Capítulo 19

Lily

Peter está esperando de novo. Pela janela, ela o vê apoiado no carro. Ele nota sua presença, gesticula e mexe os lábios para dizer:
— Você está me devendo.
Lily abre a janela, olha para o outro lado da rua, onde Samir está carregando uma caixa de laranjas para fora da loja.
— Me deixe em paz, Peter.
— Você sabe o que vai acontecer...
— Eu já dei o suficiente para você. Me deixe em paz, está bem?
— Está mandando mal, Lily.
Ele ergue uma sobrancelha e espera até ela se sentir desconfortável. Lou chegará em casa em meia hora. Ele passa por ali com tanta frequência que Lily tem quase certeza de que Peter sabe disso. Por fim, ele entra no carro e segue pela rua principal sem olhar para trás. Ao se afastar, ele coloca o celular para fora da janela do motorista. Uma mensagem: Foi mal, Lily.

* * *

Jogo da garrafa. Uma brincadeira que parece muito inocente. Ela e mais quatro meninas da escola foram para Londres num fim de semana de folga. Tinham roubado batons na farmácia, comprado saias muito curtas na Topshop e entrado de graça em boates porque eram jovens e bonitas e os porteiros não faziam muitas perguntas quando se tratava de quatro garotas jovens e bonitas. Lá dentro, em meio a rum e Coca-Cola, conheceram Peter e seus amigos.
Foram parar no apartamento de alguém em Marylebone às duas da manhã. Ela não se lembrava muito bem de como haviam chegado lá. Todo mundo estava sentado numa roda, fumando e bebendo. Ela aceitara tudo o que lhe ofereceram. Estava tocando Rihanna. Tinha um pufe azul que cheirava a desinfetante. Nicole, aquela idiota, passara mal no banheiro. O tempo corria. Duas e meia, três e dezessete, quatro... Ela perdeu a noção.
Até que alguém sugeriu Verdade ou Consequência.
A garrafa girou, bateu num cinzeiro, derrubando guimbas e cinza no tapete. A verdade de alguém, de uma garota que ela não conhecia: nas férias do ano anterior, ela fizera sexo por telefone com seu namorado da época enquanto a avó dormia na cama ao lado. Os outros recuaram fingindo ficar horrorizados. Lily rira.
— Tem louco para tudo — disse alguém.
Peter passara o tempo todo observando Lily. A princípio, ela ficara lisonjeada: ele era de longe o garoto mais bonito dali. Um homem, até. Quando a olhava, ela se recusava a baixar os olhos. Não ia agir como as outras garotas.
— Gire!
Lily deu de ombros quando a garrafa apontou para ela.
— Desafio — disse. — Sempre desafio.
— Lily nunca recusa nada — comentou Mima.
Então Lily se perguntou se havia algo no jeito que ela olhara para Peter quando disse isso.
— Tudo bem. Você sabe o que isso significa.
— Está falando sério?
— Não pode fazer isso! — Pippa levou as mãos ao rosto, como fazia quando estava sendo dramática.
— Verdade, então.
— Não. Odeio verdade. E aí? — Ela sabia que aqueles garotos seriam covardes. Levantou-se com displicência. — Onde? Aqui?
— Ai, meu Deus, Lily.
— Gire a garrafa — ordenou um dos garotos.
Não lhe ocorrera ficar nervosa. Ela estava um pouco tonta e, afinal de contas, gostou bastante de ficar ali em pé, sem ser perturbada, enquanto as outras garotas aplaudiam, gritavam e agiam feito idiotas. Eram umas impostoras. As mesmas meninas que golpeavam qualquer um no campo de hóquei, que falavam de política e tinham o objetivo de seguir carreira em direito e biologia marinha ficavam bobas, cheias de frescura e dando risadinhas na presença dos garotos, balançando o cabelo e passando batom, como se estivessem espontaneamente editando as partes interessantes de si mesmas.
— Peter...
— Ai, meu Deus. Pete. Cara. É você.
Todos os garotos assobiavam e gritavam para esconder o desapontamento, ou talvez o alívio, por não serem eles. Peter ficou de pé e seus olhos estreitos encontraram os dela. Diferentemente dos outros, seu sotaque indicava que viera de algum lugar mais barra pesada.
— Aqui?
Ela deu de ombros.
— Não me importo.
— No outro quarto. — Ele indicou o cômodo.
No caminho para o quarto ao lado, ela passou por cima das pernas das outras meninas. Uma agarrou seu tornozelo, lhe dizendo para não ir, mas Lily se desvencilhou dela. Foi andando devagar, se exibindo, sentindo os olhos das pessoas fixos nela. Desafio. Sempre desafio.
Peter fechou a porta ao entrar e ela olhou em volta. A cama estava desarrumada, um edredom com uma estampa horrorosa que a cinco metros já dava para perceber que não era lavado havia séculos e deixava um leve cheiro de mofo no ar. Havia uma pilha de roupa suja no canto e um cinzeiro lotado ao lado da cama. O quarto ficou em silêncio, as vozes do lado de fora calaram-se temporariamente.
Ela ergueu o queixo e afastou o cabelo do rosto.
— Você quer mesmo fazer isso? — perguntou ele, dando um sorriso de escárnio. — Eu sabia que você ia dar para trás.
— Quem disse que estou dando para trás?
Mas ela não queria fazer aquilo. Já não reparava no seu belo rosto, só no brilho frio em seus olhos e no trejeito desagradável de sua boca. Ele pôs as mãos no zíper.
Os dois ficaram ali parados por um minuto.
— Tudo bem se você não quiser. A gente sai e diz que você é uma frouxa.
— Eu nunca disse que não queria.
— Então o que você está dizendo?
Ela não conseguia pensar. Estava ouvindo um zumbido abafado dentro da cabeça. Queria não ter entrado ali. Ele dá um bocejo teatral.
— Estou ficando entediado, Lily.
Há uma batida frenética à porta. A voz de Jemima surge:
— Lily, você não precisa fazer isso. Venha. Podemos ir para casa agora.
— Não precisa fazer isso, Lily. — A voz dele é um arremedo, debochando dela.
Um cálculo. O que é o pior que pode acontecer? Dois minutos, na pior das hipóteses? Dois minutos da sua vida. Ela não vai dar para trás. Vai provar para ele. Vai provar para todos.
Ele está segurando frouxamente uma garrafa de Jack Daniel’s na mão. Ela a pega, abre-a e bebe dois goles, os olhos fixos nos dele. Então devolve a garrafa e estica o braço para alcançar o cinto dele.

* * *

É preciso fotos para comprovar que algo aconteceu.
Ela ouve o garoto assobiando enquanto seus ouvidos latejam, enquanto seu couro cabeludo dói de tanto que ele puxa seu cabelo. Já é tarde demais. Tarde demais.
Ela ouve a câmera do celular tirar uma foto justo quando ergue os olhos.

* * *

Um par de brincos. Cinquenta libras em espécie. Cem. Semanas depois, as exigências continuam. Manda mensagens de texto para ela: Quer saber o que pode acontecer se eu colocar isso no Facebook?
Ela sente vontade de chorar quando vê a foto. Ele manda inúmeras vezes: seu rosto, seus olhos injetados, borrados de rímel. Aquela coisa na sua boca. Quando Louisa chega em casa, a menina precisa enfiar o telefone embaixo das almofadas do sofá. Tornou-se radiativo, um objeto tóxico que ela tem que manter próximo.
Queria saber o que seus amigos iam achar.
As outras meninas não falaram com ela depois do que aconteceu. Sabem o que ela fez porque Peter mostrou a foto para todo mundo assim que eles voltaram para a festa, ajeitando ostensivamente o zíper, que não precisava mais ser ajeitado. Ela precisou fingir que não se importava. As garotas a encararam, mas depois desviaram os olhos. Assim que os olhares delas encontraram os seus, Lily ficara sabendo que as histórias que as amigas contavam sobre terem feito boquetes e transado com os namorados que ninguém conhecera tinham sido inventadas. Elas eram impostoras. Tinham mentido sobre tudo.
Ninguém a considerou corajosa. Ninguém a admirou por não ter desistido. Ela era apenas Lily, a vadia, a garota com um pau na boca. Só de pensar nisso, ficava com o estômago embrulhado. Bebera mais Jack Daniel’s e mandara todo mundo ir para o inferno.
Encontre comigo no McDonald’s da Tottenham Court Road.
A essa altura, sua mãe já havia trocado as fechaduras de casa. Não tinha mais como pegar dinheiro da carteira dela. Também haviam bloqueado seu acesso à poupança.
Não tenho mais nada.
Acha que sou imbecil, sua riquinha?
Sua mãe nunca gostara dos brincos da Mappin & Webb. Lily torcera para que ela não notasse que haviam sumido. Ela tinha bancado a esposa carinhosa para Francis Pentelho quando ele lhe dera de presente, mas depois reclamara que realmente não entendia por que ele comprava brilhantes em formato de coração, todo mundo sabia que eram comuns demais, e o formato de gota ficava muito melhor em sua estrutura óssea.
Peter olhou para os brincos cintilantes como se Lily tivesse lhe entregado um trocado, depois os enfiou no bolso. Ele tinha comido um Big Mac, pois havia maionese no canto da boca. Ela se sentia nauseada toda vez que o via.
— Quer conhecer meus amigos?
— Não.
— Quer beber algo?
Ela negou com um gesto de cabeça.
— Acabou. Essa é a última coisa. Esses brincos valem milhões.
Ele fez uma careta.
— Da próxima vez, quero dinheiro. Sei onde você mora, Lily. Sei o que você tem.
Ela ficou com a impressão de que nunca se livraria dele. O garoto lhe mandava mensagens em horas inusitadas, acordando-a, não a deixando dormir. Aquela foto, insistentemente. Ela a via com efeito de negativo, até com as retinas marcadas. Parou de ir à escola. Ficava bêbada com desconhecidos, continuava na boate até muito depois do que realmente queria. Qualquer coisa para não ficar sozinha com seus pensamentos e o toque implacável do celular. Mudara-se para onde ele não poderia achá-la, mas o rapaz a encontrara e ficava horas com o carro estacionado na frente do prédio de Louisa, dando um recado silencioso. Algumas vezes ela até pensou em contar a Louisa. Mas o que a mulher poderia fazer? A própria Louisa era uma calamidade. Então Lily abria a boca e nada saía, depois Louisa desandava a falar sobre conhecer sua avó ou a perguntar se comera alguma coisa, e Lily se dera conta de que estava sozinha.
Às vezes, ficava acordada na cama pensando em como as coisas seriam se o pai estivesse vivo. Conseguia imaginá-lo. Ele teria agarrado Peter pelo pescoço e falado para o garoto nunca mais chegar perto da sua filhinha. Teria colocado os braços em volta dela, dizendo que estava tudo bem, que estava em segurança.
Mas ele não faria isso. Porque era apenas um tetraplégico revoltado que nem sequer quisera viver. Ele teria visto as fotos e ficado enojado.
E ela não podia culpá-lo.
A última vez, quando Lily não tinha nada para entregar, Peter gritara com ela na calçada atrás da Carnaby Street, chamando-a de inútil, puta, piranhazinha burra. Ele parara o carro e descera. Ela fora beber dois uísques duplos porque estava com medo de olhar para ele. Quando o garoto gritou que ela estava mentindo, Lily começou a chorar.
— Louisa me expulsou de casa. Minha mãe também. Não tenho nada.
As pessoas passavam depressa, desviando os olhos. Ninguém parava. Ninguém dizia nada, porque um homem gritando com uma garota bêbada no Soho numa sexta à noite não era incomum. Peter xingou e girou nos calcanhares, como se estivesse indo embora, só que ela sabia que isso não ia acontecer. Então um grande carro preto parou no meio da rua e deu ré, as luzes brancas brilhando. O vidro elétrico baixou fazendo um zumbido.
— Lily?
Ela demorou alguns segundos para reconhecê-lo. Era o Sr. Garside, que trabalhava com seu padrasto. O chefe dele? Um sócio? Olhou para ela e depois para Peter.
— Você está bem?
Ela olhou para o garoto, depois assentiu.
O Sr. Garside não acreditou. Deu para perceber. O homem estacionou na frente do carro de Peter e foi lentamente até ela com seu terno preto. Tinha um ar de autoridade, como se nada fosse intimidá-lo. Ela se lembrou aleatoriamente de sua mãe comentando que ele tinha um helicóptero.
— Precisa de uma carona para casa, Lily?
Peter ergueu um pouco a mão com o celular. Apenas para provocá-la. E Lily ficou boquiaberta, mas depois disse:
— Ele tem uma foto constrangedora minha no telefone, está ameaçando mostrar para todo mundo e quer dinheiro, mas não tenho nada. Já dei o que podia e não tenho mais nada. Por favor, me ajude.
Peter arregalou os olhos. Não esperava por isso. Mas ela não se importava com o que ia acontecer. Só estava desesperada, cansada e não queria mais lidar com essa situação toda sozinha.
O Sr. Garside ficou encarando Peter por um instante. O garoto enrijeceu os ombros e se empertigou, como se estivesse considerando a possibilidade de correr até o carro.
— Isso é verdade? — perguntou o Sr. Garside.
— Não é crime ter fotos de garotas no celular. — Peter deu um sorrisinho, a atitude de um fanfarrão.
— Eu sei. Mas é crime usá-las para extorquir dinheiro. — O tom de voz do Sr. Garside era baixo e calmo, como se fosse perfeitamente razoável discutir no meio da rua sobre fotos de uma pessoa nua. Ele enfiou a mão no bolso interno. — Quanto vai custar para fazer você ir embora?
— O quê?
— Seu celular. Quanto quer por ele?
Lily ficou sem ar. Olhou de um para o outro. Peter encarava, incrédulo, o Sr. Garside.
— Estou oferecendo dinheiro pelo seu telefone. Considerando que nele esteja a única cópia da foto.
— Não estou vendendo meu celular.
— Então, rapaz, preciso avisar que vou procurar a polícia e dar a placa do seu carro. Eu tenho muitos amigos na polícia. Amigos bem importantes. — Ele deu um sorriso que não parecia nem um pouco um sorriso.
Do outro lado da rua, várias pessoas saíram rindo de um restaurante. Peter olhou para Lily e depois para o Sr. Garside. Depois ergueu o queixo.
— Cinco mil.
O Sr. Garside enfiou a mão no bolso e fez que não com a cabeça.
— Acho que não. — Pegou a carteira e contou um maço de notas. — Acho que isso vai servir. Parece que você já foi bastante recompensado. Seu celular, por favor.
Foi como se Peter estivesse hipnotizado. Ele hesitou um instante, mas acabou entregando o telefone ao Sr. Garside. Simples assim. O homem verificou se o chip estava ali, enfiou-o no bolso e abriu a porta do carro para Lily.
— Acho que está na hora de ir embora, Lily.
Ela entrou no carro como uma criança obediente, ouvindo o baque da porta se fechando às suas costas. Depois partiram, seguindo tranquilamente pela rua estreita, deixando Peter em choque – ela conseguia vê-lo pelo espelho lateral – como se ele também não fosse capaz de acreditar no que acabara de acontecer.
— Você está bem? — O Sr. Garside não olhava para ela ao falar.
— É... só isso?
Ele olhou-a de soslaio, depois virou-se para a frente.
— Acho que sim.
Ela não conseguia acreditar. Não conseguia acreditar que aquele problema que a ameaçara durante semanas tinha se resolvido num piscar de olhos. Lily se virou para ele, sentindo-se ansiosa de repente.
— Por favor, não conte para minha mãe nem para o Francis.
Ele franziu levemente a testa.
— Se é o que você quer.
Ela suspirou fundo.
— Obrigada — disse em voz baixa.
Ele deu um tapinha em seu joelho.
— Menino mau. Precisa tomar cuidado com seus amigos, Lily.
Ele levou a mão de volta para o câmbio automático antes de ela registrar seu gesto.

* * *

O Sr. Garside nem piscara quando ela contara que não tinha onde ficar. Ele a levara para um hotel em Bayswater e falara baixinho com a recepcionista, que entregara a ela a chave do quarto. Lily ficara aliviada pelo fato de o homem não ter sugerido levá-la para a casa dele, porque ela não queria se explicar para mais ninguém.
— Venho buscar você amanhã quando estiver sóbria — dissera ele, guardando a carteira no bolso do paletó.
Ela subira pesadamente até o quarto 311, se deitara na cama sem tirar a roupa e dormira por quatorze horas.

* * *

Ele ligou para avisar que iria tomar café da manhã com ela. Lily tomou um banho, tirou algumas roupas da mochila e deu uma desamassada com ferro na esperança de ficar com um aspecto um pouco mais apresentável. Mas não era boa em passar roupa. Era Lena quem fazia essas coisas.
Quando desceu para o restaurante, ele já estava sentado à mesa, lendo um jornal, com uma xícara de café pela metade à sua frente. Era mais velho do que ela se lembrava, com pouco cabelo no topo na cabeça e a pele do pescoço enrugada. A última vez que o vira fora num evento da empresa, uma corrida em que Francis bebera demais e sua mãe sibilara furiosamente com ele quando não havia ninguém por perto. O Sr. Garside, flagrando a cena, erguera as sobrancelhas para Lily, como se dissesse “Pais, né?”.
Ela se sentou na cadeira em frente a ele, que baixou o jornal.
— Ah. Como você está hoje?
Ela ficou constrangida, como se houvesse sido excessivamente dramáticana noite passada. Como se tudo não tivesse passado de um escândalo sem justificativa.
— Muito melhor, obrigada.
— Dormiu bem?
— Muito bem, obrigada.
Ele a observara por um minuto sobre os óculos.
— Muito formal.
Ela sorriu. Não sabia mais o que fazer. Era muito esquisito estar ali com o colega de trabalho do padrasto. A garçonete lhe ofereceu café e ela aceitou.
Deu uma olhada no bufê, se perguntando se esperavam que ela pagasse. Ele pareceu sentir seu desconforto.
— Coma alguma coisa. Não se preocupe. Está pago.
Ele voltou a atenção para o jornal.
Lily se perguntou se o Sr. Garside contaria a seus pais e queria saber o que ele tinha feito com o telefone de Peter. Esperava que tivesse desacelerado o carro preto às margens do Tâmisa, baixado o vidro e jogado o aparelho na correnteza lá embaixo. Ela nunca mais queria ver aquela foto.
Levantou-se e pegou um croissant e algumas frutas no bufê. Estava faminta. Ele ficou lendo enquanto Lily comia. Ela se perguntou o que os dois pareciam para quem olhava de fora. Pai e filha, provavelmente. Ela se perguntou se ele tinha filhos.
— Você não tem que ir para o trabalho?
Ele sorriu e aceitou mais café da garçonete.
— Falei que tinha uma reunião importante.
Ele dobrou o jornal com capricho e o colocou na mesa. Ela se remexeu desconfortavelmente na cadeira.
— Preciso arranjar um emprego.
— Um emprego. — Ele se recostou na cadeira. — Bem, que tipo de emprego?
— Não sei. Eu me ferrei nas provas.
— E o que seus pais acham disso?
— Eles não... Eu não... Eles não estão muito contentes comigo. Tenho ficado na casa de amigos.
— Você não pode voltar para lá?
— Agora não. Minha amiga também não está muito contente comigo.
— Ah, Lily — disse ele, suspirando.
O Sr. Garside olhou pela janela, considerando algo por um instante, depois conferiu seu relógio caro. Pensou mais um pouco, então ligou para o escritório e disse que chegaria tarde da reunião. Ela esperou para ouvir o que ele tinha a dizer em seguida.
— Já terminou? — O Sr. Garside guardou o jornal na pasta e se levantou. — Vamos embora bolar um plano.

* * *

Lily não esperava que ele fosse ao quarto dela e ficou sem graça com o estado do local: toalhas molhadas no chão, a televisão ligada no volume mais alto num programa de quinta categoria. Ela jogou a parte da bagunça no banheiro e enfiou às pressas o resto das suas coisas na mochila. Ele fingiu não reparar, limitou-se a olhar pela janela, depois se virou quando ela se sentou na cadeira, como se tivesse acabado de entrar no quarto.
— Até que não é um hotel ruim — comentou ele. — Eu me hospedava aqui quando não conseguia enfrentar a viagem até Winchester.
— É onde você mora?
— É onde minha mulher mora. Meus filhos já são adultos.
Ele deixou a pasta no chão e sentou-se na beirada da cama. Ela se levantou e pegou o bloco de papel de cortesia na mesa de cabeceira, caso precisasse anotar alguma coisa. Seu celular tocou e ela deu uma olhada.

Lily, me ligue. Bj, Louisa.

Ela o enfiou no bolso de trás e sentou-se com o bloco no colo.
— Então, o que acha?
— Você está numa posição complicada, Lily. Para falar a verdade, é jovem demais para estar procurando emprego. Não sei quem iria contratar você.
— Mas sou boa em muita coisa. Sou esforçada. Entendo de jardinagem.
— Jardinagem! Bem, talvez você consiga arranjar trabalho nessa área. Se o dinheiro vai ser suficiente para você se sustentar é outra questão. Tem alguma referência? Algum trabalho de férias?
— Não. Meus pais sempre me deram mesada.
— Hum. — Ele dava tapinhas no próprio joelho. — Você tem um relacionamento difícil com seu pai, não tem?
— Francis não é meu pai de verdade.
— É, sei disso. Sei que você saiu de casa algumas semanas atrás. Parece uma situação muito triste. Muito triste. Você deve se sentir bastante isolada.
Ela sentiu o nó aumentar em sua garganta e por um instante pensou que ele fosse pegar um lenço, mas enfiou a mão no bolso do paletó, de onde tirou um celular. O de Peter. Ele mexeu no aparelho e ela viu um lampejo da própria imagem. Ficou sem ar.
Ele clicou na imagem para aumentá-la. Lily enrubesceu. Ele ficou olhando a foto pelo que pareceu uma eternidade.
— Você realmente tem sido uma menina muito má, não é?
Lily agarrou com força a colcha do hotel. Olhou para o Sr. Garside com as bochechas queimando. Ele não desviava os olhos da foto.
— Uma menina muito má. — Por fim, olhou fixo para ela e acrescentou com um tom de voz suave: — Acho que a primeira coisa que precisamos fazer é descobrir um jeito de você me ressarcir pelo celular e pelo hotel.
— Mas — começou ela — você não disse...
— Ah, qual é, Lily, uma pessoa esperta como você deve saber que nada é de graça. — Ele olhou para a foto. — Deve ter descoberto há algum tempo... Está na cara que você é boa nisso.
O café da manhã de Lily subiu pela garganta.
— Está vendo, eu poderia ser muito útil para você. Providenciar um lugar para você morar até se reerguer, dar um empurrãozinho na sua carreira. Você não precisaria fazer quase nada em troca. Quid pro quo. Conhece essa expressão? Estudou latim na escola, não é?
Ela se levantou bruscamente e foi pegar a mochila. Ele segurou seu braço.
Com a mão livre, enfiou devagarinho o celular de volta no bolso.
— Não vamos apressar as coisas, Lily. A gente não quer que eu mostre essa foto para os seus pais, não é mesmo? Vai saber o que eles achariam do que você andou aprontando.
As palavras dela ficaram engasgadas na garganta. Ele dava tapinhas na colcha da cama.
— Eu pensaria com muito cuidado no seu próximo passo. Por que a gente...
Lily puxou o braço, desvencilhando-se dele. Depois abriu a porta do quarto e saiu correndo pelo corredor do hotel, com a mochila balançando às suas costas.

* * *

Londres fervilhava durante a madrugada. Lily andava enquanto carros tentavam impacientemente ultrapassar os ônibus nas avenidas principais, táxis costuravam o trânsito, homens de terno seguiam para casa ou continuavam sentados em pequenos escritórios iluminados em prédios tão altos que se aproximavam do céu, ignorando os faxineiros que trabalhavam em silêncio em volta deles. Lily andava com a cabeça baixa e a mochila no ombro, e, quando comia em lanchonetes que ficavam abertas até tarde, mantinha sempre o capuz levantado e fingia estar lendo um desses jornais distribuídos gratuitamente, pois toda vez alguém se sentava à mesa e tentava puxar assunto com ela. Só estou sendo simpático, querida.
Ela repassava o tempo inteiro os acontecimentos daquela manhã. O que ela tinha feito? Que sinal enviara? Havia algo nela que fazia todo mundo achar que era uma prostituta? As palavras dele a deixaram com vontade de chorar. Lily tinha a impressão de que encolhia dentro do capuz, odiando-o. Odiando a si mesma.
Usava sua carteirinha de estudante e andava de metrô até o ambiente ficar perturbado e febril. Nesse momento parecia mais seguro ficar sobre a terra. Ela passava o resto do tempo atravessando a resplandecente Picadilly com suas luzes de neon, a extensão poluída da Marylebone Road, diante dos agitados bares noturnos de Camden. Dava passos largos, fingindo ter para onde ir, e só diminuía o ritmo quando seus pés começavam a doer por causa daquela calçada desconfortável.
Quando ficava cansada demais, implorava por favores. Passou uma noite na casa de sua amiga Nina, mas Nina fazia muitas perguntas. E, quando Lily, deitada na banheira com o cabelo imerso na água para se livrar da fuligem, ouviu-a conversando no andar de baixo com os pais, sentiu-se a pessoa mais sozinha do mundo. Foi embora após o café da manhã, apesar de a mãe de sua amiga ter falado que ela podia ficar mais uma noite, observando-a com preocupados olhos maternais. Ela passou duas noites no sofá de uma garota que conheceu numa boate, mas três homens também dividiam o apartamento e ela não relaxou o suficiente para conseguir dormir; ficou sentada toda vestida, abraçando os joelhos, assistindo à televisão sem som até amanhecer. Passou uma noite no hostel do Exército da Salvação, ouvindo duas garotas discutirem no cubículo ao lado, enquanto agarrava sua mochila sob o cobertor. Disseram que ela podia tomar banho, mas Lily não gostava de deixar a bolsa no vestiário enquanto ia para o chuveiro.
Tomou a sopa grátis e foi embora. Andou muito de um lado para outro, gastando seus últimos tostões com café barato e McMuffins de ovo e ficando cada vez mais cansada e faminta até que se tornou difícil pensar com clareza, reagir quando os homens surgiam em vãos de portas e diziam coisas repugnantes ou quando o funcionário na cafeteria falava que ela já tinha feito aquela única xícara de chá durar bastante, moça, e já estava na hora de liberar a mesa.
Lily se perguntava o tempo todo o que seus pais estavam dizendo e o que o Sr. Garside contaria quando lhes mostrasse as fotos. Ela conseguia imaginar a expressão de choque da mãe e Francis balançando lentamente a cabeça, como se essa nova Lily não fosse nenhuma surpresa para ele.
Ela tinha sido muito burra.
Devia ter roubado o celular.
Devia ter pisado nele.
Devia ter pisado no Sr. Garside.
Não devia ter ido ao maldito apartamento daquele garoto, agido como uma idiota e estragado sua vida. Em geral era nesse momento que ela voltava a chorar, puxava mais o capuz em volta do rosto e...

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