Capítulo 14

Naquela semana, cheguei atrasada ao encontro do Grupo Seguindo em Frente. Pouco depois de ter deixado um café para mim, talvez como pedido de desculpas, Lily derramou tinta verde no chão do corredor, largou um pote de sorvete derretendo na cozinha, levou minhas chaves de casa e a do meu carro junto, porque não conseguira encontrar as dela, e pegou minha peruca emprestada por uma noite sem pedir. Eu encontrei a peruca no chão do seu quarto. Quando a coloquei, parecia que um pastor inglês estava fazendo algo censurável com a minha cabeça.
No momento em que cheguei ao salão da igreja, todas as outras pessoas já estavam se sentando. Natasha se afastou gentilmente para que eu pudesse ocupar a cadeira de plástico ao seu lado.
— Esta noite vamos falar dos indícios de que talvez a gente esteja seguindo em frente — disse Marc, segurando uma caneca de chá. — Não precisam ser coisas grandes, como novos relacionamentos, jogar roupas fora e tal. Apenas coisas pequenas que nos fazem enxergar que pode haver uma maneira de acabar com o sofrimento. É surpreendente como vários desses indícios passam despercebidos, ou como nos recusamos a reconhecê-los porque sentimos culpa por seguir em frente.
— Eu me cadastrei em um site de relacionamentos — disse Fred. — Chama-se Papa-anjo.
Houve um burburinho de surpresa e aprovação.
— Isso é muito encorajador, Fred. — Marc bebericou seu chá. — O que você espera conseguir com isso? Uma companhia? Lembro-me de quando você disse que sentia falta principalmente de ter alguém com quem caminhar durante as tardes de domingo. Você falou que costumava ir com sua mulher para perto do lago dos patos, não é?
— Ah, não. É para sexo virtual.
Marc engasgou. Houve uma breve pausa enquanto alguém lhe entregava um lenço de papel para que ele pudesse limpar a calça suja de chá.
— Sexo virtual. É o que todo mundo anda fazendo, não é? Eu me cadastrei em três sites. — Fred ergueu a mão para contar nos dedos. — “Papa-anjo” é para mulheres jovens que gostam de homens mais velhos, “Velhote Endinheirado”, para mulheres jovens que gostam de homens mais velhos cheios da grana e... hum... “Garanhões Sexys”. — Ele fez uma pausa. — Não especificaram.
Houve um breve silêncio.
— É bom ser otimista, Fred — disse Natasha.
— E você, Louisa?
— Hum... — Hesitei, considerando que Jake estava bem na minha frente, mas depois pensei: E daí? — Na verdade saí com alguém esse fim de semana.
Ouviu-se um uh-uh! abafado vindo dos outros membros do grupo. Baixei os olhos, um pouco constrangida. Eu nem sequer conseguia pensar naquela noite sem enrubescer.
— E como foi?
— Foi... surpreendente.
— Ela transou com alguém. Com certeza transou com alguém — disse Natasha.
— Ela está com aquele brilho — comentou William.
— Ele mandou bem? — perguntou Fred. — Tem alguma dica?
— E você conseguiu não pensar muito em Bill?
— Não o suficiente para me impedir... Só fiquei com vontade de fazer alguma coisa que... — Dei de ombros. — Eu só queria me sentir viva.
Houve um murmúrio de concordância após a última palavra que eu disse. Era o que todos queríamos, em última instância, para nos libertar do nosso luto. Ficar livre desse submundo dos mortos, com metade do nosso coração perdido embaixo da terra ou preso em pequenas urnas de porcelana. Era bom ter algo positivo para dizer pela primeira vez.
Marc balançou a cabeça para me encorajar.
— Acho que isso parece muito saudável.
Escutei Sunil dizer que tinha voltado a ouvir música e Natasha contar que levara algumas das fotos do marido da sala para o quarto, segundo ela “para não acabar falando dele toda santa vez que alguém vai lá em casa”.
Daphne parara de cheirar furtivamente as camisas do marido no armário.
— Para ser sincera, elas não têm mais o cheiro dele. Acho que foi só um hábito que criei.
— E você, Jake?
Ele ainda parecia muito infeliz.
— Tenho saído mais, acho.
— Já falou com seu pai sobre o que sente?
— Não.
Tentei não olhar para ele enquanto falava. Eu me sentia estranhamente exposta, sem ter certeza do que ele sabia.
— Mas acho que ele está gostando de alguém.
— Mais sexo? — perguntou Fred.
— Não, acho que ele está realmente gostando de alguém.
Percebi que eu estava corando. Fiquei esfregando uma marca invisível no sapato para tentar esconder meu rosto.
— Por que você acha isso, Jake?
— Outro dia ele começou a falar sobre ela durante o café da manhã. Disse que achava que ia parar com essa coisa de ficar com várias mulheres. Que tinha conhecido uma pessoa e queria investir nela.
Fiquei muito animada. Mas acho que ninguém ali conseguiu perceber isso.
— Então você acha que ele finalmente descobriu que relações de rebote não são o caminho para seguir em frente? Vai ver ele só precisava sair com algumas mulheres antes de se apaixonar de novo por alguém.
— Ele já fez muito rebote — comentou William. — Altos níveis de rebote.
— Jake? Como você se sente em relação a isso? — perguntou Marc.
— Um pouco estranho. Quer dizer, sinto saudade da minha mãe, mas acho que provavelmente é bom que ele esteja seguindo em frente.
Tentei adivinhar o que Sam dissera. Será que ele tinha citado meu nome? Eu conseguia imaginar os dois na cozinha do pequeno vagão de trem, tendo essa conversa sincera enquanto tomavam chá com torradas. Minhas bochechas ardiam. Eu não tinha certeza se queria que Sam fizesse suposições sobre nós dois tão cedo. Devia ter deixado mais claro que aquilo não significava que estávamos namorando. Era muito cedo. E muito cedo para Jake discutir nosso relacionamento em público.
— E você conheceu a mulher? — perguntou Natasha. — Gosta dela?
Jake baixou a cabeça.
— Sim. E essa foi a merda.
Ergui os olhos.
— Ele a convidou para o brunch domingo e ela foi insuportável. Estava usando uma blusa muito justa e ficava me abraçando, como se me conhecesse, e rindo alto demais. Quando meu pai estava no jardim, ela me encarava com seus olhos grandes e redondos e dizia: “E como vai você?”, inclinando a cabeça de um jeito muito irritante.
— Ah, a inclinação de cabeça — disse William, e ouviu-se um murmúrio abafado de concordância.
Todo mundo conhecia aquele gesto.
— E na frente do meu pai ela só ria e jogava o cabelo o tempo todo, como se tentasse agir como uma adolescente, embora desse para perceber que tinha pelo menos trinta anos. — Ele franziu o nariz com nojo.
— Trinta! — exclamou Daphne, desviando os olhos. — Imagine só!
— Na verdade, eu preferia a que me perguntava o que ele andava fazendo. Pelo menos essa não fingia ser minha melhor amiga.
Mal consegui continuar a ouvir o que ele estava dizendo. Comecei a escutar um zumbido distante, que abafava todos os sons. Como pude ter sido tão burra? De repente me lembrei do revirar de olhos de Jake quando ele vira Sam dando em cima de mim pela primeira vez. Meu aviso estava bem ali, mas eu tinha sido burra o suficiente para ignorá-lo.
Senti calor e comecei a tremer. Eu não podia continuar ali. Não podia ouvir mais.
— Hum... acabei de lembrar que tenho um compromisso — murmurei, pegando minha bolsa e pulando da cadeira. — Desculpe.
— Está tudo bem, Louisa? — perguntou Marc.
— Tudo ótimo. Tenho que correr.
Segui depressa para a porta, sustentando um sorriso tão forçado que chegava a doer.

* * *

Ele estava lá. Claro que sim. Tinha acabado de parar a moto no estacionamento e estava tirando o capacete. Saí do salão da igreja e parei no alto da escada, me perguntando se havia algum jeito de ir até o meu carro sem passar por ele, mas não tinha. A parte física do meu cérebro registrou sua silhueta antes das sinapses remanescentes ocorrerem: um rubor de prazer, o lampejo da lembrança das suas mãos me tocando. Mas depois fui tomada por uma raiva arrebatadora, uma humilhação latejante.
— Oi — disse ele ao me ver, dando seu sorriso fácil e franzindo os olhos de prazer.
Aquele maldito charme.
Diminuí o passo e ele notou a mágoa em meu rosto. Eu não me importava. De repente, fiquei me sentindo como Lily. Não ia guardar isso para mim, afinal não fui eu que saí da cama de uma pessoa direto para a de outra.
— Bom trabalho, seu babaca — falei.
Depois corri até o meu carro antes que minha voz engasgada pudesse virar um soluço de verdade.

* * *

A partir de então, como se em resposta a uma mensagem subliminar maligna, aquela semana realmente foi ladeira abaixo. Richard ficou ainda mais exigente, reclamando que não sorríamos o bastante, que nosso desânimo com os clientes estava fazendo com que preferissem o Wings no Air Bar and Grill. O tempo virou, colorindo o céu de cinza-chumbo e trazendo tempestades tropicais, o que atrasou os voos e deixou o aeroporto cheio de passageiros mal-humorados. Depois disso, em um timing perfeito, os carregadores de bagagem entraram em greve.
— O que se pode esperar? Mercúrio está retrógrado — disse Vera, irritada, e resmungou com um cliente que pediu menos espuma no seu cappuccino.
Em casa, Lily parecia carregar uma nuvem negra própria. Sentou-se na sala, sem desgrudar do celular, mas não parecia nada contente com o que estava vendo no telefone. Ela olhava pela janela, impassível, como seu pai fazia, e parecia estar tão presa quanto ele. Eu tentara explicar que Will me dera aquela meia-calça amarela e preta, que a importância não estava na cor nem na qualidade, mas que...
— Está bem, está bem, a meia-calça. Tanto faz — disse ela.
Passei três noites quase sem dormir. Ficava encarando o teto, despertada por uma fúria gelada que se alojava em meu peito e se recusava a passar.
Eu estava com muita raiva de Sam. Porém, tinha ainda mais raiva de mim mesma. Ele me mandou duas mensagens de texto, com um “??”, fingindo inocência. Mas eu não confiava em mim mesma para responder. Adotara o clássico comportamento das mulheres de ignorar tudo o que um homem diz ou faz, preferindo escutar minha impetuosa defesa insistente: Comigo vai ser diferente. Eu o beijara e fizera tudo acontecer. Então só podia me culpar.
Tentei me convencer de que eu provavelmente escapara por um triz. Dizia, colocando mentalmente pontos de exclamações nas frases, que foi melhor descobrir logo do que daqui a seis meses! Tentei ver a situação pelo ponto de vista de Marc: foi bom ter seguido em frente! Posso considerar que foi uma experiência positiva! Pelo menos o sexo foi bom! Mas lágrimas quentes e idiotas escorriam dos meus olhos imbecis, e eu as secava e dizia a mim mesma que era isso que acontecia quando dávamos intimidade a alguém.

* * *

No grupo aprendemos que a depressão adora um vácuo. Era muito melhor estar fazendo algo, ou pelo menos planejando. Às vezes a ilusão de felicidade podia inadvertidamente criar um vácuo. Eu já estava cansada de chegar em casa toda noite e encontrar Lily prostrada no meu sofá, e farta também de tentar disfarçar o quanto eu ficava irritada com isso. Na sexta à noite disse a ela que iríamos encontrar a Sra. Traynor no dia seguinte.
— Mas você falou que ela não respondeu à sua carta.
— Vai ver ela não recebeu. Não importa. Em algum momento o Sr. Traynor vai contar à família dele sobre você, então seria melhor a gente falar com ela antes que isso aconteça.
Lily não disse mais nada. Interpretei como um sinal tácito de anuência e a deixei em paz.
Naquela noite, acabei dando uma olhada nas roupas que Lily retirara da caixa, as quais eu ignorava desde que saíra da Inglaterra e fora para Paris dois anos antes. Não havia razão para usá-las. Eu não me sentia aquela pessoa desde que Will morrera.
Porém, naquele momento parecia importante vestir algo que não fosse calça jeans nem uma roupa verde de dançarina irlandesa. Encontrei um vestido curto azul-marinho que eu adorava e parecia sóbrio o suficiente para uma visita um pouco formal, então o passei e o deixei separado. Avisei a Lily que sairíamos às nove da manhã seguinte e fui me deitar, admirada ao perceber como era exaustivo morar numa casa com alguém que achava que qualquer fala mais longa que um grunhido era simplesmente ir longe demais.
Dez minutos depois de ter fechado a porta, enfiaram um bilhete manuscrito por baixo dela.

Cara Louisa,
Desculpe por ter pegado suas roupas emprestadas. E obrigada por tudo. Sei que às vezes sou um saco.
Desculpe.
Beijos,
Lily
P.S. Mas você devia mesmo usar aquelas roupas. São MUITO melhores do que as que você veste.

Abri a porta e encontrei Lily ali em pé, séria. Com um passo à frente, ela me deu um abraço rápido e expressivo, tão apertado que machucou minhas costelas. Depois se virou e, sem dizer uma palavra, voltou para a sala.

* * *

O dia amanheceu mais ensolarado e, com isso, nosso humor melhorou um pouco. Foram várias horas de viagem até chegar a um vilarejo em Oxfordshire, onde havia jardins murados e paredes de pedra em tom mostarda e queimadas de sol. Fiquei tagarelando durante a viagem, sobretudo para disfarçar meu nervosismo com a perspectiva de rever a Sra. Traynor. Eu tinha descoberto que a maior dificuldade que encontrávamos ao conversar com um adolescente era que qualquer assunto que puxássemos inevitavelmente parecia o papo de uma tia velha em um casamento.
— Então o que você gosta de fazer? Quando não está na escola.
Ela deu de ombros.
— O que acha que gostaria de fazer depois que sair do colégio?
Ela me lançou aquele seu olhar característico.
— Você teve hobbies durante a infância, não?
Ela citou uma lista vertiginosa: hipismo, lacrosse, hóquei, piano (no quinto ano), corrida, tênis.
— Tudo isso? E não continuou praticando nenhum?
Ela fungou ao mesmo tempo em que deu de ombros, depois apoiou os pés no painel, como se a conversa estivesse encerrada.
— Seu pai adorava viajar — comentei após mais alguns quilômetros na estrada.
— Você já falou isso.
— Uma vez ele me disse que tinha conhecido o mundo todo, menos a Coreia do Norte. E a Disney. Ele contava histórias sobre lugares dos quais eu nunca tinha ouvido falar.
— As pessoas da minha idade não fazem viagem de aventura. Não tem mais nenhum lugar para ser desvendado. E quem faz mochilão durante o ano sabático fica um saco. Essas pessoas estão sempre falando de algum bar que descobriram em Ko Phang Yan, ou de como arranjaram drogas incríveis na floresta tropical de Myanmar.
— Você não precisa fazer um mochilão.
— É, e depois de conhecer o interior de um Hotel Mandarin Oriental, já conhecemos todos. — Ela bocejou. — Estudei numa escola aqui perto — comentou ela um tempo depois, olhando pela janela. — Foi a única escola de que realmente gostei. — Fez uma pausa. — Eu tinha uma amiga chamada Holly.
— O que aconteceu?
— Minha mãe cismou que aquele não era o tipo certo de escola. Ela disse que não tinha uma boa colocação no ranking ou alguma coisa assim. Era só um internato pequeno. Então eles me mudaram de colégio. Depois disso perdi a vontade de fazer amigos. De que adiantava, se simplesmente me mudariam de novo?
— Você manteve contato com Holly?
— Não. Não faz sentido quando a gente não pode se ver.
Eu tinha uma vaga lembrança da intensidade das relações entre amigas na adolescência, mais parecida com uma paixão do que com uma amizade normal.
— O que acha que vai fazer? Quer dizer, se não for mesmo voltar para a escola.
— Não gosto de pensar muito à frente.
— Mas você tem que pensar em alguma coisa, Lily.
Ela fechou os olhos por um instante, depois baixou os pés e descascou um pouco do esmalte roxo do polegar.
— Não sei, Louisa. Talvez eu simplesmente siga seu exemplo maravilhoso e faça todas as mesmas coisas empolgantes que você.
Respirei fundo três vezes, apenas para me impedir de parar o carro na estrada. É só o nervosismo, falei para mim mesma. Era só o nervosismo dela. E depois, para irritá-la, liguei bem alto na estação de rádio de músicas antigas, que ficou tocando pelo resto da viagem.

* * *

Encontramos a Four Acres Lane com a ajuda de um passeador de cachorros da região e paramos diante da Fox’s Cottage, uma modesta casa de reboco branco com telhado de palha. Do lado de fora, rosas escarlate caíam em torno de um arco de ferro no início do caminho do jardim, e delicadas flores coloridas disputavam espaço em canteiros bem-cuidados. Havia um pequeno carro modelo hatch parado na entrada da garagem.
— A vida dela caiu de padrão — comentou Lily, olhando pela janela.
— É bonitinha.
— É minúscula.
Fiquei sentada, escutando o motor silenciar.
— Antes de entrarmos, me escute, Lily. Não vá esperando muita coisa — falei. — A Sra. Traynor é um pouco formal. Ela busca refúgio nas boas maneiras. Provavelmente vai falar com você como se fosse uma professora. Quer dizer, acho que ela não vai abraçar você, como o Sr. Traynor fez.
— Meu avô é um hipócrita. — Lily fungou. — Ele diz que você é o máximo, mas na verdade não passa de um escravo de boceta.
— E, por favor, não repita “escravo de boceta”.
— Não faz sentido fingir ser alguém que não sou — disse Lily, emburrada.
Continuamos sentadas ali por mais um tempo. Percebi que nenhuma de nós queria ir até a porta.
— Será que devo tentar ligar para ela mais uma vez? — falei, segurando o celular.
Eu já tinha tentado duas vezes naquela manhã, mas caíra direto na caixa postal.
— Não conte logo de cara — disse Lily, de repente. — Quem eu sou, quer dizer. Eu só... Só quero ver quem ela é. Antes de contarmos.
— Claro — falei, comovida.
E antes que eu pudesse dizer mais alguma coisa, Lily desceu do carro e deu passadas largas até o portão, com os punhos cerrados feito um lutador de boxe prestes a entrar no ringue.

* * *

A Sra. Traynor tinha ficado grisalha. Seu cabelo, que antes era tingido de castanho-escuro, estava branco e curto, deixando-a com uma aparência muito mais velha do que realmente era, ou de alguém que acabara de se recuperar de uma doença grave. Devia estar com uns cinco quilos a menos do que da última vez que eu a vira e tinha olheiras fundas e arroxeadas. Ela olhou para Lily com uma expressão confusa que demonstrou que não esperava nenhuma visita, nunca. Quando me viu, seus olhos se arregalaram.
— Louisa?
— Oi, Sra. Traynor. — Dei um passo à frente e estendi a mão. — Nós estávamos aqui por perto. Não sei se recebeu minha carta... Então pensei em parar para dar um oi... — Minha voz falsa e artificialmente alegre sumiu.
Ela tinha me visto pela última vez quando ajudei a esvaziar o quarto do seu filho morto. A penúltima, quando ele deu o último suspiro. Observei-a reviver esses dois fatos naquele momento.
— Estávamos admirando seu jardim.
— Rosas David Austin — reconheceu Lily.
A Sra. Traynor olhou para ela como se só então a tivesse notado. Então deu um sorriso discreto e inseguro.
— Sim. São, sim. Como você é esperta. É que... Desculpe. Não recebo muitas visitas. Qual é mesmo o seu nome?
— Essa é Lily — falei, e observei atentamente ela apertar a mão da Sra. Traynor.
Ficamos um tempo ali paradas no degrau da frente, até que, por fim, como se achasse que não tinha alternativa, a Sra. Traynor se virou e abriu a porta.
— Acho que seria melhor vocês entrarem.

* * *

O chalé era minúsculo, com um pé-direito tão baixo que até eu precisei me abaixar ao passar do hall para a cozinha. Esperei a Sra. Traynor preparar um chá, observando Lily andar impacientemente pela sala, contornando os poucos móveis antigos muito lustrosos, que me lembravam da época que passei na Granta House, pegando objetos e devolvendo-os ao lugar em seguida.
— E... como você tem andado?
A voz da Sra. Traynor era monótona, como se aquela não fosse uma pergunta para a qual ela quisesse uma resposta.
— Ah, muito bem, obrigada. — Longo silêncio. — É uma linda cidade.
— Sim. Bem. Eu não podia ficar em Stortfold...
Ela serviu a água fervente no bule de chá e não pude deixar de me lembrar de Della, andando pesadamente pela antiga cozinha da Sra. Traynor.
— Conhece muita gente por aqui?
— Não — disse ela, como se fosse a única razão que a tivesse feito se mudar para aquele lugar. — Você se importaria de trazer a leiteira? Não cabe tudo nesta bandeja.
Seguiu-se uma penosa meia hora de conversa. A Sra. Traynor, uma mulher que tinha o traquejo instintivo da classe média alta para controlar qualquer situação social, aparentemente perdera a capacidade de se comunicar. Enquanto conversava, parecia que só metade dela estava presente. Fez uma pergunta, repetiu-a dez minutos depois, como se não tivesse registrado a resposta. Considerei que ela pudesse estar abusando de antidepressivos. Lily a observava disfarçadamente, as expressões refletindo seus pensamentos. Fiquei sentada entre as duas, sentindo um nó no estômago aumentar, esperando que alguma coisa acontecesse.
Tagarelei sozinha, contando sobre meu trabalho horrível, o que eu tinha feito na França, falando que meus pais estavam bem, obrigada... Qualquer coisa para acabar com aquele terrível silêncio opressivo que dominava a sala toda vez que eu parava de falar. Mas o sofrimento da Sra. Traynor pairava sobre a pequena casa, feito uma névoa. Se o Sr. Traynor parecera esgotado pela tristeza, sua ex-mulher dava a impressão de ter sido engolida. Não tinha sobrado quase nada daquela mulher enérgica e orgulhosa que eu conhecera.
— O que a fez vir até aqui? — perguntou ela, afinal.
— Hum... só passei para visitar uns amigos — respondi.
— Como vocês duas se conheceram?
— Eu... conheci o pai de Lily.
— Que bom — disse a Sra. Traynor, sorrindo sem jeito.
Observei Lily, esperando que dissesse alguma coisa, mas ela estava paralisada, como se também se sentisse sufocada ao se deparar com a realidade do sofrimento da mulher.
Tomamos mais uma xícara de chá e comentamos sobre seu belo jardim pela terceira ou talvez quarta vez, e afastei a sensação de que nossa presença estava exigindo um esforço sobre-humano da parte dela. A Sra. Traynor não nos queria ali. Era educada demais para dizer isso, mas estava óbvio que queria ficar sozinha. Esse desejo se refletia em cada gesto, cada sorriso forçado, cada tentativa de dominar a conversa. Desconfiei de que, assim que fôssemos embora, ela simplesmente se sentaria numa cadeira e ficaria ali, ou arrastaria os pés pela escada para se deitar encolhida na cama.
De repente reparei na ausência completa de fotografias. Enquanto a Granta House era cheia de porta-retratos prateados com fotos de seus filhos, da família, dos cavalos, de férias em estações de esqui, dos avós distantes, não havia nada no chalé. Apenas uma pequena estátua de bronze de um cavalo, uma aquarela com alguns jacintos pintados, mas nada de pessoas. Comecei a me remexer na cadeira, me perguntando se eu simplesmente não as vira em alguma mesinha ou no peitoril de janela. Mas, não: o chalé era brutalmente impessoal. Pensei no meu apartamento, no meu fracasso absoluto em personalizá-lo ou transformá-lo em algum tipo de lar. E, de repente, me senti pesada e desesperadamente triste.
O que você fez com a gente, Will?
— Já deve estar na hora de ir, Louisa — disse Lily, olhando expressivamente para o relógio. — Você disse que não seria bom pegar trânsito.
Olhei para ela.
— Mas...
— Você falou que a gente não ia ficar muito tempo — insistiu ela em alto e bom som.
— Ah. Sim. O trânsito às vezes é muito cansativo.
A Sra. Traynor começou a se levantar da cadeira.
Eu fuzilava Lily com o olhar, prestes a protestar outra vez, quando o telefone tocou. A Sra. Traynor estremeceu, como se aquele barulho tivesse se tornado estranho para ela. Olhou para cada uma de nós, se perguntando se atendia ou não, e depois, talvez se dando conta de que não podia se fazer de surda enquanto estávamos ali, pediu licença e foi para outro cômodo, onde a ouvimos atender.
— O que você está fazendo? — perguntei.
— Isso parece errado — disse Lily muito triste.
— Mas não podemos ir embora sem contar a ela.
— Simplesmente não consigo fazer isso hoje. É...
— Sei que é assustador. Mas olhe para ela, Lily. Realmente acho que poderia ser bom se você contasse. Não concorda?
Lily arregalou os olhos.
— Contasse o quê? — Virei a cabeça. A Sra. Traynor estava parada perto da porta do pequeno corredor. — O que você precisa me contar?
Lily me encarou, depois voltou o olhar para a Sra. Traynor. Senti o tempo se arrastar à nossa volta. Ela engoliu em seco, então ergueu um pouco o queixo.
— Que sou sua neta.
Um breve silêncio.
— Minha... o quê?
— Sou filha de Will Traynor.
Suas palavras ecoaram pela sala. O olhar da Sra. Traynor encontrou o meu, como se para confirmar que, na verdade, aquilo era uma grande piada.
— Mas... Não pode ser.
Lily recuou.
— Sra. Traynor, sei que isso deve ser chocante — comecei.
Ela não me ouviu. Encarava Lily furiosamente.
— Como é que meu filho podia ter uma filha sem que eu soubesse disso?
— Porque minha mãe não contou a ninguém. — A voz de Lily saiu num sussurro.
— Esse tempo todo? Como você pode ter sido mantida em segredo durante esse tempo todo? — A Sra. Traynor virou-se para mim. — Você sabia?
Engoli em seco.
— Foi por esse motivo que escrevi para a senhora. Lily me procurou. Queria saber sobre a família dela. Sra. Traynor, não queremos lhe causar mais sofrimento. Lily só queria conhecer os avós, mas as coisas não foram muito bem com o Sr. Traynor e...
— Will teria dito alguma coisa. — Ela balançou a cabeça. — Sei que teria. Ele era meu filho.
— Faço um exame de DNA se você realmente não acredita em mim — disse Lily, cruzando os braços. — Mas não quero nada de vocês. Não preciso vir morar com você nem nada. Tenho meu próprio dinheiro, se é isso que está pensando.
— Não tenho certeza do que eu... — começou a Sra. Traynor.
— Não precisa ficar horrorizada. Não sou, tipo, uma doença contagiosa que você acabou de herdar. Só, sabe, uma neta. Caramba.
A Sra. Traynor afundou lentamente numa cadeira. Depois de um instante, levou a mão trêmula à cabeça.
— A senhora está bem, Sra. Traynor?
— Acho que eu não...
Ela fechou os olhos. Parecia estar imersa em algum lugar no seu íntimo.
— Lily, acho que devíamos ir. Sra. Traynor, vou deixar meu telefone anotado. Voltaremos quando já tiver assimilado a novidade.
— Quem disse? Não vou voltar aqui, não. Ela acha que sou uma mentirosa. Nossa. Essa família.
Lily ficou olhando incrédula para nós duas, depois saiu da sala, derrubando uma mesinha de madeira no caminho. Eu me abaixei, erguendo a mesa, e cuidadosamente repus as caixas de prata que estavam organizadas com capricho ali em cima.
A Sra. Traynor estava abatida com o choque.
— Desculpe, Sra. Traynor — falei. — Tentei realmente falar com a senhora antes de vir.
Ouvi a porta do carro bater.
Ela respirou fundo.
— Não leio nada se eu não souber de onde vem. Recebi cartas. Cartas repugnantes, que diziam que eu... Não respondo a quase nada agora... Nunca é algo que eu queira saber. — Ela parecia perplexa, velha e frágil.
— Sinto muito. Sinto muito mesmo.
Peguei minha bolsa e saí dali.

* * *

— Não fale nada — pediu Lily quando entrei no carro. — Não fale nada, está bem?
— Por que você fez isso? — Eu me sentei no banco do motorista, com as chaves na mão. — Por que quis sabotar tudo?
— Percebi como ela se sentia em relação a mim desde que me viu.
— Ela é uma mãe que ainda sofre com a perda do filho. Acabamos de lhe causar um enorme choque. E você explodiu em cima dela como um foguete. Não podia ter ficado quieta e deixado ela digerir tudo? Por que tem que afastar todas as pessoas?
— Ah, e o que você sabe sobre mim, afinal?
— Você parece determinada a arruinar o relacionamento que tem com qualquer um que possa se aproximar.
— Ai, meu Deus, isso tem a ver com aquela meia-calça idiota de novo? Você não sabe nada! Passou a vida inteira sozinha num apartamento que ninguém visita. Está na cara que seus pais a consideram uma fracassada. Você nem sequer tem coragem para largar o trabalho mais patético do mundo.
— Não faz ideia de como é difícil arranjar qualquer emprego hoje em dia, então não me diga...
— Você é uma fracassada. Pior que isso, é uma fracassada que acha que pode dizer aos outros o que fazer. E quem lhe dá esse direito? Você ficou ali sentada na cabeceira do meu pai vendo-o morrer e não fez nada. Nada! Então não acho que você seja capaz de julgar o comportamento dos outros.
O silêncio no carro era rígido e cortante como vidro. Olhei para o volante.
Fiquei esperando até ter certeza de que conseguia respirar normalmente. Então dei a partida no carro e percorremos os duzentos quilômetros até em casa em silêncio.

Nenhum comentário :

Postar um comentário

Atenção: para postar um comentário, escolha Nome/Url. Se quiser insira somente seu nome.

Please, no spoilers!

Expresse-se:
(◕‿◕✿) 。◕‿◕。 ●▽●

⊱✿◕‿◕✿⊰(◡‿◡✿)(◕〝◕) ◑▂◐ ◑0◐

◑︿◐ ◑ω◐ ◑﹏◐ ◑△◐ ◑▽◐ ●▂● 

●0● ●︿● ●ω● ●﹏● ●△● ●▽●

Topo