Capítulo 21

Na primeira noite lá em casa, coloquei Lily na minha cama e ela dormiu por dezoito horas seguidas, acordando à noite para tomar sopa e ir para o banho, e depois apagou por mais oito horas. Dormi no sofá, deixando a porta da frente trancada, com medo de sair ou até mesmo de me mexer e ela acabar sumindo de novo. Sam passou lá duas vezes, antes e depois do trabalho, para trazer leite e conferir como Lily estava. Cochichamos no corredor, como se estivéssemos discutindo sobre uma inválida.
Liguei para Tanya Houghton-Miller e contei que sua filha aparecera sã e salva.
— Eu falei, mas você não quis me ouvir — gabou-se triunfante, e desliguei o telefone antes que ela pudesse dizer mais alguma coisa.
Ou eu.
Telefonei para a Sra. Traynor, que deu um longo e trêmulo suspiro de alívio e demorou um pouco a falar.
— Obrigada — disse ela finalmente. A palavra parecia ter vindo do fundo do seu coração. — Quando posso vê-la?
Depois abri o e-mail de Richard Percival, que informava que Uma vez que lhe foram dados os três avisos necessários, considera-se que, tendo em vista sua baixa assiduidade e seu fracasso em cumprir com as exigências contratuais, seu contrato com o Shamrock and Clover (Aeroporto) será rescindido imediatamente. Ele me pediu para devolver o uniforme (“incluindo a peruca”) o mais rápido possível (ou será descontado).
Abri a mensagem de Nathan, em que ele perguntava: Cadê você, caramba? Viu meu último e-mail?
Pensei na oferta do Sr. Gopnik e, com um suspiro, fechei o laptop.

* * *

No terceiro dia, acordei no sofá e não achei Lily. Meu coração disparou, mas então reparei que a janela estava aberta. Subi a escada de incêndio e a encontrei sentada no telhado, observando a cidade. Estava usando sua calça de pijama, que eu tinha lavado, e o suéter enorme de Will.
— Oi — falei, andando em direção a ela no telhado.
— Você tem comida na geladeira — observou.
— Foi o Sam da ambulância.
— E você regou tudo.
— Também foi principalmente ele.
Ela assentiu, como se talvez isso fosse de se esperar. Ocupei meu lugar no banco e ficamos sentadas sem falar nada por algum tempo, sentindo o perfume de lavanda, cujas flores violeta tinham desabrochado nas estreitas hastes verdes. Tudo naquele pequeno jardim no telhado era uma explosão de vida. As pétalas e as folhas sussurrantes traziam cor, movimento e fragrância para o asfalto cinza.
— Desculpe por ter ficado na sua cama.
— Você precisava mais que eu.
— Você pendurou todas as suas roupas. — Ela se sentou em cima das pernas encolhidas, colocando o cabelo atrás da orelha. Ainda estava pálida. — As bonitas.
— Bem, acho que você me fez pensar que eu não devia mais deixá-las escondidas nas caixas.
Lily me olhou de soslaio e deu um sorrisinho triste que, de alguma maneira, me deixou mais triste do que se ela não tivesse sorrido. Aquele dia prometia ser escaldante, os barulhos da rua pareciam abafados pelo calor do sol. Já dava para sentir esse calor entrando pelas janelas, desbotando o ar. Era possível ouvir o estrépito e o rugido de um caminhão de lixo seguindo lentamente próximo ao meio-fio, sendo acompanhado pelo barulho ensurdecedor de buzinas e vozes masculinas.
— Lily — falei, baixinho, quando o barulho se afastou, por fim — o que está acontecendo? — Tentei não parecer muito questionadora. — Sei que não devo fazer perguntas e não faço parte da sua família de verdade nem nada, mas tudo o que consigo perceber é que alguma coisa deu errado e sinto... sinto como se eu... Bem, sinto como se tivéssemos algum parentesco e quero que você saiba que pode conversar comigo.
Ela mantinha o olhar fixo nas próprias mãos.
— Não vou julgar você. Não vou contar a ninguém nada do que me disser. Eu só... Bem, você precisa saber que contar a verdade a alguém vai ajudar. Prometo. Vai melhorar as coisas.
— Quem disse?
— Eu. Não há nada que não possa me contar, Lily. De verdade.
Ela me encarou, depois desviou os olhos.
— Você não entende — disse ela baixinho.
E então me dei conta. Eu sabia.
Lá embaixo tudo ficara estranhamente silencioso, ou talvez eu já não conseguisse ouvir mais nada para além dos poucos centímetros que nos separavam.
— Vou contar uma história — comecei. — Só uma pessoa no mundo inteiro já a ouviu, porque foi uma coisa que passei muitos anos achando que não conseguiria compartilhar. E ter contado a Will mudou totalmente a forma como eu me sentia em relação a isso e como me sentia em relação a mim mesma. O negócio é o seguinte: não precisa me dizer nada, mas vou confiar em você o bastante para lhe contar minha história assim mesmo, caso ajude.
Esperei um instante, mas Lily não protestou, nem revirou os olhos, nem disse que seria chato. Abraçou os joelhos e escutou. Ficou me ouvindo contar sobre a adolescente que, numa noite gloriosa de verão, extrapolara na comemoração num lugar que ela considerava seguro, mesmo rodeada de amigas e de alguns garotos simpáticos que pareciam ser de boas famílias e ter boas maneiras. Estava tudo muito divertido, engraçado, louco e maneiro, até algumas doses mais tarde ela se dar conta de que quase todas as meninas tinham ido embora, as gargalhadas haviam ficado sinistras e, no fim das contas, era dela que estavam rindo. E contei, sem entrar em muitos detalhes, como aquela noite terminou: com a irmã ajudando-a em silêncio a voltar para casa, sem os sapatos, com as partes íntimas doloridas e um grande buraco negro no lugar das lembranças do que acontecera durante aquelas horas. As recordações, fugazes e obscuras, continuavam presentes para lembrar-lhe todos os dias de que ela tinha sido burra, irresponsável e que aquilo acontecera por sua culpa. E, durante anos, ela deixara esse pensamento influenciar tudo que fazia, aonde ia e nas suas capacidades.
Mas, às vezes, bastava alguém dizer algo simples como: Não. Não foi culpa sua. Não foi mesmo culpa sua.
Terminei minha história e Lily continuou me observando. Sua expressão não dava nenhuma pista da sua reação.
— Não sei o que estava, ou está acontecendo com você, Lily — falei com cautela. — Pode ser que não tenha nada a ver com o que acabei de contar. Só quero que saiba que não há nada tão ruim que você não possa me falar. E nada que você possa fazer me levaria a fechar a porta na sua cara outra vez.
Ela não disse nada. Olhei por cima do terraço, deliberadamente sem encará-la.
— Sabe, seu pai me disse algo que nunca esqueci: “Você não precisa deixar que uma única coisa seja aquilo que define quem você é.”
— Meu pai. — Ela ergueu o queixo.
Assenti.
— O que quer que tenha acontecido, mesmo que não queira me contar, você precisa entender que ele tinha razão. Essas últimas semanas, esses últimos meses, não têm que definir quem você é. Mesmo não te conhecendo muito, sei que é uma menina inteligente, divertida, gentil e esperta, e que, se conseguir deixar para trás o que tiver ocorrido, terá um futuro incrível pela frente.
— Como é que você pode saber?
— Porque você é igual ao seu pai. Está até usando o suéter dele — acrescentei baixinho.
Ela levou devagarinho o braço até o rosto, encostando na lã macia, pensativa.
Eu me recostei no banco, me perguntando se havia forçado a barra ao falar de Will.
Então Lily respirou fundo e, com um tom de voz calmo e monótono, nada típico dela, me contou a verdade sobre onde estivera. Falou sobre o garoto, sobre o homem, sobre a foto em algum celular que a assombrava e sobre os dias que passara feito uma sombra nas ruas da cidade cheias de luzes neon.
Enquanto falava, começou a chorar, encolhendo-se toda, contraindo o rosto como uma criança de cinco anos. Eu me aproximei dela e a puxei para perto de mim, afagando seu cabelo enquanto ela continuava falando, as palavras ficando emboladas, pronunciadas com muita pressa e interrompidas por soluços. Quando contou sobre o último dia, estava encolhida no meu colo, engolida pelo suéter, pelo próprio medo, pela culpa e pela tristeza.
— Desculpe — soluçava. — Desculpe mesmo.
— Você não tem nada, nada do que se desculpar — falei com veemência, enquanto a abraçava.

* * *

Sam apareceu naquela noite. Foi alegre, tranquilo e carinhoso ao lidar com Lily. Quando ela disse que não queria sair, ele preparou para nós uma massa com molho, bacon e cogumelos, e depois assistimos a uma comédia sobre uma família que se perdia na floresta, estranhamente parecida com a nossa família. Sorri, dei risada e fiz chá, mas por dentro eu fervia com uma raiva que não me atrevia a demonstrar.
Assim que Lily foi se deitar, sinalizei para Sam ir até a escada de incêndio. Subimos para o telhado, onde eu tinha certeza de que não seria ouvida.
Quando ele se sentou no pequeno banco de ferro fundido, revelei o que ela me contara naquele mesmo lugar, apenas algumas horas antes.
— Ela acha que isso vai atormentá-la para sempre. Ele ainda está com o celular, Sam.
Acho que nunca senti tanta raiva na vida. Durante toda a noite, enquanto a televisão matraqueava na minha frente, eu repassara na mente as últimas semanas sob uma nova perspectiva: pensei nas vezes em que o garoto ficara esperando lá embaixo, no jeito que Lily escondera o celular embaixo das almofadas do sofá quando achou que eu pudesse vê-lo, em como ela às vezes estremecia ao receber uma nova mensagem. Pensei em como ela gaguejara, descrevendo o alívio que sentira ao achar que havia sido salva, e depois o horror do que viria em seguida. Pensei na arrogância de um homem que tinha visto uma menina aflita e enxergara naquela situação uma oportunidade.
Sam fez sinal para que eu me sentasse, mas eu não conseguia ficar parada. Andava de um lado para outro no terraço, com os punhos cerrados, o pescoço rígido. Eu queria jogar coisas lá embaixo. Queria encontrar o Sr. Garside. Sam surgiu atrás de mim e massageou meus ombros. Eu desconfiava de que esse tinha sido o jeito que ele arranjara de me fazer ficar quieta.
— Quero muito matá-lo.
— Podemos dar um jeito nisso.
Eu me virei para ver se Sam estava brincando, e fiquei um pouco desapontada ao perceber que sim.
Com o vento forte da noite, tinha ficado mais frio ali em cima e desejei ter trazido casaco.
— Talvez a gente devesse procurar a polícia. Isso é chantagem, não é?
— Ele vai negar. Pode esconder o celular em um milhão de lugares diferentes. E se a mãe dela tiver falado a verdade, ninguém vai acreditar em Lily frente a uma pessoa considerada importante na sociedade. É assim que esse pessoal sai impune.
— Mas como resgataremos esse telefone? Ela não vai conseguir superar enquanto souber que esse cara está por aí, enquanto essa foto continuar por aí.
Eu estava tremendo de frio. Sam tirou o casaco e o colocou nos meus ombros. Conservava o calor dele, e tentei não demonstrar como fiquei agradecida.
— Não podemos aparecer no escritório dele, senão os pais dela vão descobrir. Será que mandamos um e-mail? Dizendo que precisa devolver o celular?
— Ele não vai simplesmente confessar. Talvez nem responda ao e-mail, pois poderia ser usado como prova.
— Ah, não tem jeito — resmunguei. — Talvez ela precise aprender a conviver com isso. Quem sabe a gente consegue convencê-la de que ele tem tanto interesse em esquecer o que aconteceu quanto ela. Porque tem, não é? Talvez ele mesmo se livre do celular.
— Você acha que ela vai concordar com isso?
— Não. — Esfreguei os olhos. — Não consigo aceitar. Não consigo suportar a ideia de que ele saia impune. Aquele canalha repugnante, nojento, manipulador, que dirige uma limusine...
Eu me levantei e observei a cidade lá embaixo, me sentindo desesperada. Conseguia adivinhar o futuro: Lily na defensiva e violenta, enquanto tentava escapar da sombra do seu passado. Aquele celular era a chave do seu comportamento, do seu futuro.
Pense, ordenei a mim mesma. Pense em como Will agiria. Ele não deixaria esse homem vencer. Eu precisava elaborar uma estratégia, como ele faria.
Observei o tráfego passando devagar diante do meu prédio. Pensei no carrão preto do Sr. Garside percorrendo as ruas do Soho. Imaginei um homem que circulava em silêncio e com facilidade pela vida, convencido de que ela sempre lhe seria favorável.
— Sam? — chamei. — Tem alguma droga que você possa me dar que faça o coração de alguém parar de bater?
Ele deixou minha pergunta no ar por um tempo.
— Por favor, me diga que está brincando.
— Não. Olhe. Tive uma ideia.

* * *

Ela não falou nada a princípio.
— Você estará em segurança — falei. — E desse jeito ninguém precisa saber de nada.
O que mais me comoveu foi que ela não me fez a pergunta que eu repetia para mim mesma desde que esboçara meu plano para Sam. Como sabe que isso vai mesmo dar certo?
— Tenho tudo pensado, querida — disse Sam.
— Ninguém mais sabe...
— De nada. Só que ele está perturbando você.
— Não vai se meter em confusão?
— Não se preocupe comigo.
Ela arregaçou a manga do casaco, depois murmurou:
— E você não vai me deixar com ele. De jeito nenhum.
— Nem por um minuto.
Ela mordeu o lábio. Olhou para Sam e em seguida para mim. E algo pareceu se tranquilizar dentro dela.
— Tudo bem. Vamos fazer isso.

* * *

Comprei um celular pré-pago barato, liguei para o trabalho do padrasto de Lily e arranjei o número do Sr. Garside com a secretária, fingindo que tínhamos marcado um encontro para tomar um drinque. Esperei Sam chegar à noite e mandei uma mensagem para o homem.

Sr. Garside. Desculpe por ter fugido do senhor. Eu perdi a cabeça. Quero acertar as coisas. L

Ele esperou meia hora para responder, provavelmente para deixá-la nervosa.

Por que eu deveria falar com você, Lily? Foi muito mal-agradecida depois de toda ajuda que lhe dei.

— Calhorda — murmurou Sam.

Eu sei. Desculpe. Mas preciso muito da sua ajuda.

Isso não pode ser unilateral, Lily.

Eu sei. Mas fiquei chocada. Eu precisava de um tempo para pensar. Vamos nos encontrar. Darei o que você quiser, mas terá que me devolver o celular primeiro.

Acho que não é você quem determina as regras, Lily.

Sam me olhou. Retribuí seu olhar, depois voltei a digitar.

Nem mesmo... se eu for uma garota muito má?

Uma pausa.

Agora fiquei interessado.

Sam e eu nos entreolhamos.
— Acabei de ter uma ânsia de vômito — falei.
Amanhã à noite então, escrevi. Mando o endereço quando souber que horas minha amiga vai sair.
Quando tivemos certeza de que ele não responderia mais, Sam enfiou o telefone no bolso, onde Lily não podia encontrar, e me deu um longo abraço.

* * *

Eu estava quase passando mal de nervoso no dia seguinte, e Lily estava pior. Beliscamos nosso café da manhã. Deixei Lily fumar no apartamento e quase fiquei tentada a pedir um cigarro. Assistimos a um filme e tentamos arrumar a casa. Às sete e meia da noite, quando Sam chegou, minha cabeça zumbia tanto que eu mal conseguia falar.
— Você mandou o endereço? — perguntei.
— Mandei.
— Mostre.
A mensagem era simplesmente o endereço do meu apartamento e tinha sido assinada por L.
O Sr. Garside respondera: Tenho uma reunião e chegarei pouco depois das oito.
— Você está bem? — perguntou ele.
Senti um nó no estômago. Parecia que eu estava sendo sufocada.
— Não quero meter você em confusão. Quer dizer, se o pegarem... você perde o emprego.
Sam negou com a cabeça.
— Isso não vai acontecer.
— Eu não devia ter colocado você no meio disso. Você foi brilhante, e sinto que minha retribuição foi colocá-lo em perigo.
— Ficaremos bem. Respire.
Ele me deu um sorriso tranquilizador, mas tive a impressão de ter reparado numa leve tensão no seu rosto.
Sam olhou por cima do meu ombro e eu me virei. Lily estava usando uma camiseta preta, short jeans e meia-calça preta. Tinha se maquiado. Estava linda e jovial.
— Você está bem, querida?
Ela assentiu. Sua pele, normalmente do mesmo tom levemente moreno de Will, tinha uma palidez inusitada. Seus olhos pareciam enormes no rosto.
— Vai dar tudo certo. Vou ficar surpreso se levar mais que cinco minutos. Lou repassou tudo com você, não é? — A voz de Sam estava calma e tranquilizadora.
Tínhamos ensaiado umas dez vezes. Eu queria que ela chegasse a um ponto em que não hesitasse, em que repetisse sua fala sem pensar.
— Sei o que estou fazendo.
— Muito bem — disse ele, batendo palmas. — Já são quinze para as oito. Vamos nos preparar.

* * *

Ele foi pontual, tive que reconhecer. Às oito e um, o interfone tocou. Lily inspirou ruidosamente, então apertei sua mão e ela foi atender. Sim. Sim, ela saiu. Pode subir. Não pareceu lhe ocorrer que a menina poderia não ser o que ele pensava.
Lily o deixou entrar. Só eu, observando pela fresta da porta do meu quarto, notei como a mão dela tremia ao tocar a maçaneta. Garside passou a mão pelo cabelo e olhou em volta rapidamente. Estava usando um bom terno cinza e guardou a chave do carro no bolso interno do paletó. Eu não conseguia parar de olhar para ele, para sua camisa cara e seus olhos cobiçosos analisando o apartamento. Cerrei o maxilar. Que tipo de homem se achava no direito de pressionar uma garota quarenta anos mais nova que ele? De chantagear a filha do próprio colega?
Ele parecia desconfortável, longe de relaxar.
— Parei o carro na rua de trás. É seguro?
— Acho que sim. — Lily engoliu em seco.
— Você acha? — Ele recuou em direção à porta. Era o tipo de homem que via o carro como uma extensão de uma parte minúscula de si mesmo. — E sua amiga? A dona da casa. Ela não vai voltar?
Prendi a respiração. Senti a mão tranquilizadora de Sam na base das minhas costas.
— Ah. Não. Não vai ter problema. — Lily sorriu, ficando tranquila de repente. — Ela vai demorar séculos para voltar. Pode entrar. Quer beber alguma coisa, Sr. Garside?
Ele olhou para ela como se a visse pela primeira vez.
— Quanta formalidade. — Ele deu um passo à frente e finalmente fechou a porta. — Você tem uísque?
— Vou ver. Venha.
Ela seguiu para a cozinha e ele foi atrás, tirando o paletó. Ao chegarem na sala de estar, Sam saiu do quarto e passou por mim, atravessou o corredor com suas botas pesadas e trancou a porta do apartamento, colocando no bolso as chaves, que chacoalharam.
Garside teve um sobressalto, virou-se e se deparou com Sam, acompanhado de Donna. Eles estavam ali parados com o uniforme de paramédico, encostados na porta. O homem olhou para os dois, depois para Lily, e hesitou, tentando entender o que estava acontecendo.
— Oi, Sr. Garside — falei, saindo do quarto. — Acho que o senhor tem uma coisa para devolver para minha amiga aqui.
Ele começou a suar de nervosismo de repente. Até então, eu nunca tinha presenciado uma coisa dessas. Seus olhos procuravam Lily, mas, quando apareci, ela foi para trás de mim.
Sam deu um passo à frente. O Sr. Garside batia no seu ombro.
— O celular, por favor
— Vocês não podem me ameaçar.
— Não estamos ameaçando o senhor — afirmei, com o coração acelerado. — Só queremos o telefone.
— Bloquear minha saída já é uma ameaça.
— Ah, não, senhor — retrucou Sam. — Na verdade, ameaçar o senhor envolveria mencionar que, se minha colega e eu quisermos, podemos imobilizá-lo aqui e lhe injetar uma dose de dihypranol, que faria seu coração começar a bater mais devagar, até parar. Isso, sim, seria uma ameaça, ainda mais porque ninguém questionaria a palavra da equipe de paramédicos que aparentemente tentou salvá-lo. E porque o dihypranol é uma das poucas drogas que não deixa vestígio na corrente sanguínea.
Donna, com os braços cruzados, balançou a cabeça tristemente.
— É uma pena como esses executivos de meia-idade simplesmente caem duros no chão.
— Eles têm todo tipo de problemas de saúde. Bebem demais, comem demais, não se exercitam o suficiente.
— Mas tenho certeza de que esse cavalheiro aqui não é assim.
— A gente gostaria que não. Mas vai saber?
O Sr. Garside parecia ter encolhido vários centímetros.
— E nem pense em ameaçar Lily. Sabemos onde o senhor mora, Sr. Garside. Todos os paramédicos têm essa informação para quando precisarem. É inacreditável o que pode acontecer com alguém que irrita um paramédico.
— Isso é uma falta de respeito. — Ele estava gritando, o rosto lívido.
— Sim. É mesmo. — Estendi a mão. — O celular, por favor.
Garside olhou em volta mais uma vez, até que finalmente enfiou a mão no bolso e entregou o aparelho para mim.
Joguei-o para Lily.
— Confira, Lily.
Enquanto ela fazia isso, desviei os olhos, em consideração aos seus sentimentos.
— Apague — falei. — Apague logo.
Quando voltei a olhar, a tela do telefone na sua mão estava preta. Lily balançou de leve a cabeça. Sam fez sinal para que ela lhe entregasse o aparelho. Sam o jogou no chão e o pisoteou com o pé direito, estraçalhando o plástico. Esmagou-o com tanta violência que o piso tremeu. Percebi que eu também tremia, assim como o Sr. Garside, cada vez que Sam baixava a bota pesada.
Finalmente, Sam se curvou e, com muito cuidado, pegou o pequeno cartão de memória, que fora parar embaixo do aquecedor. Examinou-o e segurou-o diante do homem mais velho.
— Essa era a única cópia?
Ele assentiu. O suor escurecia seu colarinho.
— Claro que é a única cópia — disse Donna. — Um membro respeitável da sociedade não gostaria de correr o risco de que uma coisa dessas aparecesse em algum jornal, não é mesmo? Imagine o que a família do Sr. Garside diria se o seu segredinho deplorável viesse à tona?
A boca do homem se transformara numa linha fina de tão contraída.
— Vocês já conseguiram o que queriam. Agora me deixem ir.
— Não. Eu gostaria de dizer uma coisa. — Notei vagamente que minha voz estava um pouco trêmula por causa do meu esforço de conter a fúria. — Você é um cara sórdido, patético, e se eu...
A boca do Sr. Garside se repuxou formando um sorrisinho sarcástico. O tipo de homem que nunca se sentira ameaçado por uma mulher.
— Ah. Fique quietinha, sua...
Um brilho impassível surgiu nos olhos de Sam, e ele saltou para a frente. Estiquei o braço para segurá-lo. Não me lembro de ter afastado meu outro punho. Eu me recordo, sim, da dor que senti nos nós dos dedos quando tocaram o rosto do Sr. Garside. O homem cambaleou para trás, batendo na porta, e eu tropecei, pois não esperava a força do impacto. Quando ele se empertigou, fiquei chocada ao ver sangue escorrendo do seu nariz.
— Me deixem ir — sibilou ele, entre os dedos que protegiam o ferimento. — Agora.
Sam piscou para mim e em seguida destrancou a porta. Donna se afastou, quase deixando-o passar. Mas se inclinou na direção dele.
— Tem certeza de que não quer fazer um curativo nisso antes de ir?
Garside saiu devagar, mas, quando a porta se fechou às suas costas, ouvimos o barulho de seus sapatos caros começando a correr pelo corredor. Ficamos em silêncio até não escutarmos mais nada. E então houve o ruído de várias pessoas soltando o ar ao mesmo tempo.
— Belo soco, Cassius Clay — disse Sam, após um minuto. — Quer que eu dê uma olhada na sua mão?
Eu não conseguia falar. Estava com o corpo curvado, xingando baixinho.
— Sempre dói mais do que a gente acha, não é? — comentou Donna, dando tapinhas nas minhas costas. — Não se estresse, querida — disse ela a Lily. — O que quer que ele tenha falado para você, aquele velho não significa nada. Já era.
— Ele não vai voltar — afirmou Sam.
Donna riu.
— Ele quase se borrou. Acho que vai sair correndo se a encontrar alguma vez. Esqueça isso, querida. — Ela deu um forte abraço em Lily, como faríamos com alguém que tivesse caído da bicicleta. Depois me entregou o que sobrou do telefone quebrado para eu jogar fora. — Muito bem. Prometi dar um pulo na casa do meu pai antes do expediente. Até mais tarde.
Com um aceno, ela foi embora, seus passos fazendo um barulho alegre pelo corredor.
Sam começou a procurar no seu kit de socorrista um curativo para minha mão. Lily e eu fomos para a sala e afundamos no sofá.
— Você foi brilhante — falei para ela.
— E você foi genial.
Dei uma olhada nos nós dos meus dedos ensanguentados. Quando ergui os olhos, um sorriso imperceptível surgiu em seus lábios.
— Ele realmente não esperava por essa.
— Nem eu. Eu nunca tinha batido em ninguém. — Ergui o rosto. — Não que você deva me considerar um exemplo de moral, sabe.
— Nunca a considerei exemplo de nada, Lou. — Ela sorriu, quase com relutância, quando Sam entrou trazendo uma atadura e uma tesoura.
— Você está bem, Lily? — Ele ergueu as sobrancelhas.
Ela assentiu.
— Ótimo. Vamos mudar o assunto para alguma coisa mais interessante. Quem está a fim de espaguete à carbonara?
Quando Lily saiu da sala, ele suspirou fundo, depois passou um instante olhando para o teto, como que se acalmando.
— O que foi? — perguntei.
— Graças a Deus você bateu nele primeiro. Acho que eu ia matá-lo.

* * *

Mais tarde, quando Lily já estava na cama, fui atrás de Sam na cozinha. Pela primeira vez em semanas, uma paz pairava na minha casa.
— Ela já está mais feliz. Quer dizer, reclamou da pasta de dente nova e largou as toalhas no chão. Mas, em se tratando de Lily, ela definitivamente está melhor.
Sam concordou com a cabeça e terminou de lavar a louça. Eu gostava de quando ele estava na minha cozinha. Observei-o por um instante, me perguntando como seria me aproximar e colocar os braços em volta da sua cintura.
— Obrigada — falei, em vez disso. — Por tudo.
Ele se virou, enxugando as mãos num pano de prato.
— Você foi muito esperta, boxeadora.
Ele esticou o braço e me puxou para perto. Nós nos beijamos. Os beijos dele eram muito deliciosos, ainda mais quando comparávamos a suavidade deles com a força bruta do resto do seu corpo. Eu me perdi em Sam. Mas...
— O quê? — perguntou ele, recuando. — O que foi?
— Você vai achar estranho.
— Hum, mais esquisito do que esta noite?
— Não paro de pensar no dihypranol. Quanto seria necessário para matar uma pessoa? É uma substância que vocês carregam sempre? Parece... muito... arriscado.
— Não precisa se preocupar — disse ele.
— Se você acha... Mas e se alguém sentisse um ódio profundo de você? Poderiam colocar na sua comida? Será que os terroristas conseguem arranjar algumas doses? Quer dizer, de quanto realmente precisariam?
— Lou. Essa droga não existe.
— Como assim?
— Eu inventei. Não existe uma substância chamada dihypranol. É pura invenção. — Ele riu da minha expressão perplexa. — O engraçado é que acho que nunca tive uma droga que funcionasse melhor.

Nenhum comentário :

Postar um comentário

Atenção: para postar um comentário, escolha Nome/Url. Se quiser insira somente seu nome.

Please, no spoilers!

Expresse-se:
(◕‿◕✿) 。◕‿◕。 ●▽●

⊱✿◕‿◕✿⊰(◡‿◡✿)(◕〝◕) ◑▂◐ ◑0◐

◑︿◐ ◑ω◐ ◑﹏◐ ◑△◐ ◑▽◐ ●▂● 

●0● ●︿● ●ω● ●﹏● ●△● ●▽●

Topo