Capítulo 25

Estamos nos falando?
Claro. Sobre o que você quer conversar?

* * *

Às vezes reparo na vida das pessoas à minha volta e me pergunto se não estamos todos destinados a deixar um rastro de estrago. Não são só seus pais que fundem a sua cuca. Olhei ao redor, como se de repente tivessem me entregado óculos limpos, e notei que quase todo mundo carregava a marca brutal do amor, fosse perdido, roubado ou simplesmente sepultado num túmulo.
Will tinha feito isso com todos nós, agora eu conseguia perceber. Ele não tivera a intenção, mas, ao se recusar a viver, causara isso.
Amei um homem que me mostrara o mundo, mas que não me amara o suficiente para permanecer nele. E no momento eu estava morrendo de medo de amar alguém que retribuía meu amor, caso... caso o quê? Eu ficava pensando sobre isso durante as horas silenciosas depois de Lily ter se retirado para as exuberantes distrações digitais em seu quarto.
Sam não ligou. Eu não podia culpá-lo. O que eu teria dito, afinal de contas? A verdade era que eu não queria falar sobre o que nós éramos porque eu mesma não sabia.
O problema não era que eu não gostava de estar com ele. Eu desconfiava de que ficava um pouco ridícula ao seu lado, rindo como uma boba, fazendo brincadeiras tolas e infantis, sentindo uma paixão feroz e surpreendente até para mim mesma. Eu me sentia melhor quando ele estava por perto, me sentia mais quem eu queria ser. Mais tudo. Mas mesmo assim...
Mesmo assim...
Comprometer-me com Sam significava me comprometer com a probabilidade de mais uma perda. Estatisticamente, a maioria dos relacionamentos acabava mal e, considerando meu estado mental nos últimos dois anos, as chances de que o nosso acabasse bem eram pequenas.
Podíamos evitar esse assunto, nos esquecer de tudo de vez em quando, mas, em última instância, o amor significava mais sofrimento. Mais estrago... para mim ou, pior, para ele.
Quem era forte o bastante para isso?

* * *

Eu estava dormindo mal de novo. Por isso não acordei quando o despertador tocou e, apesar de ter pisado fundo na estrada, acabei chegando atrasada para o aniversário do meu avô. Para comemorar os oitenta anos dele, meu pai montara a tenda dobrável que tínhamos usado no batizado de Thomas, que ondulava, mofada e apática, no fundo do jardim. A porta aberta dava para o beco, por onde vários vizinhos entravam e saíam, trazendo bolo ou votos de felicidade. Vovô estava no meio daquilo tudo, sentado numa cadeira de plástico de jardim, acenando com a cabeça para pessoas que ele já não reconhecia, olhando só de vez em quando para seu exemplar do Racing Post.
— E essa promoção significa exatamente o quê? — Treena era responsável pelo chá, servindo-o de um bule enorme e distribuindo xícaras.
— Bem, é um novo cargo. Eu fecho a caixa ao fim de cada expediente e fico com uma penca de chaves.
Essa é uma grande responsabilidade, Louisa, dissera Richard Percival, conferindo àquilo tanta seriedade e pompa como se estivesse me entregando o Santo Graal. Eu sentira vontade de perguntar: o que mais posso fazer com uma penca de chaves de um bar? Arar um campo?
— Dinheiro? — Ela me entregou uma xícara e tomei alguns golinhos.
— Uma libra a mais por hora.
— Hum. — Ela não ficou impressionada.
— E não preciso mais usar aquele uniforme.
Minha irmã observou meu macacão, que mais parecia uma roupa das Panteras, que eu colocara aquela manhã em homenagem à ocasião.
— Bem, acho que isso já é alguma coisa.
Ela indicou para a Sra. Laslow onde ficavam os sanduíches.
O que mais eu podia dizer? Era um trabalho. Com algum tipo de progresso. Não contei sobre os dias em que eu ficava com a impressão de ser uma forma peculiar de tortura ter que trabalhar num local em que eu era obrigada a assistir a cada avião taxiar na pista, ganhar potência como um grande pássaro, depois se lançar no céu. Não contei que usar aquela camisa polo verde todos os dias me deixava com a sensação de ter perdido alguma coisa.
— Mamãe disse que você arranjou um namorado.
— Não estamos namorando.
— Ela também falou isso. O que é, então? Vocês só transam de vez em quando?
— Não. Somos bons amigos...
— Então ele é um cachorro.
— Ele não é um cachorro. Ele é maravilhoso.
— Mas é babaca.
— Ele é ótimo. Não que isso seja da sua conta. E é inteligente, antes que você...
— Então ele é casado.
— Ele não é casado. Nossa, Treen. Quer me deixar explicar? Gosto dele, mas não tenho certeza se quero me envolver agora.
— Por causa da longa fila de homens solteiros, bonitos e empregados esperando para agarrar você? — Olhei furiosa para ela. — É só a minha opinião. A cavalo dado não se olha os dentes.
— Quando você vai saber os resultados das suas provas?
— Não mude de assunto. — Ela suspirou e abriu outra caixa de leite. — Daqui a algumas semanas.
— O que foi? Você vai tirar as maiores notas. Sabe que vai.
— Mas qual é a diferença? Estou encalhada. — Franzi a testa. — Não há empregos em Stortfold e não tenho como arcar com o preço do aluguel em Londres, muito menos tendo que pagar uma creche para Thom. Além do mais, ninguém ganha o teto salarial quando está começando, mesmo se tiver as melhores notas.
Ela serviu mais uma xícara de chá. Eu queria protestar, dizer que não era assim, mas eu sabia muito bem como o mercado de trabalho estava difícil.
— Então, o que você vai fazer?
— Acho que vou ficar aqui por enquanto. Viajar todos os dias para ir trabalhar, talvez. Torcer para que a metamorfose feminista da mamãe não a impeça de buscar Thom na escola. — Ela esboçou um pequeno sorriso, mas não parecia nem um pouco um sorriso.
Eu nunca tinha visto minha irmã deprimida. Mesmo se estivesse mal, ela seguia em frente, feito um robô, uma firme defensora do “faça uma pequena caminhada e saia dessa”. Eu tentava decidir o que dizer quando houve uma súbita comoção na mesa das comidas. Erguemos os olhos e nos deparamos com mamãe e papai se enfrentando em torno de um bolo de chocolate.
Estavam conversando naquele tom baixo e sibilante de quem não quer que os outros saibam sobre o que estão discutindo, mas mesmo assim não consegue parar de debater.
— Mãe? Pai? Está tudo bem?
Fui até lá. Meu pai apontou para a mesa.
— Não é um bolo caseiro.
— O quê?
— O bolo. Não é caseiro. Olhe só.
Dei uma olhada. Era um grande bolo de chocolate com bastante cobertura e decorado com pastilhas de chocolate entre as velas.
Minha mãe balançou a cabeça, exasperada.
— Eu tinha que escrever uma dissertação.
— Uma dissertação. Você não está na escola! E sempre faz o bolo do vovô.
— Esse bolo é bom. É do supermercado. Meu pai não se importa que não seja caseiro.
— Ele se importa, sim. É seu pai. Você se importa, não é, vovô?
Meu avô olhou de um para o outro e balançou de leve a cabeça, negando.
À nossa volta, a conversa foi interrompida. Nossos vizinhos, nervosos, se entreolhavam. Bernard e Josie Clark nunca discutiam.
— Ele só está dizendo isso porque não quer magoar você. — Papai pigarreou.
— Se ele não se importa, Bernard, porque cargas-d’água você está assim? É um bolo de chocolate. Não é como se eu tivesse ignorado todo o aniversário dele.
— Só quero que você dê prioridade à sua família! É pedir demais, Josie? Apenas um bolo caseiro?
— Eu estou aqui! Temos um bolo com velas! Aqui estão os malditos sanduíches. Não estou tomando sol nas Bahamas!
Minha mãe colocou pesadamente na mesa de cavalete a pilha de pratos que segurava e cruzou os braços.
Papai estava prestes a falar de novo, mas ela o calou ao erguer a mão.
— Então, Bernard, você que é um homem de família dedicado, quanto exatamente dessa festinha aqui você organizou, hein?
— Ih... — Treena se aproximou de mim.
— Você comprou o pijama novo do papai? Comprou? Embrulhou? Não. Você nem sabe qual é o tamanho dele. Nem sabe o tamanho das suas próprias cuecas porque SOU EU QUE COMPRO PARA VOCÊ. Você acordou às sete da manhã para buscar o pão para os sanduíches porque algum idiota chegou do pub ontem à noite e resolveu comer duas torradas, deixando o restante do pão fora do saco para endurecer? Não. Ficou com a bunda na cadeira lendo o caderno de esportes do jornal. Faz semanas que você está reclamando de mim porque me atrevi a reivindicar de volta vinte por cento da minha vida, a tentar descobrir se tem mais alguma coisa que eu possa fazer antes de me libertar dessa existência. E enquanto continuo lavando sua roupa, cuidando do vovô e lavando a louça, você está aí pegando no meu pé por causa de um bolo de supermercado. Bem, Bernard, pode pegar esse maldito bolo, que aparentemente é um enorme sinal de negligência e falta de respeito, e enfiar no seu... — ela resmungou — no seu... bem... A cozinha é logo ali, minha batedeira está lá, você mesmo pode preparar um bolo!
Em seguida, mamãe jogou para o alto o prato do bolo, que aterrissou de cabeça para baixo diante do meu pai. Ela enxugou as mãos no avental e seguiu para dentro de casa batendo os pés. Parou ao chegar no pátio, tirou o avental pela cabeça e o jogou no chão.
— Ah, sim! Treena? É melhor você mostrar ao seu pai onde estão os livros de receita. Ele só mora aqui há vinte e oito anos. Não podemos esperar que ele saiba onde ficam.

* * *

Depois disso, a festa do meu avô não durou muito mais. Os vizinhos foram embora aos poucos, cochichando e nos agradecendo efusivamente pela festa maravilhosa, dando uma rápida olhada na cozinha. Percebi que estavam tão perplexos quanto eu.
— Isso está para acontecer há semanas — murmurou Treena, enquanto tirávamos a mesa. — Ele se sente negligenciado. Ela não consegue entender por que nosso pai não quer deixá-la crescer um pouco.
Olhei para o meu pai, que estava de mau humor catando guardanapos e latas de cerveja vazias no gramado. Parecia totalmente infeliz. Eu me lembrei de minha mãe no hotel de Londres, radiante com uma nova vida.
— Mas eles estão velhos! Já deviam ter acertado o relacionamento!
Minha irmã ergueu as sobrancelhas.
— Você acha que...?
— Claro que não — respondeu Treena.
Mas ela não soou tão convencida quanto poderia.

* * *

Ajudei minha irmã a arrumar a cozinha e depois joguei dez minutos de Super Mario com Thom. Mamãe ficou no quarto dela, aparentemente escrevendo sua dissertação, e vovô retirou-se com certo alívio para o conforto mais confiável da corrida de cavalo que estava passando na televisãoFiquei pensando se meu pai tinha voltado para o pub, mas quando pus o pé para fora de casa o encontrei sentado no banco do motorista da sua van de trabalho.
Bati na janela e ele se sobressaltou. Abri a porta e me sentei ao seu lado. Achei que talvez ele estivesse ouvindo os resultados do esporte, mas o rádio estava desligado.
Ele suspirou fundo.
— Aposto que você me acha um velho bobo.
— Você não é um velho bobo, pai. — Cutuquei-o. — Quer dizer, você não é velho.
Ficamos sentados em silêncio, observando os garotos da vizinhança andando de bicicleta para cima e para baixo na rua, e fizemos uma careta quando o menor deles derrapou muito rápido e escorregou até o meio da rua.
— Quero que as coisas continuem iguais. É pedir muito?
— Nada continua igual, pai.
— Eu... apenas sinto falta da minha mulher. — Ele parecia bastante desanimado.
— Sabe, você podia simplesmente aproveitar o fato de estar casado com alguém que ainda tem tanta energia. Mamãe está animada. Ela tem a sensação de estar vendo o mundo com novos olhos. Só precisa dar espaço para ela. — A boca dele formou uma linha melancólica. — Ela ainda é sua mulher, pai. E ama você.
Por fim, ele se virou para mim.
— E se ela decidir que eu é que não tenho mais tanta energia? E se toda essa novidade mudar a cabeça dela e... — Ele engoliu em seco. — E se ela me abandonar?
Apertei sua mão. Então pensei melhor e lhe dei um abraço.
— Você não vai permitir que isso aconteça.
O sorriso lânguido que ele me deu permaneceu na minha cabeça durante toda a viagem de volta para casa.

* * *

Lily chegou justo quando eu estava prestes a sair para o encontro do grupo Seguindo em Frente. Ela se encontrara outra vez com Camilla e, como tinha virado um hábito, chegou em casa com as unhas pretas por causa do trabalho de jardinagem. Contou toda alegre que haviam criado um canteiro novo para uma vizinha, e a mulher ficara tão satisfeita que dera trinta libras a Lily.
— Na verdade, ela também nos deu uma garrafa de vinho, mas falei que devia ficar com vovó. — Notei que ela disse “vovó” de um jeito espontâneo. — Ah, e conversei com Georgina pelo Skype ontem à noite. Quer dizer, era de manhã lá, porque é na Austrália, mas foi muito legal. Ela ficou de me mandar por e-mail um monte de fotos de quando meu pai e ela eram crianças. Disse que sou muito parecida com ele. É bem bonita. Tem um cachorro chamado Jakob, que uiva quando ela toca piano.
Coloquei na mesa uma tigela de salada, alguns pães e queijo para Lily enquanto ela falava sem parar. Eu me perguntei se deveria lhe contar que Steven Traynor ligara de novo, a quarta vez em várias semanas consecutivas, esperando convencê-la a conhecer o bebê.
— Somos todos uma família. E Della está muito mais relaxada agora que o bebê está aqui, são e salvo — continuou ela. Talvez essa fosse uma conversa para outro momento. Estiquei o braço para pegar minhas chaves.
— Ah — acrescentou. — Antes que você saia. Vou voltar para a escola.
— O quê?
— Vou voltar para a escola que fica perto da casa da vovó. Lembra? Aquela sobre a qual contei para você? Aquela que eu realmente gostei? É internato de segunda a sexta. Só para o ensino médio. E vou passar os fins de semana na casa da vovó.
Por essa reviravolta eu não esperava.
— Ah.
— Desculpe. Eu queria contar para você. Mas tudo aconteceu muito depressa. Eu estava falando sobre isso e vovó ligou por acaso para a escola e disseram que eu seria bem-vinda de volta, e você nunca vai adivinhar! Minha amiga Holly continua lá! Falei com ela pelo Facebook. Ela me disse que mal pode esperar para eu voltar. Quer dizer, não contei a ela tudo o que aconteceu, e provavelmente não vou contar, mas isso foi muito maneiro. Ela me conheceu antes de tudo dar errado. Ela é... legal, sabe?
Escutei-a falando toda animada e fiquei com a impressão de ter sido trocada por outra.
— Quando isso tudo vai acontecer?
— Bem, preciso estar lá para o início das aulas em setembro. Vovó acha que talvez seja melhor eu me mudar logo. Quem sabe semana que vem?
— Semana que vem? — Fiquei sem ar. — O que sua mãe acha disso?
— Ela está feliz que vou voltar a estudar, principalmente porque é vovó quem está pagando. Teve que contar à escola um pouco sobre o outro lugar onde estudei e sobre o fato de eu não ter feito as provas, e dá para perceber que ela não gosta muito da vovó, mas disse que estava tudo bem. “Se isso é o que realmente vai fazer você feliz, Lily... E espero que não trate sua avó como trata todo mundo.” — Riu do próprio comentário da mãe. — Quando ela falou isso, olhei para vovó, que ergueu de leve a sobrancelha, mas deu para perceber o que passou pela sua cabeça. Já contei que ela pintou o cabelo? Um tom de castanho-escuro. Ela está muito bem agora. Menos parecida com uma paciente de câncer.
— Lily!
— Está tudo bem. Ela achou graça quando falei isso. — Lily sorriu para si mesma. — Era o tipo de comentário que meu pai faria.
— Bem — murmurei ao recuperar o fôlego —, parece que você já resolveu tudo.
Ela olhou para mim.
— Não fale assim.
— Desculpe. É que... vou sentir saudade.
De repente Lily abriu um sorriso radiante.
— Você não vai sentir saudade, boba, porque ainda vou voltar aqui nos feriados e tal. Não posso passar o tempo inteiro em Oxfordshire com gente velha, ou vou enlouquecer. Mas é bom. Ela é... Sinto que ela é da minha família. Não é estranho. Achei que seria, mas não é. Ei, Lou... — Ela me abraçou com força. — Você vai continuar sendo minha amiga. No fundo, é a irmã que nunca tive.
Abracei-a também e me esforcei para manter o sorriso.
— Enfim, você precisa ter privacidade. — Ela se afastou e tirou o chiclete da boca, embrulhando-o com cuidado num pedacinho de papel. — Ter que ouvir você e o Gostosão da Ambulância transando do outro lado do corredor era bastante nojento, na verdade.
Lily está indo.
Indo aonde?
Morar com a avó. Eu me sinto estranha. Ela está muito feliz com isso.
Desculpe. Não queria falar o tempo todo sobre coisas relacionadas a Will, mas na verdade não tenho com quem mais conversar.

* * *

Lily arrumou a mala, retirando com cuidado do quarto praticamente todos os vestígios de que estivera lá, largando apenas a gravura do Kandinsky e a cama dobrável, além de uma pilha de revistas femininas e uma embalagem de desodorante vazio. Eu a deixei na estação de trem, escutando-a falar ininterruptamente e tentando não parecer tão desestabilizada quanto me sentia. Camilla Traynor estaria esperando no fim da viagem dela.
— Você devia nos visitar lá. Meu quarto está muito bonito. Tem um cavalo na casa ao lado, e o fazendeiro disse que posso andar nele. Ah, e ainda tem um pub muito legal.
Ela olhou para o horário das partidas dos trens e de repente teve um sobressalto ao ver a hora.
— Droga. Meu trem. Certo. Onde é a plataforma onze?
Ela saiu correndo apressada pelo meio da multidão, com a mala no ombro, as pernas compridas exibindo a meia-calça preta. Fiquei ali, imóvel, observando-a ir embora. Ela aumentou o passo.
De repente se virou e, ao me ver perto da entrada, acenou, com um sorriso largo e o cabelo balançando em volta do rosto.
— Ei, Lou! — gritou ela. — Só queria falar de novo que seguir em frente não significa que você amou menos o meu pai, sabe. Tenho quase certeza de que ele diria isso.
E então ela desapareceu, engolida pela multidão.
O sorriso dela era igual ao dele.
Ela nunca foi sua, Lou.
Eu sei. Eu só sentia que com ela eu tinha um objetivo.
Só uma pessoa pode lhe dar um objetivo.
Fiquei um instante assimilando essas palavras.
Podemos nos encontrar? Por favor?
Vou trabalhar esta noite.
Passa lá em casa depois?
Talvez mais para o final da semana. Ligo para você.

* * *

Foi o “talvez” que me fez tomar a decisão. Tinha algo de definitivo naquela palavra, como uma porta sendo fechada lentamente. Fiquei olhando para o meu celular enquanto aquelas inúmeras pessoas chegando para trabalhar na cidade me rodeavam, e algo dentro de mim também mudou. Eu poderia ir para casa lamentar mais uma coisa que eu havia perdido ou poderia abraçar uma liberdade inesperada. Era como se uma luz tivesse se acendido: a única forma de evitar ser deixada para trás era começar a seguir em frente.
Fui para casa, fiz café e fiquei encarando a parede verde. Então peguei meu laptop.

Prezado Sr. Gopnik,
Meu nome é Louisa Clark e mês passado o senhor teve a gentileza de me oferecer um emprego, que precisei recusar. Imagino que já tenha preenchido a vaga, mas, se eu não disser isso, acabarei me arrependendo para sempre.
Eu queria muito esse trabalho. Se a filha do meu antigo patrão não tivesse aparecido com problemas, eu teria aceitado a oferta na hora. Não quero responsabilizá-la por minha decisão, pois foi um privilégio ajudá-la a resolver as coisas. Mas eu só queria dizer que, se algum dia o senhor precisar outra vez de alguém, espero que possa considerar entrar em contato.
Como sei que é um homem ocupado, não vou me estender. Eu só precisava que soubesse disso.
Atenciosamente,
Louisa Clark

Eu não tinha muita certeza do que estava fazendo, mas pelo menos estava fazendo alguma coisa. Apertei enviar e, após esse pequeno ato, de repente me senti com um objetivo. Corri para o banheiro e liguei o chuveiro, tirando a roupa e tropeçando na barra da calça por causa da pressa de tirá-las para entrar debaixo da água quente. Comecei a lavar o cabelo, já planejando o que faria em seguida. Eu iria até a garagem de ambulâncias, encontraria Sam e...
A campainha tocou. Soltei um palavrão e peguei uma toalha.

* * *

— Estou de saco cheio — disse minha mãe.
Demorei um pouco para registrar que ela realmente estava parada ali, segurando uma pequena mala. Enrolei-me na toalha enquanto meu cabelo pingava no tapete.
— Do quê?
Ela fechou a porta ao entrar.
— Do seu pai. Reclamando sem parar de tudo o que eu faço. Agindo como se eu fosse uma prostituta só por querer um tempinho para mim. Então avisei a ele que estava vindo para cá por uns dias.
— Uns dias?
— Louisa, você não faz ideia. Ele passa o tempo todo de mau humor. Não posso ficar parada como uma pedra, sabe? Todo mundo consegue mudar. Por que eu não posso?
Tive a impressão de ter entrado no meio de uma conversa que já estava rolando há uma hora. Possivelmente num bar. Daqueles que ficam abertos até mais tarde.
— Quando comecei o curso de consciência feminista, eu achava que boa parte daquilo era exagero. Controle patriarcal? Mesmo o tipo inconsciente. Pois bem, eles não sabem da missa a metade. Seu pai simplesmente não consegue me enxergar como uma pessoa além do que eu coloco na mesa ou tiro da cama.
— Hã...
— Ah. Falei demais?
— Acho que sim.
— Vamos discutir isso tomando um chá. — Minha mãe passou por mim e entrou na cozinha. — Bem, este lugar parece ter melhorado um pouco. Mas ainda não tenho certeza quanto ao verde da parede. Essa cor apaga você. Aliás, cadê seus saquinhos de chá?

* * *

Minha mãe se sentou no sofá e, enquanto o chá esfriava, escutei sua ladainha de frustração, tentando não pensar na hora. Sam começaria o expediente em meia hora. Eu levaria vinte minutos para chegar à garagem de ambulâncias. Mas então minha mãe erguia o tom de voz, levava as mãos aos ouvidos e eu sabia que não iria a lugar algum.
— Sabe como é desanimador a pessoa nos dizer que nunca vai ser capaz de mudar? Pelo resto da vida? Só porque mais ninguém quer isso? Sabe como é horrível se sentir empacada?
Assenti vigorosamente. Eu sabia. De verdade.
— Com certeza meu pai não tem a intenção de fazer você se sentir assim, mas, olhe, eu...
— Até sugeri que ele fizesse um curso à noite. Alguma coisa de que gostasse, sabe, como restauração de antiguidades, desenho de modelo vivo ou algo assim. Não me importo que ele olhe para as nudistas! Achei que podíamos crescer juntos! Esse é o tipo de esposa que estou tentando ser, daquelas que nem ligam que o marido fique olhando para pessoas nuas, desde que seja em nome da cultura... Mas ele só fica dizendo: “Para que você quer que eu vá até lá?” É como se ele estivesse na menopausa, caramba. E a caduquice dele por eu não raspar as pernas? Ai, meu Deus. É muita hipocrisia. Sabe de que tamanho estão os pelos das narinas dele, Louisa?
— Não.
— Pois eu conto! Dá para enxugar o prato com eles. Nos últimos quinze anos, era sempre eu quem pedia para o barbeiro dar uma aparada ali, sabe? Como se ele fosse uma criança. Eu me importo? Não! Porque ele é assim. É um ser humano! Com pelo no nariz e tudo!! Mas se me atrevo a não ficar tão lisinha quanto o bumbum de um bebê, ele age como se eu tivesse me transformado no Chewbacca!
Faltavam dez minutos para as seis. Sam sairia às seis e meia. Suspirei e me enrolei na toalha.
— Então... Hum... Você acha que vai passar quanto tempo aqui?
— Bem, ora, não sei. — Mamãe tomou um gole de chá. — Agora é o serviço social que leva o almoço do vovô, então não preciso estar lá o tempo todo. Talvez eu fique só por alguns dias mesmo. A gente se divertiu bastante da última vez que estive aqui, não foi? Podíamos visitar Maria no toalete amanhã. Não seria legal?!
— Maravilhoso.
— Ok. Bem, vou arrumar a cama extra. Onde é que está?
Tínhamos acabado de nos levantar quando a campainha tocou de novo.
Abri a porta, esperando uma entrega de pizza errada, mas me deparei com Treena e Thom e, atrás deles, com as mãos enfiadas nos bolsos da calça feito um adolescente teimoso, estava meu pai.
Ela nem olhou para mim. Foi entrando logo de uma vez.
— Mãe. Isso é ridículo. Você não pode simplesmente fugir do papai. Quantos anos você tem? Quatorze?
— Não estou fugindo, Treena. Estou me permitindo um espaço para respirar.
— Bem, vamos ficar aqui sentados até vocês dois resolverem esse problema ridículo. Sabia que ele tem dormido na van, Lou?
— O quê? Isso você não me contou.
Eu me virei para minha mãe, que ergueu o queixo.
— Você não me deu a chance, com toda sua falação.
Minha mãe e meu pai ficaram ali em pé sem olhar um para o outro.
— Não tenho nada a dizer para o seu pai agora — afirmou mamãe.
— Sentem-se aí — disse Treena. — Vocês dois. — Eles foram arrastando os pés até o sofá, olhando com ressentimento um para o outro, sem falar nada. Minha irmã se virou para mim. — Muito bem. Vamos fazer um chá. E depois resolveremos isso como uma família.
— Boa ideia! — falei, sentindo que aquela era minha oportunidade. — Tem leite na geladeira. O chá está ao lado. Sirvam-se. Vou ter que sair por meia hora.
E antes que alguém pudesse me deter, enfiei uma calça jeans e uma regata e saí correndo do apartamento levando a chave do carro.

* * *

Eu o vi assim que entrei no estacionamento. Sam estava indo na direção da ambulância, com a mochila no ombro, e senti um aperto no peito. Eu sabia como seu corpo era delicioso, conhecia os ângulos suaves do seu rosto. Ele se virou e deu um passo em falso, como se eu fosse a última coisa que ele esperasse ver. Então voltou-se para a ambulância, abrindo as portas de trás.
Fui até ele.
— Podemos conversar?
Ele ergueu um tanque de oxigênio como se fosse uma lata de spray de cabelo, prendendo-o no suporte.
— Claro. Mas vai ter que ser outra hora. Estou de saída.
— Não dá para esperar.
Sua expressão não se alterou. Ele pegou um pacote de gaze.
— Olhe. Só queria explicar... aquilo sobre o que a gente estava falando. Eu gosto de você, sim. Gosto muito de você. Só tenho... medo.
— Todos nós temos medo, Lou.
— Você não tem medo de nada.
— Tenho, sim. Só que não de coisas que você notaria.
Ele olhou para as próprias botas. E então notou que Donna vinha correndo na sua direção.
— Ah, droga. Tenho que ir.
Pulei na parte de trás da ambulância.
— Vou com vocês. Depois pego um táxi de volta para casa.
— Não.
— Ah, qual é. Por favor.
— Está querendo me arranjar mais problemas com a comissão disciplinar?
— Alerta vermelho, nível dois. Relatos de esfaqueamento, jovem do sexo masculino. — Donna jogou sua mochila na parte de trás da ambulância. — Temos que ir, Louisa.
Eu estava perdendo Sam. Conseguia sentir isso pelo tom da sua voz, pelo jeito que ele evitava me encarar. Desci da ambulância, xingando-me por ter me atrasado. Mas Donna me pegou pelo braço e me levou para o banco da frente.
— Pelo amor de Deus — disse ela, quando Sam estava prestes a reclamar. — Você passou a semana inteira de cara amarrada. Resolva isso. A gente deixa ela antes de chegarmos ao local.
Sam se encaminhou energicamente até a porta do motorista e a abriu, dando uma olhada na sala da direção.
— Ela seria uma boa terapeuta de casal. — A voz dele endureceu. — Se fôssemos, sabe, um casal.
Não foi necessário falar duas vezes. Sam se sentou ao volante e olhou para mim como se fosse dizer alguma coisa, mas depois mudou de ideia.
Donna começou a arrumar o equipamento. Ele ligou o motor e acionou a luz azul.
— Para onde estamos indo?
— Nós estamos indo para o subúrbio. E, com o uso da sirene, fica a uns sete minutos daqui. Você está indo para a rua da ladeira, a dois minutos de Kingsbury.
— Então tenho cinco minutos?
— E uma longa caminhada de volta.
— Tudo bem — falei.
E, enquanto seguíamos a toda velocidade, me dei conta de que na verdade eu não fazia ideia do que dizer.

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