Capítulo 23

NO DIA SEGUINTE, o cemitério estava cheio. Seu Inácio era muito
querido, com certeza. Muitas cabecinhas brancas lamentavam a perda
do amigo e se lembravam de histórias engraçadas e curiosas
protagonizadas por ele.
Era a primeira vez que eu ia a um enterro. Quando minha bisa
morreu, eu preferi não ir, não quis vê-la morta de jeito nenhum. Mas
agora eu me sentia madura para dar apoio aos meus amigos. Não tinha
que ver o caixão. Eu só precisava dar um abraço apertado no Davi e no
Dudu e mostrar que meu ombro estava ali para o que desse e viesse.
Ao contrário do que pensei, Davi e Dudu estavam calmos, serenos.
Visivelmente mal, mas tranquilos na medida do possível.
– Ai, nem sei o que dizer numa hora dessas… – falei, ao chegar ao
cemitério São João Batista com o Zeca.
– Eu sei. Meu tio me ensinou. Faz assim, ó: abraça, chega perto do
ouvido deles e diz nobujo ganpan ou algo parecido – o pirado do Zeca
falou.
– Ãhn? O que isso quer dizer? – questionei.
– Não quer dizer nada, sua louca! Em enterro e velório tá todo mundo
tão transtornado que ninguém presta atenção no que você diz. As
pessoas dão valor mesmo pra sua presença, não pras palavras que você
fala. Então, na dúvida, diz qualquer coisa que não dê pra entender, e
eles vão agradecer do mesmo jeito.
– Eu não acredito que até no cemitério você consegue fazer piada,
Zeca! – pontuei.
– Alguém precisa descontrair! – disse ele. – Mas sério agora. Fala
que sente muito e abraça forte. É isso que as pessoas mais querem.
Abraçar.
E assim foi feito. Primeiro abracei dona Maria Amélia, a avó do Davi,
tão arrumadinha e engomadinha, fofa recebendo os pêsames das
pessoas, mas triste de dar dó. Depois abracei Davi.
– Obrigado por ter vindo, Tetê. Você foi muito bacana comigo nessa
batalha.
– A gente se conhece há tão pouco tempo e eu já te considero tanto…
Não queria que isso tivesse aconteci…
– O guerreiro descansou, minha amiga – afirmou ele, antes de
respirar fundo para prosseguir. – Além dos edemas consecutivos, uma
falta de calcificação nos ossos do pé estava prejudicando demais a vida
dele. Andar era uma dificuldade, respirar era uma dificuldade, tomar
banho era uma dificuldade, ir ao banheiro… As coisas mais simples
estavam tão difíceis pra ele, coitado… Viver não estava mais tão bacana,
sabe?
Enquanto o Davi falava, eu só pensava: Que pessoa madura. E como
ele estava certo. Querer que uma pessoa fique viva, mesmo sofrendo, é
uma espécie de egoísmo. Só ali entendi isso. Que quando o relógio
biológico começa a dar sinais de que vai parar, é melhor entender e não
se revoltar. Apenas deixar o Senhor Tempo agir e cuidar de tudo.
– Foi melhor assim. Ele já estava muito velhinho, teve meu pai
tarde… Aproveitou muito a vida sem filhos com a minha avó antes de o
meu pai morrer. Foi um “baita cara batuta”, como ele se
autodenominava. Mas ele nunca superou a perda do único filho. Agora
eles vão matar a saudade lá em cima. Será um encontro emocionante,
tenho certeza. Vai fazer falta, o meu velhinho – concluiu, deixando
escapar uma lágrima sentida.
– Chora, chora mesmo, Davi. Não prende – aconselhou Zeca, que se
aproximou da gente depois de falar com o Dudu.
– Já chorei e vou chorar muito. Embora ele tenha pedido pra gente
cantarolar Noel Rosa quando desse vontade de chorar. O meu avô
adorava um sambinha.
Sorri triste. Suspirei e dei mais um aperto nele antes de me dirigir
ao Dudu.
– Oi, moça bonita. Que bom que você veio – disse ele, testa franzida,
o rosto todo querendo chorar.
E eu voei para os braços dele para dar o melhor abraço que eu podia
dar. O mais sincero, o mais sentido. E ele chorou baixinho, os soluços
causados pela perda entraram no meu ouvido e me fizeram chorar
também. Para ele, não consegui dizer nada. Absolutamente nada.
Ficamos ali um tempão abraçados enquanto o velório acontecia.
Eu não quis ver o corpo. Seria demais para mim. Isso é normal? Não
sei, só sei que optei por respeitar minha estranheza em relação ao tema.
E só então me dei conta de que conheci seu Inácio apenas por fotos. E
preferi que na minha memória ele continuasse feliz como nos retratos
espalhados pela casa e no celular do neto.
Quando chegou a hora do enterro preferi ficar mais distante,
acompanhando de longe. Mas me emocionei muito quando o Dudu
puxou, mesmo com a voz trêmula, “Samba da bênção”, pérola do
Vinicius de Moraes que diz que “é melhor ser alegre que ser triste,
alegria é a melhor coisa que existe”. Cantada por um coro emocionado, a
música, uma das preferidas de seu Inácio (soube depois), foi um adeus
tocante, bonito, abençoado.
Se eu mandasse uma mensagem para alguém para definir o que eu

estava sentindo naquele momento, ela teria apenas um emoji. Este aqui:
.

Depois do enterro fomos para a casa do Davi, onde poucos e bons
amigos do seu Inácio foram reavivar suas memórias e resgatar as
lembranças de um passado que não voltaria mais. Mas todos tinham
uma certeza em comum: Inácio viveu intensamente. Aproveitou cem por
cento tudo, cada segundo que esteve entre nós, ao contrário de muita
gente que prefere ver a vida passar pela janela.
Chegada a hora de ir embora, eu me despedi do Davi, do Dudu e da
avó deles com um abraço caloroso e silencioso, e fui para casa a pé. No
caminho, fiquei pensando nos meus amigos, no seu Inácio, nos meus
problemas, nos problemas que todo mundo tem, na vida e em como ela
pode acabar num segundo. E por isso nós devemos aproveitar ao máximo
a convivência com nossos entes queridos. Não porque são família, mas
porque a gente ama essas pessoas desde que a gente nasce. A gente se
acostuma com elas e, de repente, descobre que elas são… humanas.
Frágeis, suscetíveis a todo tipo de problema. Mortais.
Pisei em casa e fui logo agarrar meu avô com todas as forças. Essa
história do avô do Davi me deixou muito emotiva.
– Ai, Tetê, assim vai sufocar seu avô! Ele é velho, garota! Assim você
quebra as costelas do coitado! – bronqueou minha avó.
– Velha é você, Djanira! Velha e botocada! – bronqueou ele, tirando
de mim uma gargalhada. – Pode abraçar o vovô quantas vezes você
quiser, meu amor! Estou adorando essa fase de abraços! Sua avó está é
com inveja do nosso amor infinito! – disse, com aquela voz doce que só
os avôs têm.
Na sexta-feira, Davi não foi à aula, o que era bem compreensível. Mas
eu estava absolutamente aflita, nervosa, preocupada, porque o prazo de
uma semana que a Conceição tinha dado para resolver o assunto ia se
esgotar na terça-feira. Eu não havia feito nada para resolver meu
problema nem fazia ideia de como iria sair daquela enrascada. Eu
estava na pior. Meus dias de felicidade foram muito breves mesmo.
À tarde, depois da escola, resolvi mandar mensagem para o Davi,
minha única esperança. Se ele conhecia alguém fera no computador, eu
precisava saber quem era. Mas e se o tal cara quisesse cobrar caro pelo
serviço? Eu não ia ter como pagar. E se demorasse? E se ele não
conseguisse? E se não tivesse tempo? Eu acho que eu estava mesmo
ferrada…


TETÊ
Oi, Davi, tudo bom? Desculpa te incomodar,
assim, no seu luto… é que eu estou mesmo
precisando. Lembra do cara que você falou
que é fera no computador?

DAVI
Oi, Tetê, tudo bom, não tem problema não. Eu
estou de boa. Eu lembro sim.

TETÊ
Então, você pode me dar o contato dele?

DAVI
Ahh, é um cara muito difícil de encontrar.

TETÊ
Ai, jura? Nem me fala isso, vou morrer…

DAVI
Calma, tô brincando. Você até conhece ele.

TETÊ
Conheço? Quem é?

DAVI
É o Dudu. Ele é muito fera com computador.

TETÊ
Tá brincando!!!

DAVI
Tô falando sério! Ele é capaz de coisas que
até o Bill Gates duvidaria. Ele estuda
computação, eu te falei né?

TETÊ
Falou mesmo. Mas é sério que seu irmão é

hacker?

 Confesso que estava bem espantada com a informação. E bem
aliviada, também. E bem animada! Eu teria mais contato com o Dudu,
poxa!

DAVI
Hacker também não, né? Ele nunca invadiu
banco nenhum, nunca fez mal pra ninguém
mas… Ele descobriu as traições da ex, a Ingrid,
lendo as mensagens que ela trocava com os
outros namorados pelo WhatsApp e pelo email.
Tenho sérias questões em relação a isso.
Acho feio. Mas... enfim... estamos falando do

talento dele. Isso ele tem de sobra.


A ex do Dudu se chamava Ingrid, então? E ele descobriu uma traição
dela? Não aguentei e liguei para o Davi.
– Explica melhor essa história, Davi. Tudo bem eu te ligar, né?
Outros namorados? No plural mesmo? Foi isso que você falou?
– Arrã. A Ingrid não foi nada bacana com o meu irmão.
– Jura que ele conseguiu ler as mensagens que ela trocava com os
caras? – repeti, chocada. – Como?!
– Ah, sei lá, né? Coisa complicada de computador, programa. E ele
também não revela os métodos dele – contou. – Meu irmão tem uma
inteligência fora de série, mas jamais usaria essa habilidade pra fazer
mal a alguém.
– Eu sei… – suspirei. – A Ingrid é uma menina de sorte.
– A Ingrid é uma boa bisca, como diz minha avó. Isso que ela é.
Disfarcei e mudei de assunto. Não queria que um momento delicado
como o que ele estava vivendo piorasse pelo fato de o irmão não saber
escolher namoradas.
– Ai, nem te contei, Davi! Saiu a nota do trabalho de História!
– E aí? Fomos bem? Me conta! Quanto a gente tirou? Me dá uma
notícia boa vai.
– Vou te dar a melhor notícia. Tiramos dez!
– Poxa, que incrível! Estou muito feliz! Parabéns para nós, né?
– É. Mandamos bem! – comemorei. – Bom, você então pode falar com
seu irmão sobre a ajuda?
– Falo, sim, Tetê. Ele deu uma saída, foi até a farmácia comprar um
remédio pra minha avó, mas assim que ele voltar eu explico o caso todo,
tá?
– Ai, valeu, Davi! Obrigada mesmo!
– Por nada, Tetê. Disponha!
Disponha… Só o Davi mesmo, meu velho amigo…
E eu vivi momentos de aflição até meu celular fazer plim, 37 minutos

depois.


DUDU
Oi, Tetê, o Davi me contou do caso. Vai ser um
prazer te ajudar. Não prometo que serei a
melhor das companhias, você entende, mas
só de te ver já vou ficar melhor, tenho
certeza. Você pode vir aqui amanhã umas 10
da manhã?

E eu morrendo do coração com tanta fofurice em 3, 2…

TETÊ
Lógico! Ai, Dudu, nem tenho como agradecer!
Você vai salvar minha vida! Bjs




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