Capítulo 10


O PRIMEIRO mês de aula passou voando. Eu estava cada dia mais
próxima dos meus novos amigos e me sentindo mais feliz do que nunca.
Numa sexta-feira, meu avô sugeriu sairmos juntos à tarde para
comemorar a minha “nova fase” e propôs me levar em uma feira de
filhotes. Achei meio programa de criança, mas meu avô é o cara mais
legal do mundo, então eu fui. Até porque ele me pediu com jeitinho:
– Vamos sair só eu e você? Não aguento mais sua avó reclamando da
vida e fazendo fofoca. Preciso respirar.
Tadinho! Como dizer não a um pedido desses?
Fomos de ônibus logo depois do almoço. Após ver os bichinhos
fofinhos mais bonitinhos do planeta, os visitantes ganhavam um
pintinho amarelinho. Coisa mais linda.
– Ah, vamos levar, vovô?
– Hum, acho que sua avó vai ficar uma fera – ele ponderou.
– Mas eu nunca consegui ter um bicho de estimação!
Era a mais pura verdade. Meus incessantes pedidos por um
bichinho de estimação foram sempre negados pelos meus pais. Tentei
que eles me dessem de tudo: tartaruguinha, tartarugona, cachorro, gato,
hamster, coelho, coruja… (Meu sonho era ter uma coruja. Qualquer
semelhança com Harry Potter não é mera coincidência. Sou potterhead
total!)
Como nunca me deram nada, certa vez, com uns 9, 10 anos, revoltada
por não ter um bichinho para chamar de meu, resolvi criar formigas.
Isso mesmo: formigas. Meu objetivo era dar a elas carinho, um lar,
treinamento (já podia ver o cartaz “Tetê e suas fenomenais formigas
adestradas”) e açúcar. Muito açúcar. Esvaziei um estojo e coloquei água
num cantinho, açúcar no outro e saí pela casa catando formigas. Eu era a
louca das formigas. Tranquei várias lá dentro, passei a tarde
conversando com elas (embora as mal-agradecidas teimassem em fugir
do incrível lar que eu tinha criado) e até cantei para elas dormirem.
Negócio de fofura, de amor. Eu sou assim. Ninguém me ama, mas eu amo
geral. Até formiga. No dia seguinte, ao abrir o estojo, a surpresa: as
palhaças tinham fugido. Sim, senhoras e senhores! Elas tinham ido
embora, me dado as costas depois de tamanho acolhimento, de tanta
doação de carinho de minha parte. Foi mais uma dor no meu histórico
de filha única que sempre quis mas nunca teve bichinho de estimação.
– Você quer muito, não é, Tetê? – meu avô perguntou.
– Sim! O pintinho vai me dar alegria. Acho bem legal ter um
serzinho pra cuidar, um bicho que dependa de mim – disse e sorri para
o vovô.
– Então viva o pintinho, Tetê! Quero é ver você cada vez mais feliz,
meu amor! – comemorou meu avô.
Ah, os avôs, esses anjos em forma de gente!
Avôs… Porque as avós…
– Quando crescer vai virar um galo horroroso! E aí? Me diz? Me diz
como é que a gente cria um galo dentro de um apartamento, Tetê? –
reclamou minha avó assim que viu o bicho, quando chegamos do
passeio.
Vó Djanira nunca prezou pela doçura e pela paciência, mas era uma
boa pessoa. Juro que era.
Batizei o pintinho de Abenebaldo (e eu não queria zoar com a cara
dele, juro! Foi de coração que dei esse nome), cuidei dele com o maior
carinho, dei beijinhos e fiz muito cafuné. Na primeira noite,
Abenebaldo piou, piou, piou e não deixou ninguém dormir. Devia estar
com saudade da mãe. No sábado, levei Abenebaldo para passear, ele era
tão pequenininho e frágil… Tão bonitinho… Na noite de domingo, nova
choradeira de Abenebaldo, o pinto simplesmente não parava de piar.
Mas tenho sono pesado e capotei mesmo com os pios. Meu biso, surdo,
nem sequer ouvia os pios, então estava tudo bem.
Na manhã de segunda-feira, o silêncio imperava na casa. Todo mundo
com cara de enterro olhando para mim. Sem suspeitar de nada, fui
pegar Abenebaldo na caixinha onde ele dormia para dar bom-dia, mas…
Abenebaldo não estava lá.
– Sua avó matou o pinto! – entregou meu pai.
– O quê?! – reagi, indignada.
– Foi sem querer, Reynaldo Afonso! – defendeu-se ela.
– Como é que se mata um pinto sem querer? Pisou nele, foi isso? –
eu quis saber, com o coração a mil.
– Não foi bem assim… – respondeu ela, reticente.
– Ela botou o pinto na máquina de lavar! – dedurou meu avô.
– COMO É QUE É?! – reagi, com voz de megafone.
– É que ele não parava de piar, Tetê!
– Pinto pia, vó! Cachorro late, gato mia e pinto pia! Não é por isso
que a gente bota um bicho numa máquina de lavar! Que crueldade foi
essa? Ligar a máquina com o pintinho dentro? De propósito?
Eu estava exasperada, roxa de ódio e certa de que minha avó não era a
boa pessoa que eu jurava que ela era algumas linhas antes.
– Imagina, Tetê! Você acha que eu sou louca? Eu não liguei a
máquina! Só botei o bicho lá dentro e fechei, pra abafar o pio dele.
– Ah! Agora sim estou mais calma. Você não ligou a máquina mas
ASFIXIOU O POBRE DO PINTO!!! – reagi.
– Eu não conseguia dormir! – continuou minha avó. – Esse pinto
estava me deixando louca!
– Por que você não me acordou?
– Porque o pinto não ia parar de piar por sua causa!
– Claro que ia! Eu ia ficar grudadinha com ele na minha cama até ele
dormir.
– Não diga bobagem, Tetê! Pinto fede. Sua cama ia ficar uma
fedentina! A área de serviço já estava fedendo!
– O Abenebaldo não fedia!
– Fedia, sim! Fedia e piava! Não era para ele morrer, entende? Era só
para ele calar a boca. Mas o que é que eu posso fazer se ele morreu?
Comecei a chorar, com a certeza de que minha avó era a avó mais
cruel do mundo!
– Não chora, filha… A gente vai à feira de novo e pega outro pintinho
para você… – confortou meu avô.
– Eu não quero outro, eu quero o Abenebaldo! – berrei, cheia de dor.
– Ih, esse já era. Amanheceu azulzinho, coitadinho – relatou meu
bisavô. – E era tão amarelinho…
Chorei mais. Muito mais. A ideia do meu pintinho morto me deu
ânsia de vômito. Achei minha avó um monstro.
– Nunca mais falo com a senhora, vó! Nunca mais! – esbravejei, antes

de sair de casa marchando.
         

                                                        ***


Cheguei na escola com o nariz inchado, fui chorando até a sala de
aula. Contei a história do assassinato do pinto para o Davi e ele se
limitou a dizer:
– Olha, Tetê… Você tinha mesmo que ficar meio deprê. Essa sua
família é inacreditável!
Erick se aproximou de mim enquanto eu conversava com Davi e
colocou a mão no meu ombro.
Gelei.
– Tá tudo bem, Tetê?
Que lindo! Preocupado comigo!
– Mataram o pinto dela – Davi resumiu friamente a história.
– Minha avó matou meu pinto – completei.
– E ele só tinha alguns dias. Chegou na sexta, morreu domingo de
madrugada. Pobrezinho… – relatou Davi.
– Você tinha um pinto de estimação?
– Tinha. Quer dizer… Tive. Por três dias, mas tive – contei,
soluçando.
– Gente, quem é o idiota que tem um pinto?
– Ah, não, Valentina! – repreendeu Erick.
– Oi, amor. Quem tem pinto, gente? Peloamorrrrrrrrrr, me fala quem
é o idiota que bota um bicho nojento desses dentro de casa?
– Eu fui a idiota que botou um pinto dentro de casa, Valentina –
respondi, triste mas cheia de dignidade.
Valentina, sua arrogantina! Eu te odeio, sua vaquina cretina!
– Como é que você fala uma coisa dessas? Não vê que a menina tá
chorando? – brigou Erick.
– Sério que você tá sofrendo por causa de um pinto? O mundo está
perdido mesmo.
Erick pegou Valentina Insuportaveldina pelo braço e levou a menina
para longe de mim. Saíram da sala no maior climão e deu para ouvir os
dois discutindo do lado de fora.
– Não tô entendendo você com essa garota! Todo dia vai ser assim? Eu
vou chegar e você vai estar lá grudadinho nela? – Valentina reclamou.
– Eu gosto dela! O que você tem contra a garota? – Erick se defendeu.
Pausa. Pausa!
Ele gosta de mim! Ele gosta de mim! Morri! Morri! A tristeza até
diminuiu nessa hora.
– Tudo! – ela aumentou o tom de voz. Aos poucos, a turma silenciava
para ouvir o casal. – Eu só espero que, se um dia a gente terminar, você
não fique com alguém como essa Teanira, Erick. Porque quem tem no
currículo Valentina Garcia Silveira não pode descer degraus. Tem que
subir, amor. Subir!
– Fala baixo! – pediu ele, sem sucesso.
– Eu falo do jeito que eu quiser! Tá na cara que a bunda quadrada tá
apaixonada por você.
Bunda quadrada, cotovelo desidratado… Aquela ali tinha feito uma
radiografia do meu corpo… Será que a minha bunda é realmente
quadrada?
– Claro que não! Não diz besteira! Então esse ataque todo é ciúme?
– Ciúme da monstra do lago? Da orca assassina? Claro que não.
Tenho ódio mesmo dessa sua amizade com ela e todos os nerds da sala.
Silêncio total. Todos se entreolhando, constrangidos, curiosos para
ver o próximo capítulo da novela.
– Não fala assim! Que coisa horrível, você falando desse jeito, com
tanto ódio, tanto preconceito! Você ia gostar da Tetê, ela é uma menina
muito especial.
Confesso que meu coração derreteu.
– Tetê? O nome dela é Teanira, Erick! Teanira! Ela é ruim de berço!
Ela é toda ruim!
“Toda ruim”. É isso que eu sou? Devo ser…
Samantha, a fofa que me ajudou no dia do refrigerante, levantou-se
indignada e foi para fora da sala. Não sei o que ela disse, mas Valentina
não reagiu nada bem.
– Sai daqui, garota! Chega de encosto essa manhã! Quem te disse que
pode sair se metendo na minha conversa com meu namorado? Que ódio!
Que ódio dessa escola, dessa segunda-feira! Que ódio! – gritou.
Depois quem saiu da sala foi Laís. Certamente para ir atrás da
amiguinha, para consolá-la.
– Você acha que eu devo ir falar com ela? Perguntar o que eu fiz pra
ela me tratar assim? – perguntei para os meus amigos.
– Tá louca? Não vai a lugar nenhum! – bronqueou Zeca, que tinha
acabado de chegar.
– Quero dizer pra ela se olhar no espelho e depois olhar pra mim.
Não tem por que sentir ciúme de mim. E sou tão nada…
– Você não é nada! Ela que é insegurina – Zeca me confortou.
– E mulher bonita lá tem insegurança? – eu quis saber.
– Amorrrrr, você não entende nada da vida! Alou! São as que mais
sofrem disso. É tudo doida! – ele me segredou.
– Por isso mesmo acho que eu deveria falar com ela. Depois de anos
de silêncio na outra escola, talvez seja a hora de conversar com quem me
odeia, de tentar entender o motivo de tanto ódio.
– Fica quieta, Tetê. Essa gente não merece sua preocupação, sua
amizade, seu carinho, nada. E esquece ela, esquece o pinto também! O
Davi me contou a tragédia. Amorrrr, você tá sem bigode e sem
sobrancelha! Tá linda e é isso que importa agora!
Dei um sorriso triste. Respirei fundo. Erick passou por mim antes
de ir para o lugar dele no fundão e me olhou profundamente. Parou por
uns segundos ao lado da minha mesa, segurou meu pulso que estava
apoiado nela e disse, só com os lábios, sem emitir som algum:
– Desculpa…
Apenas balancei a cabeça e disse com os olhos para ele relaxar, que
não tinha sido nada. Por dentro, eu estava arrasada, me sentindo muito
mal. Coração acelerado, autoestima no pé e uma vontade imensa de
chorar. “Ela é toda ruim”. Essa frase não saía da minha cabeça.
Uns cinco minutos depois, Valentina voltou para a sala com Laís, as
duas sentaram-se lado a lado, longe de Erick, e a cretina me olhou com
raiva antes de se virar para a lousa. Baixei os olhos, quase pedindo
desculpas para mim mesma por existir.
A professora de Português entrou, e a manhã seguiu calada e triste.
Sem meu pintinho, sem atenção, sem nada que fizesse uma pessoa como
a Valentina gostar de mim. A minha segunda-feira não tinha começado
nada bem…
– Tão bonita e tão cruel – pensei alto.
– Esquece, Tetê! A garota não vale o chão que pisa! – ajudou Zeca.
– Mas é tão linda… Como pode? – desabafei, com um tantinho de
inveja, admito.
– E seria muito mais bonita se fosse simpática – argumentou Davi.
– Algum defeito ela tem que ter – pensei em voz alta.
– É baixinha e odeia ser baixinha – contou Zeca.
– Sou alta, mas… De que adianta? Sou toda ruim…
– Ô, Tetê… Não fica assim… – consolou Davi.
Zeca se levantou para vir me abraçar e meu coração finalmente

conseguiu sorrir aliviado naquele movimentado começo de dia.

Nenhum comentário :

Postar um comentário

Atenção: para postar um comentário, escolha Nome/Url. Se quiser insira somente seu nome.

Please, no spoilers!

Expresse-se:
(◕‿◕✿) 。◕‿◕。 ●▽●

⊱✿◕‿◕✿⊰(◡‿◡✿)(◕〝◕) ◑▂◐ ◑0◐

◑︿◐ ◑ω◐ ◑﹏◐ ◑△◐ ◑▽◐ ●▂● 

●0● ●︿● ●ω● ●﹏● ●△● ●▽●

Topo