Capítulo 20

— Ela o quê?
Notei a incredulidade no silêncio da Sra. Traynor, e quem sabe (talvez eu estivesse supersensível) um leve eco da última coisa dela que eu fracassara em manter sã e salva.
— E você já tentou ligar?
— Ela não está atendendo.
— E a menina não tem mantido contato com os pais?
Fechei os olhos. Eu estava com medo de ter essa conversa.
— Parece que ela já fez isso. A Sra. Houghton-Miller tem certeza de que Lily vai reaparecer a qualquer momento.
A Sra. Traynor assimilou a informação.
— Mas você não tem.
— Alguma coisa está errada, Sra. Traynor. Sei que não sou mãe, mas eu simplesmente... — Minhas palavras pairaram no ar. — Enfim. Prefiro fazer algo a não fazer nada, então vou sair mais uma vez por aí atrás dela. Eu só queria que a senhora soubesse o que está realmente acontecendo.
A Sra. Traynor ficou quieta por um instante. Depois, com uma voz comedida mas determinada, disse:
— Louisa, antes de ir, você se importaria de me dar o telefone da Sra. Houghton-Miller?

* * *

Liguei para o trabalho e dei a desculpa de estar doente para faltar, notando que a resposta fria de Richard Percival era, na verdade, mais ameaçadora do que suas reclamações anteriores. Imprimi algumas fotos: a do perfil do Facebook de Lily e uma selfie que ela havia tirado de nós duas. Passei a manhã percorrendo o centro de Londres de carro. Estacionei no meio-fio, deixando o pisca-alerta ligado para entrar em pubs, lanchonetes e boates em que os faxineiros, trabalhando naquele ar viciado e turvo, me olhavam desconfiados.
— Já viu essa garota?
— Quem quer saber?
— Já viu essa garota?
— Você é da polícia? Não quero me meter em confusão.
E era óbvio que algumas pessoas achavam graça em me enrolar um pouco.
— Ah, essa garota! Cabelo castanho? Qual é mesmo o nome dela?... NãoNunca vi.
Parecia que ninguém a vira. E, quanto mais longe eu ia, mais inútil aquilo parecia. Tem lugar melhor do que Londres para desaparecer? Uma metrópole fervilhante onde era possível entrar furtivamente em um milhão de portas e misturar-se a multidões intermináveis. Eu observava os prédios altos e me perguntava se ela estava deitada de pijama no sofá de alguém.
Lily se aproximava com facilidade das pessoas e não tinha medo de pedir nada. Então poderia estar com qualquer um.
Mas...
Eu não tinha muita certeza do que me impulsionava a continuar. Talvez fosse a raiva que eu sentia da distância com que Tanya Houghton-Miller educava seus filhos. Talvez fosse minha culpa por ter fracassado justo no que eu criticava Tanya de não fazer. Quem sabe fosse só porque eu sabia muito bem como uma garota tão jovem podia ser vulnerável.
Mas o principal era Will. Eu andava a pé, de carro, interrogava, caminhava e tinha conversas intermináveis com ele enquanto meu quadril doía. Então eu parava o carro, comia sanduíches velhos e chocolates artesanais, e tomava analgésicos para poder continuar.
Aonde ela iria, Will?
O que você faria?
E mais uma vez: Desculpe. Decepcionei você.

* * *

Alguma novidade?, perguntei a Sam por mensagem. Era esquisito falar com ele ao mesmo tempo em que conversava mentalmente com Will. Parecia um estranho tipo de infidelidade. Eu não tinha muita certeza de quem estava traindo.
Não. Já liguei para todas as emergências de Londres. E você?
Um pouco cansada.
Quadril?
Nada que um analgésico não resolva.
Quer que eu passe na sua casa depois do trabalho?
Acho que preciso continuar procurando.
Não vá a nenhum lugar que eu não iria. Bj
Muito engraçado. Bjs
— Já tentou os hospitais? — Minha irmã ligou da faculdade, no intervalo de quinze minutos entre Evolução da arrecadação de taxas e Impostos sobre bens e serviços: uma perspectiva europeia.
— Sam disse que ninguém com o nome dela deu entrada nos hospitais universitários. Ele conhece gente em tudo quanto é canto e estão procurando por ela.
Eu olhava para trás ao falar, como se esperasse ver Lily surgindo no meio da multidão.
— Estão procurando há quanto tempo?
— Alguns dias. — Não contei que eu quase não dormia mais. — Eu... hum... pedi dispensa do trabalho hoje.
— Eu sabia! Eu sabia que essa menina ia causar confusão. Seu chefe se importou? O que aconteceu com aquele outro trabalho, aliás? O de Nova York? Você fez a entrevista? Por favor, não me diga que esqueceu.
Demorei um pouco para entender sobre o que ela estava falando.
— Ah. Aquele. Eu consegui.
— Você o quê?
— Nathan disse que vão me oferecer a vaga.
Westminster estava cheia de turistas que se entretinham nas barraquinhas vistosas repletas de bugigangas da Union Jack, erguendo os celulares e suas câmeras caras para captar as imponentes Casas do Parlamento. Reparei que o guarda de trânsito vinha na minha direção e me perguntei se alguma legislação antiterrorista me proibia de estacionar naquele local. Ergui a mão, indicando que eu estava prestes a sair.
Houve um breve silêncio do outro lado da linha.
— Espere aí... Você não está dizendo que...
— Nem consigo pensar sobre isso agora, Treen. Lily desapareceu e preciso encontrá-la.
— Louisa? Escute aqui. Você tem que aceitar esse trabalho.
— O quê?
— É a oportunidade da sua vida. Você nem imagina o que eu daria por uma chance de me mudar para Nova York... Com emprego garantido ainda. E um lugar para morar. E você “nem consegue pensar sobre isso agora”?
— Não é tão simples.
O guarda de trânsito estava definitivamente vindo na minha direção.
— Ai, meu Deus. É isso. Era sobre isso que eu estava tentando falar com você. Toda vez que tem a chance de seguir em frente, você acaba sequestrando seu futuro. É como... é como se na verdade você não quisesse.
— Lily sumiu, Treen.
— Uma garota de dezesseis anos que você mal conhece, que tem pai e mãe e pelo menos dois avós, se mandou por alguns dias, sendo que já fez isso antes. Como os adolescentes fazem de vez em quando. E você vai usar isso como desculpa para desperdiçar a maior oportunidade que vai ter na vida? Caramba. Você nem ao menos quer ir, não é?
— O que quer dizer com isso?
— Para você é muito mais fácil manter esse seu empreguinho deprimente e ficar reclamando dele. É muito mais fácil ficar quieta, não correr riscos e dizer que tudo o que acontece é inevitável.
— Não posso simplesmente ir embora no meio disso tudo.
— Você é responsável pela sua vida, Lou. Mas age como se fosse permanentemente surpreendida por acontecimentos que fogem ao seu controle. O que é isso? Culpa? Você acha que deve alguma coisa a Will? É algum tipo de penitência? Tem que abrir mão da sua vida porque não conseguiu salvar a dele?
— Você não entende.
— Não. Eu entendo perfeitamente. Entendo melhor do que você mesma se entende. A filha dele não é responsabilidade sua. Está me ouvindo? Nada disso é responsabilidade sua. E se você não for para Nova York, algo sobre o qual nem consigo falar porque realmente me deixa com vontade de te matar, nunca mais olho na sua cara. Nunca mais.
O guarda de trânsito estava ao lado da minha janela. Baixei o vidro, fazendo a expressão universal que todo mundo faz quando sua irmã está surtando do outro lado da linha e sentimos muito, mas não podemos interromper abruptamente a conversa. Ele indicou seu relógio de pulso e assenti, de um jeito tranquilizador.
— Então é isso, Lou. Pense um pouco. Lily não é sua filha.
Fiquei olhando para o meu celular. Agradeci ao guarda de trânsito e depois fechei a janela. Então uma frase surgiu na minha cabeça: ele não é meu pai de verdade.
Virei a esquina, parei ao lado de um posto de gasolina e folheei um surrado guia com mapas que eu deixava sempre no chão do meu carro, tentando lembrar o nome da rua que Lily tinha mencionado. Pyemore, Pyecrust, Pyecroft. Tracei com o dedo a distância até St. John’s Wood. Será que daria uns quinze minutos a pé? Só podia ser o mesmo lugar.
Peguei o celular para procurar o sobrenome dele junto do nome da rua, e lá estava. Número cinquenta e seis. Fiquei muito empolgada. Liguei o carro, passei a marcha e arranquei para a rua.

* * *

Embora separadas por menos de um quilômetro e meio, a casa da mãe de Lily e a de seu antigo padrasto não poderiam ser mais diferentes. Enquanto a rua dos Houghton-Miller era marcada por casas imponentes revestidas de estuque branco ou tijolos aparentes, pontuada por arbustos e carrões que pareciam nunca se sujar, a rua de Martin Steele não era nada burguesa. Era um canto de Londres com sobradinhos, onde os preços dos imóveis subiam vertiginosamente, mas as fachadas insistiam em não refletir esse aumento.
Dirigi devagar, passando por carros cobertos de lona, por uma lixeira revirada, e finalmente encontrei uma vaga perto de uma casa vitoriana geminada, do tipo que havia por toda cidade. Observei a construção, reparando na pintura descascada na porta da frente e no regador de brinquedo no degrau. Por favor, que ela esteja aqui, rezei. A salvo dentro dessas paredes.
Saltei, tranquei o carro e fui até o primeiro degrau.
Eu conseguia ouvir vozes abafadas e um piano sendo dedilhado lá dentro, com um acorde interrompido se repetindo sem parar. Hesitei apenas por um instante, depois toquei a campainha, tendo como resposta a interrupção súbita da música.
Ouvi passos no corredor, a porta se abriu e apareceu um quarentão de camisa xadrez, calça jeans e barba por fazer.
— Pois não?
— Por acaso... Lily está aí?
— Lily?
Sorri e estendi a mão.
— Você é Martin Steele?
Ele me analisou rapidamente antes de responder:
— Talvez. Quem é você?
— Sou amiga de Lily. Eu... estou tentando entrar em contato com ela e achei que talvez pudesse estar aqui. Ou que talvez você saiba onde ela está.
Ele franziu a testa.
— Lily? Lily Miller?
— Hum, é.
Ele esfregou o queixo e olhou para o corredor às suas costas.
— Será que pode esperar um minuto, por favor?
Ele andou pelo corredor e o ouvi dar instruções para quem estava ao piano. Quando voltou, uma escala começou a ser tocada de forma hesitante, depois com mais ênfase.
Martin Steele encostou a porta às suas costas e baixou a cabeça por um instante, como se tentasse entender a pergunta que eu lhe fizera.
— Desculpe. Estou um pouco confuso. Você é amiga de Lily Miller? E veio aqui por quê?
— Porque Lily disse que passou aqui para conversar com você. Você é... foi... padrasto dela?
— Não tecnicamente, mas sim. Muito tempo atrás.
— E você é músico? Costumava levá-la à creche? Mas continuam mantendo contato, não é? Ela me falou que vocês ainda são muito próximos. E que isso deixava a mãe dela irritada.
Martin semicerrou os olhos para mim.
— Srta...
— Clark. Louisa Clark.
— Srta. Clark. Louisa. Não vejo Lily Miller desde que ela tinha cinco anos. Quando nos separamos, Tanya achou que seria melhor eu e Lily não termos mais qualquer contato.
Fiquei olhando para ele.
— Então ela não esteve aqui?
Ele pensou um pouco.
— Esteve uma vez, alguns anos atrás, mas não era um bom momento. Tínhamos acabado de ter um bebê e eu estava tentando dar aula, e, bem, para ser sincero, não entendi o que ela realmente queria de mim.
— Então não a viu nem falou com ela desde então?
— Com exceção dessa única vez, não. Está tudo bem? Ela se meteu em alguma confusão?
Lá dentro, o piano continuava tocando: dó ré mi fá sol lá si dó. Dó si lá sol fá mi ré dó. Sem parar.
Acenei com a mão, já recuando na escada.
— Não. Está tudo bem. O erro foi meu. Desculpe o incômodo.

* * *

Passei outra noite rodando por Londres, ignorando as ligações da minha irmã e o e-mail de Richard Percival, cujo assunto era URGENTE e PESSOAL.
Dirigi até ficar com os olhos vermelhos por causa do clarão dos faróis e me dar conta de que estava indo a lugares por onde já havia passado sem ter mais dinheiro para a gasolina.
Fui para casa logo antes da meia-noite, prometendo a mim mesma que pegaria o cartão de crédito, beberia uma xícara de chá, descansaria a vista por meia hora, depois sairia de novo. Tirei os sapatos e fiz uma torrada, mas não consegui comer. Em vez disso, tomei mais dois analgésicos e me deitei no sofá, com a cabeça a mil. O que eu não estava enxergando? Devia ter alguma pista. A exaustão fazia meu cérebro zumbir, a ansiedade me deixava com um nó permanente no estômago. Em quais ruas eu não procurara? Será que havia a chance de ela ter ido para outro lugar que não Londres?
Eu me dei conta de que não havia escolha. Tínhamos que comunicar à polícia. Era melhor ser considerada idiota e excessivamente dramática do que correr o risco de algo acontecer com ela. Fiquei deitada e fechei os olhos por cinco minutos.

* * *

Acordei três horas depois com o celular tocando. Eu me levantei em um pulo, sem saber onde estava. Então olhei para a tela piscando ao meu lado e atendi toda atrapalhada.
— Alô?
— Estamos com ela.
— O quê?
— É Sam. Estamos com Lily. Pode vir aqui?

* * *

Com a aglomeração que houve à noite depois da derrota da Inglaterra em uma partida de futebol, com o mau humor e as lesões relacionadas às bebedeiras, ninguém reparara na menina magra que dormia atravessada sobre duas cadeiras no canto com o capuz tapando o rosto. Só quando a enfermeira da triagem foi de um em um para se certificar de que o prazo de espera para o atendimento estava sendo cumprido, alguém sacudira a garota para acordá-la e ela confessara com relutância que só estava ali porque o local era aquecido, seco e seguro.
A enfermeira a estava interrogando quando Sam, carregando uma idosa com problemas respiratórios, a viu. Ele dissera baixinho para as enfermeiras não deixarem a garota sair e correra para me ligar antes que ela pudesse vê-lo. Sam me contou isso quando entramos na emergência. A sala de espera finalmente começava a esvaziar, as crianças com febre estavam em segurança dentro dos cubículos com os pais, os bêbados tinham sido mandados para casa a fim de dormir e curar o porre. Àquela hora da noite só havia vítimas de acidentes de trânsito e esfaqueamento.
— Deram um chá a ela. Parece exausta. Acho que só quer ficar sentada quietinha. — Devo ter parecido ansiosa, porque ele acrescentou: — Está tudo bem. Não vão deixá-la ir embora.
Eu meio que andava, meio que corria pelo corredor com iluminação fria. Sam dava passos largos ao meu lado. E lá estava ela, de alguma maneira parecendo menor do que era, o cabelo trançado de qualquer jeito, com um copo descartável nas mãos magras. Havia uma enfermeira sentada ao seu lado, consultando uma pilha de pastas, e quando me viu e reconheceu Sam, ela sorriu calorosamente e depois se levantou para sair. Notei que as unhas de Lily estavam pretas de tão sujas.
— Lily — chamei. Seus olhos escuros e sombrios encontraram os meus. — O que... o que aconteceu?
Ela olhou para mim, depois para Sam, os olhos arregalados e um pouco temerosos.
— Procuramos você por toda parte. Estávamos... Meu Deus, Lily. Por onde você andou?
— Desculpe — sussurrou ela.
Balancei a cabeça negativamente, tentando mostrar que isso não importava. Que nada podia ter importância, que a única coisa importante era que ela estava sã e salva ali.

Abri os braços. Ela encontrou meu olhar, deu um passo à frente e encostou delicadamente em mim. Eu lhe dei um abraço forte, sentindo seus soluços silenciosos e espasmódicos virarem meus. Só consegui agradecer a algum Deus desconhecido e oferecer essas palavras: Will. Will... nós a encontramos.

Nenhum comentário :

Postar um comentário

Atenção: para postar um comentário, escolha Nome/Url. Se quiser insira somente seu nome.

Please, no spoilers!

Expresse-se:
(◕‿◕✿) 。◕‿◕。 ●▽●

⊱✿◕‿◕✿⊰(◡‿◡✿)(◕〝◕) ◑▂◐ ◑0◐

◑︿◐ ◑ω◐ ◑﹏◐ ◑△◐ ◑▽◐ ●▂● 

●0● ●︿● ●ω● ●﹏● ●△● ●▽●

Topo