Capítulo 23

— Ora, ora... se não é a funcionária do ano.
Deixei no balcão a sacola com o uniforme e a peruca. As mesas do Shamrock and Clover já estavam cheias na hora do café da manhã. Um empresário quarentão e robusto, cuja cabeça pendente sugeria que tinha começado a pegar pesado logo cedo, me observou com olhos aturdidos, o copo aninhado nas mãos gordas. Vera estava nos fundos, tirando, irritada, as mesas e os pés das pessoas do lugar para varrer como se estivesse caçando ratos.
Eu estava usando uma camisa masculina azul – tinha chegado à conclusão de que era mais fácil se sentir confiante com roupas de homem – e observei, distraidamente, que era quase do mesmo tom da que Richard vestia.
— Richard... eu queria conversar com você sobre o que aconteceu semana passada.
À nossa volta, metade dos passageiros do aeroporto aproveitava o feriado bancário. Havia menos gente de terno que o normal, além de várias crianças pequenas chorando. Atrás da caixa, uma nova faixa anunciava a oferta: “Comece bem sua viagem! Café, croissant e uma dose!” Concentrado, com a testa franzida, Richard andava energicamente pelo bar, colocando numa bandeja xícaras recém-servidas de café e barrinhas de cereal ainda embaladas.
— Não se preocupe. O uniforme está limpo?
Ele alcançou a sacola ao meu lado e puxou o vestido verde. Observou-o cuidadosamente sob a luz, fazendo uma careta, como se estivesse preparado para detectar marcas indesejáveis. Eu estava esperando que ele fosse cheirá-lo.
— Claro que está limpo.
— Mas você sabe que precisa realmente estar em condições de ser usado por uma nova funcionária.
— Foi lavado ontem — falei secamente.
De repente notei que estava tocando uma nova versão de Gaitas Celtas. Com menos cordas de harpa e um som de gaita mais forte.
— Certo. Tem uma papelada lá nos fundos que você precisa assinar. Vou buscar e você pode fazer isso aqui. E então acabou.
— A gente não podia simplesmente fazer isso em algum lugar um pouco mais... privado?
Richard Percival não olhou para mim.
— Estou muito ocupado, sinto muito. Tenho mil coisas para fazer e só tem eu da equipe aqui hoje. — Ele passou alvoroçado por mim, com excesso de diligência, contando em voz alta os sacos remanescentes de salgadinho de camarão pendurados ao lado dos dosadores. — Seis... sete... Vera, pode servir aquele cavalheiro ali, por favor?
— Sim, bem, é sobre isso que eu gostaria de conversar. Queria saber se tem algum jeito de você...
— Oito... Nove... A peruca.
— O quê?
— Cadê a peruca?
— Ah. Aqui.
Tirei-a da sacola. Eu a escovara antes de guardá-la em um saco separado. A peruca, que mais parecia a sobra da pelugem loura de um animal atropelado na estrada, estava prestes a fazer a cabeça de outra pessoa coçar.
— Você a lavou?
— A peruca?
— Sim. É anti-higiênico outra pessoa usá-la sem que tenha sido lavada antes.
— Ela é feita de fibras sintéticas mais baratas do que uma Barbie em promoção. Achei que fosse se desfazer na máquina de lavar.
— Se não estiver em condições de ser usada por um futuro membro da equipe, terei que cobrar reposição.
Fiquei olhando para ele.
— Vai me cobrar pela peruca?
Ele a segurou no alto, depois a guardou de volta na sacola.
— Vinte e oito libras e quarenta. E é claro que lhe darei um recibo.
— Ai, meu Deus. Você vai mesmo me cobrar pela peruca.
Dei risada. Fiquei parada no meio do aeroporto lotado, enquanto os aviões decolavam, e pensei em como tinha sido a minha vida durante o tempo que passei trabalhando para aquele homem. Tirei a carteira do bolso.
— Ótimo — falei. — Vinte e oito libras e quarenta, não é? Vou lhe dizer uma coisa: vou arredondar para trinta, sabe, para incluir as despesas administrativas.
— Não precisa...
Contei as notas e usei-as para bater no balcão do bar na frente dele.
— Sabe de uma coisa, Richard? Gosto de trabalhar. Se enxergasse além das suas malditas metas por cinco minutos, você teria percebido que eu era uma pessoa que realmente queria fazer um bom trabalho. Eu me esforçava. Usava seu uniforme horrendo, mesmo que deixasse meu cabelo cheio de frizz e incentivasse as criancinhas a dançar atrás de mim na rua. Eu fazia tudo o que você pedia, inclusive limpar os banheiros masculinos, o que tenho quase certeza de que não constava no meu contrato, e, de acordo com a atual legislação trabalhista, certamente eu deveria pelo menos receber um traje para manusear os produtos químicos. Dobrei turnos para substituir colegas enquanto você procurava novos garçons depois de ter afastado todos os funcionários que já passaram por essa porta. E ainda vendi mais caro seus miseráveis amendoins torrados, apesar de terem cheiro de pum.
“Mas não sou um robô. Sou humana e tenho uma vida. E só por um tempo tive que lidar com responsabilidades que não me permitiram ser a funcionária que você, ou eu, gostaria. Vim aqui hoje pedir meu emprego de volta... Na verdade, implorar meu emprego de volta, porque continuo tendo responsabilidades e quero trabalhar. Preciso de um trabalho. Mas acabei de perceber que não quero este. Prefiro trabalhar de graça do que ter que passar mais um dia ouvindo flauta de pan neste bar horrível que destrói nossa alma. Prefiro limpar banheiros de graça do que ter que trabalhar mais um dia para você. Então, obrigada, Richard. Você me fez tomar minha primeira decisão positiva em muito tempo.
Enfiei a carteira de volta na bolsa, entreguei a peruca para ele e segui para a saída.
— Enfie esse trabalho e esses amendoins bem naquele lugar. — Dei meia-volta. — Ah, e sabe essa coisa que você faz no cabelo? Com todo esse gel e esse negócio no alto todo arrumadinho? É medonho. Você fica parecendo o Action Man.
O empresário se empertigou no banco do bar e aplaudiu. Richard levou involuntariamente a mão ao cabelo. Olhei para o cliente e depois para meu ex-chefe.
— Aliás, esqueça a última parte. Foi pura maldade.
E fui embora. Eu estava andando pelo saguão, com o coração ainda acelerado, quando o ouvi:
— Louisa! Louisa!
Richard meio que andava, meio que corria atrás de mim. Pensei em ignorá-lo, mas acabei parando ao lado da perfumaria.
— O que foi? — perguntei. — Deixei cair uma migalha de amendoim?
Ele parou, bufando um pouco. Ficou um instante observando a vitrine da loja, como se estivesse pensando. Em seguida me encarou.
— Você tem razão. Está bem? Você tem razão. — Fiquei olhando para ele. — O Shamrock and Clover... é um lugar horrível. E sei que não tenho sido o melhor dos chefes. Mas tudo o que posso dizer é que cada ordem infeliz que dou é porque a direção está me pressionando dez vezes mais. Minha mulher me odeia, pois nunca estou em casa. Os fornecedores me detestam porque tenho que cortar as margens deles toda maldita semana por causa da pressão dos acionistas. Meu gerente regional fala que meu rendimento em unidades vendidas é baixo e, se eu não resolver esse problema, serei mandado para a filial da estação de balsas do País de Gales. Se isso acontecer, minha mulher vai me deixar de vez. E não vou culpá-la.
“Odeio gerir pessoas. Tenho as mesmas habilidades sociais que um poste, por isso sempre afasto todo mundo. Vera só continua aqui porque é durona e desconfio de que, no fundo, está querendo o meu cargo. Então... desculpe. Eu realmente gostaria que aceitasse seu trabalho de volta, porque, não importa o que falei antes, você era muito boa. Os clientes gostavam de você.
Ele suspirou e olhou para as pessoas à nossa volta.
— Mas quer saber de uma coisa, Louisa? Você devia sair enquanto pode. É inteligente, esforçada. Podia arranjar coisa muito melhor do que isso aqui. Se eu não estivesse enrolado com uma hipoteca que mal consigo pagar, um bebê a caminho e prestações não pagas de um maldito Honda Civic que me faz sentir com cento e vinte anos, pode acreditar que eu estaria decolando daqui mais depressa do que qualquer um desses aviões. — Ele me entregou um contracheque. — É o pagamento das suas férias. Agora vá. Estou falando sério, Louisa, dê o fora daqui.
Olhei para o pequeno envelope pardo na minha mão. Ao nosso redor, os passageiros andavam devagar, parando diante das vitrines das lojas, procurando onde guardaram os passaportes, alheios ao que acontecia por ali. Mas eu já estava cansada de saber o que ocorreria em seguida.
— Richard? Obrigada por isso tudo, mas... ainda posso aceitar o emprego de volta? Mesmo que seja só por um tempo? Estou mesmo precisando.
Ele pareceu não acreditar no que eu estava dizendo. Então suspirou.
— Seria um grande alívio se você pudesse ficar alguns meses. Estou num beco sem saída aqui. Na verdade, se puder começar agora, eu iria no atacadista buscar os novos porta-copos.
Trocamos de papel. Uma pequena valsa de desapontamento mútuo.
— Vou ligar para casa — falei.
— Ah. Aqui — disse ele. Ficamos nos encarando por mais um tempo, até que ele me entregou a sacola com o meu uniforme. — Acho que vai precisar disso.

* * *

Richard e eu entramos numa rotina. Ele me tratava com um pouco mais de consideração e só me pedia para limpar o banheiro masculino nos dias em que Noah, o novo faxineiro, não aparecia. Ele também não fazia nenhum comentário sobre eu estar conversando demais com os clientes (ainda que ele parecesse, sim, um pouco aflito). Por outro lado, eu era alegre, pontual e tomava o cuidado de vender os produtos mais caros quando dava. Passei a sentir uma estranha responsabilidade pela pressão que Richard sofria.
Um dia, ele me levou para um canto e disse que, embora talvez ainda fosse um pouco cedo, a direção lhe dissera que queriam promover um dos funcionários ao cargo de assistente de gerente, e, se as coisas continuassem daquele jeito, ele pretendia me indicar. (“Não posso correr o risco de promover Vera. Ela colocaria desinfetante no meu chá para pegar meu emprego.”) Agradeci e tentei parecer mais feliz do que realmente estava.

* * *

Nesse meio-tempo, Lily pediu emprego a Samir. Ele disse que aceitaria fazer um teste de meio expediente se ela aceitasse não receber nada durante esse pequeno período de experiência. Entreguei-lhe um café às sete e meia e a fiz sair de casa arrumada e a tempo para começar às oito.
Quando voltei do trabalho naquela noite, aparentemente ela havia conseguido a vaga, ainda que por duas libras e setenta e três a hora. Depois descobri que esse era o mínimo permitido por lei que Samir poderia pagar.
Ela passara a maior parte do dia mudando caixotes de lugar no depósito dos fundos e colocando o preço em latas com uma etiquetadora antiga, enquanto Samir e o primo assistiam a um jogo de futebol no iPad. Ela estava toda suja e exausta, mas curiosamente feliz.
— Se eu durar um mês, ele disse que vai considerar me deixar trabalhar como caixa.

* * *

Mudei de turno, então quinta à tarde fomos à casa dos pais de Lily em St. John’s Wood. Fiquei esperando no carro enquanto Lily entrava para pegar mais roupas e a gravura do Kandinsky que ela jurara que ficaria ótima no meu apartamento. Saiu vinte minutos depois, furiosa e de cara amarrada.
Tanya apareceu na varanda com os braços cruzados, observando em silêncio a filha abrir o porta-malas e jogar lá dentro uma sacola e, com mais cuidado, a gravura. Depois Lily se sentou no banco do carona e ficou olhando fixo para a rua deserta. Quando Tanya fechou a porta, havia uma pequena possibilidade de que ela estivesse enxugando lágrimas nos olhos.
Enfiei a chave na ignição.
— Quando eu crescer, não vou ser nem um pouco parecida com minha mãe — disse Lily, e talvez ninguém além de mim teria conseguido notar o leve tremor em sua voz.
Esperei um instante, depois liguei o carro e voltamos em silêncio para o meu apartamento.
Está a fim de ir ao cinema hoje à noite? Eu poderia dar uma fugida.
Acho que não devia deixar Lily sozinha.
Quer levar ela?
Melhor não. Desculpe, Sam. Bj.

* * *

Naquela noite, encontrei Lily na escada de incêndio. Ela ergueu os olhos ao ouvir a janela se abrindo e acenou a mão com um cigarro.
— Achei que não era muito legal continuar fumando no seu apartamento, considerando que você não fuma.
Coloquei um calço na janela para deixá-la aberta, pulei com cuidado para o lado de fora e me sentei nos degraus de ferro ao lado dela. Lá embaixo, os carros estacionados ferviam sob o calor de agosto, o cheiro de asfalto quente subia no ar parado. Um carro com a capota aberta vibrava com o baixo da música que tocava. O ferro dos degraus conservava o calor acumulado de um mês de tardes ensolaradas. Eu me recostei, fechando os olhos.
— Achei que tudo daria certo — disse Lily.
Abri os olhos.
— Achei que se eu conseguisse me livrar de Peter, todos os meus problemas estariam resolvidos. Pensei que se eu conseguisse encontrar meu pai, eu sentiria que pertencia a algum lugar. Agora Peter foi embora, Garside também, já sei sobre meu pai e tenho você. Mas nada é como eu esperava.
Eu estava prestes a lhe dizer para não ser boba. Ia ressaltar que ela havia progredido muito em pouco tempo, que conseguiu seu primeiro emprego, tinha perspectivas, um futuro brilhante... As respostas adultas comuns. Mas me pareceram estereotipadas e paternalistas.
No fim da rua, havia alguns executivos amontoados em volta de uma mesa de metal ao lado da porta dos fundos do pub. Mais tarde, o local ficaria cheio de hipsters e desgarrados da City ocupando a calçada com bebidas nas mãos, e seus gritos roucos entrariam pela minha janela aberta.
— Entendo o que quer dizer — falei. — Desde que seu pai morreu espero me sentir normal de novo. No fundo, me sinto fazendo tudo no automático. Continuo num emprego de merda. Ainda moro neste apartamento, mas acho que nunca vou me sentir em casa aqui. Tive uma experiência de quase morte, mas não posso dizer que isso me deu sabedoria ou gratidão pela vida nem nada. Frequento um grupo de terapia de luto cheio de gente tão atordoada quanto eu. Mas, no fim das contas, não fiz nada da vida.
Lily pensou no que falei.
— Você me ajudou.
— É a isso que me prendo na maioria dos dias.
— E você tem um namorado.
— Ele não é meu namorado.
— Está bem, Louisa.
Observamos o tráfego seguir em direção à City. Lily deu uma última tragada no cigarro e o apagou no degrau de ferro.
— Esse é meu próximo objetivo — falei.
Ela teve a gentileza de parecer um pouco culpada.
— Eu sei. Vou parar. Prometo.
Do outro lado dos telhados, o sol começara a se pôr e seu brilho laranja era difundido pelo ar cinza-chumbo da City ao anoitecer.
— Sabe, Lily, talvez algumas coisas simplesmente demorem mais que outras. Mas acho que vamos chegar lá.
Ela passou o braço pelo meu e apoiou a cabeça no meu ombro. Assistimos ao suave pôr do sol e observamos as sombras se esticando na nossa direção. Imaginei a silhueta de Nova York e me dei conta de que ninguém é realmente livre. Talvez toda liberdade – física e pessoal – só viesse às custas de outra pessoa ou outra coisa.
O sol desapareceu e o céu laranja começou a ficar azul-petróleo. Ficamos de pé, Lily desamassou a saia e depois olhou para o maço em sua mão.
Puxou bruscamente os cigarros que restavam lá de dentro, partiu-os ao meio e jogou-os para o alto, como confete de tabaco e papel branco. Olhou para mim triunfante e ergueu a mão.
— Pronto. Sou oficialmente uma não fumante.
— Assim do nada?
— Por que não? Você disse que poderia levar mais tempo do que pensávamos. Bem, esse é meu primeiro passo. Qual é o seu?
— Ai, meu Deus. Talvez eu convença Richard a me deixar não usar mais aquela peruca de náilon terrível.
— Esse seria um ótimo primeiro passo. Seria bom não levar um choque ao tocar cada maçaneta do seu apartamento.
O sorriso dela era contagiante. Peguei o maço de cigarro vazio da sua mão, antes que ela também jogasse no carro estacionado lá embaixo, e recuei para que ela pudesse pular a janela. Lily parou e se virou para mim, como se de repente tivesse pensado em alguma coisa.
— Sabe, se apaixonar por alguém não significa que você amou menos o meu pai. Não precisa ficar triste para continuar ligada a ele. — Olhei para ela. — É só uma ideia.
Lily deu de ombros e passou pela janela.

* * *

Quando acordei no dia seguinte, vi que ela já tinha ido para o trabalho. Lily deixara um bilhete para avisar que traria pão para casa na hora do almoço, pois estávamos com pouca comida. Bebi café, comi alguma coisa e calcei o tênis para dar uma caminhada (Marc disse que “exercício faz tão bem ao espírito quanto ao corpo!”), mas então meu celular tocou. Era um número desconhecido.
— Alô!
Demorei um minuto para reconhecer.
— Mãe?
— Olhe pela janela!
Atravessei a sala e dei uma olhada lá fora. Minha mãe estava acenando vigorosamente da calçada.
— O que... o que está fazendo aqui? Cadê meu pai?
— Em casa.
— Vovô está bem?
— Vovô está ótimo.
— Mas você nunca vem sozinha para Londres. Nem passa do posto de gasolina sem meu pai vindo logo atrás.
— Bem, já estava na hora de mudar, não é? Posso subir? Não quero gastar todos os minutos do meu celular novo.
Abri o portão para ela e fui até a sala, retirando de vista o pior da louça da noite anterior. Quando ela chegou à porta, eu estava ali em pé de braços abertos, pronta para recebê-la.
Minha mãe estava usando seu melhor casaco, uma bolsa a tiracolo (“Desse jeito é mais difícil os ladrões levarem”) e tinha feito um penteado ondulado no cabelo. Estava sorrindo radiante, os lábios cuidadosamente contornados com batom coral, e segurava o guia com mapas da família, cuja edição datava de 1983.
— Não acredito que você veio sozinha.
— Não é maravilhoso? Na verdade, estou bem atordoada. Eu disse a um rapaz no metrô que era a primeira vez em trinta anos que eu estava ali sem que tivesse alguém segurando minha mão, e ele se afastou quatro bancos de mim no vagão. Quase morri de rir. Pode colocar a chaleira no fogo? — Ela se sentou, tirando o casaco, e observou as paredes em volta. — Olhe só. Verde é... interessante.
— Escolha de Lily. — Por um instante me perguntei se a chegada dela era alguma brincadeira e papai estivesse prestes a entrar pela porta, rindo de como eu era boba por ter acreditado que Josie iria a algum lugar sozinha. Coloquei uma caneca na frente dela. — Não estou entendendo. Por que você veio sem meu pai?
Ela tomou um gole do chá.
— Ah, está ótimo. Você sempre fez o melhor chá. — Ela deixou a caneca na mesa, mas antes colocou cuidadosamente um livro por baixo. — Bem, acordei esta manhã e pensei em tudo que tinha que fazer: lavar a roupa, limpar as janelas dos fundos, trocar a roupa de cama do vovô, comprar pasta de dente, e de repente pensei: não, não posso fazer isso. Não vou desperdiçar um sábado maravilhoso fazendo a mesma coisa que faço há trinta anos. Vou viver uma aventura.
— Uma aventura.
— Então pensei que a gente podia ver um espetáculo.
— Um espetáculo.
— É. Um espetáculo. Louisa, você virou papagaio? A Sra. Cousins da seguradora disse que tem um quiosque na Leicester Square em que dá para comprar ingressos baratos no mesmo dia para espetáculos que não lotaram ainda. Queria saber se você gostaria de ir comigo.
— E Treena?
Minha mãe fez um gesto com a mão.
— Ah, ela estava ocupada. Então, o que acha? Vamos ver se conseguimos arranjar alguns ingressos?
— Tenho que avisar Lily.
— Então avise logo. Vou terminar meu chá, você pode dar um jeito nesse seu cabelo e a gente sai. Tenho um cartão de metrô de um dia! Talvez eu passe o dia inteiro apenas entrando e saindo do metrô!

* * *

Compramos ingressos pela metade do preço para Billy Elliot. Era isso ou uma tragédia russa, e minha mãe disse que achava os russos esquisitos desde que alguém lhe dera uma sopa de beterraba fria e tentara enganá-la que era assim que comiam na Rússia.
Ela passou o espetáculo inteiro em êxtase ao meu lado, me cutucando e sussurrando de vez em quando:
— Eu me lembro dessa greve dos mineiros, Louisa. Foi muito difícil para aquelas pobres famílias. Margaret Thatcher! Lembra-se dela? Ah, foi uma mulher terrível. Mas estava sempre com uma bolsa bonita.
Quando o jovem Billy voou no ar, aparentemente impulsionado por suas ambições, ela chorou baixinho, limpando o nariz com um lenço branco.
Observei a professora de balé do garoto, a Sra. Wilkinson, uma mulher cujas ambições nunca a levaram além dos confins da cidade, e tentei não buscar nenhuma semelhança com a minha vida. Eu tinha um emprego e uma espécie de namorado e estava num teatro do West End numa tarde de sábado. Somei essas coisas como se fossem pequenas vitórias contra algum inimigo que eu não conseguia identificar muito bem.
Deslumbradas e emocionalmente exauridas, saímos na claridade da tarde.
— Bem — disse minha mãe, segurando firme a bolsa embaixo do braço (alguns hábitos são difíceis de perder). — Chá num hotel. Venha. Vamos esticar o programa.
Não conseguimos entrar em nenhum dos hotéis imponentes, mas encontramos um bem simpático perto do Hotel Haymarket, que tinha uma seleção de chás aprovada por minha mãe. Ela pediu uma mesa no meio do salão e ficou ali comentando sobre cada um que entrava, reparando no vestido, se parecia estrangeira, na falta de sabedoria dessas pessoas por trazerem crianças pequenas ou cachorrinhos que mais pareciam ratos.
— Bem, olhe só para a gente! — exclamava ela sempre que eu ficava calada. — Isso não está sendo ótimo?
Pedimos chá English Breakfast (Minha mãe: “Essas são palavras elegantes para chá normal, não são? Não tem nenhum daqueles sabores esquisitos?”) e o “Prato Sofisticado do Chá da Tarde” e comemos pequenos sanduíches de pão sem casca, pãezinhos que não eram tão bons quanto os que mamãe fazia e bolos com folha dourada. Ela passou meia hora falando sobre Billy Elliot, que achava que devíamos fazer isso mais ou menos uma vez por mês e que apostava que meu pai ia adorar se a gente conseguisse trazê-lo.
— Como está meu pai?
— Ah, está bem. Você conhece seu pai.
Eu queria fazer uma pergunta, mas estava com muito medo. Quando ergui os olhos, ela me lançou um olhar penetrante.
— E, não, Louisa, não estou depilando as pernas. E, não, ele não está feliz. Mas tem coisas mais importantes na vida.
— O que ele disse sobre você vir aqui hoje?
Ela riu com desdém e depois disfarçou com um pequeno acesso de tosse.
— Ele não acreditou que eu realmente viria. Contei quando fui levar o chá dele de manhã, e ele começou a rir. Para falar a verdade, isso me irritou tanto que troquei de roupa e saí.
Meus olhos se arregalaram.
— Você não contou para o meu pai?
— Eu já tinha contado. Ele está me mandando mensagens o dia inteiro, esse bobo.
Ela deu uma olhada na tela, depois guardou o telefone com cuidado no bolso.
Fiquei observando-a colocar delicadamente com o garfo outro pãozinho no seu prato. Ela fechou os olhos de prazer enquanto dava uma mordida.
— Isso está maravilhoso.
Engoli em seco.
— Mãe, vocês não vão se divorciar, vão?
Ela arregalou os olhos.
— Divorciar? Sou uma boa católica, Louisa. Não nos divorciamos. Apenas fazemos nossos homens sofrerem para todo o sempre!

* * *

Paguei a conta e fomos ao toalete, que era um espaço cavernoso com mármore marrom e flores caras supervisionado por uma funcionária calada que ficava em pé ao lado das pias. Minha mãe lavou duas vezes as mãos, meticulosamente, depois sentiu o cheiro dos diversos hidratantes enfileirados na pia, fazendo diferentes expressões no espelho caso tivesse gostado ou não.
— Eu não deveria dizer isso, considerando minha oposição ao patriarcado e tal, mas eu queria, sim, que uma de vocês tivesse um homem bom.
— Conheci uma pessoa — falei, sem perceber.
Ela se virou para mim com um vidro de hidratante na mão.
— Jura?
— Ele é paramédico.
— Bem, isso é o máximo. Um paramédico! É quase tão útil quanto um bombeiro. E quando vamos conhecê-lo?
Hesitei.
— Conhecê-lo? Não sei se é...
— Se é o quê?
— Bem. Quer dizer, é cedo. Não tenho certeza se é esse tipo de...
Minha mãe abriu o batom e olhou para o espelho.
— Você está dizendo que é só sexo?
— Mãe! — Olhei para a funcionária.
— Bem, o que você quer dizer, então?
— Eu não tenho certeza se já estou pronta para um relacionamento de verdade.
— Por quê? O que mais está acontecendo com você? Esses ovários não vão no freezer, sabe.
— Aliás, por que Treena não veio? — perguntei, mudando depressa de assunto.
— Ela não conseguiu encontrar uma babá para ficar com Thom.
— Você disse que ela estava ocupada.
Os olhos da minha mãe se fixaram no meu reflexo. Ela contraiu os lábios e guardou bruscamente o batom na bolsa.
— Ela parece estar um pouco brava com você, Louisa. — Minha mãe acionou sua Visão Raio X Maternal. — Vocês brigaram?
— Não sei por que ela sempre tem que dar palpites sobre tudo o que faço. — Ouvi minha própria voz sair com o tom emburrado de uma criança de doze anos.
Minha mãe olhou fixo para mim.
Então contei para ela. Eu me sentei na pia de mármore e mamãe se acomodou na poltrona. Em seguida falei sobre a oferta de emprego e por que eu não podia aceitar, pois tínhamos perdido Lily e a encontrado novamente, e o comportamento dela estava melhorando.
— Já combinei outro encontro entre a Sra. Traynor e ela. Então estamos progredindo. Treena simplesmente não me escuta, mas se Thom estivesse enfrentando metade dessas coisas, ela seria a primeira a dizer que não podia deixá-lo.
Fiquei mais aliviada ao contar para minha mãe. Ela, mais do que ninguém, entenderia o peso da responsabilidade.
— É por isso que ela não está falando comigo.
Minha mãe me encarava.
— Jesus, Maria, José, você perdeu o juízo?
— O quê?
— Um emprego em Nova York com tudo o que tem direito e você continua aqui, trabalhando naquele lugar medonho no aeroporto? Você ouviu isso? — Ela se virou para a funcionária. — Não consigo acreditar que ela seja minha filha. Juro por Deus que não entendo o que aconteceu com o cérebro dela.
A funcionária balançou a cabeça devagar.
— Não adianta — disse a mulher.
— Mãe! Estou fazendo a coisa certa!
— Para quem?
— Para Lily!
— Acha que ninguém, a não ser você, poderia ter ajudado essa garota? Bem, você perguntou a esse seu colega em Nova York se poderia adiar a oferta de emprego por algumas semanas?
— Não é esse tipo de emprego.
— Como você sabe? Quem não chora não mama. Não é verdade?
A funcionária assentiu.
— Ah, nossa. Só de pensar nisso...
A mulher entregou uma toalha de mão para a minha mãe, que a usou para abanar vigorosamente o pescoço.
— Escute aqui, Louisa. Tenho uma filha brilhante presa em casa por estar sobrecarregada de responsabilidades depois de fazer uma escolha errada no passado. Não que eu não ame Thom, mas vou lhe dizer que fico com vontade de chorar quando penso no que Treena poderia ter se tornado se tivesse deixado para ter esse filho um pouco mais tarde. Estou presa cuidando do seu pai e do seu avô, mas tudo bem. Vou dando um jeito. Mas isso não deveria ser o máximo que você pode almejar na sua vida, está me ouvindo? Alguns ingressos pela metade do preço e um chá elegante de vez em quando. Você devia estar por aí! É a única pessoa da nossa família que tem uma chance de verdade! E saber que acabou de desperdiçá-la por causa de uma garota que mal conhece!
— Fiz a coisa certa, mãe.
— Pode ser. Ou talvez essa não fosse uma situação em que você tivesse que escolher entre duas opções.
— Quem não chora não mama — repetiu a funcionária.
— Olhe só! Até essa senhora entende. Você precisa voltar lá e perguntar a esse cavalheiro americano se tem algum jeito de chegar um pouco depois... Não me olhe assim, Louisa. Tenho pegado muito leve com você. Não pesei a mão quando devia. Você precisa sair desse seu emprego sem futuro e começar a viver.
— Aquele trabalho já era, mãe.
— Já era coisa nenhuma. Já perguntou a eles?
Neguei com a cabeça.
Minha mãe bufou e ajeitou a echarpe no pescoço. Tirou duas moedas da bolsa e colocou-as na mão da funcionária.
— Bem, preciso dizer que você faz um trabalho espetacular! Dá até para comer nesse chão. E tudo cheira maravilhosamente bem.
A mulher sorriu calorosamente para minha mãe, e então, quase como uma reflexão tardia, ergueu um dedo. Espiou pela porta, depois andou até seu armário e o abriu com agilidade usando um molho de chaves. Em seguida voltou e colocou um sabonete floral nas mãos da minha mãe, que sentiu o cheiro e suspirou.
— Bem, isso é simplesmente o paraíso. Um pedacinho do paraíso.
— É para você.
— Para mim?
A mulher fechou a mão da minha mãe em volta do sabonete.
— Minha nossa, você é um amor. Posso perguntar o seu nome?
— Maria.
— Maria, eu me chamo Josie. Da próxima vez que eu voltar a Londres vou usar seu banheiro com certeza. Viu só, Louisa? Vai saber o que acontece quando a gente dá uma fugidinha? Que tal essa aventura? E ainda ganhei o sabonete mais maravilhoso da minha nova e querida amiga Maria!
Elas trocaram um aperto de mão com o mesmo fervor de velhas conhecidas se despedindo, e saímos do hotel.

* * *

Eu não podia contar a ela. Não podia revelar que aquele emprego me assombrava da hora em que eu acordava até a hora em que eu ia dormir. Não importava o que eu dizia a todo mundo, eu sabia que sempre me arrependeria profundamente de ter perdido a oportunidade de morar e trabalhar em Nova York. Que por mais que eu dissesse a mim mesma que haveria outras chances, outros lugares, eu teria que carregar comigo essa oportunidade perdida, como uma bolsa barata que, aonde quer que fosse, eu me arrependeria de ter comprado.
Depois de me despedir dela no trem que a levaria de volta para o meu pai, sem dúvida perplexo e bravo, e muito depois de ter preparado uma salada para mim e para Lily com as sobras que Sam deixara na geladeira, fui checar meu e-mail e encontrei uma mensagem de Nathan.

Não posso dizer que concordo, mas entendo o que você está fazendo. Acho que Will ficaria orgulhoso. Você é uma pessoa boa, Clark. Bj.

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