CHEGUEI EM CASA acabada. Não bastassem todas as minhas
decepções recentes, perdendo uma amiga que eu achava que
tinha, um
amigo que eu achava que era legal, e reconhecendo que eu era
a mais
pateta dos seres humanos por não ter um pingo de percepção
das coisas,
para piorar na Coordenação a Conceição disse para todo mundo
que ia
dar uma semana para o culpado se entregar ou se explicar. Se
isso não
acontecesse, ia haver uma reunião com os pais e suspensão
por três
dias, que pegaria inclusive provas. E ela ia considerar
prova dada. Ou
seja, a gente ia ficar com zero.
Eu não queria dar esse desgosto para a minha família. Não
depois de
tudo o que tinha acontecido. E ainda mais agora que as
coisas estavam
tão calmas na minha casa. E parece que quando as coisas vão
mal o
destino pisa em cima da nossa cabeça para piorar. Assim que
eu abri a
porta, meu pai veio na minha direção com um sorriso nos
lábios e um
maior ainda nos olhos. Ele mal conseguia falar. Abraçou-me
forte e
disse, emocionado, no meu ouvido.
– Consegui, filha! Arrumei um bom emprego!
Ai, eu nem conseguia ficar feliz como ele merecia. Era a
pior hora do
mundo para receber uma notícia legal como essa.
– Parabéns, paizinho! – foi tudo o que consegui dizer.
– Obrigado por ter tido paciência comigo e com minha
autoestima
torta.
– Imagina! Sempre acreditei em você, pai.
– Assim como eu sempre acreditei em você, garota. Você só me
dá
alegria.
Aquela frase foi uma punhalada na minha barriga.
– E aí? O cargo é legal? A grana é boa? – tentei disfarçar.
– É tudo legal, filhota! Vou poder voltar a pagar sua escola
sozinho,
sem ajuda dos seus avós, vou poder voltar a te dar mesada, a
sair pra
jantar com você e sua mãe… Vou voltar a ter dignidade, Tetê!
Nossa! Como ele estava feliz! E como eu queria estar feliz
como ele.
Mas achei que ele merecia meu esforço.
– Então temos que comemorar! Vou fazer meu estrogonofe light
pra
você, paizinho!
– Opa! Estou amando essa sua fase geração saúde. Eu e você
estávamos mesmo precisando comer melhor!
– Ai, pai, te adoro!
– Já avisei para a sua mãe. Começo só na semana que vem,
então terei
os dias livres para procurar um apartamento para a gente.
Opa!
– Pai… Promete que a gente vai ficar por aqui no bairro?
Perto da
vovó, do vovô e do biso? E da minha escola? Eu não quero
mudar de
escola de novo – pedi, com todo o meu coração.
***
A verdade é que mudanças sempre me assustaram. O medo de que
as
coisas piorassem me impediu a vida toda de tomar atitudes
que
representassem qualquer tipo de risco. E com a ida para
Copacabana e a
entrada num novo colégio, descobri que mudanças podem, sim,
vir para
o bem. Além disso, foi tão gostoso conviver mais com meus
avós… E com
meu biso roncador e surdinho… Mesmo com todos os perrengues,
foi
muito bom me sentir amada e protegida por eles. Inclusive
conhecer
melhor minha avó e ver que mesmo gente mais velha e querida
nossa
não é cem por cento boazinha o tempo inteiro. Aliás, existe
gente cem
por cento boazinha o tempo inteiro? Não, claro que não.
Vovó Djanira pode ter mil defeitos, mas lembro até hoje o
dia em que
ela disse que fazia questão que eu estudasse numa escola
bacana, que
eu era muito inteligente e tal, que queria me ver passar
para as
melhores universidades e que com ensino ela não
economizaria. Achei
tão bonito. Minha família nunca foi rica, mas nunca me
faltou nada.
Pensei naquela hora que eu era uma menina de sorte no
quesito família.
Eles eram loucos, eu sabia. Mas que família não é?
À noite, meu pai fez questão de levar todo mundo (o biso,
inclusive)
para jantar no Braseiro, um restaurante incrível no Baixo
Gávea. Eu
estava muito dividida. Me sentia arrasada com tudo o que
tinha
acontecido durante o dia, mas não podia deixar transparecer.
Só me restava ficar vendo minha família se acabando de
comer! Filé
à Oswaldo Aranha, arroz de brócolis, batata frita e farofa
de ovo. (Um
aparte: nunca entendi farofa de banana. Amo banana, mas
odeio banana
na comida. Fato.) Foi muito bom ver a família reunida e
feliz.
E me senti na obrigação de não dar desgosto para eles. Eu
tinha que
resolver de qualquer jeito a minha situação sem deixar que
eles
soubessem o que estava acontecendo. Mas não fazia ideia de
por onde
começar. E eu só tinha uma semana.
***
Cheguei à escola no dia seguinte, quarta-feira, e na sala
dei de cara
com o Davi arrumando as coisas para sair, antes mesmo de a
aula
começar.
– Ué, Davi. Mal chegou e já vai?
– É… o meu avô piorou. Recebi uma mensagem agora. Vou pro
hospital ficar com meu irmão e minha avó.
– Ah, não! – lamentei.
– O quadro do vovô requer muitos cuidados. Hoje cedo acharam
melhor levar ele pra UTI. Agora só vamos poder ver meu avô
uma vez por
dia. E por pouco tempo. Não permitem que os visitantes fiquem
muito
com os doentes na Unidade de Terapia Intensiva.
Davi estava arrasado. O rosto dele, sua postura, tudo
exalava uma
tristeza tamanha.
– Vai ficar tudo bem, Davi. Calma – eu tentei consolá-lo.
– Espero que sim, Tetê. Espero que sim. Ele está há mais de
dois
anos nesse entra e sai de hospital. É muito desgastante pra
ele, pra vovó,
pra todo mundo.
– Eu imagino – disse. E tomei coragem para pedir: – Posso te
dar um
abraço?
– Claro que sim. Eu estou precisando mesmo.
E a gente se abraçou forte e demoradamente.
Zeca chegou e viu nosso abraço. Logo me encarou com os olhos
arregalados e as mãos no rosto enquanto perguntou sem emitir
som e
sem que Davi o visse:
– Morreu?
Fiz que não com a cabeça. Ele fez um “graças a Deus”
aliviado e se
juntou a nós no abraço.
– A gente pode fazer alguma coisa pra te ajudar?
– Obrigado, Zeca. Meu irmão está lá. Se precisar eu aviso,
pode
deixar – agradeceu Davi. – Tô indo pra lá ficar perto dele.
Rezem! –
pediu, tenso, com o suor brotando na testa.
E então Davi baixou a cabeça e chorou. Contido, mas chorou.
– Não posso perder meu melhor amigo… – lamentou, como se
estivesse falando com ele mesmo.
– Não vai perder! – aumentei o tom de voz.
– Vira essa boca pra lá! – bronqueou Zeca.
O Davi estava péssimo. Tadinho…
– Manda um beijo pra sua avó. E pro Dudu.
– Eu mando sim… E olha Tetê, eu soube ontem do que rolou na
sala
da Conceição. O Erick me contou. Depois me manda mensagem no
Whats, eu sei um jeito de te ajudar. Mas agora não tenho
cabeça, tá?
– Lógico, nem pensa nisso. Vai lá.
E o Davi foi embora murcho feito uma planta sem água. De
cortar o
coração.
O professor entrou na sala e começou a dar a aula. Erick
chegou uns
minutos depois, pediu licença e foi até sua carteira, sem
olhar para os
lados. Todo mundo olhava para ele, mas ele estava meio
distante. Uns
lançavam olhares acusatórios, outros, de pena.
Valentina estava do outro lado da sala, e nem olhava para os
lados
também. Samantha estava em outro canto. Eu fiquei na frente
com o
Zeca, como sempre. E durante o dia inteiro fingimos que não
nos
conhecíamos, nem olhar uns para os outros olhamos. O clima
estava bem
tenso.
Naquela tarde, tinha agendado o dermatologista que o Dudu
tinha me
indicado. Fui com a minha avó e o médico foi superotimista
em relação à
minha pele. Prometi que seguiria à risca o modo de usar os
produtos e
não pararia de tomar o remédio por conta própria (como fiz
num
tratamento anterior porque fiquei sem paciência de esperar)
em
hipótese alguma. E na outra semana eu tinha já marcado um
oftalmologista. Estava decidido: eu faria um exame para ver
se meu grau
continuava estabilizado e compraria com a minha mesada
óculos que
tivessem a minha cara. A minha cara nova, a cara de uma
menina que
agora estava mais confiante do que nunca. Sempre gostei de
óculos. Não
via por que deixar de usá-los.
Cheguei em casa e, como não tivera notícias ao longo do dia,
antes do
jantar mandei mensagem para o Davi para saber do avô dele.
TETÊ
Espero que seu avô esteja melhor. Dá notícia quando puder,
tá?
Fiquei olhando para o celular. Um minuto. Dois. Cinco. Dez.
Quinze.
Nada de o Davi ler minha mensagem. Esperei dar meia hora e
passei por
cima da vergonha para mandar a mesma mensagem para o Dudu.
Em menos de cinco segundos, recebi a resposta.
DUDU
Oi, Tetê. Ele deu uma piorada hoje à tarde,
teve uma crise de pressão alta, as coisas
estão muito difíceis por aqui. Eu e o Davi
vamos entrar na UTI daqui a pouco e vamos
saber mais do quadro dele. Dou notícias.
Obrigado pela preocupação. Beijos.
Minha mãe percebeu como eu estava e foi perguntando:
– Tudo bem, Tetê? Aconteceu alguma coisa?
– É o avô do Davi… Ele não tá nada bem… – resumi, sem
mencionar as
outras causas da minha tristeza.
E nessa hora me deu muita vontade de chorar. Não podia
acontecer
nada com o seu Inácio… Ele era tudo para os meninos. Mas eu
também
precisava dar um jeito de resolver meus problemas mais
urgentes.
E nesse minuto chegou uma outra mensagem:
DAVI
Oi, Tetê. Desculpa não responder antes, fui
tomar um lanche, estava sem sinal. O Dudu
disse que já te respondeu né?
TETÊ
Sim, respondeu, obrigada, Davi.
Eu estava muito sem jeito de perguntar para o Davi sobre o
que ele
tinha falado de manhã, sobre a foto, mas eu estava muito
desesperada
para deixar passar. Então resolvi arriscar.
TETÊ
Davi, desculpa te perguntar, mas é que eu
estou precisando mesmo… Você disse que
tinha um jeito de me ajudar com o negócio da
fotografia…
DAVI
Ah, tenho sim, é uma pessoa muito fera em
computador. E que vai adorar te ajudar.
Uau! O Davi era todo quietinho, mas conhecia alguém com
habilidade para descobrir uma coisa dessas? Eu não saberia
nem por
onde começar.
TETÊ
Jura? Quem é?
DAVI
Ih, estão me chamando pra entrar na UTI pra
ver meu avô, Tetê. Depois a gente se fala.
TETÊ
Lógico, vai lá.
Mas se passaram várias horas até que eu recebesse uma nova
mensagem do meu amigo. E ela só chegaria no meio da
madrugada, quase
quinta-feira de manhã.
DAVI
Amigos queridos, vovô se foi.
Abaixo da mensagem, ele escreveu informações sobre o velório
e o
enterro, que aconteceriam à tarde.
Que notícia triste. Que notícia triste, meu Deus…
E tudo o mais, a escola, a Valentina, o quase nude, o Erick,
a
Samantha… Tudo estava tão pequeno agora… tão insignificante…
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