizar a casa. Eu acompanhava a linha das mãos de Sam, quando ele indicava lareiras invisíveis, evocava escadas com a imaginação, desenhava retas em tetos inexistentes. Fui capaz de ver suas janelas mais altas que o padrão, os corrimões que um amigo dele iria construir com carvalho envelhecido.
— Vai ficar lindo — falei, quando ele indicou a última suíte.
— Daqui a uns dez anos. Mas, sim, espero que fique lindo mesmo.
Olhei em volta do campo, reparando na horta, no galinheiro, no canto dos pássaros.
— Vou confessar que isso não é o que eu esperava. Você não pretende, sabe, chamar alguns pedreiros?
— Um dia eu vou acabar chamando. Mas gosto de cuidar disso. Construir uma casa faz bem à alma. — Ele deu de ombros. — Quando a gente passa o dia inteiro suturando ferimentos, lidando com ciclistas confiantes demais, esposas feitas de saco de pancada pelos maridos, crianças com asma crônica por causa da umidade...
— ... e mulheres idiotas que caem de telhados.
— Essas também. — Ele apontou para a betoneira e a pilha de tijolos. — Faço isso para poder conviver com essas coisas. Cerveja?
Ele entrou no vagão, fazendo sinal para que eu o seguisse.
Por dentro já não era mais um vagão. Tinha uma pequena cozinha impecavelmente planejada e um sofá estofado em L no fundo, embora ainda conservasse um cheiro fraco de cera de abelha e antigos passageiros.
— Não gosto de casas móveis — disse ele, como se estivesse se explicando. Acenou para o sofá. — Sente-se.
Pegou uma cerveja na geladeira e me entregou depois de abri-la. Colocou uma chaleira no fogão para si mesmo.
— Você não vai beber?
Ele negou com a cabeça.
— Depois de vários anos nesse emprego reparei que eu costumava chegar em casa e tomar uma bebida para relaxar. E depois eram duas. Até que percebi que não conseguia relaxar sem tomar aquelas duas, ou talvez três. — Ele abriu uma caixa de chá e jogou um saquinho dentro de uma caneca. — Então... perdi uma pessoa próxima e decidi que ou eu largava o álcool ou nunca mais pararia de beber. — Ele não olhou para mim enquanto contava isso, ficou apenas andando pelo vagão, uma presença marcante e particularmente graciosa naquele espaço estreito. — Ainda bebo uma cerveja ou outra, mas hoje, não. Vou levá-la para casa mais tarde.
Comentários como esse acabavam com a estranheza de estar sentada num vagão de trem com um homem que eu mal conhecia. Como era possível se manter reservada com alguém que tinha cuidado do seu corpo quebrado e parcialmente despido? Como era possível ficar ansiosa com um homem que já havia me contado seus planos de me levar de volta para casa? Como se as circunstâncias de nosso primeiro encontro tivessem removido os obstáculos constrangedores normalmente encontrados por duas pessoas que estão se conhecendo. Ele já me vira de calcinha e sutiã. Droga, ele me vira totalmente vulnerável. Mas depois disso fiquei à vontade ao lado de Sam de um jeito que não me sentia com mais ninguém.
O vagão me fazia lembrar das carroças de ciganos sobre as quais eu lera durante a infância, onde tudo tinha um lugar e havia organização mesmo num espaço confinado. Era acolhedor, mas austero, e inconfundivelmente masculino. Tinha um aroma agradável de madeira aquecida pelo sol, sabonete e bacon. Um recomeço, supus. Eu me perguntei o que tinha acontecido com a antiga casa dele e de Jake.
— Então... hum... o que Jake acha disso?
Ele se sentou com o chá na outra ponta do sofá.
— No início ele achou que eu estivesse maluco. Mas agora gosta bastante. Cuida dos bichos quando estou de plantão. Em troca, prometi ensiná-lo a dirigir aqui pelo campo quando fizer dezessete anos — Ele ergueu a caneca. — Que Deus me ajude.
Ergui minha cerveja em resposta.
Talvez fosse o prazer inesperado de estar fora de casa numa noite quente de sexta-feira com um homem que me olhava nos olhos enquanto falava e tinha um cabelo que dava vontade de despentear com os dedos, ou talvez essas sensações fossem apenas consequência da segunda cerveja, mas eu finalmente estava começando a me divertir. Ficou abafado dentro do vagão, por isso fomos nos sentar do lado de fora em duas cadeiras dobráveis.
Observei as galinhas ciscarem na grama, o que era muito relaxante, e escutei as histórias de Sam sobre pacientes obesos, que precisavam de quatro equipes para tirá-los de casa, e sobre jovens membros de gangues, que tentavam agredir uns aos outros mesmo enquanto eram suturados nos fundos da ambulância. Durante a conversa, eu lançava olhares furtivos para ele, notando o jeito que segurava a caneca, seus sorrisos inesperados que formavam no canto dos olhos três linhas perfeitas que davam a impressão de terem sido riscadas com uma precisão minuciosa.
Ele me contou sobre seus pais: o pai era um bombeiro aposentado, a mãe, uma cantora de boate que largara a carreira pelos filhos. (“Acho que é por isso que sua roupa chamou minha atenção. Fico confortável com brilho.”)
Sam não mencionou o nome da falecida mulher, mas comentou que a mãe dele se preocupava com a permanente falta de influência feminina na vida de Jake.
— Minha mãe vem buscá-lo uma vez por mês e o leva a Cardiff para que ela e as irmãs possam falar amorosamente com ele, alimentá-lo e garantir que ele tenha meias suficientes. — Sam apoiou os cotovelos nos joelhos. — Ele reclama de ter que ir, mas no fundo adora.
Contei que Lily reaparecera, e ele estremeceu ao ouvir a história do encontro dela com os Traynor. Comentei sobre seu humor desconcertante e seu comportamento errático, e ele assentiu, como se isso tudo fosse esperado. Quando falei sobre a mãe de Lily, ele balançou a cabeça.
— Pais ricos não significa pais melhores — disse Sam. — Se estivesse vivendo de seguro-desemprego, essa mãe provavelmente receberia uma visitinha da assistência social. — Ele ergueu a caneca para mim. — Você está fazendo uma boa ação, Louisa Clark.
— Não tenho certeza se estou fazendo direito.
— Ninguém nunca acha que está acertando com adolescentes — comentou ele. — Acho que essa é a questão deles.
Era difícil conciliar esse Sam, à vontade em casa, cuidando de suas galinhas, com a versão chorosa e que vivia correndo atrás de um rabo de saia sobre a qual ouvimos falar no Grupo Seguindo em Frente. Mas eu sabia muito bem que a persona que escolhemos apresentar ao mundo pode ser bem diferente da que existe no íntimo. Eu sabia como o luto pode nos fazer agir de maneiras que nem nós mesmos conseguimos entender.
— Adorei seu vagão de trem — falei. — E sua casa invisível.
— Então espero que volte — disse ele.
O mulherengo compulsivo. Se era assim que conquistava as mulheres, pensei com certa nostalgia, então, nossa, ele era bom. Consistia numa mistura potente: o enlutado pai cortês, os raros sorrisos, o jeito como ele conseguia pegar uma galinha com apenas uma das mãos e o animal de fato parecia feliz com isso. Eu repetia para mim mesma que não me permitiria virar uma daquelas namoradas psicopatas. Mas havia um prazer secreto em simplesmente flertar de forma discreta com um homem bonito. Era agradável sentir algo diferente de ansiedade e fúria, as emoções irmãs que pareciam tão presentes no meu dia a dia. Nos últimos meses, os únicos encontros que eu tivera com alguém do sexo oposto haviam sido impulsionados pelo álcool, e, no fim, eu terminara em um táxi e derramara lágrimas de desprezo por mim mesma no chuveiro.
O que você acha, Will? Está bom assim?
Já havia escurecido, e nós observamos as galinhas irem cacarejando indignadas até o galinheiro.
Sam continuou olhando para os animais e se recostou na cadeira.
— Tenho a sensação, Louisa Clark, de que quando você está falando comigo há uma conversa diferente acontecendo em outro lugar.
Eu queria dar uma resposta inteligente. Mas ele tinha razão, e não havia nada que eu pudesse dizer.
— Você e eu. Nós dois estamos fugindo de alguma coisa.
— Você é muito direto.
— E agora a deixei constrangida.
— Não. — Olhei para ele. — Bem, talvez só um pouco.
Atrás de nós, um corvo levantou voo ruidosamente e o bater de suas asas fez vibrar o ar parado. Resisti ao impulso de alisar o cabelo e, em vez disso, tomei o último gole da minha cerveja.
— Tudo bem. Enfim. Tenho uma pergunta de verdade. Quanto tempo acha que a gente leva para superar a morte de alguém? Quer dizer, alguém que a gente realmente amou.
Não sei direito por que perguntei isso a ele. Foi de uma falta de sensibilidade quase cruel, considerando as circunstâncias. Talvez fosse medo de que o mulherengo compulsivo estivesse prestes a pôr as mangas de fora.
Os olhos de Sam se arregalaram um pouco.
— Hum. Bem... — Ele olhou para sua caneca e depois para os campos sombrios. — Não tenho certeza se algum dia a gente supera.
— Que animador.
— Pois é. Já pensei muito sobre isso. Aprendemos a conviver com a perda, com as pessoas que nos deixam. Porque elas permanecem conosco, mesmo não estando vivas, mesmo não respirando mais. Não é a mesma dor avassaladora que sentimos no começo, aquela que nos invade e dá vontade de chorar nos lugares errados, que nos deixa irracionalmente irritados com todos os idiotas que ainda continuam vivos, enquanto quem amamos está morto. Mas aprendemos a nos adaptar. É como se acostumar com um buraco dentro de nós. Sei lá. É como se nos tornássemos... um donut quando queríamos virar um pão.
Sua expressão era tão triste que de repente me senti culpada.
— Um donut.
— Uma analogia idiota — confessou ele, com um meio sorriso.
— Não tive intenção de...
Ele balançou a cabeça. Olhou para a grama a seus pés e depois de soslaio para mim.
— Vamos. Vou levar você para casa.
Andamos pelo campo até alcançar a moto dele. Estava mais fresco, então cruzei os braços. Ele reparou nisso e me deu sua jaqueta, insistindo quando eu disse que não precisava. A jaqueta tinha um peso agradável e era potentemente masculina. Tentei não sentir o cheiro dela.
— Você trata todos os seus pacientes assim?
— Só os vivos.
Ri de forma inesperada e mais alto do que eu pretendera.
— A gente não devia ter encontros com os pacientes. — Ele estendeu o capacete para mim. — Mas acho que você não é mais minha paciente.
Peguei o capacete.
— E isso não é realmente um encontro.
— Não é? — Ele fez um discreto gesto filosófico com a cabeça enquanto eu subia na garupa. — Tudo bem.

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