SÁBADO, PONTUALMENTE
às 10 horas da manhã, eu já estava na
casa do Dudu e do Davi tocando a campainha. Dona Maria
Amélia abriu
a porta com seu sorriso habitual, apesar dos olhos tristes.
E foi muito
gentil dizendo que eu ajudava a alegrar a casa. Aquela
família era
mesmo incrível.
Cumprimentei Davi, que estava na sala, e logo Dudu apareceu
e me
deu um beijo no rosto, me puxando pela mão para o quarto,
onde estava o
computador. Meu corpo todo estremeceu ao vê-lo, e senti um
arrepio
gostoso quando ele segurou em mim.
– Bom, Tetê, eu vou precisar de algumas informações. Deixa
ver seu
celular com a fotografia e a mensagem.
– Aqui – eu estendi a mão e passei para ele.
– Hum, você pode digitar a senha pra destravar?
– Ah, claro, desculpe!
Eu estava meio nervosa de estar sozinha com aquele
“especialista”
tão especial. Digitei o código e devolvi o aparelho.
– Ah, tá. Hum. Pronto. Já enviei pra mim e já estou vendo
uma coisa
aqui…
Aí o Dudu, todo compenetrado, começou a mexer no computador,
e eu
fiquei ali observando aquele menino lindo de perfil
concentrado em
olhar nem sei o que na tela. Ele digitava freneticamente e
olhava para a
tela, e às vezes parava para pensar. Em seguida, digitava de
novo, olhava
um pouco no celular e voltava no computador. E fazia tão
rápido que eu
nem via seus dedos direito. Parecia que estava teclando
qualquer
coisa…
Eu fiquei quietinha ali do lado esperando e torcendo para
dar certo.
E só observando. De repente, o Dudu parou de digitar, olhou
para mim e
falou:
– Bom, agora eu entrei nos sistemas das operadoras e vai
demorar
bastante tempo pra identificar e selecionar alguns números,
pra gente
localizar alguma coisa.
– Meu deus, você é hacker mesmo!
– Calma, nem tanto! – Ele deu um sorriso meio maroto, assim
com o
canto da boca.
– E quanto tempo você acha que vai demorar?
– Hum… olha, de umas 24 a 30 horas, um pouco mais, um pouco
menos…
– Tudo isso??? – perguntei, espantada.
– É, eu já pus alguns filtros, mas tem muito celular no
Brasil, né?
Principalmente no Rio de Janeiro.
– É… imagino que tenha…
– Bom, a gente deixa rodando e amanhã vai ter uma solução –
ele
falou confiante.
– É… amanhã, né? – eu abaixei a cabeça e falei desanimada.
Já não
estava acreditando. – Bom, então eu volto amanhã…
– Faz assim, Tetê: assim que eu tiver alguma resposta, eu te
aviso e
você vem, tá?
– Bom… Não vai ter jeito né?
Eu já estava muito desanimada, e dentro de mim havia um
turbilhão
de emoções, uma montanha-russa de sentimentos. E ali na
minha frente
o Dudu… O lindo e sensacional Dudu. O hackerzinho camarada
Dudu.
De repente, ouvi uma coisa inusitada.
– Tetê… É… Eu nem te agradeci por todo o apoio que você deu
pra
gente nesse processo do meu avô.
– Ah, imagina! Vocês são tão queridos…
– Então, eu queria saber, assim, se você topa sair comigo
qualquer
dia… Vou precisar de alguém que me bote pra cima, que me
ajude a
sorrir de novo, que me faça bem. Você faria isso pelo irmão
do seu
amigo?
Own… Eu estava escutando aquilo? Alguém me belisca! Alguém
me
beliscaaaaa!, urrava em pensamento.
– Claro que faço. E principalmente em agradecimento por me
ajudar
nessa história maluca da foto da Valentina. Fica uma ajuda
mútua, né?
Arrasei. Superelegante sem verborragia desnecessária. Zeca
ficaria
orgulhoso de mim.
– Quando meu irmão me contou, eu só pensava numa coisa: que
você
jamais seria capaz de fazer algo ruim. O pouco que te
conheço já deu pra
perceber que sua alma é linda, assim como seu sorriso.
Oi? Dá pra repetir?
Aquele foi o elogio mais insano que eu já tinha recebido.
Logo meu
sorriso? Será que ele também só via meus olhos quando eu
ria?
E é claro que eu sorri.
– Bom, já vou indo, Dudu.
Então ele se levantou e veio me dar um abraço daqueles
maravilhosos, cheirosos, aconchegantes, que me tiravam do
chão. Nos
braços do Dudu eu me sentia segura, cuidada, acarinhada… E
eu deitei
minha cabeça no ombro dele e aproveitei. E senti nossos
corações
batendo forte, ritmados. E achei que fosse explodir.
De repente eu levantei minha cabeça e olhei nos olhos do
Dudu, e
Dudu olhou nos meus olhos. E várias faíscas elétricas
pulavam entre a
gente, no curto espaço que nos separava. E então ele olhou
para a minha
boca. E eu olhei para a dele. E…
Plá!!!
– Oi, gente, a vovó quer saber se vocês querem suco com bol…
– O
Davi chegou de supetão quase derrubando a porta. – Ops… – E
logo se
tocou que tinha entrado em um mau momento…
Então a gente se afastou rapidamente, e eu falei meio
desajeitada:
– Não, Davi. Obrigada! Agradece sua avó. Eu já estava indo
embora.
Aqui vai demorar. Só vamos ter algum resultado amanhã mesmo.
– Não, Tetê! Não precisa ir agora, eu…
– Não, imagina! Dudu, tchau, Dudu. Beijo, beijo. Beijo Davi.
Beijo
dona Maria Amélia…
– A minha avó está na cozinha. – Davi riu.
– Ah, é mesmo. Beijo pro sol, beijo pra lua, beijo, quarto,
beijo, seu
computadorzinho fofo, beijo, janelinhaaaa!
“Beijo janelinhaaaa” foi forte. Fortíssimo.
Cala a boca, Tetêêê!!!, meu lado são berrou para meu lado
tagarela.
Fui para casa pensando em tudo o que estava acontecendo.
Acho que vivi as 30 horas mais tensas da minha vida. Tanto
por
esperar o resultado da busca do computador quanto por não
conseguir
parar de pensar no Dudu e no nosso quase quase-beijo (mais
um
pouquinho e viraria um quase-beijo, vai!), no elogio e na
conversa, em
tudo o que a gente tinha vivido e no que eu estava sentindo
quando
ficava perto dele. De repente, meu celular, que não tinha
saído de perto
de mim, tocou.
– A gente já sabe quem mandou a foto da Valentina! – era o
Davi.
– Mentiraaaa! Contaaaa!
Silêncio. Mais silêncio.
– Eu vou ter que falar rápido porqu…
Que droga de silênciooooo!
Fala, Davi!
– Alôôô! – eu falei
– Alô. Tá me ouvindo?
– Tô, fala! Não vejo a hora de saber quem foi!
– Achei que tinha caído a ligação.
– Fala, pelo amor de Getúlio! Tô morrrrta de curiosidade!
– O quê? Tá pico…ando tud..!
– Não importa! Conta, Davi! Tô ouvindo bem você.
– Oi? Não estou te escutando, o sinal aqui é péssimo.
– Estou te ouvindo! Desembucha, Davi! – implorei.
– A his… é… mu… mi…
– Daviiiiiii! Agora tá picotando! Me liga de um fixo!
– O… a… nose… ti… jud…
E então silêncio. Para sempre.
– Davi! Davi! Daviiii! – chamei em vão. – Nãããão!!!!
– Filha, o que foi? – perguntou meu pai, entrando no quarto
desesperado. – Aconteceu alguma coisa com o Davi?
– Não! Quero dizer… Acho que não. Provavelmente não. Ele me
ligou
por outro motivo. É que… Ah, pai. É uma longa história. E
até parece que
você não sabe que eu sou exagerada e um pouco dramática, né?
– Um pouco? Quase me matou de susto, menina!
Você acha que eu ia esperar ele ligar de novo? Saí correndo
e apareci
na casa dos irmãos D o mais rápido que pude.
Davi abriu a porta e foi logo me levando para o quarto.
– Você vai ficar impressionada.
– Conta!
– Quero te contar como a gente descobriu!
– Fala logo!
– Posso contar amanhã na escola, se você preferir – ironizou
ele.
– Paraaaa! O Dudu descobriu então?
– Sim. E eu dei uma ajudinha com informações que ele não
tinha.
– Mas vocês têm cem por cento de certeza? Eu estou salva,
será? –
questionei.
– Sim! Mas você não vai acreditar quem foi!
– Conta! Pelo amor de Deus! – implorei. – Foi o Erick mesmo?
– Claro que não, eu disse que não tinha sido ele!
– Então foi a… a Samantha?
– Não, Tetê. Não foi ela!
Cheguei no quarto e Dudu levantou, me deu dois beijos
estalados e
foi me fazendo sentar. E Davi já foi falando, todo empolgado:
– O telefone que mandou a foto é de Sofia Ribeiro de Mello.
– Quem? E quem é essa, gente? Não tem Sofia na nossa turma…
Ou
tem?
– Não fez a conexão, Tetê?
– Não! Para de suspense, Davi!
Então o Dudu me explicou com mais calma.
– Quando apareceu esse nome, perguntei pro Davi se ele
conhecia, e
ele disse que não. Então eu perguntei pelo sobrenome… e o
Davi não
tinha certeza. Aí pusemos o sobrenome no Facebook e
descobrimos duas
irmãs que estudam no colégio de vocês. Sofia e…
– E…? – perguntei.
– A irmã dela estuda na nossa sala! – Davi deu a pista.
De repente, me liguei!
– NÃO! Não pode ser! – reagi, ao relacionar o sobrenome à
pessoa.
Fiquei mais intrigada do que fico em fim de série de
suspense.
– A… LAÍS?! – indaguei, impactada. – Mas ela é a melhor
amiga da
Valentina!
– Pelo jeito, a Laís usou o telefone da irmã e depois
cancelou a conta,
mas eu rastreei os dados e cheguei ao número que mandou a
foto –
Dudu, o hacker, explicou.
– Mas por que fazer uma coisa humilhante dessas? E com a
amiga? –
questionei, com mil pontos de interrogação na cabeça.
– Porque ela já sofreu na mão da Valentina. O meu irmão
entrou no
computador dela e descobriu – Davi confessou.
– Para! Dudu, você entrou no computador da Laís? Como? Não,
não
quero saber! Gente, que medo de você, Dudu!
– Ah, Tetê… A gente quis entender o ódio que levou a menina
a ter
uma atitude drástica dessas, né? Já que estamos
investigando, vamos até
o fim. Afinal, isso é como um jogo! – justificou Dudu.
– E conseguiram? – eu quis saber.
– Olha o que a gente achou – disse Davi, abrindo uma página
para me
mostrar o que parecia ser uma poesia.
Para Valentina
Ela é linda, mais que bonita
Ela se acha a tal
Ela se acredita
Isso não pode ser normal
Ela espeta, ela ofende
Ela maltrata sem pensar
A menina não entende
Que palavras têm o poder de magoar
Eu era apenas uma criança
Só queria uma amiga na vida
Mas ela tirou minha esperança
E me deixou pra sempre ferida
Desprezou-me e me chamou de gorda
Como se gordura fosse defeito
O tempo passou, passou
Mas a mágoa ficou no meu peito
Debochou da minha barriga
Ironizou meu braço
Rejeitou-me como amiga
Cortou todo tipo de laço
Manipulou todos contra mim
E eu me senti ninguém
Então pedi pra sair da escola
Para tentar ser alguém
LaísCarolina era Carol na infância
Então tirei Carolina do nome
Emagreci, operei o nariz que ela odiava
E tentei esquecer sua arrogância
Não consegui, precisava me vingar
Da menina que só fez me machucar
Quando voltei, magra, de cabelo liso e nariz perfeito
Ela não me reconheceu e virou minha amiga do peito
Ficamos amigas
Somos parceiras
Mas o ódio da criança humilhada
Transbordava na chaleira
A vingança é um prato que se come frio
Disso eu tenho certeza
Anos depois do meu martírio
Resolvi tirar a menina da realeza
Valentina ruim
Valentina bela
Por que ser assim
E causar tanta mazela?
É preciso humildade
É preciso amor no coração
Mas ela só tem maldade
E precisa de uma lição
Eu estava bestificada.
– A Laís escreveu esse poema, pavoroso, diga-se de passagem,
há
exatamente um ano, quando voltou pra escola e assumiu o
primeiro
nome. Quando ela estudou lá na escola, pequenininha, era
Carol – disse
Davi.
– Essa parte eu entendi! Caraca… A garota trocou de nome.
Quero
dizer, tirou um nome por causa da Metidina.
– A Valentina fez a turma toda se revoltar contra ela no
jardim de
infância. Falou que deixaria de ser amiga de quem fosse ao
aniversário
dela e tudo.
– Como você sabe?
– Porque estava num outro texto que o Dudu encontrou.
– Ih, já tô achando você curioso demais, Dudu! – falei, meio
brincando, meio falando sério.
– Pois é, eu parei exatamente por isso. Seria invasão de
privacidade
demais. Mas eu queria entender o que gerou esse ódio todo –
Dudu
afirmou.
– Nossa, eu tô com pena da Laís! – eu disse.
– Eu também! Ela guardou tanta mágoa que esperou anos pra se
vingar. Saiu da escola com 8 anos e só voltou com 14 – Davi
concordou.
– Inacreditável! A Valentina já era má quando criança…
– Era. Mas só foi popular até os 11, 12 anos, mais ou menos.
Depois
disso as meninas começaram a hostilizá-la, pararam de
chamá-la pros
programas, falavam dela pelas costas… Resolveram se rebelar
contra a
ditadura valentiniana. Mas ela deu a volta por cima e ficou
popular de
novo quando começou a namorar o Erick no ano passado – Davi
explicou
didaticamente.
– Isso eu sei, a Samantha já tinha me contado mais ou menos.
Mas e
você? Você se lembra da Laís dessa época, Davi?
– Nada! Quando entrei na escola, cinco anos atrás, ela já
tinha saído.
Mas o Dudu achou uma foto dela.
– Impressionante, ela era muito diferente. Outra pessoa –
Dudu
disse.
– Tadinha… Vem cá, Davi, você estuda com a Valentina há
cinco anos
e ela não sabe seu nome?
– Claro que sabe. Ela só quer me magoar, mostrar que não
vale a
pena saber meu nome porque acredita que eu não sou ninguém –
contou. – Mas olha minhas rugas de preocupação – completou,
debochado.
– E agora? O que a gente faz? – questionei. – Se fosse outra
pessoa,
ou por outro motivo, eu adoraria desmascarar a Laís na
frente de todo
mundo. Mas a verdade é que, mesmo sendo totalmente contra
vingança,
eu… eu entendo ela!
– A Laís se vingou por ela e por todas as meninas que a
Valentina
menospreza. Até por você.
É. Até por mim…
Eu estava chocada. Pasma. Boquiaberta. Espantada. Elas eram
crianças! Bem que minha mãe vivia dizendo que crianças sabem
ser
bem cruéis quando querem. Eu me peguei pensando no que tinha
feito a
Valentina ser essa pessoa tão estragada desde pequena. Pais
que
mimaram muito? Pais que não deram amor? A culpa era dos pais?
A
culpa sempre é dos pais, como costuma dizer minha avó.
Nossa, que
difícil lidar com aquela situação!
Bom, mas que alívio! Eu tinha provas para mostrar para a
coordenadora da escola quem tinha sido a culpada por aquela
confusão.
Nossa missão estava cumprida e ainda restava uma bela tarde
de
domingo para poder relaxar finalmente, depois de uma semana
surreal,
com tantos acontecimentos complicados. Davi saiu do quarto e
de
repente me vi novamente sozinha com o Dudu, que mudou
completamente de assunto.
– Tetê, aquilo que eu falei ontem ainda está valendo, viu?
– Que parte, Dudu?
– A parte de a gente sair qualquer dia – disse ele. – Hoje
já é
qualquer dia…
“Hoje já é qualquer dia.” “Hoje já é qualquer dia.” Hoje já
é
qualquer diaaaaa! A frase mais linda que já entrou nos meus
ouvidos
ecoava na minha cabeça. As borboletas do meu estômago
acordaram
todas de uma vez! Felizes e rebolativas. Ok, só felizes.
Muito felizes.
– Achei que você só fosse querer sair daqui a um tempo… –
falei,
com sinceridade.
– O meu avô não ia querer que eu ficasse em casa chorando.
Ele ia
gostar de me ver feliz e bem acompanhado.
– Feliz e bem acompanhado? Você vai estar assim… comigo? –
quis
saber, tímida.
– Sim. Não tenho dúvida nenhuma, Tetê – falou, fazendo
charme. – E
aí? Vamos?
E eu tinha como dizer não?
Claro que topei.
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