Capítulo 17

Mandei duas mensagens de texto para Lily. A primeira foi para agradecer o que ela tinha feito no meu telhado. Está maravilhoso. Queria que você tivesse me contado. Um dia depois, enviei outra para dizer que sentia muito que as coisas tivessem se complicado tanto entre nós duas e que, se algum dia ela quisesse falar mais sobre Will, eu faria o possível para responder a quaisquer perguntas. Acrescentei que torcia para que ela visitasse o Sr. Traynor e o bebê, pois eu sabia tão bem quanto a maioria das pessoas como era importante manter contato com nossa família.
Ela não respondeu. Não fiquei muito surpresa.
Nos dois dias seguintes, acabei voltando ao telhado, preocupada. Eu regava as plantas, sentindo uma culpa sorrateira e residual. Circulava por entre as flores viçosas, imaginando as horas furtivas que Lily tinha passado lá em cima, visualizando-a subindo pela escada de incêndio com sacos de adubo e potes de barro enquanto eu estava no trabalho. Mas toda vez que eu pensava na nossa convivência, voltava às mesmas questões. O que eu poderia ter feito? Não conseguiria convencer a família Traynor a aceitá-la do jeito que ela precisava ser aceita. Não conseguiria fazê-la mais feliz. E a única pessoa capaz disso estava morta.

* * *

Havia uma moto estacionada diante do meu prédio. Depois do trabalho, exausta, tranquei o carro e atravessei a rua mancando para comprar uma caixa de leite. Estava chuviscando e baixei a cabeça para me proteger da chuva. Ergui os olhos e reparei no uniforme familiar parado na entrada da portaria. Meu coração disparou.
Atravessei a rua de volta e passei direto por ele, procurando minhas chaves na bolsa. Por que nossos dedos nunca nos obedecem quando estamos nervosos?
— Louisa.
As chaves se recusavam a aparecer. Revistei a bolsa outra vez, deixando cair, entre xingamentos, um pente, alguns lenços de papel, moedas. Apalpei os bolsos, tentando descobrir onde poderiam estar.
— Louisa.
Então, sentindo um frio na barriga, lembrei onde estavam minhas chaves: no bolso da calça jeans que eu trocara logo antes de sair para o trabalho.
Ah, ótimo.
— Jura? Você vai simplesmente me ignorar? É assim que vamos lidar com isso?
Respirei fundo e me virei para ele, endireitando um pouco os ombros.
— Sam.
Ele também parecia cansado, com a barba por fazer. Provavelmente tinha acabado de sair de um turno. Era imprudente notar essas coisas. Foquei num ponto um pouco à esquerda do seu ombro.
— Podemos conversar?
— Não sei se isso faz algum sentido.
— Nenhum sentido?
— Entendi o recado, está bem? Nem sei direito por que você está aqui.
— Porque acabei de sair da porra de um turno de dezesseis horas e de deixar Donna aqui perto, e achei que talvez fosse melhor tentar falar com você e descobrir o que foi que aconteceu com a gente. Porque não faço a mínima ideia, caramba.
— Mesmo?
— Mesmo.
Olhamos furiosos um para o outro. Por que eu não tinha percebido antes como ele era grosseiro? E desagradável? Não conseguia entender como eu ficara tão cega de desejo por esse homem quando, nesse momento, cada parte de mim estava querendo se afastar dele. Fiz mais uma busca inútil pelas chaves e controlei o impulso de chutar a porta.
— Então, você vai me dar pelo menos uma pista? Estou cansado, Louisa, e não gosto de joguinhos.
— Você não gosta de joguinhos? — Minhas palavras saíram acompanhadas de uma risada amarga.
Ele respirou fundo.
— Tudo bem. Só uma coisa. Me dê apenas um motivo e vou embora. Só quero saber por que não retornou minhas ligações.
Olhei para ele incrédula.
— Por que sou muitas coisas, mas não sou uma idiota completa. Quer dizer, devo ter sido, porque vi os sinais de alerta e ignorei. Mas basicamente não retornei suas ligações porque você é um babaca, está bem? — Eu me abaixei para pegar o que havia caído no chão, sentindo meu corpo inteiro esquentar, como se meu termostato interno tivesse pifado de repente. — Ah, você é muito bom, sabe? Bom para caramba. Se não fosse tudo tão repulsivo e patético, eu ficaria mesmo muito impressionada. — Eu me empertiguei, fechando a bolsa. — Olhe para Sam, o bom pai. Tão afetuoso, tão intuitivo... E, no entanto, o que está acontecendo de verdade? Você está tão ocupado transando com metade de Londres que nem nota que o próprio filho está infeliz.
— Meu filho.
— É! Porque realmente escutamos o que ele diz, viu. Na verdade, não devemos contar o que acontece no grupo. E ele não fala para você porque é adolescente. Mas está muito infeliz, e não só pela perda da mãe, mas porque você está ocupado: preferiu lidar com o próprio luto deixando um exército inteiro de mulheres passar pela sua cama.
Eu estava gritando, falando depressa e gesticulando. Notei que Samir e os primos me observavam pela janela da loja. Eu não me importava. Essa poderia ser a última vez que eu teria a chance de dizer o que queria.
— E, sim, sim, eu sei, fui idiota a ponto de ser uma dessas mulheres. Então, por ele e por mim, você é um babaca. E é por isso que não quero falar com você agora. Nem nunca, na verdade.
Ele passou a mão no cabelo.
— Ainda estamos falando de Jake?
— Claro que estou falando de Jake. Quantos outros filhos você tem?
— Jake não é meu filho. — Fiquei olhando para ele. — Jake é filho da minha irmã. Era, na verdade. — Ele se corrigiu. — Ele é meu sobrinho.
Essas palavras demoraram vários segundos para se infiltrar de uma forma que eu conseguisse entender. Sam me olhava atentamente, com a testa franzida, como se também estivesse tentando acompanhar.
— Mas... mas é você quem busca Jake. Ele mora com você.
— Eu o busco às segundas-feiras porque o pai dele trabalha. E às vezes ele fica comigo, sim. Mas não moramos juntos.
— Jake... não é seu filho?
— Não tenho filhos. Não que eu saiba. Porque toda essa história de Lily coloca a gente para pensar...
Eu me lembrei dele abraçando Jake e repassei meia dúzia de conversas na minha cabeça.
— Mas reparei em Jake quando nos conhecemos. E enquanto você e eu conversávamos, ele revirou os olhos, como... — Sam baixou a cabeça. — Ai, meu Deus — falei, levando a mão à boca. — Aquelas mulheres...
— Não são minhas.
Ficamos ali no meio da rua. Samir continuava na porta, nos observando. Mais um de seus primos estava com ele. À nossa esquerda, todas as pessoas no ponto de ônibus viraram para o outro lado quando perceberam que sabíamos que elas estavam olhando. Sam indicou com a cabeça a porta atrás de mim.
— Acha que podíamos conversar sobre isso lá dentro?
— Sim. Claro. Ah. Não, não posso. Pelo visto bati a porta sem levar a chave.
— Tem uma chave reserva?
— Dentro do apartamento.
Ele passou a mão no rosto, depois olhou o relógio. Estava visivelmente exausto, destruído. Dei um passo para trás.
— Olhe, vá para casa descansar um pouco. A gente se fala amanhã. Desculpe.
De repente a chuva ficou mais forte, um temporal de verão, criando torrentes nos bueiros e enchendo a rua. Do outro lado, Samir e seus primos voltaram para dentro da loja.
Sam suspirou. Olhou para o céu e depois para mim.
— Espere.

* * *

Ele pegou uma grande chave de fenda emprestada com Samir e subiu atrás de mim na escada de incêndio. Escorreguei duas vezes nos degraus de ferro molhados e ele estendeu a mão para me segurar. Quando isso acontecia, uma sensação excitante e inesperada percorria meu corpo. Assim que chegamos ao meu andar, ele enfiou a chave de fenda no caixilho da janela e começou usá-la como alavanca. A peça cedeu com uma rapidez gratificante.
— Pronto. — Ele a ergueu, escorando-a com uma das mãos, e virou-se para mim, indicando que eu devia passar, com uma discreta expressão de censura. — Isso foi fácil demais para uma moça solteira moradora da área.
— Você não parece nem um pouco uma garota solteira moradora da área.
— Estou falando sério.
— Estou bem, Sam.
— Você não vê o mesmo que eu. Quero que fique em segurança.
Tentei sorrir, mas meus joelhos tremiam e minhas palmas escorregavam no corrimão de ferro. Estava prestes a passar por ele, mas hesitei.
— Você está bem?
Assenti. Ele pegou meu braço e meio que me levantou, me ajudando a pular desajeitadamente para dentro do apartamento. Desabei no carpete ao lado da janela, esperando me sentir normal outra vez. Fazia dias que eu não dormia direito e estava me sentindo semimorta, como se a fúria e a adrenalina que haviam me sustentado tivessem se esvaído.
Sam entrou e depois fechou a janela, olhando a tranca quebrada no alto do caixilho. O corredor estava escuro. Ouvíamos o barulho abafado da chuva batendo no telhado. Enquanto eu observava, ele remexeu o bolso até, em meio a outras coisas, encontrar um pequeno prego. Pegou a chave de fenda e usou o cabo para bater o prego num ângulo que não permitisse que a janela fosse aberta por fora. Então andou pesadamente até onde eu estava sentada e estendeu a mão.
— Vantagens de ser construtor nas horas vagas. Sempre tenho um prego em algum lugar. Vamos — disse ele. — Se continuar sentada aí, nunca mais vai se levantar.
O cabelo de Sam estava molhado por causa da chuva, sua pele brilhava sob a luz do corredor, e o deixei me puxar para ficar de pé. Fiz uma careta, e ele reparou.
— Quadril?
Confirmei com a cabeça. Ele suspirou.
— Eu queria que você falasse comigo. — A pele embaixo de seus olhos estava roxa de exaustão. Havia dois arranhões compridos no dorso de sua mão esquerda. Eu me perguntei o que tinha acontecido na noite anterior.
Sam entrou na cozinha e ouvi barulho de água. Depois ele voltou com dois comprimidos e um copo.
— Na verdade, eu não devia lhe dar esses remédios. Mas vão lhe proporcionar uma noite sem dor.
Peguei-os agradecida. Ele me observou engolir.
— Você segue as regras alguma vez?
— Quando acho que são sensatas. — Ele pegou o copo da minha mão. — Então estamos bem, Louisa Clark?
Assenti. Ele suspirou fundo.
— Ligo para você amanhã.
Não soube ao certo o que me levou a fazer o que fiz em seguida, mas estiquei o braço e peguei a mão dele. Senti seus dedos se fecharem lentamente em volta dos meus.
— Não vá. É tarde. E motos são perigosas.
Peguei a chave de fenda da sua outra mão e larguei-a no carpete. Ele ficou um tempo me olhando, depois passou a mão no rosto.
— Acho que agora não estou bom para muita coisa.
— Então prometo não usá-lo para recompensa sexual. — Sustentei seu olhar. — Dessa vez.
Seu sorriso demorou a surgir, mas, quando apareceu, fiquei muito mais leve, como se estivesse carregando um peso sem saber.
Nunca se sabe o que vai acontecer quando se cai de uma grande altura.
Ele passou por cima da chave de fenda e o conduzi em silêncio até o meu quarto.

* * *

Fiquei deitada na escuridão do meu pequeno apartamento, com a perna em cima de um homem adormecido cujo braço me prendia de um jeito agradável, e olhei para o rosto dele.
— Parada cardíaca fatal, acidente de moto, adolescente suicida e um esfaqueamento numa gangue na Peabody Estate. Alguns turnos são um pouco...
— Shiu. Está tudo bem. Durma.
Ele mal conseguira tirar o uniforme. Ficou de camiseta e cueca, me deu um beijo, depois fechou os olhos e pegou no sono. Eu me perguntei se devia preparar alguma coisa para ele comer, ou arrumar o apartamento para que, quando ele acordasse, eu parecesse alguém realmente capaz de organizar a própria vida. Mas, em vez disso, tirei a roupa, ficando só de calcinha e sutiã, e me deitei ao lado dele. Durante esse tempo, eu só queria ficar ali, minha pele nua encostando em sua camiseta, minha respiração confundindo-se com a dele. Fiquei escutando sua respiração, impressionada por alguém conseguir ficar tão sereno. Observei o pequeno calombo na ponte do seu nariz, a variação no tom dos pelos da barba que escureciam seu queixo, a ligeira curva na beirada de seus cílios muito escuros. Recordei algumas de nossas conversas passando-as por um novo filtro, que o definia como um homem solteiro, um tio afetuoso. Tive vontade de rir da idiotice de tudo aquilo e senti vergonha do meu equívoco.
Toquei duas vezes de leve em seu rosto, sentindo o cheiro da sua pele, o fraco odor de sabonete bactericida, o indício primitivo de suor masculino, e a segunda vez que fiz isso, senti sua mão apertar minha cintura por reflexo.
Eu me deitei de costas e olhei para as luzes da rua e pela primeira vez não me senti uma estranha na cidade. Por fim, acabei dormindo...

* * *

Os olhos de Sam se abrem diante dos meus. Depois de um instante, ele se dá conta de onde está.
— Oi.
Ele se sobressalta ao acordar. O estado onírico que impregna a madrugada. Ele está na minha cama. Sua perna está encostando na minha.
Um sorriso surge no meu rosto.
— Oi.
— Que horas são?
Eu me viro para ver o despertador.
— Quinze para as cinco.
O tempo se ajeita, e o mundo, mesmo com relutância, passa a fazer sentido. Lá fora, as luzes começam a se acender na rua escura. Os táxis alternativos e ônibus noturnos passam rugindo. Aqui em cima só tem eu e ele na noite, a cama quente e o barulho de sua respiração.
— Nem me lembro de ter chegado aqui.
Sam olha para o lado, o rosto iluminado pelas luzes da rua, franzindo a testa. Observo as lembranças do dia anterior voltarem aos poucos, e ele parece pensar: Ah, é mesmo.
Ele vira a cabeça. Sua boca está a poucos centímetros da minha. Sinto seu hálito quente e doce.
— Senti saudade, Louisa Clark.
Então fico com vontade de contar. Quero dizer que não sei o que sinto. Quero ficar com ele, mas estou com medo. Não quero que toda a minha felicidade dependa de outra pessoa, não quero ser refém de destinos que não consigo controlar.
Seus olhos estão fixos no meu rosto, me interpretando.
— Pare de pensar — diz ele.
Sam me puxa para perto, então relaxo. Esse homem passa o dia inteiro entre a vida e a morte. Ele entende.
— Você pensa demais.
Sua mão desliza pela lateral do meu rosto. Eu me viro para ele, por reflexo, e encosto os lábios na palma de sua mão.
— Apenas viva? — sussurro.
Ele concorda com a cabeça e depois me dá um beijo longo, lento e carinhoso, até meu corpo arquear, e passo a sentir só desejo e carência. Sam sussurra no meu ouvido. Diz meu nome... o que me atrai. Ele o faz soar como algo precioso.

* * *

Os três dias seguintes foram uma confusão de noites furtivas e breves encontros. Faltei a Semana da Idealização no Grupo Seguindo em Frente porque Sam apareceu lá em casa justo quando eu estava prestes a sair, e de algum jeito nossos braços e pernas acabaram se embolando com certa urgência enquanto esperávamos meu timer em formato de ovo tocar para que ele fosse se vestir e correr para buscar Jake na hora. Duas vezes encontrei-o à minha espera ao chegar do trabalho, e seus lábios foram parar no meu pescoço, suas grandes mãos, no meu quadril, fazendo as indignidades do Shamrock and Clover serem, se não esquecidas, afastadas junto das garrafas vazias da noite passada.
Eu queria resistir a ele, mas não conseguia. Estava aturdida, distraída, insone. Tive cistite, mas nem me importei. Eu trabalhava cantarolando, flertava com os executivos e sorria alegremente diante das reclamações de Richard. Minha felicidade ofendia meu gerente: eu notava isso pelo jeito que ele mordia a bochecha por dentro e procurava motivos cada vez mais insignificantes para chamar minha atenção.
Eu não me importava com nada disso. Cantava no chuveiro, me deitava e ficava sonhando acordada. Usava meus vestidos velhos, os cardigãs coloridos e sapatos de cetim, e me permiti ser enclausurada numa bolha de felicidade, mesmo tendo noção de que alguma hora as bolhas estouram.
— Contei a Jake — disse ele.
Sam estava em um intervalo de uma hora e ele e Donna pararam diante do meu prédio para almoçar, antes do horário do meu expediente noturno.
Eu me sentei ao seu lado no banco da frente da ambulância.
— Contou o quê?
Ele tinha preparado sanduíches de muçarela, tomate-cereja e manjericão. Os tomates, cultivados em sua horta, eram pequenas explosões de sabor em minha boca. Ele ficou horrorizado com a alimentação que eu tinha quando estava sozinha.
— Que você achava que eu era o pai dele. Fazia meses que eu não o via rir tanto.
— Você não contou que eu revelei que o pai dele chorava depois do sexo, não é?
— Conheci um homem que fez isso — disse Donna. — Mas ele soluçava sem parar. Era um pouco constrangedor. Da primeira vez, achei que tivesse quebrado o pênis dele.
Eu me virei para ela, boquiaberta.
— Acontece. De verdade. Já recebemos alguns na ambulância, não é?
— Já. Você ficaria impressionada com as lesões sexuais que a gente vê. — Ele indicou meu sanduíche com a cabeça, que continuava no meu colo. — Conto quando você estiver de boca vazia.
— Lesões sexuais. Que maravilha. Como se a gente já não tivesse preocupações demais na vida.
Ele desviou o olhar quando mordeu o sanduíche, e eu corei.
— Pode acreditar em mim. Você vai ver só.
— Para deixar claro logo de uma vez, cara — disse Donna, oferecendo um de seus energéticos onipresentes. — Não vou socorrer você num caso assim.
Eu gostava de estar na ambulância. Sam e Donna tinham o jeito irônico e direto daqueles que viram, e também trataram, quase todas as doenças. Eles eram engraçados e melancólicos, e era incrível como eu me sentia à vontade espremida entre os dois, como se minha vida, com toda sua estranheza, na verdade fosse bastante normal.
Estas foram as coisas que aprendi durante várias horas de almoço filadas:
Homens e mulheres acima dos setenta anos raramente reclamavam da dor ou do tratamento, mesmo se estivessem com um membro pendurado. Esses mesmos idosos quase sempre pediam desculpas por terem “feito um escândalo”.
O termo “Paciente MC” não era uma terminologia científica, e sim “Paciente Mijou e Caiu”.
Mulheres grávidas dificilmente davam à luz na parte de trás de uma ambulância. (Isso me deixou bastante desapontada.)
Ninguém mais usava o termo “motorista de ambulância”. Especialmente os motoristas de ambulância.
Sempre havia alguns homens que, quando lhes pediam para classificar numa escala de um a dez a dor que estavam sentindo, respondiam “onze”.

* * *

Porém, o que mais transparecia quando Sam voltava após um longo expediente era o desamparo: pensionistas solitários; homens obesos grudados na tela da televisão, gordos demais até mesmo para tentar subir e descer os degraus da própria casa; mães jovens que não falavam inglês e ficavam confinadas no apartamento com um milhão de filhos pequenos, sem saber como telefonar para pedir ajuda quando necessário; e os deprimidos, os que sofriam com doenças crônicas, os não amados.
Ele dizia que em alguns dias aquilo parecia um vírus: era preciso esfregar a melancolia da pele, assim como o cheiro de antisséptico. E ainda havia os suicídios, as vidas que chegavam ao fim embaixo de trens ou em banheiros silenciosos, os corpos muitas vezes passando semanas ou meses despercebidos até alguém comentar sobre o cheiro, ou se perguntar por que a correspondência de determinada pessoa estava transbordando da caixa de correio.
— Você fica com medo às vezes?
Mesmo sendo grande demais, ele estava deitado na minha pequena banheira. A água ficara um pouco cor-de-rosa porque ele se sujara com o sangue do ferimento a bala de um paciente. Fiquei um pouco surpresa com a rapidez com que me acostumei a ter um homem nu por perto. Ainda mais um que conseguia se mexer.
— Não podemos fazer esse trabalho se sentimos medo — disse ele simplesmente.
Sam fizera parte do Exército antes de trabalhar como paramédico. Portanto, essa não era uma profissão inusitada.
— Eles gostam de nós porque não nos assustamos com facilidade e já vimos de tudo. Se quer saber, alguns desses garotos bêbados me deixam com muito mais medo do que o Talibã, por exemplo.
Eu me sentei na privada ao seu lado e fiquei observando seu corpo na água colorida. Apesar do tamanho e da força dele, estremeci.
— Ei — disse ele ao notar algo no meu rosto, e depois esticou a mão para mim. — Está tudo bem, de verdade. Tenho um faro bom para reconhecer encrenca. — Fechou os dedos em volta dos meus. — Mas não é um trabalho muito bom para relacionamentos. Minha última namorada não aguentou. s horas. Noites. A sujeira.
— Água do banho cor-de-rosa.
— É. Desculpe por isso. Os chuveiros não estavam funcionando no posto. Eu devia ter passado em casa primeiro.
Ele olhou para mim de uma forma que me mostrou que de jeito nenhum ele teria passado primeiro em casa. Puxou a tampa do ralo para esvaziar um pouco a banheira, depois abriu as torneiras para enchê-la mais.
— E quem foi sua última namorada? — Não alterei o tom de voz.
Eu não seria uma daquelas mulheres, mesmo que, no fim das contas, ele não fosse um daqueles homens.
— Iona. Agente de viagem. Um amor de pessoa.
— Mas você não estava apaixonado por ela.
— Por que acha isso?
— Ninguém nunca diz “um amor de pessoa” sobre alguém por quem está apaixonado. É como aquela coisa de “vamos continuar amigos”. Isso significa que você não gostava o bastante dela.
Ele achou graça.
— Então o que eu diria se tivesse sido apaixonado por ela?
— Você teria ficado muito sério e dito “Karen. Um pesadelo” ou “não quero falar sobre isso”.
— Você deve ter razão. — Ele pensou um pouco. — Para ser sincero, eu não queria sentir muita coisa depois que minha irmã morreu. Ter ficado com Ellen nos últimos meses, ajudado a cuidar dela, me deixou um pouco fora do eixo. — Ele olhou para mim. — Câncer é um jeito bastante brutal de morrer. O pai de Jake não aguentou. Acontece com algumas pessoas. Então achei que eles precisavam de mim ali. Para falar a verdade, provavelmente só aguentei porque alguém tinha que se manter firme. — Ficamos em silêncio por um tempo. Eu não sabia se seus olhos tinham ficado um pouco vermelhos por causa da tristeza ou do sabonete. — Enfim. Bem, sim, eu não devo ter sido um bom namorado naquela época. E quem foi seu último? — perguntou ele, quando finalmente se voltou para mim.
— Will.
— É claro. Mais ninguém desde então?
— Ninguém que valha a pena mencionar. — Estremeci.
— Todo mundo pode traçar um caminho de volta, Louisa. Não se castigue por causa disso.
A pele dele estava quente e molhada, dificultando minha tentativa de segurar seus dedos. Soltei-os e ele começou a lavar o cabelo. Fiquei sentada observando, deixando o clima desanuviar, curtindo os músculos do seu ombro, o brilho da sua pele molhada. Eu gostava de como ele lavava o cabelo: vigorosamente, com certo pragmatismo, sacudindo o excesso de água feito um cachorro.
— Ah, fiz uma entrevista de emprego — falei assim que ele terminou. — Para um trabalho em Nova York.
— Nova York. — Ele ergueu uma sobrancelha.
— Mas não vou conseguir a vaga.
— Que pena. Sempre quis uma desculpa para ir a Nova York.
Ele afundou lentamente na água, deixando só a boca para fora. Depois abriu um sorriso devagar.
— Mas você ficaria com sua roupa de duende, não é?
Senti o clima mudar. E, só para surpreendê-lo, entrei de roupa na banheira e o beijei enquanto ele ria e bufava. De repente fiquei feliz com a solidez que ele oferecia naquele mundo onde era tão fácil cair.

* * *

Finalmente me esforcei para arrumar o apartamento. No meu dia de folga comprei uma poltrona, uma mesa de centro e uma pequena gravura emoldurada, que pendurei perto da televisão. De alguma forma esses objetos conseguiam passar a ideia de que talvez alguém morasse ali.
Comprei roupa de cama nova, duas almofadas e pendurei todas as minhas roupas vintage no armário, e assim, ao abri-lo, nos deparávamos com várias estampas e cores, em vez de algumas calças jeans baratas e um vestido de Lurex muito curto. Consegui transformar meu pequeno apartamento indistinto em algo que parecia, se não exatamente um lar, um ambiente um pouco acolhedor.
Por alguma bondade dos deuses da escalação de turnos, Sam e eu conseguimos o mesmo dia de folga. Dezoito horas ininterruptas sem que ele precisasse ouvir uma sirene, e eu não tinha que escutar o som de flautas de pan nem reclamações sobre os amendoins torrados. Reparei que o tempo que eu ficava com Sam parecia passar duas vezes mais depressa do que o tempo em que eu estava sozinha. Eu já considerara as inúmeras coisas que podíamos fazer juntos, depois descartara metade por serem muito características de casal. Eu me perguntava se era prudente passarmos tanto tempo juntos.
Mandei mais uma mensagem de texto para Lily. Por favor, entre em contato, Lily. Sei que está brava comigo, mas ligue. Seu jardim está lindo! Preciso que você me mostre como cuidar dele e o que fazer com os pés de tomate que estão muito altos (é assim que se fala?). Talvez depois disso a gente possa sair para dançar. Bj. Apertei enviar e fiquei olhando para a tela.
Logo depois a campainha tocou.
— Oi. — Ele ocupava o vão inteiro da porta, segurando uma caixa de ferramentas numa das mãos e uma sacola de compras na outra.
— Ai, meu Deus — falei. — Você parece a encarnação da maior fantasia das mulheres.
— Estantes — disse ele, inexpressivo. — Você precisa de estantes.
— Ah, nossa. Continue falando.
— E de comida caseira.
— Isso mesmo. Fiquei até excitada.
Ele riu, largou as ferramentas no corredor e me beijou. Quando por fim nos afastamos, ele foi até a cozinha.
— Achei que podíamos ir ao cinema. Você sabe que uma das maiores vantagens de trabalhar em turnos é poder ir nas sessões vazias, não é?
Dei uma olhada no meu celular.
— Mas nada sangrento. Estou um pouco cansado de sangue.
Quando ergui os olhos, ele estava me observando.
— O que foi? Não está a fim? Ou isso vai atrapalhar seus planos de ver Zumbi 15?... O que foi?
Franzi a testa e deixei a mão cair ao lado do corpo.
— Não consigo encontrar Lily.
— Pensei que você tivesse dito que ela tinha ido para casa.
— E foi. Mas não atende minhas ligações. Acho que está muito chateada comigo.
— Os amigos dela roubaram suas coisas. É você quem deve ficar chateada.
Ele começou a tirar várias coisas da sacola: alface, tomates, abacates, ovos, ervas. Depois organizou tudo com capricho na minha geladeira quase vazia. Então ficou me olhando enquanto eu digitava outra mensagem para Lily.
— Fala sério. Ela pode ter deixado o celular cair, esquecido em alguma boate, ou ficado sem crédito. Você sabe como os adolescentes são. Ou ela está apenas de péssimo humor. Às vezes é preciso deixar que tirem o problema da cabeça.
Peguei a mão dele e fechei a porta da geladeira.
— Preciso mostrar uma coisa para você. — Os olhos dele se iluminaram por um instante. — Isso não, safadinho. Isso vai ter que esperar até mais tarde.

* * *

Sam ficou parado no telhado, olhando para as flores ao redor.
— E você não fazia ideia?
— Nenhuma.
Ele se sentou pesadamente no banco. Eu me sentei ao lado dele e nós dois ficamos observando o pequeno jardim.
— Estou me sentindo péssima — falei. — Basicamente a acusei de destruir tudo que tocou. E durante todo esse tempo ela estava cuidando disso.
Ele se abaixou para sentir a textura das folhas de um pé de tomate, depois se empertigou, balançando a cabeça.
— Tudo bem. Então vamos falar com ela.
— Jura?
— Sim. Mas primeiro vamos almoçar. Depois vamos ao cinema. E só então aparecemos na porta dela. Desse jeito, ela não vai ter como evitar você. — Ele pegou minha mão e a levou aos lábios. — Ei. Não se preocupe. O jardim é uma boa notícia. Quer dizer que a cabeça dela não está tão ruim assim.
Ele soltou minha mão e semicerrei os olhos.
— Como você sempre consegue melhorar tudo?
— Eu só não gosto de ver você triste.
Eu não podia dizer que não me sentia triste quando estava com ele. Não podia contar que ele me fazia tão feliz que até me dava medo. Pensei em como eu gostava de ter sua comida na minha geladeira, em como conferia o celular vinte vezes por dia esperando suas mensagens, como ficava me lembrando do seu corpo nu nos momentos de sossego no trabalho e depois tinha que me esforçar para pensar em cera para piso ou recibos da caixa registradora para evitar parecer radiante.
Mais devagar, disse uma voz de advertência. Não se aproxime muito.
Seu olhar se suavizou.
— Você tem um sorriso lindo, Louisa Clark. É uma das centenas de coisas que gosto em você.
Retribuí seu olhar por um instante. Esse homem, pensei. E então bati com força as mãos nos joelhos.
— Vamos — falei bruscamente. — Vamos ver um filme.

* * *

O cinema estava quase vazio. Nós no sentamos lado a lado no fundo, numa poltrona que tivera o braço arrancado, e Sam me dava pipoca de um balde do tamanho de uma lata de lixo. Eu tentava não pensar no peso de sua mão apoiada na minha perna nua porque, quando pensava nisso, me perdia no que estava acontecendo no filme.
Assistimos a uma comédia americana sobre dois policiais que não se dão muito bem e acabam sendo confundidos com criminosos. Não era muito engraçado, mas ri mesmo assim. Os dedos de Sam apareceram na minha frente, segurando uma pipoca salgada que comi, e depois mais outra. Até que tive uma ideia e mordisquei seus dedos. Ele olhou para mim e balançou a cabeça devagar.
Engoli a pipoca.
— Ninguém vai ver — sussurrei.
Sam ergueu uma sobrancelha.
— Estou muito velho para isso — murmurou.
Mas quando virei seu rosto na minha direção naquele ambiente escuro e aquecido, comecei a beijá-lo e ele largou a pipoca, subindo lentamente a mão pelas minhas costas.
Então meu telefone tocou. As duas pessoas na frente chiaram.
— Desculpem, desculpem!
(Considerando que éramos as únicas quatro pessoas no cinema.)
Desenrosquei-me de Sam e atendi. A chamada era de um número desconhecido.
— Louisa?
Demorei um instante para identificar a voz.
— Espere só um minuto.
Fiz uma careta para Sam e saí da sala.
— Desculpe, Sra. Traynor. Eu tive que... Ainda está na linha? Alô?
O foyer estava vazio, as áreas delimitadas por cordas, desertas, e a máquina de raspadinha revirava languidamente o gelo colorido atrás do balcão.
— Ah, graças a Deus. Louisa? Eu queria saber se posso falar com Lily.
Fiquei imóvel, com o telefone no ouvido.
— Andei pensando no que aconteceu naquela semana e sinto muito. Devo ter parecido... — Ela hesitou. — Olhe, queria saber se você acha que ela aceitaria se encontrar comigo.
— Sra. Traynor...
— Eu gostaria de explicar a ela. Nesse último ano eu... Bem, não fui eu mesma. Tenho tomado alguns comprimidos que me deixam um pouco abobada. E fiquei muito atordoada ao encontrar vocês na minha porta, então simplesmente não consegui acreditar no que estavam me contando. Tudo parecia muito improvável. Mas eu... Bem, falei com Steven, que confirmou, e há dias estou aqui sentada digerindo tudo, e só penso... Will tinha uma filha. Tenho uma neta. Fico repetindo essas frases. E às vezes acho que foi tudo um sonho.
Fiquei ouvindo a grande e atípica quantidade de palavras que ela dizia.
— Eu sei — falei. — Também me senti assim.
— Não consigo parar de pensar nela. Quero muito conhecê-la melhor. Acha que ela aceitaria me visitar outra vez?
— Sra. Traynor, ela não está mais morando comigo. Mas pode deixar. — Passei os dedos no cabelo. — Claro que pergunto a ela.

* * *

Não consegui prestar atenção no resto do filme. No fim, talvez percebendo que eu estava apenas olhando para uma tela em movimento, Sam sugeriu que fôssemos embora. No estacionamento, paramos ao lado da sua moto e contei o que ela dissera.
— Está vendo só? — disse ele, como se eu tivesse feito alguma coisa da qual me orgulhar. — Agora vamos.

* * *

Ele ficou montado na moto, me esperando do outro lado da rua, quando fui bater à porta. Ergui o queixo, determinada a não deixar Tanya Houghton-Miller me intimidar dessa vez. Olhei para trás e Sam balançou a cabeça, me encorajando.
A porta abriu. Tanya estava usando um vestido de linho cor de chocolate e sandálias gladiadoras. Ela me olhou de cima a baixo como fizera quando nos vimos pela primeira vez, como se minha roupa tivesse sido reprovada. (Isso foi um pouco irritante, pois eu estava usando meu vestido jardineira de algodão xadrez favorito.) Ela continuou sorrindo por mais uma fração de segundo, depois ficou séria.
— Louisa.
— Desculpe por aparecer sem avisar, Sra. Houghton-Miller.
— Aconteceu alguma coisa?
Pisquei.
— Bem, na verdade, sim. — Afastei o cabelo do rosto. — Recebi uma ligação da Sra. Traynor, a mãe de Will. Desculpe incomodá-la com isso, mas ela quer muito entrar em contato com Lily. E como ela não está atendendo o telefone, queria saber se você se importaria de pedir para ela me ligar.
Tanya ficou me olhando por baixo das suas sobrancelhas impecavelmente feitas.
Mantive a expressão neutra.
— Ou talvez a gente pudesse conversar rapidinho com ela.
Houve um breve silêncio.
— Por que você acha que eu perguntaria a ela?
Respirei fundo, escolhendo as palavras com cuidado.
— Sei que não gosta da família Traynor, mas acho que isso seria do interesse de Lily. Não sei se sua filha contou, mas elas tiveram um primeiro encontro bem complicado alguns dias atrás, e a Sra. Traynor gostaria muito de uma oportunidade para recomeçar.
— Ela pode fazer o que quiser, Louisa. Mas não sei por que você espera que eu me envolva.
Tentei manter um tom educado.
— Hum... porque você é mãe dela?
— Com quem ela não se dá o trabalho de entrar em contato há mais de uma semana.
Fiquei imóvel. Senti um frio na barriga.
— O quê?
— Lily. Ela não se dá o trabalho de entrar em contato comigo. Achei que pelo menos apareceria para nos ver depois que voltamos de férias, mas, não, claro que isso está além das suas possibilidades. Lily está fazendo o que quer, como sempre.
Tanya estendeu a mão para examinar as próprias unhas.
— Sra. Houghton-Miller, ela devia estar com você.
— O quê?
— Lily. Ela ia voltar a morar com vocês. Quando voltaram de férias. Ela saiu do meu apartamento... há dez dias.

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