Capítulo 20

 FOI DIFÍCIL DORMIR com tantas coisas na cabeça. E quando enfim
peguei no sono, sonhei com o Erick e com o Dudu. Dudu correndo suado
num corredor de hospital, vestido de branco, e Erick se afogando com
uma onda. Eu querendo ir ao encontro dos dois, mas estava presa numa
torre na Noruega. Ou na Escócia. Sei lá, em algum país frio.
Acordei assustada com o despertador. Que sonho angustiante. Assim
que me refiz dele, só conseguia pensar no dia anterior. Como seria
encontrar com o Erick agora de manhã na escola? Como eu deveria falar
com ele? Ele falaria comigo? Como eu deveria cumprimentá-lo? E o
Dudu, hein? Ai, que dúvidas felizes e inéditas na minha cabeça!
Ao chegar no colégio terça de manhã, não foi difícil perceber que só
se falava em uma coisa. O fim do namoro de Erickina/Valerick era tema
de todas as rodinhas de todas as turmas. Até as crianças do jardim de
infância pareciam saber da fofoca do ano e debatiam o assunto.
– Já tá sabendo? – perguntou Samantha, com olhos esbugalhados,
assim que me viu entrar na sala.
– Ai, meu Deus! Do término? Doida! Eu e o Zeca que te contamos
ontem, lembra?
– Término? Que término? Isso já é passado! – rebateu ela. – Tô
falando da foto.
– Que foto? – questionei, espantadíssima. – Do Erick?
– Não!
– De quem?
– Da Va-len-ti-na.
– Que foto é essa? Como é a foto? – indaguei.
– É um quase nude.
– Para! Mentira! Um quase nude? Como assim?
– E o babado maior: tão dizendo que foi o Erick que mandou pra
todos os meninos.
– Não!!! O Erick jamais faria uma coisa dessas! Tem certeza? –
exclamei num ímpeto.
– Bom, ele assinou a foto! Depois espalhou, né? Mas pensa: se uma
pessoa xinga a sua mãe, você não faria qualquer coisa pra revidar?
– Ela xingou a mãe dele, Samantha? – eu me espantava a cada
revelação.
– É o que está todo mundo dizendo… A mãe dele nunca gostou da
Valentina e a Valentina resolveu chamar a mulher de periguete pra
baixo depois que eles terminaram. Parece que o barraco foi feio.
– Tô begeeee! – foi o que saiu da minha boca.
Eu estava pegando manias do Zeca.
E, nesse momento em que uma avalanche de informações adentrava
meu ainda sonolento cérebro, meu celular fez plim. Era a tal foto da
Valentina Metidina chegando para mim também. OMG! Alguém a pegou
em um ângulo desfavorável, descendo de saia uma escada vazada no
colégio, em que dava para ver as pernas dela e boa parte da sua calcinha.
Ela tinha uma mancha de nascença na batata da perna que não deixava
dúvidas. Era a Valentina mesmo. Na legenda, a frase:

Livre pra voar. Não tô mais pegando,
mas geral pode pegar a goxxxtosa.
Ela finge que é liberal, mas é uma mosca
morta.
Nem beijo bom ela tem, nem nudes ela
manda.
Estou passando adiante. Quem vai?


Abração do Erick


Não era possível. Aquele número de quem veio a foto não era do
Erick! Nem aparecia o nome dele!
– Não foi ele! Com certeza não foi! Ele jamais faria isso! – defendi,
mesmo que estivesse cheia de pontos de interrogação na cabeça.
– Amiga, foi, sim. Ele está com muita raiva! Com raiva a gente faz
essas coisas – argumentou Samantha.
– Gente, que bafão! Esta escola nunca mais vai ser a mesma. Já tem
um monte de memes rolando com a foto! – comentou Zeca, assim que se
aproximou de nós. – Cadê a Peladina, gente?
– Não fala assim… – pedi, com uma pena genuína da Valentina. –
Ninguém merece um vexame desses. Nem ela…
– Peloamorrrr, o que foi que a Coitadina fez pra esse garoto pra ele
ficar com tanta raiva e mandar a bunda dela pra todos os meninos da
escola? Até os professores receberam!
– Mentira que até os professores…! Que vergonha! – exclamei,
chocada.
– Ela xingou o pai dele! – Samantha respondeu na maior certeza.
– Não foi a mãe, Samantha? – corrigi.
– Ela não xingou ninguém, gente! – defendeu Laís, a fiel escudeira da
Valentina, que surgiu ali como em um passe de mágica.
– Cadê a Bundina Pequenina? Não chegou? – Zeca sempre fazendo
sem medo a pergunta que todos gostariam de fazer.
Eu também estava louca para saber onde estava a coitada da
Valentina. Nem consegui rir do Bundina Pequenina. Era pequena, mas
não tinha uma celulite para contar história. Ai, que ódio! Adoraria ter
bunda pequena… Foco para a resposta, Tetê!
– No banheiro, Zeca. Ela não para de chorar, não quer sair de lá por
nada. Tô com muita peninha. Nem comigo ela quer falar. Nem comigo,
nem com a Bianca. Fui na coordenação chamar a Conceição pra
conversar com ela. Isso é crime e vão pegar o Erick – a Laís falou.
– Mandar um quase nude é crime? Deixa de ser louca, Laís! –
bronqueou Zeca.
– Não foi o Erick! Ele não é esse tipo de gente! – insisti.
Eu não podia acreditar que aquele príncipe que me beijou no dia
anterior fosse um mau caráter.
– Você por acaso conhece o Erick, Tetê? Ele não é esse bonzinho que
vocês pensam, não! – atacou Laís, furiosa.
– Alguém já ligou pro telefone que mandou a foto? – perguntei.
– Claro que já. Dá aquela mensagem de “este número de telefone não
existe”.
– Então não é dele – falei, meio aliviada.
– É da mãe dele, que tem mil telefones porque é empresária
riquinha – afirmou Laís. – Tetê, aceita que dói menos. O Erick pegou
um aparelho que ela usava pouco, mandou a foto e cancelou a conta ou
desligou pra sempre o aparelho, sei lá.
Meu mundo caiu. Expor a ex-namorada dessa forma brutal era uma
falha grave de caráter. Eu estava atônita, sem saber o que pensar… Será
que meu sexto sentido tinha se enganado tanto assim? E o Erick, onde
estava?
– Aposto que o covarde nem vai vir – opinou Bianca, entrando no
papo.
– Não vamos julgar sem saber o que de fato aconteceu, meninas… A
Tetê está certa – atenuou Samantha.
– Gente, na boa… Tá difícil defender o Erick… – argumentou Zeca.
Eu só conseguia pensar na Valentina. Nos dedos apontados para ela.
Nas risadas que dariam pelas suas costas. Nas inevitáveis fofoquinhas.
Em tudo o que falariam dela e da bunda dela. O que pensariam. Eu sei
bem o que é sentir isso. Dói. Imagina como seriam daqui para a frente
suas tão disputadas e comentadas festas? Certamente vazias e
deprimentes, como a festa surpresa que minha mãe deu para mim dois
anos antes. Ninguém foi, apesar de todos da minha turma terem
recebido convite. Foi um dia bem triste.
Erick chegou e logo foi abordado por Orelha e Samuca, que lhe
mostraram a foto em seus celulares. Os olhos de todos estavam sobre os
três. O mundo queria ver a reação do Erick.
– O QUÊ?!! – gritou ele. – QUEM FEZ ISSO?! QUEM FEZ ISSOOO?!
– Alguém que te odeia, cara. Ou odeia a Valentina – Orelha tentou
acalmar o amigo.
– Ou odeia vocês dois, o que é mais provável – opinou Samuca.
Erick ficou realmente indignado. Revoltado. Irado. Extremamente
irritado. Desesperado.
– QUEM FEZ ISSO VAI TER QUE PAGAR!!! EU NUNCA FARIA
UMA COISA DESSAS!!! – gritava ele, à beira do descontrole. – QUEM
FEZ ISSO TEM QUE ASSUMIR! VAMOS DESCOBRIR DE QUEM É
ESSE NÚMERO!
A raiva nos olhos dele era nítida, a veia saltava do pescoço.
Deu pena. E eu fiquei com o coração um pouco mais leve querendo
acreditar que ele estava falando a verdade. Mas tinha uma semente da
dúvida plantada em mim… E se ele estivesse mentindo? Eu já não sabia
de mais nada…
– Dá número inexistente, Erick – Zeca entrou na conversa. – Por isso
tá todo mundo falando que é da sua mãe.
– Estão achando que a minha mãe fez isso?!! Que absurdo!!!
– Claro que não! Todo mundo acha que você mandou a foto com um
aparelho da sua mãe – explicou Laís. – Ela tem vários aparelhos, não
tem? Todo mundo viu na sua festa de aniversário do ano passado.
Ele baixou a cabeça. E deu um soco na mesa. Socão. Socão de filme.
Não! De peça do Shakespeare. Não! De novela! Isso. De novela.
Sem respirar, a turma observava o desespero do garoto mais bonito
da escola enquanto ele saía feito um furacão da sala. Pelo jeito, meu
sexto sentido estava mesmo certo: o Erick não tinha feito aquilo. Claro
que não tinha.
– Tetê, eu agora tô com você. Não foi esse bofe que mandou a foto –
falou o Zeca.
– Claro que não! – chegou Davi. – Aquele texto não é coisa do Erick.
Ele nunca aprendeu a diferença entre mais com i e mas sem i. Nunca.
Nem sabe usar vírgula. Além disso, ele abrevia tudo no celular. E
certamente escreveria “finge” com j. Não foi ele – decretou.
Finge com j? Sério? Erick tinha descido uns degraus no meu coração.
Erros de português acabam com qualquer pessoa. Bom, ele já tinha dito
que odiava ler, não me espanta que não escrevesse direito… Será que ele
tinha dislexia, o coitado? Que vida louca, que vida que gira… Para de
filosofar, Tetê! Atenção para o que realmente importa!
– Gente, mas a questão é: quem foi? – indaguei.
– Sinceramente? Pra mim, isso é coisa de mulher.
– Uau, Davi! Aplausos! Faz todo sentido! Um monte de garotas odeia
a Bundina Pequenina! – concordou Zeca.
– A gente também odeia, mas nunca faria uma coisa horrorosa dessas
– comentei.
– Depende do grau de ódio, ué – pontuou Davi.
– Será que… Não. Deixa pra lá – teorizou Zeca.
– Agora fala, Zeca! – pedi, brava.
– Não. Esquece. Viajei.
– Fala! – insisti, agora com a ajuda de Davi, que chegou atrasado mas
sabia da história toda e parecia tão curioso quanto eu.
Zeca se jogou no chão.
– Me ajuda a procurar minha lente aqui, vocês dois! – pediu.
Abaixamos na hora.
– Você não usa lente! – sussurrei.
– Claro que não, bobona, é só pra disfarçar. Aliás, o próximo passo é
fazer a senhora usar lentes, dona Tetê!
– Lentes nem pensar! Me arrepia toda a ideia de enfiar o dedo no
meu olho todos os dias. Mas uma armação nova que tenha mais a ver
comigo do que com a minha avó, que me deu essa, eu superquero.
– Você realmente acredita que nós três de quatro aqui no chão
chamamos pouca atenção? Sério mesmo? – debochou Davi.
Zeca revirou os olhos, irritado com a ironia do nosso amigo.
– Pelo menos a gente pode falar baixinho que ninguém vai escutar –
justificou Zeca. – Pensei na Samantha.
– Na Samantha?! – Davi e eu repetimos em coro.
– Claro que não! – defendeu Davi.
– Ela jamais faria isso – eu disse, indignada.
– Como você sabe?
– Não é a cara dela – argumentei.
– Mas ela odeia a Valentina! Foi BFF dela e depois demitida do posto
de BFF. Isso é grave! – rebateu Zeca.
– Será? Mas tem que ter muito ódio envolvido pra fazer isso… E ela
está colocando o Erick em situação pior ainda. Pensa – Davi ponderou.
– Que nada, Davi! Ela é escorpiana! Escorpião é vingativo, escorpião
é louco, escorpião não vale o chão que pisa! – mandou Zeca.
– Eu sou de escorpião – revelou Davi.
– Mentiraaaa! Nossa, você não tem a menor cara! Deve ser por causa
do seu ascendente… Precisa ver isso aí… – analisou Zeca, incrédulo.
– Não sei o que é ter cara de escorpiano, mas voltemos ao foco do
problema. Então se a Samantha mandou essa foto, ela também tem sérios
problemas com o Erick – Davi analisou.
– E não tem, menino? Já teve um trelelê ali, que eu sei. Não sei
detalhes, não sei a intensidade, mas que teve coisa, teve. Acho que eles
ficaram um tempo e a Valentina roubou ele dela.
– Hum… Então faz sentido ela odiar os dois – falou Davi.
– Claro. Odiar e querer o mal dos dois. Querer os dois na lama. Na
la-ma! E ainda teve a história do banheiro, que tá muito mal explicada!
Meu Deus! Que bafooo! Não podia ter sido a Samantha! Ou podia?
– Classe, classe! Que balbúrdia é essa? Todos em seus lugares!
Agora! – deu bronca Suzana, a professora de Química. – Ah, não vão
calar a boca? Teste surpresa! Agora! – avisou, causando o maior silêncio
que aquela turma já tinha presenciado.
Caramba! Teste surpresa? Enquanto a turma se mordia de ódio da
Suzana, eu só conseguia pensar na foto. E no Erick que não tinha
voltado. E no Orelha que foi atrás dele. E na Valentina. Onde eles
estavam? O que acontecia do lado de fora da minha sala de aula? Que
dúvida! Numa hora dessas é que eu queria ter o superpoder de ficar
invisível. Por que superpoderes não existem? O mundo é injusto
mesmo.
O tempo passou e nem sombra de Valentina e Erick. Orelha voltou
sozinho e levou um susto quando percebeu que fazíamos um teste
surpresa. Chegou a dar meia-volta para sair da sala, mas Suzana olhou
feio para ele, que lentamente se dirigiu para sua carteira.
Quando ele passou por mim, perguntei:
– Cadê o Erick? Ele tá bem?
– Você quer ganhar um zero, Tetê?
– Não, professora. Desculpa.
Droga! Onde estavam Erick e Valentina? Será que estavam
conversando? Brigando? Será que tinham ido embora? O tempo não
passava. A aula de Física começou, depois teria Geografia. Nada do excasal
mais comentado da história mundial das escolas.

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