Capítulo 15

Passei alguns dias quase sem ver Lily, e isso veio a calhar. Quando eu voltava para casa do trabalho, um rastro de migalhas ou canecas vazias confirmava que ela havia passado por ali. Várias vezes entrei em casa e tive a impressão de que o ar parecia estranhamente perturbado, como se houvesse acontecido algo que eu não conseguia identificar direito. Mas nada faltava e nada tinha sido visivelmente alterado, e atribuí isso ao fato de dividir o apartamento com uma pessoa com quem eu não estava me dando bem. Pela primeira vez, me permiti admitir que sentia falta de estar sozinha.
Liguei para minha irmã, que teve a delicadeza de não dizer: “Eu avisei.”
Quer dizer, talvez só uma vez.
— Essa é a pior coisa de ser mãe ou pai — disse ela, como se eu também fosse. — Para conseguir lidar com todas essas situações a pessoa tem que ser serena, onisciente, bondosa. Mas, às vezes, quando Thom faz malcriação ou estou cansada, tenho vontade de bater a porta na cara dele ou mostrar a língua e dizer que ele é um saco.
Era bem assim que eu estava me sentindo.
Meu trabalho andava tão ruim que eu precisava me forçar a cantar trilhas sonoras de musicais no carro para me obrigar a dirigir até o aeroporto.
E ainda tinha Sam.
Em quem eu não pensava.
Não pensava nele de manhã, quando eu via meu corpo nu no espelho do banheiro. Eu não me lembrava do jeito que seus dedos percorreram minha pele, sem disfarçar minhas cicatrizes vermelhas, e sim torná-las parte de uma história compartilhada. Nem de como, por uma breve noite, eu me sentira inconsequente e viva de novo. Eu não pensava nele quando observava os casais, as cabeças unidas abaixadas ao analisar seus cartões de embarque, prestes a partir para compartilhar aventuras românticas – ou simplesmente um sexo selvagem – em destinos distantes dali. Eu não pensava nele quando ia e voltava do trabalho, sempre que uma ambulância passava com a sirene ligada. O que parecia acontecer com bastante frequência. E eu definitivamente não me lembrava dele à noite quando me sentava sozinha no sofá, assistindo a um programa de televisão cuja temática não posso revelar. Desse jeito, eu desconfiava de que estava parecendo o duende pornô mais solitário do mundo.

* * *

Nathan telefonou e deixou um recado, me pedindo para retornar a ligação.
Eu não tinha certeza se suportaria ouvir o último episódio da sua nova e empolgante vida em Nova York, então coloquei isso na minha lista mental de coisas para fazer que nunca seriam realmente feitas. Tanya me mandou uma mensagem de texto para dizer que os Houghton-Miller haviam voltado três dias antes, por causa de alguma coisa a ver com o trabalho de Francis.
Richard ligou avisando que eu tinha sido escalada para o último turno de segunda a sexta. E, por favor, não se atrase, Louisa. Eu gostaria de lembrar mais uma vez que você já recebeu seu último aviso.
Fiz a única coisa em que consegui pensar: fui para Stortfold com música alta tocando no carro para não precisar ficar sozinha com meus pensamentos. Eu me sentia grata por ter meus pais. Sentia que minha casa exercia uma atração quase umbilical sobre mim, oferecendo o conforto de uma família tradicional e o almoço de domingo.

* * *

— Almoço? — disse meu pai, com os braços cruzados na barriga, cerrando a mandíbula, indignado. — Ah, não. A gente não faz mais almoço aos domingos. Almoço é um símbolo de opressão patriarcal.
Lá do canto, vovô balançou pesarosamente a cabeça.
— Não, não podemos almoçar. Agora temos sanduíches aos domingos. Ou sopa. Parece que sopa está de acordo com o feminismo.
Treena, estudando na mesa de jantar, revirou os olhos.
— Mamãe está tendo aula de poesia feminina nas manhãs de domingo no centro educativo de adultos. Ela não virou Andrea Dworkin.
— Viu, Lou? Agora esperam que eu saiba tudo sobre feminismo, sendo que esse tal de Andrew Dorkin ainda roubou meu almoço de domingo.
— Pare de fazer drama, papai.
— Que drama? Os domingos são da família. A gente devia ter o almoço de família de domingo.
— Minha mãe dedicou a vida inteira à família. Por que você não pode simplesmente deixá-la ter um tempo para si mesma?
Papai apontou seu jornal dobrado para Treena.
— Você fez isso. Sua mãe e eu éramos perfeitamente felizes antes de você começar a dizer que ela não era.
Vovô assentiu.
— Tudo vai de mal a pior por aqui. Não posso assistir à televisão sem que ela resmungue “sexista” para os comerciais de iogurte. Isso é sexista. Aquilo é sexista. Quando eu trouxe para casa o exemplar do The Sun para dar uma lida na seção de esporte, ela atirou o jornal no fogo por causa da Página Três. Nunca sei como ela vai agir no outro dia.
— É só uma aula de duas horas — disse Treena, com suavidade, sem desviar os olhos dos livros. — No domingo.
— Não estou de brincadeira, papai — falei. — E aquelas coisas na ponta dos seus braços?
— O quê? — Ele olhou para baixo. — O quê?
— Suas mãos — falei. — Elas não são de plástico. — Ele franziu o cenho para mim. — Então acho que você podia fazer o almoço. Surpreender mamãe quando ela voltar da aula de poesia.
Papai arregalou os olhos.
— Fazer o almoço de domingo? Eu? Faz quase trinta anos que estamos casados, Louisa. Não sou eu que faço o maldito almoço. Ganho o dinheiro e sua mãe prepara o almoço. Esse é o trato! Foi para isso que me candidatei! Onde vamos parar se eu estiver aqui de avental e descascando batata num domingo? Isso é justo?
— Isso se chama vida moderna, pai.
— Vida moderna. Você não ajuda em nada — disse ele, pigarreando. — Aposto que o Sr. Traynor tem quem prepare o almoço de domingo dele. Aquela garota com quem ele está não deve ser feminista.
— Ah. Então você precisa de um castelo, pai. Castelo é sempre um trunfo para acabar com o feminismo.
Treena e eu começamos a rir.
— Sabem de uma coisa? Tem um motivo para vocês duas não arranjarem namorados.
— Ih. Cartão vermelho para você!
Nós duas erguemos a mão direita. Ele jogou o jornal para o alto e foi batendo os pés até o jardim.
Treena sorriu para mim.
— Eu ia sugerir que a gente preparasse o almoço, mas... agora?
— Não sei. Eu não ia querer perpetuar a opressão patriarcal. Pub?
— Excelente. Vou mandar uma mensagem para a mamãe.
Aos cinquenta e seis anos, minha mãe começou a sair da concha, a princípio hesitante como um caranguejo, mas agora, pelo visto, com um entusiasmo cada vez maior. Ela passou anos sem sair desacompanhada, satisfeita com o pequeno domínio que era nossa casa de três quartos. Mas ter passado algumas semanas em Londres depois que sofri o acidente a obrigara a sair da rotina e despertara uma curiosidade adormecida havia muito tempo sobre a vida além de Stortfold. Ela começara a dar uma olhada nos textos feministas que Treena recebera no grupo feminista na faculdade, e esses dois acontecimentos alquímicos fizeram minha mãe acordar. Ela devorou O Segundo Sexo Medo de Voar, seguido de A Mulher Eunuco, e, após ler The Women’s Room, ficara tão chocada com as semelhanças que encontrou com sua própria vida que passou três dias se recusando a cozinhar, até descobrir que vovô estava guardando donuts velhos.
— Fico pensando sobre o que seu amado Will disse — comentou mamãe, quando estávamos sentadas à mesa no jardim do pub, observando Thom bater a cabeça na das outras crianças no castelo inflável murcho. — A vida é uma só, não foi isso que ele falou? — Ela estava usando a camisa de manga curta azul de sempre, mas prendera o cabelo para trás de um jeito que eu nunca vira, e parecia muito mais jovem. — Então só quero aproveitar. Aprender um pouco. Tirar as luvas de borracha de vez em quando.
— Papai está muito puto — falei.
— Olhe o palavreado.
— É um sanduíche — disse minha irmã. — Ele não está fazendo uma caminhada de quarenta dias pelo deserto de Gobi em busca de comida.
— E é um curso de dez semanas. Ele vai sobreviver — disse minha mãe com firmeza, depois recostou-se na cadeira e nos observou. — Isso não é legal? Acho que nós três não saíamos juntas desde que... Bem, desde que vocês eram adolescentes e íamos fazer compras na cidade aos sábados.
— E Treena reclamava de que todas as lojas eram chatas.
— Sim, mas isso porque Lou gostava de brechós de caridade que tinham cheiro de cê-cê.
— É bom ver você usando algumas das suas roupas preferidas outra vez.
Mamãe balançou a cabeça com admiração para mim. Eu tinha colocado uma camiseta amarela na esperança de que isso me deixasse com uma aparência mais alegre do que eu estava.
Perguntaram sobre Lily, e falei que ela tinha voltado para a casa da mãe, o que foi um pouco chocante. As duas se entreolharam, como se fosse exatamente isso que esperassem que eu dissesse. Não contei sobre a Sra. Traynor.
— Aquilo tudo com Lily foi uma situação muito estranha. Não posso pensar coisa boa daquela mãe que simplesmente entregou a filha para você.
— Mamãe está falando isso no bom sentido, por sinal — disse Treena.
— Mas esse seu trabalho, Lou, querida. Não gosto de imaginar você saltitando quase nua atrás de um bar. Parece aquele lugar... Qual é o nome?
— O Hooters — respondeu Treena.
— Não é igual ao Hooters. É um aeroporto. Pode ficar tranquila.
— Ninguém mexe com ela — confirmou Treena.
— Mas você usa uma roupa sexista para servir bebidas. Se é o que quer, podia fazer isso... sei lá, na Disney de Paris. Se fosse a Minnie ou o Ursinho Pooh, nem precisaria mostrar as pernas.
— Daqui a pouco você faz trinta anos — disse minha irmã. — Minnie, Ursinho Pooh ou amante do rei. A escolha é sua.
— Bem — falei, quando a garçonete trouxe nosso frango com fritas — andei pensando e, sim, você tem razão. Vou seguir em frente. Focar na minha carreira.
— Pode repetir isso? — pediu minha irmã, passando algumas batatas fritas do seu prato para o de Thom.
O jardim do pub ficara mais barulhento.
— Focar na minha carreira — falei mais alto.
— Não. A parte em que você disse que eu tinha razão. Acho que você não fala isso desde 1997. Thom, não volte agora para o castelo inflável, querido. Você vai passar mal.
Ficamos sentadas ali quase a tarde toda, ignorando as mensagens de texto cada vez mais irritadas do meu pai, que exigia saber o que estávamos fazendo. Eu nunca tinha me sentado com minha mãe e minha irmã, feito gente normal, adulta, e conversado sobre assuntos que não envolviam ter que arrumar alguma coisa ou comentar como alguém era irritante. Cada uma de nós se viu surpreendentemente interessada na vida e nas opiniões das outras, como se de repente tivéssemos nos dado conta de que poderíamos ter outro papel além do a inteligente, a caótica a que faz todo o trabalho doméstico.
Era uma sensação estranha conseguir enxergar meus familiares como seres humanos.
— Mãe — chamei, pouco depois de Thom ter corrido para brincar quando terminou de comer o frango, e cerca de cinco minutos antes de ele vomitar no castelo inflável e o deixar interditado pelo resto da tarde — alguma vez você se incomodou por não ter uma carreira?
— Não. Eu adorava ser mãe. Adorava mesmo. Mas é estranho... Tudo o que aconteceu nesses últimos dois anos faz a gente pensar. — Esperei ela continuar. — Ando lendo sobre todas essas mulheres, essa gente corajosa que influenciou tanto na forma como as pessoas pensam e agem. E olho para o que fiz e me pergunto, bem, se eu faria um tiquinho de falta para alguém.
Ela falou com tanta serenidade que não consegui perceber se estava realmente muito mais perturbada com isso do que podia demonstrar.
— Sentiríamos mais do que um tiquinho, mãe — falei.
— Mas não causei grande impacto, não é? Não sei. Sempre estive satisfeita. Mas é como se eu tivesse passado trinta anos fazendo determinada coisa e agora tudo que leio, a televisão, os jornais, é como se todo mundo estivesse me dizendo que nada valeu a pena.
Minha irmã e eu nos entreolhamos.
— Para nós valeu, mãe.
— Suas fofas.
— Estou falando sério. Você... — de repente pensei em Tanya Houghton-Miller — fez a gente se sentir segura. E amada. Eu gostava de encontrar você sempre em casa quando chegávamos.
Mamãe pôs a mão em cima da minha.
— Estou bem. Tenho muito orgulho de vocês duas, seguindo o próprio caminho pelo mundo. De verdade. Mas preciso resolver algumas coisas sozinha. E é uma viagem interessante, de verdade. Estou adorando ler. A Sra. Deans da biblioteca está separando tudo que ela acha que poderia me interessar. Meu próximo passo são as feministas da New Wave americana. As teorias dessas mulheres são muito interessantes. — Ela dobrou o guardanapo de papel com capricho. — Mas gostaria que todas parassem de discutir umas com as outras. Tenho um pouco de vontade de obrigá-las a fazerem as pazes.
— E... você realmente deixou de raspar as pernas?
Eu tinha ido longe demais. Minha mãe fechou a cara e me olhou com frieza.
— Às vezes, a gente demora a acordar para um verdadeiro sinal de opressão. Já disse ao seu pai, e vou dizer a vocês, quando ele for ao salão pagar para uma gorducha de vinte e um anos depilar as pernas dele com cera quente, volto a fazer o mesmo.

* * *

O sol declinava sobre Stortfold, feito manteiga derretida. Fiquei até muito mais tarde do que tinha pretendido, me despedi da minha família, entrei no carro e voltei para casa. Eu sentia que tinha um equilíbrio, uma base.
Depois da turbulência emocional da semana anterior, era bom estar cercada por um pouco de normalidade. E minha irmã, que nunca demonstrava sinais de fraqueza, confessara que achava que ficaria solteira para sempre, repelindo a insistência da minha mãe de que ela era uma “garota deslumbrante”.
— Mas sou mãe solteira — disse ela. — E, pior, não consigo dar em cima de ninguém. Eu não saberia como fazer isso nem se Louisa ficasse atrás da pessoa segurando um cartaz. E os únicos homens que conheci em dois anos se assustaram com Thom ou então estavam querendo só aquilo.
— Ah, não... — discordou minha mãe.
— Aconselhamento contábil de graça.
Pensando de forma objetiva, eu sentira uma empatia repentina. Minha irmã tinha razão: eu recebera, contra as probabilidades, todas as vantagens – uma casa própria, um futuro livre de quaisquer responsabilidades – e a única coisa que me impedia de aproveitar tudo isso era eu mesma. O fato de que ela não estava amargurada com o que cada uma de nós havia recebido era bem impressionante. Dei um abraço nela antes de ir embora, deixando-a um pouco chocada, depois, desconfiada, até que apalpou as próprias costas para conferir se havia algum papel escrito ME CHUTE, mas, por fim, acabou retribuindo meu abraço.
— Fique um tempo lá em casa — falei. — Mesmo. Fique um tempo lá em casa. Vou levar você para dançar numa boate que conheço. Mamãe pode cuidar do Thom.
Minha irmã riu e fechou a porta do carro quando liguei o motor.
— Está bem. Você dançando? Como se isso fosse possível.
Ela ainda ria quando fui embora.

* * *

Seis dias depois, ao chegar em casa após o turno da noite, encontrei uma boate própria. Quando subi a escada do prédio, em vez do silêncio de sempre, ouvi risadas ao longe e uma batida irregular de música. Hesitei por um instante antes de entrar, considerando que, no meu estado de exaustão, eu poderia estar equivocada. Então abri a porta.
Primeiro senti o cheiro de maconha, tão forte que, por reflexo, quase prendi a respiração. Fui devagar até a sala, abri a porta e fiquei ali parada, a princípio sem conseguir acreditar no que estava vendo. No cômodo parcamente iluminado, Lily estava deitada no meu sofá, com uma saia curta amarrotada que quase não tapava seu bumbum, e levava à boca um baseado mal enrolado. Dois rapazes estavam jogados no chão, encostados no sofá, feito ilhas em meio a um mar de detritos alcoólicos, sacos vazios de salgadinhos e embalagens de isopor com comida para viagem. Havia duas meninas da idade de Lily também sentadas no chão. Uma delas estava com o cabelo preso num rabo de cavalo apertado e ergueu as sobrancelhas ao me ver, como se perguntasse o que eu estava fazendo ali. A música retumbava do aparelho de som. A quantidade de latas de cerveja e cinzeiros transbordando indicava que tinha sido uma longa noite.
— Ah — disse Lily, de um jeito exagerado. — Oooi.
— O que você está fazendo?
— É. A gente saiu e meio que perdeu o último ônibus, então achei que não teria problema dormir aqui. Você não se importa, não é?
Fiquei tão chocada que mal consegui responder.
— Sim — respondi com firmeza. — Na verdade, eu me importo.
— Ops.
Ela começou a rir. Larguei a bolsa no chão e olhei em volta para o aterro sanitário que antes era minha sala de estar.
— A festa acabou. Vou dar cinco minutos para vocês limparem a bagunça e darem o fora daqui.
— Ai, meu Deus. Eu sabia. Você vai ser chata com isso, não vai? Ah. Eu sabia.
Ela se jogou de novo no sofá de um jeito melodramático. Sua voz estava arrastada, seus atos atrapalhados por... O quê? Drogas?
Fiquei esperando. Durante um breve e tenso instante, os dois rapazes lançaram um olhar penetrante para mim e reparei que estavam considerando se deviam se levantar ou simplesmente continuar ali sentados.
Uma das meninas passou a língua nos dentes, fazendo barulho.
— Quatro minutos — falei devagar. — Estou contando.
Talvez minha raiva justificada me desse certa autoridade. Talvez eles realmente fossem menos corajosos do que pareciam. Um por um, se levantaram e passaram por mim a caminho da porta. Ao sair, o último dos rapazes ergueu ostensivamente a mão e largou uma lata no chão do hall, derramando cerveja na parede e no tapete. Chutei a porta e peguei a lata.
Eu estava tremendo de raiva quando me aproximei de Lily.
— Do que você acha que está brincando?
— Nossa. Eram só alguns amigos, está bem?
— Este não é o seu apartamento, Lily. A casa não é sua para você trazer quem bem entende... — Tive um flashback súbito: aquela estranha sensação de deslocamento quando voltei para casa uma semana antes. — Ai, meu Deus. Você já fez isso, não é? Semana passada. Você trouxe gente para dormir aqui e foi embora antes que eu chegasse.
Lily se levantou sem firmeza. Puxou a saia para baixo e passou a mão pelo cabelo, tentando desembaraçá-lo. Seu delineador estava borrado, e no seu pescoço havia o que poderia ser um hematoma ou um chupão.
— Nossa. Por que você tem que fazer um escândalo com tudo? Eram só pessoas, ok?
— Na minha casa.
— Bom, isso mal é uma casa, não é mesmo? Não tem móveis nem nada pessoal. Nenhum quadro na parede. Parece mais... uma garagem. Uma garagem sem carro. Na verdade, já vi postos de gasolina mais acolhedores.
— Não é da sua conta o que faço com a minha casa.
Ela soltou um pequeno arroto e abanou o ar diante da boca.
— Eca. Bafo de kebab. — Foi para a cozinha, onde abriu três armários até encontrar um copo. Encheu-o e bebeu a água em um gole só. — Você nem sequer tem uma televisão decente. Eu não sabia que as pessoas ainda tinham aparelhos de dezoito polegadas.
Comecei a catar as latas, enfiando-as num saco plástico.
— Aliás, quem eram eles?
— Sei lá. Só algumas pessoas.
— Você não sabe quem eram?
— Amigos. — Ela parecia irritada. — Gente que conheci na balada.
— Conheceu numa boate?
— É. Na balada. Blá-blá-blá. Parece que você está sendo grossa de propósito. Isso mesmo. São só alguns amigos que conheci numa boate. É o que pessoas normais fazem, sabe. Sair com amigos.
Ela jogou o copo numa bacia – ouvi-o quebrar – e saiu ressentida da cozinha. Olhei para ela, e de repente fiquei preocupada. Corri para o meu quarto e abri a primeira gaveta da cômoda. Vasculhei as meias, procurando a pequena caixa de joias que continha o cordão e o anel de casamento da minha avó. Parei e respirei fundo, dizendo a mim mesma que não conseguia encontrá-los porque estava em pânico. Deviam estar ali. Claro que sim.
Comecei a tirar os objetos da gaveta, analisando-os com cuidado e jogando-os na cama.
— Eles entraram aqui? — gritei.
Lily apareceu à porta.
— Eles o quê?
— Seus amigos. Eles entraram no meu quarto? Onde estão as minhas joias?
Lily pareceu um pouco mais desperta.
— Joias?
— Ah, não. Ah, não. — Abri todas as gavetas e comecei a jogar o conteúdo no chão. — Onde estão? E cadê meu dinheiro de emergência? — Eu me virei para ela. — Quem eram eles? Como se chamavam?
Ela ficou em silêncio.
— Lily!
— N-não sei.
— Como assim, não sabe? Você disse que eram seus amigos.
— Só... amigos de balada. Mitch. E... Lise e... Não me lembro.
Saí correndo do quarto, passei apressada pelo corredor e desci voando os quatro andares. Mas, quando alcancei o portão, o corredor e a rua estavam vazios, exceto pelo último ônibus para Waterloo que saía devagar, iluminado, pelo meio da rua escura.
Fiquei na porta, ofegando. Então fechei os olhos, contendo as lágrimas, deixando minhas mãos caírem nos joelhos quando me dei conta do que havia perdido: o anel da minha avó, o belo cordão de ouro com o pequeno pingente que ela usava quando eu era criança. Eu já sabia que nunca mais veria essas coisas. Poucos objetos eram passados de geração em geração na minha família, e agora até isso tinha desaparecido.
Subi a escada devagar.
Lily estava parada no hall quando abri a porta.
— Desculpe — disse ela baixinho. — Eu não sabia que eles iam roubar suas coisas.
— Vá embora, Lily — falei.
— Eles pareciam muito gente boa. Eu... eu devia ter imaginado...
— Faz treze horas que estou trabalhando. Preciso descobrir o que perdi e depois vou dormir. Sua mãe já voltou de férias. Por favor, vá para casa.
— Mas eu...
— Não. Chega. — Eu me empertiguei lentamente, levando um instante para recuperar o fôlego. — Sabe qual é a verdadeira diferença entre você e seu pai? Mesmo no auge da infelicidade, ele não teria tratado ninguém desse jeito.
Ela parecia ter levado um tapa de mim. Não me importei.
— Não posso mais fazer isso, Lily. — Tirei uma nota de vinte libras da bolsa e lhe entreguei. — Tome. Para o seu táxi.
Ela olhou para o dinheiro, depois para mim e engoliu em seco. Passou a mão pelo cabelo e foi devagar até a sala.
Tirei o casaco e fiquei observando meu reflexo no pequeno espelho acima da cômoda. Eu estava pálida, exausta, derrotada.
— E deixe as chaves — pedi.
Houve um breve silêncio. Depois ouvi as chaves sendo jogadas na bancada da cozinha, e então, com um clique, a porta da frente se fechou e ela foi embora.

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