Capítulo 27

SAÍMOS DA SALA da Conceição em silêncio, os três sem conseguir
dizer uma palavra. Ficamos assim alguns minutos.
– Vou pra sala, gente – avisou Erick, quebrando enfim o gelo.
– Eu não tenho cabeça pra voltar pra aula nenhuma agora. Preciso
tomar um ar, beber água… – falou Samantha.
– Eu também vou pra aula – eu disse.
– Não, Tetê! Você pode ficar comigo? – pediu ela. – Por favor?
Olhei para baixo, hesitante. Ela insistiu:
– Por favor…
Fiz que sim com a cabeça e fomos para o pátio.
– Tetê, eu quero te pedir desculpas. Você me perdoa?
– Exatamente pelo quê, Samantha?
– Por eu não ter dito a verdade sobre o Erick pra você antes. Sei que
você ficou chateada comigo.
– Decepcionada seria a palavra mais apropriada.
– Eu não podia te contar. Se eu contasse tudo, do porre falso, da
ficada no banheiro e das mensagens que eu e ele trocamos depois, você
ia virar minha cúmplice. E a Valentina ia te odiar mais ainda por isso. E
eu ia te colocar na confusão. E eu não queria isso. Você é muito do bem.
Fiquei pensativa, tentando entender os argumentos da Samantha. E
entendi. Ela tinha uma explicação. Não me excluiu de propósito ou por
falta de confiança. Pelo que estava parecendo, era exatamente o
contrário!
– Essa é uma história minha, antiga, com o Erick e com a Valentina, e
não seria justo te envolver nela. Mas eu precisava fazer isso por mim,
me vingar pra recuperar a confiança em mim. Sei lá, pode parecer torto,
mas funcionou. E eu só quis te proteger, entende?
Ela não só confiava em mim, como queria me proteger. Faz sentido.
– Quando a Valentina descobrisse, se você soubesse, ela ia acabar
com você. E ela já é tão, mas tão estúpida com você… Não queria que ela
te espezinhasse ainda mais. E por minha causa, entende?
– Entendo, amiga. Entendo. Obrigada por me dar essa explicação. Eu
estava precisando. Mas… Você só falou comigo por…
– Eu ia te contar, claro. Não teve nada a ver com o fato de estar na sala
da Conceição. Isso está pesando no meu peito há dias.
– Você sumiu…
– Vergonha, Tetê. Vergonha. Se tem uma pessoa que eu prezo e que
aprendi a amar é você. Não quero perder isso que a gente tem, não.
Amar? Ela disse amar? Ownnn…
Dei nela um abraço forte, de urso. E ficamos ali até acabar a primeira
aula, quando voltamos para a sala de aula.
Lá descobri que Valentina tinha sido suspensa por dar um tapa na
cabeça de Laís. Laís também não estava. E eu louca para saber o que
tinha acontecido com elas depois que a gente saiu da sala da
coordenadora.
Na saída, Zeca, Samantha, Davi e eu avistamos Valentina, que nos
esperava do lado de fora da escola, apoiada num carro estacionado, com
o nariz inchado e a fisionomia devastada.
– Se for pra xingar a minha amiga, pode sair daqui, sua perna
magrelina! – Zeca foi logo dizendo. – Já deu por hoje!
– Não vou xingar ninguém, não – ela falou com voz mansa.
– Ah, não? Veio só agredir mesmo? – ironizei.
– Vim pedir desculpas, Tetê – falou Valentina com o maior tom de
desamparo.
– Por quê? O Erick te obrigou? – alfinetou Samantha.
– Não. Porque eu não tinha a menor ideia de como meu jeito fazia tão
mal pras pessoas. E como todo mundo estava querendo se vingar de
mim, revidar, dar o troco… Até minha melhor amiga… – disse, com a voz
embargada.
– Não? Jura? Pra você ver, menina. Como tem doido pra tudo nessa
vida! – debochou Zeca.
– Pode me tratar assim, Zeca. Eu mereço.
– Gente, que tipo de droga a Conceição deu pra você tomar?
Sinceritril? Simancotril? Fichacaiu? Já sei! Ela te torturou – Zeca
debochou.
– Isso mesmo, pode espezinhar. Sei que já fui muito dura com você.
Até de bicha nojenta eu já te chamei.
– Logo eu, que sou tão limpinho! De nojento não tenho nadinha de
nada! E bicha pra mim é elogio, amor. Desculpaê.
– A Laís me contou as coisas que eu fazia com ela no jardim de
infância e fiquei chocada. Não! Mais que chocada – contou ela. – Cara,
sou um monstro mesmo. A Conceição me fez ver a situação de uma
forma… Eu estou me odiando. Eu sou um monstro…
Nós quatro nem piscávamos.
– Deixei traumas profundos numa menina! E nem lembrava, de tão
natural que era pra mim agredir e excluir as pessoas. Acho que eu
merecia mesmo ser hostilizada por causa de uma foto... É pouco pra
mim.
– Não, Valentina. Ninguém merece ter o corpo exposto como você
teve. Nem você – comentei.
– Concordo plenamente com a Tetê. E olha que nunca morri de
amores por você, mas o que a Laís fez foi muita crueldade – fez coro
Zeca.
– Sério? Sério que vocês acham isso? – perguntou Valentina, frágil.
A verdade é que mais cedo ou mais tarde ela ia perceber que não era
uma pessoa exatamente legal. Achei na hora e continuo achando que
nada justifica um nude assim. Nada.
– Obrigada, gente! – agradeceu Valentina, em prantos, louca por um
abraço que não aconteceu. Mas iria acontecer um dia, eu acho. – Mas eu
sei que fui piorando muito com o passar dos anos – contou, com a voz
embargada. – Olha a Samantha. Eu me afastei dela porque eu gostava do
Erick.
– Você gostava do Erick? – perguntou Samantha sem acreditar.
– Gostava, sim. E quando eu vi que você estava apaixonada por ele,
preferi me afastar de você pra ficar com ele do que priorizar nossa
amizade. A Laís tem razão, eu não consigo ficar amiga de ninguém por
muito tempo. Nunca tive uma amizade longa. Porque ninguém me
aguenta. Porque eu sou uma pessoa horrível. Horrível. De uma maneira
ou de outra, acabo afastando as pessoas mais legais de mim e você foi
uma delas, Samantha. Eu sabia que você e ele se curtiam, sabia que você
era louca por ele e mesmo assim, mesmo sem conhecer ele direito,
mesmo sem ser apaixonada por ele, eu optei por ficar com o Erick, sem
ligar pras consequências, sem ligar pros seus sentimentos. Passei por
cima de você como um trator. Aí acabei me apaixonando por ele e o resto
da história você já sabe.
– Você me afastou pra ficar com o Erick? Sem nem saber se vocês
iam dar certo? Sem sequer ser apaixonada por ele?
– Foi… – confirmou Valentina, cabeça baixa, ombros caídos. – E
apostei mesmo com as meninas que ficaria com ele. Eu sou um monstro.
E então Valentina chorou. Sim! Brasil, polo norte e China! Chorou de
verdade, com alma, poros e coração. Com as duas mãos no rosto,
desabafou:
– Que vergonha eu tô de mim, gente!
Estávamos estáticos, sem saber o que dizer, como agir. Nunca vi tanta
lágrima sair de uma só pessoa.
– Eu não sei nem por que eu sou assim. Nunca notei que eu era
assim, isso é o mais maluco. Precisou vir uma menina que foi fazer
análise por minha causa pra que eu entendesse que sou uma bruxa. Eu
era uma criança, gente! E já fazia mal pra outras crianças! A Laís
guardou essa mágoa dentro dela por anos! – aumentou o tom de voz,
chorando mais ainda. – O primeiro a abrir meus olhos foi o Erick. Ele
que me disse que eu era grossa, que destratava as pessoas do nada. E eu,
idiota, achava a coisa mais normal do mundo, gostava de ver as pessoas
submissas, gostava de achar que tinha um séquito de amigas que faziam
tudo pra me agradar, gostava de me sentir invejada, respeitada. E mais:
gostava que tivessem medo de mim. Me dava segurança, sei lá.
– Todo mundo age sem perceber algumas coisas, Valentina. Calma.
Você também não é um monstro – falei, acreditando mesmo na menina.
– E você pode mudar. Terapia é ótimo pra isso.
Alô, Romildão!!
– Eu sei, Tetê. Mas sabe, por mais que a gente veja nas revistas
matérias com gente que sofre ou sofreu bullying, a gente nunca se coloca
no lugar de quem pratica, só no de quem sofre – disse ela. – E o pior é
que eu já sofri, sabia? Teve uma época em que eu fui desprezada neste
colégio por causa do meu jeito esnobe. O mesmo jeito esnobe com que te
tratei desde o seu primeiro dia aqui. Ai, Tetê. Desculpa?
– Tudo bem – aceitei o pedido.
Ela parecia realmente arrependida. Mas uma coisa ainda estava
entalada na minha garganta.
– Por que tanto preconceito com quem está acima do peso,
Valentina? Por que magoar alguém pelo simples fato de esse alguém não
ter um corpo esquelético como os que estampam as revistas de moda?
Cada um tem um biótipo. Eu acho que nunca vou ser magrinha, por
exemplo. Mas não é uma coisa que me angustie. Você fez questão de
frisar sempre o meu peso, o seu desprezo por gente gorda. Isso é
preconceito, é fobia, sei lá! Você tem que parar com isso!
– É que eu morro de medo de engordar, Tetê! Porque eu sei que, se
ficar gorda, vou sofrer bullying também. Então é tipo um ataque pra me
defender, sabe? Sei lá, acho que preciso de terapia mesmo… – revelou.
Samantha estava quieta. Quando olhei para ela, vi que estava aos
prantos.
– Você já me magoou muito também, Valentina – desabafou minha
amiga. – Falou do meu peito sabendo que é a coisa que mais me dá
vergonha nesse mundo. E eu só penso em fazer cirurgia pra diminuir,
porque está me dando problema na coluna, pra você ter noção! Não é só
desproporcional pro meu tamanho, está fazendo mal pra mim
fisicamente…
– Desculpa, Samantha! Eu sou um monstro, uma bruxa, já disse. Na
verdade, eu sempre me senti inferior a vocês, que são mais inteligentes
e interessantes. Então, falar do corpo, que é onde eu tenho vantagem,
vamos dizer assim, é uma forma de me sentir por cima…
– Ai, para! Chega, vai! Não aguento ver gente chorando! Vem cá que
eu te abraço, Bundina! – disse Zeca, dando na Valentina um abraço
apertado, cheio de carinho, como ela parecia jamais ter recebido.
E aconteceu o inesperado. Eu fiquei com pena da Valentina. Muita
pena. Da sua falta de noção, do fato de ela descobrir aos 15 anos que era
odiada por tanta gente… Pena de ela se sentir um monstro, uma bruxa…
Esses sentimentos deviam estar pesando muito para ela, a ponto de se
expor daquele jeito para nós…
E quando eu comecei a sentir pena da ex-Metidina, Erick chegou.
– Olha, meninas, não sou tão bom com as palavras, mas queria pedir
desculpas pra vocês três. Samantha, Valentina e também pra Tetê.
Olhando pra trás, vejo que fui um canalha, um galinha. Mas no fundo
sou um cara maneiro, sabe? Só que tenho um fraco por meninas, preciso
confessar. Eu fico fascinado pela beleza de vocês, pela inteligência…
Mas, se me deixarem, quero continuar amigo de vocês.
Pelo menos ele admitiu… Mesmo assim, o Erick já não era a mesma
pessoa para mim. Um cristal tinha se quebrado dentro do meu peito.
Mas achei bem legal ele pedir desculpas. Ok, subiu uns pontinhos no
meu conceito.
E a Samantha virou e perguntou:
– Por que o Erick pediu desculpas pra você também, Tetê?
– Ai, gente, deixa pra lá. Não foi nada demais – disfarcei.
Chega de explicações por um dia, né? Foram revelações demais.

Eu não precisava aumentar a lista.

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