Capítulo 22

CHEGUEI EM CASA acabada. Não bastassem todas as minhas
decepções recentes, perdendo uma amiga que eu achava que tinha, um
amigo que eu achava que era legal, e reconhecendo que eu era a mais
pateta dos seres humanos por não ter um pingo de percepção das coisas,
para piorar na Coordenação a Conceição disse para todo mundo que ia
dar uma semana para o culpado se entregar ou se explicar. Se isso não
acontecesse, ia haver uma reunião com os pais e suspensão por três
dias, que pegaria inclusive provas. E ela ia considerar prova dada. Ou
seja, a gente ia ficar com zero.
Eu não queria dar esse desgosto para a minha família. Não depois de
tudo o que tinha acontecido. E ainda mais agora que as coisas estavam
tão calmas na minha casa. E parece que quando as coisas vão mal o
destino pisa em cima da nossa cabeça para piorar. Assim que eu abri a
porta, meu pai veio na minha direção com um sorriso nos lábios e um
maior ainda nos olhos. Ele mal conseguia falar. Abraçou-me forte e
disse, emocionado, no meu ouvido.
– Consegui, filha! Arrumei um bom emprego!
Ai, eu nem conseguia ficar feliz como ele merecia. Era a pior hora do
mundo para receber uma notícia legal como essa.
– Parabéns, paizinho! – foi tudo o que consegui dizer.
– Obrigado por ter tido paciência comigo e com minha autoestima
torta.
– Imagina! Sempre acreditei em você, pai.
– Assim como eu sempre acreditei em você, garota. Você só me dá
alegria.
Aquela frase foi uma punhalada na minha barriga.
– E aí? O cargo é legal? A grana é boa? – tentei disfarçar.
– É tudo legal, filhota! Vou poder voltar a pagar sua escola sozinho,
sem ajuda dos seus avós, vou poder voltar a te dar mesada, a sair pra
jantar com você e sua mãe… Vou voltar a ter dignidade, Tetê!
Nossa! Como ele estava feliz! E como eu queria estar feliz como ele.
Mas achei que ele merecia meu esforço.
– Então temos que comemorar! Vou fazer meu estrogonofe light pra
você, paizinho!
– Opa! Estou amando essa sua fase geração saúde. Eu e você
estávamos mesmo precisando comer melhor!
– Ai, pai, te adoro!
– Já avisei para a sua mãe. Começo só na semana que vem, então terei
os dias livres para procurar um apartamento para a gente.
Opa!
– Pai… Promete que a gente vai ficar por aqui no bairro? Perto da
vovó, do vovô e do biso? E da minha escola? Eu não quero mudar de


escola de novo – pedi, com todo o meu coração.

                                                                

                                                                                ***


A verdade é que mudanças sempre me assustaram. O medo de que as
coisas piorassem me impediu a vida toda de tomar atitudes que
representassem qualquer tipo de risco. E com a ida para Copacabana e a
entrada num novo colégio, descobri que mudanças podem, sim, vir para
o bem. Além disso, foi tão gostoso conviver mais com meus avós… E com
meu biso roncador e surdinho… Mesmo com todos os perrengues, foi
muito bom me sentir amada e protegida por eles. Inclusive conhecer
melhor minha avó e ver que mesmo gente mais velha e querida nossa
não é cem por cento boazinha o tempo inteiro. Aliás, existe gente cem
por cento boazinha o tempo inteiro? Não, claro que não.
Vovó Djanira pode ter mil defeitos, mas lembro até hoje o dia em que
ela disse que fazia questão que eu estudasse numa escola bacana, que
eu era muito inteligente e tal, que queria me ver passar para as
melhores universidades e que com ensino ela não economizaria. Achei
tão bonito. Minha família nunca foi rica, mas nunca me faltou nada.
Pensei naquela hora que eu era uma menina de sorte no quesito família.
Eles eram loucos, eu sabia. Mas que família não é?
À noite, meu pai fez questão de levar todo mundo (o biso, inclusive)
para jantar no Braseiro, um restaurante incrível no Baixo Gávea. Eu
estava muito dividida. Me sentia arrasada com tudo o que tinha
acontecido durante o dia, mas não podia deixar transparecer.
Só me restava ficar vendo minha família se acabando de comer! Filé
à Oswaldo Aranha, arroz de brócolis, batata frita e farofa de ovo. (Um
aparte: nunca entendi farofa de banana. Amo banana, mas odeio banana
na comida. Fato.) Foi muito bom ver a família reunida e feliz.
E me senti na obrigação de não dar desgosto para eles. Eu tinha que
resolver de qualquer jeito a minha situação sem deixar que eles
soubessem o que estava acontecendo. Mas não fazia ideia de por onde

começar. E eu só tinha uma semana.
   

                                                                  
                                                              *** 

Cheguei à escola no dia seguinte, quarta-feira, e na sala dei de cara
com o Davi arrumando as coisas para sair, antes mesmo de a aula
começar.
– Ué, Davi. Mal chegou e já vai?
– É… o meu avô piorou. Recebi uma mensagem agora. Vou pro
hospital ficar com meu irmão e minha avó.
– Ah, não! – lamentei.
– O quadro do vovô requer muitos cuidados. Hoje cedo acharam
melhor levar ele pra UTI. Agora só vamos poder ver meu avô uma vez por
dia. E por pouco tempo. Não permitem que os visitantes fiquem muito
com os doentes na Unidade de Terapia Intensiva.
Davi estava arrasado. O rosto dele, sua postura, tudo exalava uma
tristeza tamanha.
– Vai ficar tudo bem, Davi. Calma – eu tentei consolá-lo.
– Espero que sim, Tetê. Espero que sim. Ele está há mais de dois
anos nesse entra e sai de hospital. É muito desgastante pra ele, pra vovó,
pra todo mundo.
– Eu imagino – disse. E tomei coragem para pedir: – Posso te dar um
abraço?
– Claro que sim. Eu estou precisando mesmo.
E a gente se abraçou forte e demoradamente.
Zeca chegou e viu nosso abraço. Logo me encarou com os olhos
arregalados e as mãos no rosto enquanto perguntou sem emitir som e
sem que Davi o visse:
– Morreu?
Fiz que não com a cabeça. Ele fez um “graças a Deus” aliviado e se
juntou a nós no abraço.
– A gente pode fazer alguma coisa pra te ajudar?
– Obrigado, Zeca. Meu irmão está lá. Se precisar eu aviso, pode
deixar – agradeceu Davi. – Tô indo pra lá ficar perto dele. Rezem! –
pediu, tenso, com o suor brotando na testa.
E então Davi baixou a cabeça e chorou. Contido, mas chorou.
– Não posso perder meu melhor amigo… – lamentou, como se
estivesse falando com ele mesmo.
– Não vai perder! – aumentei o tom de voz.
– Vira essa boca pra lá! – bronqueou Zeca.
O Davi estava péssimo. Tadinho…
– Manda um beijo pra sua avó. E pro Dudu.
– Eu mando sim… E olha Tetê, eu soube ontem do que rolou na sala
da Conceição. O Erick me contou. Depois me manda mensagem no
Whats, eu sei um jeito de te ajudar. Mas agora não tenho cabeça, tá?
– Lógico, nem pensa nisso. Vai lá.
E o Davi foi embora murcho feito uma planta sem água. De cortar o
coração.
O professor entrou na sala e começou a dar a aula. Erick chegou uns
minutos depois, pediu licença e foi até sua carteira, sem olhar para os
lados. Todo mundo olhava para ele, mas ele estava meio distante. Uns
lançavam olhares acusatórios, outros, de pena.
Valentina estava do outro lado da sala, e nem olhava para os lados
também. Samantha estava em outro canto. Eu fiquei na frente com o
Zeca, como sempre. E durante o dia inteiro fingimos que não nos
conhecíamos, nem olhar uns para os outros olhamos. O clima estava bem
tenso.
Naquela tarde, tinha agendado o dermatologista que o Dudu tinha me
indicado. Fui com a minha avó e o médico foi superotimista em relação à
minha pele. Prometi que seguiria à risca o modo de usar os produtos e
não pararia de tomar o remédio por conta própria (como fiz num
tratamento anterior porque fiquei sem paciência de esperar) em
hipótese alguma. E na outra semana eu tinha já marcado um
oftalmologista. Estava decidido: eu faria um exame para ver se meu grau
continuava estabilizado e compraria com a minha mesada óculos que
tivessem a minha cara. A minha cara nova, a cara de uma menina que
agora estava mais confiante do que nunca. Sempre gostei de óculos. Não
via por que deixar de usá-los.
Cheguei em casa e, como não tivera notícias ao longo do dia, antes do
jantar mandei mensagem para o Davi para saber do avô dele.

TETÊ
Espero que seu avô esteja melhor. Dá notícia quando puder, tá?
Fiquei olhando para o celular. Um minuto. Dois. Cinco. Dez. Quinze.
Nada de o Davi ler minha mensagem. Esperei dar meia hora e passei por
cima da vergonha para mandar a mesma mensagem para o Dudu.
Em menos de cinco segundos, recebi a resposta.

DUDU
Oi, Tetê. Ele deu uma piorada hoje à tarde,
teve uma crise de pressão alta, as coisas
estão muito difíceis por aqui. Eu e o Davi
vamos entrar na UTI daqui a pouco e vamos
saber mais do quadro dele. Dou notícias.

Obrigado pela preocupação. Beijos.


Minha mãe percebeu como eu estava e foi perguntando:
– Tudo bem, Tetê? Aconteceu alguma coisa?
– É o avô do Davi… Ele não tá nada bem… – resumi, sem mencionar as
outras causas da minha tristeza.
E nessa hora me deu muita vontade de chorar. Não podia acontecer
nada com o seu Inácio… Ele era tudo para os meninos. Mas eu também
precisava dar um jeito de resolver meus problemas mais urgentes.
E nesse minuto chegou uma outra mensagem:


DAVI
Oi, Tetê. Desculpa não responder antes, fui
tomar um lanche, estava sem sinal. O Dudu
disse que já te respondeu né?

TETÊ
Sim, respondeu, obrigada, Davi.
Eu estava muito sem jeito de perguntar para o Davi sobre o que ele
tinha falado de manhã, sobre a foto, mas eu estava muito desesperada
para deixar passar. Então resolvi arriscar.

TETÊ
Davi, desculpa te perguntar, mas é que eu
estou precisando mesmo… Você disse que
tinha um jeito de me ajudar com o negócio da
fotografia…

DAVI
Ah, tenho sim, é uma pessoa muito fera em
computador. E que vai adorar te ajudar.
Uau! O Davi era todo quietinho, mas conhecia alguém com
habilidade para descobrir uma coisa dessas? Eu não saberia nem por
onde começar.

TETÊ
Jura? Quem é?

DAVI
Ih, estão me chamando pra entrar na UTI pra
ver meu avô, Tetê. Depois a gente se fala.

TETÊ

Lógico, vai lá.


Mas se passaram várias horas até que eu recebesse uma nova
mensagem do meu amigo. E ela só chegaria no meio da madrugada, quase
quinta-feira de manhã.


DAVI
Amigos queridos, vovô se foi.



Abaixo da mensagem, ele escreveu informações sobre o velório e o
enterro, que aconteceriam à tarde.
Que notícia triste. Que notícia triste, meu Deus…
E tudo o mais, a escola, a Valentina, o quase nude, o Erick, a
Samantha… Tudo estava tão pequeno agora… tão insignificante…



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