Capítulo 16

Estraguei tudo, Will.
Ergui os joelhos até o peito. Tentei imaginar o que ele teria dito se pudesse me ver naquele momento, mas eu não conseguia mais ouvir sua voz na minha cabeça e esse pequeno fato me deixou ainda mais triste.
O que faço agora?
Entendi que não poderia ficar no apartamento comprado com o dinheiro que Will deixara. Parecia estar impregnado com os meus fracassos, como um prêmio que eu não tinha conseguido conquistar. Como alguém poderia construir um lar num local que chegara até você por todas as razões erradas? Eu poderia vender o apartamento e investir o dinheiro em alguma coisa. Mas para onde eu iria?
Pensei no meu trabalho, no embrulho que eu sentia no estômago ao ouvir flautas de pan irlandesas, mesmo se fosse na televisão, em como Richard me fazia sentir inútil, sem valor.
Pensei em Lily, notando o peso estranho do silêncio quando tinha certeza de que não havia mais ninguém, além de mim mesma em casa. Eu me perguntei onde ela estava, mas logo afastei o pensamento.

* * *

A chuva foi diminuindo e parando quase como se pedisse desculpas, como se o clima admitisse que realmente não sabia o que tinha dado nele.
Troquei de roupa, passei aspirador no apartamento e levei para fora os sacos com o lixo da festa. Fui ao mercado de flores, sobretudo para ter alguma coisa para fazer. É sempre melhor sair de casa, dizia Marc. Talvez eu me sentisse melhor por estar em plena Columbia Road, com aquelas vistosas flores expostas e a multidão de clientes andando devagar. Dei um sorriso forçado e assustei Samir ao comprar uma maçã (“Está usando drogas, cara?”). Depois segui para o mar de flores.
Comprei um café numa pequena cafeteria e observei o mercado pela janela embaçada, sem me importar em ser a única pessoa sozinha ali. Percorri a extensão do mercado encharcado pela chuva, senti os perfumes úmidos e inebriantes dos lírios, admirei os segredos imbricados das peônias e rosas, ainda com respingos de chuva, e comprei um ramo de dálias. O tempo todo me senti como se estivesse atuando, participando de um comercial: Garota solteira vivendo o sonho londrino.
Voltei para casa com as dálias aninhadas no braço, fazendo o possível para não mancar, tentando conter as palavras Ah, quem você acha que está enganando?, que ficaram durante todo o caminho na minha cabeça.

* * *

A noite se arrastou, como acontece com as noites solitárias. Terminei de limpar o apartamento, depois de catar guimbas de cigarro na privada, vi um pouco de televisão e lavei meu uniforme. Preparei um banho de banheira cheio de espuma, do qual saí cinco minutos depois, com medo de ficar sozinha com meus pensamentos. Eu não podia ligar para minha mãe nem para minha irmã, porque sabia que para elas eu não conseguiria fingir que estava feliz.
Por fim, peguei na mesa de cabeceira a carta que Will providenciara para que eu recebesse em Paris, quando eu ainda estava toda esperançosa. Abri com delicadeza seus vincos já gastos. Naquele primeiro ano, teve uma época em que eu a lia toda noite, tentando trazê-lo à vida ao meu lado.
Atualmente, eu me continha: dizia a mim mesma que não precisava ver a carta, com medo de que perdesse seu poder de talismã, que as palavras ficassem sem significado. Mas eu estava precisando delas.
O texto fora digitado no computador, mas eu o valorizava tanto quanto se ele tivesse sido capaz de escrever à mão; ainda havia um resíduo de sua energia naquelas palavras impressas a laser.

Durante algum tempo, você vai se sentir pouco à vontade em seu novo mundo. É sempre estranho ser arrancado de sua zona de conforto (...)
Você tem ambição, Clark. É destemida. Mas escondeu essas qualidades, como quase todo mundo.
Apenas viva bem. Apenas viva.

Li as palavras de um homem que tinha acreditado em mim. Levei a cabeça aos joelhos e, por fim, caí no choro.

* * *

O telefone tocou muito alto e muito perto da minha cabeça, fazendo com que eu me empertigasse de repente. Fui atender atabalhoadamente, vendo que horas eram. Duas da manhã. Por reflexo, senti aquele medo familiar.
— Lily?
— O quê? Lou?
Ouvi o sotaque forte de Nathan do outro lado da linha.
— São duas da manhã, Nathan.
— Ih, cara. Sempre confundo o fuso horário. Desculpe. Quer que eu desligue?
Eu me levantei, esfregando o rosto.
— Não. Não... É bom falar com você. — Acendi a luz da cabeceira. — Como você está?
— Bem! Voltei para Nova York.
— Ótimo.
— É. Foi bom ver os velhos e tudo, mas depois de algumas semanas eu já estava louco para voltar. Essa cidade é épica.
Forcei um sorriso, caso ele conseguisse ouvir.
— Isso é ótimo, Nathan. Estou feliz por você.
— Continua feliz naquele pub?
— Está tudo bem.
— Você não... quer fazer outra coisa?
— Bem, sabe quando está tudo ruim, e você pensa coisas como “Ah, podia estar pior. Eu podia estar limpando cocô de cachorro das lixeiras”? Bem, neste momento eu preferia ser quem limpa o cocô de cachorro.
— Tenho uma proposta para você.
— Eu recebo várias propostas dos clientes, Nathan. E a resposta é sempre não.
— Rá. Bem. Tem uma vaga de emprego aqui, para trabalhar com a família com quem estou morando. E a primeira pessoa em quem pensei foi você.
Ele explicou que a mulher do Sr. Gopnik não era uma Esposa de Wall Street. Ela não se importava com compras e almoços. Viera da Polônia e era propensa a uma leve depressão. Era solitária, e a empregada – uma guatemalteca – não trocava nem duas palavras com ela.
O Sr. Gopnik queria alguém de confiança para fazer companhia à esposa e ajudar com as crianças, dar uma mãozinha quando eles fossem viajar.
— Ele quer tipo uma secretária da família. Alguém alegre e confiável. E uma pessoa que não fique falando da vida particular deles.
— Ele sabe...
— Na primeira vez que nos encontramos, contei sobre Will, mas ele já tinha se informado sobre os meus antecedentes. Não ficou desapontado. Longe disso. Disse que estava muito impressionado porque fizemos a vontade de Will e não vendemos as informações que tínhamos. — Nathan fez uma pausa. — Já percebi uma coisa. Gente desse nível, Lou, valoriza confiança e discrição acima de tudo. Quer dizer, é óbvio que a pessoa não pode ser idiota e tem que fazer bem o seu trabalho, sim, porque no fundo é isso que importa.
Minha cabeça estava girando, feito aquele brinquedo de xícara maluca nos parques de diversões. Segurei o fone na minha frente e o coloquei de novo no ouvido.
— Isso é... Será que ainda estou dormindo?
— Não é fácil. O expediente é longo e tem muito trabalho. Mas vou lhe dizer uma coisa: eu estou adorando.
Passei a mão no cabelo. Pensei no bar, com os executivos esbaforidos e o olhar penetrante de Richard. Pensei no apartamento, com aquelas paredes me cercando toda noite.
— Não sei. Isso é... Quer dizer, tudo parece...
— É um green card, Lou. — Nathan baixou o tom de voz. — É casa e comida. É Nova York. Escute. Esse é um homem que faz coisas acontecerem. Basta se esforçar que ele vai cuidar de você. É inteligente e justo. Venha até aqui, mostre a ele o seu valor, e você pode conseguir oportunidades inacreditáveis. Falando sério. Não pense que esse é um trabalho de babá. Considere uma porta de entrada.
— Não sei...
— Tem algum cara aí que você não quer deixar para trás?
Hesitei.
— Não. Mas tanta coisa aconteceu... Não ando...
Parecia haver muitos acontecimentos terríveis para explicar às duas da manhã.
— Sei que você ficou arrasada com o que aconteceu. Todos nós ficamos. Mas precisa seguir em frente.
— Não diga que era isso que ele queria.
— Tudo bem.
Ficamos em silêncio. Tentei organizar meus pensamentos.
— Eu teria que ir a Nova York fazer uma entrevista?
— Estão passando o verão nos Hamptons. Ele está procurando alguém para começar em setembro. Ou seja, daqui a seis semanas. Se disser que tem interesse, ele pode fazer a entrevista por Skype, arrumar a papelada para você vir, e depois partimos daí. Haverá outras candidatas. É um cargo muito bom. Mas o Sr. G. confia em mim, Lou. Se digo que vale a pena apostar em alguém, essa pessoa tem grande chance. Então posso falar que você está a fim? Sim? Isso é um sim, não é?
Respondi quase antes de conseguir raciocinar.
— Hum... sim. Sim.
— Ótimo. Mande um e-mail se tiver alguma pergunta. Vou enviar fotos para você.
— Nathan?
— Tenho que ir, Lou. O velho acabou de interfonar.
— Obrigada. Obrigada por pensar em mim.
Houve uma breve pausa antes da resposta:
— Não há mais ninguém com quem eu prefira trabalhar, cara.

* * *

Não consegui dormir depois que ele desligou, me perguntando se eu tinha imaginado toda a conversa, minha cabeça zumbindo com a enormidade do que eu poderia ter pela frente. Às quatro da manhã, me sentei e escrevi um e-mail para Nathan com algumas perguntas. Recebi as respostas imediatamente.

A família é ok. Os ricos nunca são normais (!), mas esses são gente boa. Sem drama.
Você teria seu próprio quarto e banheiro. Dividiríamos uma cozinha com a governanta. Ela é legal. Um pouco mais velha. Muito reservada.
Horário regular. Oito horas (no máximo dez) por dia. Ganhamos folga para compensar a hora extra. Talvez você queira aprender um pouco de polonês!

Por fim, peguei no sono enquanto amanhecia, a mente cheia imaginando apartamentos dúplex em Manhattan e ruas movimentadas. Quando acordei, havia um e-mail à minha espera.

Prezada Sra. Clark,
Nathan me informou de seu interesse em vir trabalhar em nossa casa. Teria disponibilidade para uma entrevista via Skype na terça-feira às 17h GMT (meio-dia no oeste)?
Atenciosamente,
Leonard M. Gopnik

Passei vinte minutos encarando o e-mail, que provava que eu não havia sonhado com aquilo tudo. Então me levantei, tomei banho, fiz uma caneca de café forte e digitei minha resposta. Disse a mim mesma que não custava nada fazer a entrevista. Eu não conseguiria o emprego caso houvesse várias candidatas de Nova York altamente qualificadas. Mas, na pior das hipóteses, era um bom treino. E eu ficaria com a sensação de estar enfim fazendo alguma coisa, seguindo em frente.
Antes de sair para o trabalho, peguei com cuidado a carta de Will na mesa de cabeceira. Encostei os lábios nela, depois a dobrei direitinho e a guardei de volta na gaveta.
Obrigada, pensei.

* * *

Naquela semana a sessão do Grupo Seguindo em Frente estava um pouco mais vazia. Natasha estava de férias, Jake também, o que, sobretudo, me deixou aliviada e um pouco irritada de uma forma que eu não conseguia conciliar. O tópico da noite foi “Se eu pudesse voltar no tempo”, o que fez William e Sunil passarem uma hora e meia cantarolando ou assobiando a música “If I could turn back time” de Cher de tempos em tempos sem se dar conta.
Escutei Fred dizer que queria ter passado menos tempo no trabalho, depois Sunil confessar que queria ter sido mais próximo do irmão (“A gente simplesmente acha que eles sempre vão estar aqui, sabem? Até que um dia não estão mais”), e me perguntei se realmente tinha valido a pena vir.
Algumas vezes eu achava que o grupo poderia estar mesmo ajudando. Mas, quase sempre, infelizmente, eu estava sentada no meio de pessoas que não tinham nada a ver comigo, falando num tom monótono durante as poucas horas que desfrutava de companhia. Eu me sentia rabugenta e cansada, meu quadril doía naquela cadeira de plástico dura, e achava que teria conseguido o mesmo esclarecimento sobre meu estado mental se estivesse assistindo a uma novelaAlém do mais, os biscoitos eram uma porcaria.
Leanne, que era mãe solteira, estava falando sobre como ela e a irmã mais velha haviam brigado por causa de uma calça de moletom dois dias antes de a irmã morrer.
— Acusei-a de ter roubado a calça de mim, porque ela estava sempre pegando minhas coisas. Minha irmã disse que não tinha feito isso, mas ela sempre negava.
Marc aguardou. Eu me perguntei se tinha algum analgésico na minha bolsa.
— E aí, sabem, ela foi atropelada por um ônibus e depois só a vi no necrotério. E enquanto eu procurava uma roupa escura para usar no enterro, sabem o que estava no meu armário?
— A calça de moletom — respondeu Fred.
— É difícil quando as coisas não estão resolvidas — disse Marc. — Às vezes, para nossa sanidade, precisamos ter uma visão mais abrangente.
— É possível amar uma pessoa e também chamá-la de idiota por pegar sua calça de moletom — comentou William.
Eu não quis falar naquele dia. Só estava ali porque não conseguia lidar com o silêncio do meu pequeno apartamento. De repente desconfiei de que poderia facilmente me tornar uma daquelas pessoas tão ansiosas por contato humano que falam com os outros passageiros nos trens, apesar de ser inconveniente, ou passam dez minutos escolhendo coisas numa loja para poderem conversar com o vendedor. Eu estava tão entretida me perguntando se era sintomático o fato de eu ter acabado de discutir minha bandagem com Samir no mercado que não prestei atenção em Daphne dizendo que gostaria de ter chegado do trabalho uma hora mais cedo naquele dia específico, e só depois percebi que ela tinha se debulhado, silenciosamente, em lágrimas.
— Daphne?
— Desculpe, gente. Mas passei muito tempo pensando no “se”. Se eu não tivesse parado para conversar com a moça na barraca de flores. Se eu tivesse deixado para lá aquele registro de compras idiota e voltado mais cedo do trabalho. Se ao menos eu tivesse voltado a tempo... talvez eu tivesse conseguido convencê-lo a não fazer aquilo. Talvez eu tivesse feito a única coisa que o persuadisse que a vida valia a pena.
Marc se inclinou para a frente com a caixa de lenços de papel e a coloquei delicadamente no colo de Daphne.
— Alan já tinha tentado colocar fim à própria vida, Daphne?
Ela confirmou com a cabeça e assoou o nariz.
— Ah, sim. Várias vezes. Ele costumava ter o que chamávamos de “fossas” desde muito jovem. E eu não gostava de ficar longe dele quando isso acontecia porque era como... era como se ele não conseguisse nos ouvir. Não importava o que disséssemos. Então muitas vezes eu ligava para o trabalho e dizia que estava doente para não ir e ficar com ele, tentando animá-lo, sabe? Preparar os sanduíches preferidos dele. Ficar sentada com ele no sofá. Qualquer coisa, sério, só para lembrá-lo que eu estava lá. Sempre acho que foi por isso que nunca fui promovida quando todas as outras garotas foram. Eu tinha que ficar pedindo licença, sabem.
— Depressão pode ser muito difícil. E não só para o deprimido.
— Ele estava tomando remédios?
— Ah, não. Mas, por outro lado, isso não era... sabem... químico.
— Tem certeza? Quer dizer, não tínhamos explicações suficientes sobre a depressão em...
Daphne ergueu a cabeça.
— Ele era homossexual. — Ela disse a última palavra definindo bem as cinco sílabas e olhou diretamente para nós, um pouco corada, como se nos desafiasse a responder algo. — Nunca contei isso para ninguém. E ele sempre foi um homem muito bom e não ia querer me magoar, então não teria... sabem... saído para fazer nada dessas coisas. Acharia que eu ia ficar mal com isso.
— Por que acha que ele era gay, Daphne?
— Encontrei determinadas coisas quando fui procurar uma gravata dele. Aquelas revistas com homens fazendo coisas com outros homens. Na gaveta dele. Acho que ninguém teria essas revistas se não fosse gay.
Fred ficou um pouco tenso.
— Com certeza não — disse ele.
— Nunca comentei a existência delas — continuou Daphne. — Simplesmente coloquei-as de volta onde as encontrei. Mas tudo começou a fazer sentido. Ele nunca foi muito fã daquelas coisas. Mas eu achava que tinha sorte, sabem, porque eu também não era. São as freiras. Elas fazem a gente se sentir mal por quase tudo. Então, quando me casei com um homem bom que não pulava em cima de mim a cada cinco minutos, me considerei a mulher mais sortuda do mundo. Quer dizer, eu gostaria de ter tido filhos. Teria sido bom. Mas... — ela suspirou — a gente não conversava muito sobre isso. Naquela época, não se falava sobre o assunto. Mas eu gostaria de ter tido filhos. Pensando nisso agora, concluo que foi um desperdício.
— Acha que poderia ter feito diferença se vocês tivessem conversado abertamente?
— Bem, os tempos são outros agora, não é mesmo? Não tem problema ser homossexual. O moço da lavanderia é e fala sobre o namorado dele para qualquer um que entra na loja. Eu teria ficado triste por perder meu marido, mas se ele era infeliz por estar preso, eu o teria deixado ir. Teria, sim. Nunca quis prender ninguém. Só queria que ele fosse um pouco mais feliz.
Daphne fez uma careta, então passei o braço em volta dela. Seu cabelo cheirava a laquê e a ensopado.
— Está tudo bem — disse Fred, se levantando para dar tapinhas um pouco desajeitados em seu ombro. — Tenho certeza de que seu marido sabia que você só queria o bem dele.
— Você acha, Fred? — Sua voz estava trêmula.
Ele assentiu com firmeza.
— Ah, sim. E você tem razão. As coisas eram diferentes naquela época. A culpa não é sua.
— Você foi muito corajosa por compartilhar essa história, Daphne. Obrigado. — Marc sorriu de um jeito solidário. — E a admiro muito por se levantar e seguir em frente. Às vezes, o simples ato de enfrentar cada dia exige quase uma força sobre-humana.
Olhei para baixo e notei que Daphne segurava minha mão. Senti seus dedos rechonchudos se entrelaçarem aos meus, então apertei-os de volta. E antes que eu pudesse pensar, comecei a falar:
— Fiz uma coisa que eu queria poder mudar. — Meia dúzia de rostos se viraram para mim. — Conheci a filha de Will. Ela surgiu do nada na minha vida e achei que assim eu conseguiria me sentir melhor em relação à morte dele, mas, em vez disso, só sinto que...
Eles estavam me encarando. Fred fazia uma careta.
— O que foi?
— Quem é Will? — perguntou ele.
— Você disse que o nome dele era Bill.
Afundei um pouco na cadeira.
— Will é Bill. Eu achei que seria estranho citar o nome dele.
Todo mundo na roda suspirou. Daphne deu tapinhas na minha mão.
— Não se preocupe, querida. É só um nome. No nosso último grupo teve uma mulher que inventou tudo. Disse que tinha um filho que morreu de leucemia. No fim das contas, ela não tinha nem um peixinho dourado.
— Está tudo bem, Louisa. Você pode contar para a gente.
Marc lançou seu Olhar Especial de Empatia para mim. Respondi com um pequeno sorriso, só para mostrar que eu entendera. E que Will não era um peixinho dourado.
Mas que droga, pensei. Minha vida não é mais confusa que a deles.
Então contei sobre a aparição de Lily e como eu achara que podia dar um jeito nela e promover um encontro que deixaria todo mundo feliz, mas agora estava me sentindo idiota por ter sido tão ingênua.
— Sinto que decepcionei Will e todo mundo outra vez. Ela sumiu e fico me perguntando o que eu poderia ter feito diferente, mas a verdade é que não consegui aguentar. Não fui forte o suficiente para dar conta de toda a situação e melhorar tudo.
— Mas e as suas coisas?! Suas coisas preciosas foram roubadas! — A outra mão rechonchuda e úmida de Daphne apertou a minha. — Você tinha o direito de ficar furiosa!
— Não ter pai não é desculpa para agir como uma criança malcriada — opinou Sunil.
— Para início de conversa, acho que você foi muito legal em deixá-la ficar na sua casa. Não sei se eu teria feito o mesmo — disse Daphne.
— O que acha que o pai dela teria feito diferente, Louisa? — Marc se serviu de mais uma xícara de café.
De repente, desejei que tivéssemos uma bebida mais forte.
— Não sei — respondi. — Mas ele se encarregava das coisas. Mesmo sem conseguir mexer os braços e as pernas, a gente tinha a sensação de que ele era capaz. Will teria impedido que ela continuasse fazendo coisas idiotas. Teria dado um jeito na filha, de alguma maneira.
— Tem certeza de que não está idealizando o cara? Começamos a idealizar a pessoa na oitava semana — disse Fred. — Continuo transformando Jilly em santa, não é, Marc? Esqueço que ela costumava deixar as meias penduradas na cortina do chuveiro e que isso me deixava louco.
— O pai dela poderia não ter sido capaz de fazer absolutamente nada para ajudá-la. Você não tem como saber. Eles poderiam ter se odiado.
— Ela parece ser uma jovem complicada — opinou Marc. — E é possível que você tenha lhe dado o máximo de chances. Mas... às vezes, Louisa, seguir em frente significa que temos que nos proteger. E talvez, no fundo, você tenha entendido isso. Se Lily trouxe apenas caos e negatividade para sua vida, você possivelmente fez a única coisa que podia.
— Ah, sim. — As pessoas na roda assentiram. — Seja gentil consigo mesma. Você é humana.
Foram todos muito amorosos, sorrindo para mim de um jeito tranquilizador, querendo que eu me sentisse melhor.
Quase acreditei neles.

* * *

Na terça-feira, pedi para Vera me dar dez minutos (murmurei alguma coisa sobre problemas femininos e ela assentiu, como se concordasse que a vida das mulheres é mesmo muito problemática, e falou baixinho que depois me contaria sobre a fibrose dela). Corri para o banheiro feminino mais próximo – o único lugar onde Richard com certeza não me veria – com o laptop na bolsa. Vesti uma camisa por cima do uniforme, equilibrei o laptop na pia e me conectei no wi-fi do aeroporto, gratuito por trinta minutos, me posicionando cuidadosamente diante da tela. A ligação pelo Skype do Sr. Gopnik foi feita às cinco horas em ponto, justamente quando eu estava tirando a peruca de cachinhos de dançarina irlandesa.
Mesmo que eu não tivesse visto nada além do rosto de pixels de Leonard Gopnik, eu teria percebido que ele era rico. Tinha um cabelo grisalho bem cortado, olhava fixo, com uma autoridade natural, e falava sem desperdiçar uma única palavra. Bem, havia ele e um quadro de moldura dourada de um velho artista na parede atrás.
Leonard não perguntou nada sobre meu histórico escolar, minhas qualificações, meu currículo nem por que eu estava fazendo uma entrevista ao lado de um secador de mãos. Deu uma olhada em alguns papéis e depois perguntou sobre o meu relacionamento com os Traynor.
— Ótimo! Quer dizer, tenho certeza de que eles darão referências. Encontrei os dois recentemente, por um motivo qualquer. Nós nos damos bem, apesar das... das circunstâncias da...
— Das circunstâncias que levaram ao fim do seu contrato de emprego. — A voz dele era baixa, decisiva. — Sim, Nathan já me explicou bastante sobre essa situação. Foi um envolvimento muito forte.
— Sim, foi — falei após um breve silêncio constrangedor. — Mas me senti privilegiada. Por ter feito parte da vida de Will.
Ele anotou isso.
— O que tem feito desde então?
— Bem, viajei um pouco pela Europa, o que foi... interessante. É bom viajar. E expandir os horizontes, obviamente. — Tentei sorrir. — E agora estou trabalhando no aeroporto, mas realmente não é... — Enquanto eu falava, a porta se abriu atrás de mim e uma mulher entrou, puxando uma mala de rodinhas. Movi o computador, torcendo para o Sr. Gopnik não escutá-la entrando na cabine. — Realmente não é o que eu gostaria de fazer a longo prazo.
Por favor, não faça xixi com barulho, implorei a ela em silêncio.
Ele me fez algumas perguntas sobre minhas atuais responsabilidades e meu salário. Fiquei olhando para a frente, ignorando o ruído da descarga e a mulher saindo da cabine em seguida.
— E o que você quer...
Quando o Sr. Gopnik começou a falar, ela passou por mim e usou o secador de mão, que fez um barulho ensurdecedor ao meu lado. Ele franziu a testa.
— Espere um instante, por favor, Sr. Gopnik. — Tapei com o polegar o que eu esperava que fosse o microfone. — Desculpe — gritei para a mulher. — Não dá para usar isso. Está... quebrado.
Ela se virou para mim, esfregando os dedos com as unhas impecavelmente feitas, depois voltou-se para a máquina.
— Não está, não. Cadê o aviso de que está quebrado, então?
— Queimou. De repente. Coisa horrível, um perigo.
Ela ficou me encarando, depois olhou desconfiada para o secador, retirou as mãos dali, pegou sua mala e saiu. Coloquei a cadeira na porta para impedir que outra pessoa entrasse, movendo de novo o laptop para o Sr. Gopnik poder me ver.
— Desculpe. Estou tendo que fazer isso no meio do trabalho e é um pouco...
Ele estava dando uma olhada na papelada.
— Nathan me contou que você sofreu um acidente há pouco tempo.
Engoli em seco.
— É verdade. Mas estou bem melhor. Totalmente recuperada. Quer dizer, só estou mancando um pouco.
— Isso acontece com as melhores pessoas — disse ele, com um sorriso discreto. Também sorri. Alguém tentou abrir a porta. Eu me mexi para segurá-la com meu peso. — Então... qual foi a pior parte? — perguntou o Sr. Gopnik.
— Como?
— De trabalhar para William Traynor. Parece ter sido um grande desafio.
Hesitei. De repente, o banheiro ficou muito silencioso.
— Deixá-lo morrer — falei. E inesperadamente percebi que estava contendo as lágrimas.
Leonard Gopnik ficou me olhando de uma distância de alguns milhares de quilômetros. Resisti à vontade de enxugar os olhos.
— Minha secretária vai entrar em contato, Srta. Clark. Obrigado pelo seu tempo.
Depois, com um cumprimento de cabeça, seu rosto ficou imóvel, e a tela, branca. Fiquei encarando o computador, contemplando o fato de que eu estragara tudo, mais uma vez.

* * *

Enquanto ia para casa naquela noite, decidi não pensar na entrevista. Em vez disso, repeti mentalmente as palavras de Marc, como um mantra.
Repassei o que Lily tinha feito: os convidados indesejados, o roubo, as drogas, as noitadas sem fim, ter pegado minhas roupas. Enxerguei tudo pelo ponto de vista do meu grupo de terapia. Lily era caos, desordem, uma garota que tirava várias coisas sem dar nada em troca. Ela era jovem e biologicamente relacionada a Will, mas isso não significava que eu tinha que assumir total responsabilidade por ela nem aturar a confusão que causava por aí.
Eu me senti um pouco melhor. De verdade. Lembrei-me de mais uma coisa que Marc dissera: “O percurso para sair do luto nunca era direto.” Haveria dias bons e ruins. Hoje era apenas um dia ruim, um percalço no caminho, a ser ultrapassado e superado.
Entrei no apartamento e larguei a bolsa, subitamente agradecida pelo pequeno prazer de encontrar tudo do mesmo jeito que eu deixara. Eu ia esperar passar um tempo, pensei, e depois mandaria uma mensagem de texto para ela, exigindo que nossos futuros encontros fossem marcados. Focaria minhas energias em arranjar outro emprego. Pensaria em mim mesma, para variar. Tentaria me recuperar. Achei melhor parar por aí, porque fiquei um pouco preocupada por estar começando a parecer Tanya Houghton-Miller.
Olhei para a escada de incêndio. O primeiro passo seria voltar àquele telhado idiota. Eu subiria sozinha, sem ter um ataque de pânico, e passaria meia hora sentada lá em cima, respiraria o ar dali e não permitiria mais que uma parte do meu apartamento exercesse um poder tão grande sobre minha imaginação.
Tirei o uniforme e vesti um short. Em busca de confiança, coloquei também o suéter leve de caxemira de Will, que eu tinha pegado depois que ele morreu, confortada pela maciez da lã na minha pele. Atravessei o corredor e escancarei a janela. Eram só dois pequenos lances de degraus de ferro. E logo eu estaria lá em cima.
— Nada vai acontecer — falei em voz alta e respirei fundo.
Minhas pernas pareciam curiosamente ocas quando subi na escada de incêndio, mas disse com firmeza para mim mesma que era só uma impressão, o eco de uma antiga ansiedade. Eu poderia superar, da mesma forma que poderia superar qualquer coisa. Escutei a voz de Will no meu ouvido.
Vamos, Clark. Um passo de cada vez.
Usando ambas as mãos, agarrei com força o corrimão e comecei a subir. Não olhei para baixo. Não me permiti pensar na altura em que eu estava, nem em como a leve brisa me lembrava de um momento que tinha acabado mal, nem na dor no meu quadril que parecia nunca passar. Pensei em Sam, e a fúria que senti me fez prosseguir. Eu não tinha que ser a vítima, a pessoa a quem as coisas simplesmente aconteciam.
Falei tudo isso a mim mesma e subi o segundo lance de degraus enquanto minhas pernas começavam a tremer. Sem qualquer elegância, pulei a mureta, com medo de que ela cedesse com meu peso, e engatinhei até o outro lado do telhado. Eu me sentia fraca e suada. Continuei de quatro, com os olhos fechados, enquanto digeria o fato de estar ali em cima. Eu tinha conseguido. Estava no controle do meu destino. Ficaria ali o tempo que levasse até me sentir normal.
Eu me sentei nos calcanhares, procurando a solidez da parede à minha volta, e me encostei nela, respirando fundo e lentamente. Parecia tudo bem. Nada se mexia. Eu tinha conseguido. Então abri os olhos e levei um susto.
O telhado era uma selva de flores. Os vasos mortos que eu negligenciara durante meses transbordavam com flores vermelhas e roxas, como pequenos chafarizes de cor. Pequenas pétalas azuis se alastravam por duas jardineiras novas, e ainda havia um bordo japonês num vaso ornamental ao lado de um dos bancos, cujas folhas estremeciam delicadamente ao vento.
No canto ensolarado perto da parede ao sul havia dois sacos de plantio ao lado da caixa d’água, com pés de tomates-cereja vermelhos, e, no chão, outro saco, com folhas crespas verdes no centro. Comecei a andar devagarinho na direção deles, sentindo o perfume de jasmim, depois parei e me sentei, agarrada ao banco de ferro. Afundei numa almofada que reconheci ser da minha sala.
Fiquei olhando incrédula para o pequeno oásis de calma e beleza que tinha sido criado no meu telhado árido. Lembrei-me de Lily quebrando o galho morto de um vaso e me dizendo, com a maior seriedade, que era um crime deixar nossas plantas morrerem, e de seu comentário casual no jardim da Sra. Traynor: “Rosas David Austin.”
Então me lembrei da terra inexplicável no meu corredor.
Apoiei a cabeça nas mãos.

Nenhum comentário :

Postar um comentário

Atenção: para postar um comentário, escolha Nome/Url. Se quiser insira somente seu nome.

Please, no spoilers!

Expresse-se:
(◕‿◕✿) 。◕‿◕。 ●▽●

⊱✿◕‿◕✿⊰(◡‿◡✿)(◕〝◕) ◑▂◐ ◑0◐

◑︿◐ ◑ω◐ ◑﹏◐ ◑△◐ ◑▽◐ ●▂● 

●0● ●︿● ●ω● ●﹏● ●△● ●▽●

Topo