Capítulo 3

Ao olhar para trás, percebo que fiquei um pouco atordoada nos primeiros nove meses após a morte de Will. Fui direto para Paris e simplesmente não voltei para casa, eufórica com a liberdade, com os desejos que Will despertara em mim. Arranjei um emprego num dos bares preferidos dos imigrantes, onde ninguém se incomodava com meu francês horrível, que no final acabou melhorando. Aluguei um quartinho num sótão, no décimo sexto arrondissement, em cima de um restaurante de comida do Oriente Médio, e ficava acordada na cama ouvindo o barulho dos beberrões notívagos e as entregas matinais. Todo dia eu tinha a impressão de estar levando a vida de outra pessoa.
Naqueles primeiros meses, parecia que eu estava em carne viva: eu sentia tudo com mais intensidade. Acordava rindo ou chorando, enxergava todas as coisas como se um filtro tivesse sido removido. Experimentava comidas novas, andava por ruas desconhecidas, falava com as pessoas numa língua que não era a minha. De vez em quando eu me sentia assombrada por Will, como se estivesse vendo tudo pelos olhos dele, como se escutasse a voz dele no meu ouvido.
E, então, o que acha disso, Clark?
Eu disse que você ia adorar.
Coma! Prove! Vá em frente!
Eu estava perdida sem nossa rotina. Minhas mãos demoraram semanas para não se sentir inúteis sem o contato diário com o corpo dele: a camisa macia que eu abotoava, as mãos quentes e imóveis que eu lavava com delicadeza, o cabelo sedoso que eu ainda conseguia sentir entre meus dedos. A voz dele e a risada abrupta conquistada a duras penas faziam falta, assim como o toque dos seus lábios nos meus dedos, o jeito que suas pálpebras baixavam quando ele estava quase pegando no sono. Minha mãe, ainda horrorizada com a minha participação naquilo, me dissera que, embora me amasse, não era capaz de conciliar essa Louisa com a filha que ela criara. Assim, tendo perdido minha família e o homem que eu amava, todos os vínculos que eu possuía com quem eu era foram cortados. Tinha a sensação de que eu simplesmente saíra voando, sem amarras, para algum universo desconhecido.
Então encenei uma vida nova. Fiz amizades casuais com outros turistas, sempre mantendo certa distância: jovens estudantes ingleses em anos sabáticos, americanos refazendo os passos de heróis literários, convencidos de que nunca voltariam ao Meio-Oeste, jovens banqueiros ricos, gente visitando a cidade inteira em um único dia, um conjunto de pessoas sempre diferente que chegava e ia embora, como fugitivos de outras vidas. Eu sorria, conversava e trabalhava, e dizia a mim mesma que estava fazendo o que ele queria. E, pelo menos nisso, tinha que haver algum consolo.
O inverno passou e a primavera foi linda. Mas de repente acordei certa manhã e percebi que tinha me desapaixonado por Paris. Ou pelo menos não me sentia parisiense o bastante para continuar ali. As histórias dos imigrantes começaram a soar enfadonhamente parecidas, os parisienses, a parecer antipáticos, e no mínimo eu notava várias vezes por dia, de inúmeras maneiras, que nunca me integraria completamente. A cidade, fascinante como era, passava a impressão de ser um glamoroso vestido de alta-costura que eu comprara às pressas, mas que, no final das contas, não caía bem em mim. Pedi demissão e fui viajar pela Europa.
Nunca passei dois meses me sentindo tão inadequada. Eu ficava quase o tempo todo sozinha. Odiava não saber onde ia dormir a cada noite, estava sempre ansiosa com os horários dos trens e com a moeda corrente, além de ter dificuldade para fazer amigos por não confiar em ninguém que eu conhecia. E o que eu podia dizer sobre mim mesma, afinal? Quando as pessoas me perguntavam, eu só mencionava os detalhes mais superficiais.
Não podia compartilhar nada que era importante ou interessante a meu respeito. Sem ter alguém com quem conversar, toda paisagem que eu via – fosse a Fontana di Trevi ou um canal em Amsterdã – parecia apenas mais um lugar para riscar da lista. Passei a última semana numa praia na Grécia que me lembrou demais de outra que eu tinha visitado com Will pouco tempo antes. Por fim, após passar uma semana sentada na areia dando fora em homens bronzeados – sendo que todos pareciam se chamar Dmitri – e tentando me convencer de que estava realmente me divertindo, desisti e voltei para Paris. Foi a primeira vez que me dei conta de que não tinha outro lugar para ir.
Por duas semanas dormi no sofá de uma garota que trabalhava comigo no bar, enquanto tentava decidir o que fazer em seguida. Depois de recordar uma conversa que tivera com Will sobre carreira, escrevi para várias faculdades me candidatando para os cursos de moda, mas, como eu não tinha experiência profissional, fui educadamente recusada. A vaga que eu originalmente conseguira após a morte de Will havia sido cedida para outra pessoa, porque eu não consegui trancar a matrícula. O coordenador disse que eu poderia me candidatar de novo no ano seguinte, mas pelo seu tom deu para notar que ele sabia que eu não faria isso.
Fiz uma pesquisa em sites de emprego e percebi que, apesar de tudo pelo que passei, eu ainda não tinha qualificação para nenhum trabalho que poderia me interessar. E depois, por acaso, justo quando eu estava me perguntando o que fazer em seguida, Michael Lawler, advogado de Will, me ligou e sugeriu que estava na hora de fazer alguma coisa com o dinheiro que ele deixara. Era a desculpa de que eu precisava para me mudar. Lawler me ajudou a negociar o preço assustadoramente alto de um apartamento de dois quartos próximo ao centro de Londres, que comprei sobretudo porque me lembrei da vez em que Will citou o bar de vinhos na esquina, e isso me fazia sentir um pouco mais perto dele. Usei a pequena quantia que sobrou para mobiliá-lo. Seis semanas depois, voltei para a Inglaterra, arranjei um emprego no Shamrock and Clover, dormi com um homem chamado Phil, que eu nunca mais vi, e esperei me sentir como se eu realmente tivesse começado a viver.
Nove meses se passaram e eu continuava esperando.

* * *

Não saí muito durante a primeira semana que passei na casa dos meus pais.
Eu estava com dor, me cansava com facilidade, então era fácil ficar deitada na cama e cochilar, derrubada por analgésicos fortíssimos, além de dizer a mim mesma que deixar meu corpo se recuperar era a única coisa que importava. De alguma forma estranha, ter voltado para a pequena casa da nossa família funcionou para mim: foi o primeiro lugar onde consegui dormir mais de quatro horas seguidas desde que eu fora embora. Tudo lá era suficientemente pequeno, portanto eu sempre conseguia encontrar uma parede para me escorar. Minha mãe me alimentava, meu avô me fazia companhia (Treena tinha voltado para a faculdade e levara Thom) e eu via bastante televisão durante o dia, espantada com os comerciais sem fim de empresas de crédito e cadeiras elevatórias, além das preocupações com subcelebridades, que após mais de um ano fora, eu era incapaz de reconhecer. Era como estar num pequeno casulo, onde com certeza havia um elefante descomunal agachado no canto.
Não tocávamos em nenhum assunto que pudesse perturbar esse delicado equilíbrio. Eu via uma notícia qualquer sobre celebridades nos programas diurnos da televisão e depois, durante o jantar, comentava:
— Bem, e aquela Shayna West, hein?
E, com gratidão, mamãe e papai discutiam o tópico, afirmando que ela era uma vagabunda, tinha um cabelo bonito ou que não podia ser melhor do que era. Assistíamos a Pechinchas No Seu Sótão (“Sempre me pergunto quanto aquela jardineira vitoriana da sua mãe custaria... Que velharia feia”) e Casas Ideais No Campo (“Eu não daria banho num cachorro naquele banheiro”). Eu não pensava em nada além da hora de cada refeição, além dos desafios básicos de me vestir, escovar os dentes e completar quaisquer pequenas tarefas que minha mãe me passasse (“Sabe, querida, enquanto eu estiver na rua, você poderia separar sua roupa suja, porque aí eu lavo com as minhas roupas coloridas”).
No entanto, feito uma maré que sobe lentamente, o mundo externo insistia em se intrometer. Eu ouvia os vizinhos fazendo perguntas à minha mãe quando ela ia pendurar roupa no varal. Então quer dizer que a sua Lou está em casa? E minha mãe dava uma resposta atipicamente seca: Está. Eu evitava os cômodos da casa que davam para o castelo. Mas sabia que estava lá, que tinha gente morando lá, respirando vínculos com Will. Às vezes eu me perguntava o que havia acontecido com essas pessoas. Quando eu estava em Paris, me encaminharam uma carta que a Sra. Traynor enviou para me agradecer formalmente por tudo o que eu havia feito pelo filho dela. “Tenho consciência de que você fez tudo o que pôde.” Mas foi só isso.
Depois de ser a minha vida, aquela família virou um vestígio fantasmagórico de uma época de que eu não me permitiria lembrar. Mas enquanto nossa rua passava várias horas à sombra do castelo, eu sentia a presença dos Traynor como uma reprimenda.
Já fazia duas semanas que eu estava em casa quando me dei conta de que minha mãe e meu pai não iam mais aos encontros sociais.
— Hoje não é terça-feira? — perguntei na terceira semana, quando estávamos sentados à mesa de jantar. — Vocês já não deviam ter ido?
Os dois se entreolharam.
— Ah, não. Estamos bem aqui — respondeu meu pai, mastigando um pedaço da costela de porco.
— Estou bem sozinha, de verdade — falei. — Já me sinto muito melhor. Eu fico feliz vendo televisão.
No fundo, eu queria poder ficar sentada, sem ninguém me olhando, só eu na sala. Eles não tinham me deixado sozinha por mais de meia hora desde que eu voltara para casa.
— Sério. Saiam e divirtam-se. Não se preocupem comigo.
— Nós... nós não vamos mais a esses encontros — disse minha mãe, fatiando uma batata.
— As pessoas... Elas falam muito. Sobre o que aconteceu. — Meu pai deu de ombros. — No final das contas foi mais fácil simplesmente ficar fora disso.
O silêncio que se seguiu durou seis minutos inteiros.
E havia outros lembretes mais concretos da vida que eu deixara para trás.
Lembretes que usavam calças de corrida coladas e com propriedades especiais de absorção.
Apenas na quarta manhã que Patrick passou fazendo cooper diante da nossa casa eu percebi que aquilo poderia ser mais do que só coincidência.
Ouvi a voz dele no primeiro dia e, sonolenta, fui mancando até a janela e espiei através da persiana. Lá estava ele, alongando os músculos da coxa enquanto conversava com uma loura de rabo de cavalo. Ela usava uma roupa de lycra azul que combinava com a dele, tão justa que dava até para ver o que tinha comido no café da manhã. Os dois pareciam atletas olímpicos, só faltava o trenó de bobsled.
Afastei-me da janela para eles não me verem caso erguessem a cabeça, e um minuto depois haviam sumido de novo, correndo pela rua, as costas eretas, as pernas se movendo para a frente e para trás, como dois cavalos de charrete turquesa e reluzente.
Dois dias depois, eu estava me arrumando quando os ouvi. Patrick falava alto sobre aumentar o consumo de carboidratos, e dessa vez a garota olhou desconfiada para a minha casa, como se estivesse se perguntando por que eles haviam parado duas vezes exatamente no mesmo lugar.
No terceiro dia, eu estava na sala com meu avô quando eles apareceram.
— A gente devia treinar sprints — dizia Patrick com a voz elevada. — Veja, você vai até o terceiro poste, volta e eu cronometro seu tempo. Intervalos de dois minutos. Vá!
Meu avô revirou os olhos significativamente.
— Ele tem feito isso o tempo todo desde que voltei?
Os olhos de vovô reviraram quase até ir parar na parte de trás da cabeça.
Através das cortinas de renda fiquei observando Patrick ali de pé, com os olhos fixos no cronômetro, seu melhor lado virado para a minha janela.
Vestia um casaco preto de fleece com zíper e uma bermuda de lycra combinando. Como ele estava parado logo do outro lado da cortina, consegui encará-lo, espantada com o fato de que aquela havia sido uma pessoa que, durante tanto tempo, eu tivera certeza de amar.
— Continue! — gritou ele, erguendo os olhos do cronômetro. Feito um cão de caça obediente, a garota tocou o poste ao lado dele e voltou a correr como um raio. — Quarenta e dois segundos e trinta e oito décimos — elogiou ele, quando ela voltou, ofegante. — Acho que você pode diminuir cinco décimos de segundo desse tempo.
— Isso é para você — disse minha mãe, entrando na sala com duas canecas.
— Achei mesmo que fosse.
— A mãe dele me perguntou no supermercado se você tinha voltado e eu respondi que sim. Não me olhe desse jeito. Eu não ia conseguir mentir para a mulher. — Ela apontou com a cabeça para a janela. — Aquela ali operou os seios. Eles são o assunto do momento em Stortfold. Parece que dá para apoiar duas xícaras de chá nos peitos dela. — Minha mãe foi para o meu lado. — Sabia que os dois estão noivos?
Esperei sentir uma pontada, mas foi tão suave que poderia ser apenas ar.
— Eles parecem... feitos um para o outro.
Ela ficou ali parada por mais um instante, observando-o.
— Ele não é má pessoa, Lou. Você simplesmente... mudou.
Ela me entregou uma caneca e se afastou.

* * *

Na manhã em que ele parou para fazer flexões na calçada em frente à nossa casa, finalmente abri a porta e saí. Eu me apoiei na varanda, com os braços cruzados no peito, e fiquei observando-o até ele erguer os olhos.
— Eu não ficaria muito tempo aí parado. O cachorro do vizinho adora essa parte da calçada.
— Lou! — exclamou Patrick, como se eu fosse a última pessoa que ele esperasse ver parada diante da minha própria casa, a qual ele visitara diversas vezes por semana durante os sete anos que passamos juntos. — Bem... estou surpreso de ver você de volta. Pensei que tivesse ido conquistar este vasto mundo!
A noiva dele, que estava fazendo flexões ao seu lado, ergueu os olhos e depois voltou a fixá-los na calçada. Talvez fosse minha imaginação, mas seus glúteos pareceram se contrair ainda mais. Para cima e para baixo, ela se movia furiosamente. Para cima e para baixo. Cheguei inclusive a me preocupar um pouco com o bem-estar dos seus peitos novos.
Ele ficou de pé num pulo.
— Esta é Caroline, minha noiva. — Patrick mantinha o olhar fixo em mim, talvez aguardando alguma reação. — Estamos treinando para o próximo Ironman. Já participamos de dois juntos.
— Que... romântico — falei.
— Bem, Caroline e eu achamos que é bom fazer coisas juntos — disse ele.
— Estou vendo — comentei. — E a lycra turquesa dos dois!
— Ah, sim. É a cor da equipe.
Houve um breve silêncio e depois dei um pequeno soco no ar.
— Vai, time!
Caroline se levantou e começou a alongar os músculos da coxa, flexionando a perna para trás feito uma cegonha. Ela assentiu para mim, a cortesia mais razoável que poderia se permitir.
— Você emagreceu — disse ele.
— Pois é. Uma dieta de soro faz isso com a gente.
— Fiquei sabendo que você sofreu um... acidente. — Ele inclinou a cabeça para o lado, de um jeito solidário.
— As notícias correm depressa.
— Enfim. Fico feliz que esteja bem. — Ele fungou e olhou para a rua. — Esse ano que passou deve ter sido difícil para você, sabe. Por ter feito aquilo e tudo o mais.
E pronto. Tentei controlar minha respiração. Caroline estava determinada a não olhar para mim, alongando a musculatura da coxa. Por fim, falei:
— Aliás... parabéns pelo casamento.
Ele analisou a futura esposa com orgulho, concentrando-se em admirar sua perna sarada.
— Bem, é como dizem... Quando é para ser é para ser.
Ele me deu um falso sorriso de pedido de desculpas. E foi isso que acabou comigo.
— É claro. E imagino que tenha bastante dinheiro guardado para bancar o casamento, pois não é barato, não é mesmo? — Os dois me encararam. — E quanto foi que lhe pagaram para vender minha história para os jornais, Pat? Quantos mil? Treena não conseguiu descobrir o valor exato. Mesmo assim, a morte de Will deve ter rendido a compra de um bocado de uniformes de lycra combinando, não é?
O jeito como Caroline virou o rosto para ele me fez perceber que Patrick ainda não tivera a chance de lhe contar essa parte da história.
Ele fixou o olhar em mim e depois dois pontos rubros surgiram em seu rosto.
— Não tive nada a ver com isso.
— Claro que não. Enfim, foi um prazer ver você, Pat. Boa sorte com o casamento, Caroline! Tenho certeza de que você será a... noiva mais sarada por aqui.
Eu me virei e voltei devagar para casa. Fechei a porta, me encostando nela, com o coração acelerado, até ter certeza de que eles finalmente tinham prosseguido com a corrida.
— Babaca — disse vovô quando entrei mancando na sala. E depois, olhando com desdém para a janela, repetiu: — Babaca. — Então riu.
Olhei para ele. E de forma totalmente inesperada, me dei conta de que tinha começado a rir pela primeira vez desde que eu conseguia lembrar.

* * *

— Já decidiu o que vai fazer quando estiver melhor?
Eu estava deitada na cama. Treena ligou da faculdade, enquanto esperava Thomas sair da escolinha de futebol. Fiquei encarando o teto, onde meu sobrinho havia colado uma galáxia de adesivos fluorescentes que aparentemente ninguém conseguia remover sem arrancar metade do teto junto.
— Na verdade, não.
— Você tem que fazer alguma coisa. Não pode ficar sentada aí por toda a eternidade.
— Não vou ficar sentada aqui. Além do mais, meu quadril continua doendo. O fisioterapeuta disse que é melhor ficar deitada.
— Mamãe e papai estão se perguntando o que você vai fazer. Não tem emprego nenhum em Stortfold.
— Sei disso.
— Mas você está sem rumo. Não parece se interessar por nada.
— Treen, acabei de cair de um prédio. Estou me recuperando.
— E antes disso você estava viajando pelo mundo. E depois foi trabalhar num bar porque não sabia o que queria fazer. Uma hora vai ter que botar a cabeça no lugar. Se não vai voltar a estudar, precisa descobrir o que fazer da vida. É só o que eu acho. Enfim, se vai ficar em Stortfold, precisa colocar aquele apartamento para alugar. Mamãe e papai não podem sustentar você para sempre.
— E quem está dizendo isso é a mulher que passou os últimos oito anos sendo sustentada pelo Banco Mamãe e Papai.
— Estou estudando em tempo integral. É diferente. Enfim, dei uma olhada nos seus extratos bancários enquanto você estava no hospital e, depois de pagar todas as suas contas, vi que você ainda tem mil e quinhentas libras, incluindo o auxílio-doença. Aliás, o que foram aquelas ligações internacionais? Custaram uma fortuna.
— Não é da sua conta.
— Então, listei os corretores da área que trabalham com aluguel. E depois pensei que talvez pudéssemos dar mais uma olhada em inscrições para faculdade. Alguém pode ter abandonado aquele curso que você queria.
— Treen. Você está me cansando.
— Não adianta ficar à toa. Vai se sentir melhor quando tiver algum foco.
Por mais irritante que fosse, havia algo tranquilizador na bronca que minha irmã estava me dando. Ninguém mais se atrevia a fazer isso. Era como se meus pais ainda acreditassem que havia alguma coisa muito errada comigo e que eu precisava ser tratada com luvas de pelica. Minha mãe deixava minha roupa dobradinha na beirada da cama, preparava três refeições por dia para mim e, quando eu a flagrava me olhando, ela dava um meio sorriso amarelo que abrangia tudo o que não queríamos dizer uma para outra. Meu pai me levava para as sessões de fisioterapia, se sentava ao meu lado no sofá para assistir à televisão e nem sequer implicava comigo. Treen era a única que me tratava do mesmo jeito de sempre.
— Sabe o que vou dizer, não é?
Virei-me de lado, estremecendo.
— Sei. E não faça isso.
— Bem, você sabe o que Will diria. Vocês tinham um acordo. Não pode voltar atrás.
— Tudo bem. Acabou, Treen. Essa conversa está encerrada.
— Ótimo. Thom está saindo do vestiário. Vejo você na sexta! — disse ela, como se estivéssemos falando sobre música, as próximas férias ou sobre a novela.
Fiquei ali encarando o teto.
Vocês tinham um acordo.
Sim. E olhe só no que deu.

* * *

Apesar das reclamações de Treena, nas semanas que haviam passado desde que chegara em casa, eu tinha feito algum progresso. Parei de usar a bengala, que me fazia sentir com uns oitenta e nove anos, e a qual eu esquecia em praticamente todos os lugares que visitei desde que voltei.
Quase todas as manhãs, levava vovô para dar uma volta no parque, a pedido da minha mãe. O médico o instruíra a se exercitar diariamente, mas um dia, ao segui-lo, ela descobriu que ele ia apenas até a loja da esquina comprar um saco enorme de torresmo e comia tudo enquanto voltava sem pressa para casa.
Caminhávamos devagar, os dois mancando e sem um lugar de verdade para ir.
Minha mãe sempre sugeria que fôssemos aos jardins do castelo “para mudar de cenário”, mas eu não lhe dava ouvidos, e, assim que o portão se fechava atrás de nós toda manhã, vovô balançava firmemente a cabeça na direção do parque. Não era só porque esse caminho era mais curto, nem mais perto da casa de apostas. Acho que ele sabia que eu não queria voltar àquele lugar. Eu não estava pronta. E não tinha certeza se algum dia estaria.
Fazíamos duas breves voltas no lago dos patos e nos sentávamos num banco sob o pálido sol de primavera para observar os bebês e seus pais alimentando os patos gordos, enquanto os adolescentes fumavam, gritavam e batiam uns nos outros: o inevitável combate de início de namoro.
Passeávamos até a casa de apostas para vovô perder três libras toda vez que apostava num cavalo chamado Abane o Cachorro. Depois, quando ele amassava seu bilhete de aposta e o jogava no lixo, eu dizia que ia comprar um donut com geleia para ele no supermercado.
— Ein gordura — disse ele quando chegamos à seção da padaria. Franzi a testa. — Ein gordura — repetiu ele, apontando para os donuts, e depois riu.
— Ah. Sim. É isso que vamos dizer para minha mãe. Donuts sem gordura.
Minha mãe disse que o remédio novo dele o deixava com o riso frouxo. Mas eu tinha chegado à conclusão de que coisas piores podiam acontecer com a gente.
Vovô continuou rindo da própria piada quando fomos para a fila do caixa.
Eu mantive a cabeça baixa, procurando algum trocado nos bolsos. Estava pensando se iria ajudar meu pai no jardim naquele fim de semana. Então demorei um pouco para perceber sobre o que cochichavam atrás de mim.
— É a culpa. Disseram que ela tentou pular de um prédio.
— Bem, você pularia, não é? Sei que eu não conseguiria mais viver.
— Fico surpresa por ela ser capaz de mostrar a cara por aqui.
Fiquei paralisada.
— A pobre Josie Clark ainda está mortificada. Ela se confessa toda semana e você sabe que aquela mulher é tão inocente quanto um anjo.
Vovô estava apontando para os donuts e articulando com os lábios para a moça da caixa:
— Ein gordura.
Ela sorriu educadamente.
— Oitenta e seis pence, por favor.
— Os Traynor nunca mais foram os mesmos.
— Bem, isso os destruiu, não é mesmo?
— Oitenta e seis pence, por favor.
Levei vários segundos para me dar conta de que a moça da caixa estava olhando para mim, esperando. Tirei minhas moedas do bolso e tentei separá-las desajeitadamente.
— Era de se imaginar que Josie não ousaria deixá-la cuidando sozinha do avô, não?
— Você não acha que ela...
— Bem, a gente não sabe. Ela já fez isso uma vez, afinal de contas...
Minhas bochechas ardiam. As moedas retiniram no balcão.
— EIN GORDURA. EIN GORDURA — repetia vovô para a menina perplexa da caixa, na esperança de que ela entendesse a piada. Puxei a manga da camisa dele. — Venha, vovô, temos que ir.
— Ein gordura — insistia ele.
— Certo — disse ela, abrindo um sorriso bondoso.
— Por favor, vovô.
Eu estava com calor e me sentia tonta, como se fosse desmaiar. Elas ainda poderiam estar falando, mas meus ouvidos zumbiam tão alto que eu não tinha certeza.
— Até logo — falou ele.
— Até logo — respondeu a garota.
— Legal — disse vovô quando saímos ao sol. Depois, olhando para mim, perguntou: — Por que você está chorando?

* * *

Então esse é o problema de estar envolvida num acontecimento catastrófico e transformador. A gente acha que só vai ter que lidar com o acontecimento catastrófico e transformador, que inclui flashbacks, noites em claro, repassar toda hora os fatos na cabeça, se perguntando se fez o certo, se disse o que deveria, se poderia ter mudado as coisas caso tivesse agido de forma um pouco diferente.
Minha mãe me disse que ter estado com Will em seus últimos dias afetaria o resto da minha vida, e eu achava que ela tinha se referido a mim, psicologicamente. Pensei que ela estava falando da culpa que eu teria que aprender a superar, do sofrimento, da insônia, dos acessos de raiva estranhos e inoportunos, do interminável diálogo interno com alguém que nem sequer estava presente. Mas depois percebi que não era só a mim: na era digital, eu seria para sempre aquela pessoa. Mesmo se eu conseguisse apagar tudo da memória, eu nunca poderia me dissociar da morte de Will.
Meu nome estaria ligado ao dele enquanto houvesse pixels e uma tela. As pessoas me julgariam com base no conhecimento mais superficial – ou às vezes sem qualquer base – e eu não podia fazer nada a respeito.
Cortei o cabelo acima do ombro. Mudei a forma de me vestir, guardei tudo o que já havia me caracterizado em sacolas, socando-as no fundo do armário, e adotei o uniforme de Treena, que consistia em calça jeans e camiseta genérica. Hoje em dia, quando eu lia matérias de jornal sobre o caixa de banco que roubara uma fortuna, a mulher que matara o próprio filho, o irmão que desaparecera, eu não estremecia de horror, como poderia acontecer antes. Em vez disso ficava imaginando a história que não tinha ido parar nas páginas do jornal.
Eu sentia uma estranha afinidade com eles. Estava marcada. O mundo à minha volta sabia disso. E o pior é que eu também passei a saber disso.

* * *

Enfiei o que restava do meu cabelo preto num gorro, coloquei óculos escuros e fui até a biblioteca. Fiz tudo o que podia para esconder o fato de estar mancando, embora a concentração que esse esforço exigia deixasse minha mandíbula doendo.
Passei pelo grupo de crianças pequenas que cantava na área infantil e pelos entusiastas de genealogia que estavam calados tentando confirmar que eles tinham, sim, uma ligação distante com o Rei Ricardo III. Fui me sentar no canto com os arquivos dos jornais locais. Não foi difícil encontrar os de agosto de 2009. Respirei fundo, depois abri e dei uma olhada nas manchetes.

Homem da Região Põe Fim À Própria Vida Em Clínica Suíça
Família Traynor pede privacidade em “momento difícil”
O filho de 35 anos de Steven Traynor, guardião do castelo Stortfold, pôs fim à própria vida na Dignitas, a polêmica clínica de suicídio assistido.
William Traynor ficou tetraplégico após um acidente de trânsito em 2007. Ele teria viajado para a clínica com a família e sua cuidadora, Louisa Clark, 27, também natural de Stortfold.
A polícia está investigando as circunstâncias que envolvem o falecimento, sem ter descartado, segundo fontes, a possibilidade de abertura de um processo.
Os pais de Louisa Clark, Bernard e Josephine Clark, que moram na Renfrew Road, não quiseram comentar o caso.
Camilla Traynor, juíza de paz, teria se afastado do cargo após o suicídio do filho. Segundo uma fonte local, considerando os atos da família, sua posição se tornara “insustentável”.

Depois estava estampado o rosto de Will, olhando daquela fotografia granulosa de jornal. O sorriso ligeiramente sarcástico, o olhar fixo. Por um instante, fiquei sem ar.

A morte do Sr. Traynor encerra uma bem-sucedida carreira na City, onde era conhecido como um implacável vendedor de ativos de empresas, mas também como alguém com olho bom para uma pechincha corporativa. Ontem seus colegas se reuniram para homenagear o homem que descreveram como

Fechei o jornal. Quando me assegurei de que minha expressão estava sob controle, ergui os olhos. À minha volta, a biblioteca zumbia, imersa numa atividade silenciosa. As crianças pequenas continuavam cantando, suas vozes agudas eram caóticas e irregulares, mas as mães aplaudiam afetuosamente ao redor. A bibliotecária atrás de mim discutia sotto você com uma colega a melhor maneira de preparar curry thai. O homem ao meu lado passava o dedo em um antigo caderno eleitoral, murmurando: Fisher, Fitzgibbon, Fitzwilliam.
Eu não tinha feito nada. Havia mais de um ano e meio que eu não fizera nada além de ter vendido bebidas em bares de dois países diferentes e sentido pena de mim mesma. E, nesse instante, quatro semanas depois de ter voltado para a casa onde cresci, eu tinha a sensação de que Stortfold estava estendendo o braço para me prender, me tranquilizar de que eu poderia ficar bem aqui. Daria tudo certo. Seria seguro. Com certeza não haveria grandes aventuras e existiria um pequeno desconforto enquanto as pessoas se adaptavam novamente à minha presença, mas havia coisas piores, é claro, do que estar com sua família, sentindo-se amada e segura. Sã e salva.
Olhei para a pilha de jornal na minha frente. A manchete mais recente dizia:

BRIGA POR VAGA DE DEFICIENTE EM FRENTE AOS CORREIOS

Pensei em papai, sentado na minha cama de hospital, procurando em vão o relato de um acidente extraordinário.
Falhei com você, Will. Falhei com você de todas as maneiras possíveis.
Dava para ouvir a gritaria dentro de casa enquanto caminhava na rua. Ao abrir a porta, passei a escutar apenas o choro de Thomas. Minha irmã brigava com ele no canto da sala, o dedo em riste. Minha mãe estava debruçada em cima de vovô com uma bacia de água e uma esponja, enquanto ele a enxotava educadamente.
— O que está acontecendo?
Minha mãe chegou para o lado e pela primeira vez vi o rosto de vovô com clareza. Ele exibia novas sobrancelhas pretas e um grosso bigode preto um pouco irregular.
— Caneta permanente — disse mamãe. — De agora em diante ninguém pode deixar o vovô cochilar com Thomas no mesmo cômodo.
— Você tem que parar de desenhar nas coisas — gritava Treena. — Só no papel, está bem? Nas paredes, não. Nos rostos, não. No cachorro da Sra. Reynolds, não. Nas minhas calcinhas, não.
— Eu estava fazendo os dias da semana para você!
— Não preciso de calcinhas com os dias da semana! — berrou ela. — Se precisasse, eu escreveria certo!
— Não brigue com ele, Treen — disse mamãe, inclinando-se para trás na intenção de ver se tinha causado algum efeito. — Poderia ser muito pior.
Na nossa pequena casa, os passos do meu pai descendo a escada soavam como uma trovoada particularmente forte. Ele entrou a toda na sala, os ombros caídos com frustração, o cabelo em pé de um lado.
— Não se pode cochilar na própria casa no dia de folga? Isso aqui está parecendo um hospício.
Todos nós paramos e olhamos para ele.
— O quê? O que foi que eu disse?
— Bernard...
— Ah, fala sério. Nossa Lou não acha que eu estava me referindo a ela...
— Ai, meu Deus. — Minha mãe levou a mão ao rosto.
Minha irmã havia começado a empurrar Thomas para fora da sala.
— Ih, caramba — sibilou ela. — Thomas, é melhor você sair já daqui. Porque juro que quando o seu avô pegar você...
— O quê? — Papai franziu o cenho. — O que está acontecendo?
Vovô caiu na gargalhada e ergueu um dedo trêmulo.
Era quase magnífico. Thomas tinha pintado o rosto do meu pai com uma caneta permanente azul. Seus olhos emergiam feito duas groselhas de um mar azul-cobalto.
— O que foi?
A voz de Thomas, enquanto ele desaparecia pelo corredor, era um gemido de protesto:
— Estávamos assistindo a Avatar! Ele disse que não se importaria de ser um avatar!
Os olhos do meu pai se arregalaram. Ele foi correndo até o espelho em cima do console da lareira. Houve um breve silêncio.
— Ai, meu Deus.
— Bernard, não fale o nome de Deus em vão.
— Ele me deixou azul, Josie. Acho que tenho o direito de falar o nome de Deus do jeito que eu quiser. Isso é caneta permanente? THOMAS? ISSO É CANETA PERMANENTE?
— A gente vai tirar, pai.
Ao sair, minha irmã fechou a porta que dava para o jardim. Do outro lado, dava para ouvir o choramingo de Thomas.
— Amanhã tenho que supervisionar a construção da cerca nova no castelo. Os fornecedores estão vindo. Como é que vou falar com os fornecedores se estou azul— Meu pai cuspiu na mão e começou a esfregar o rosto. O azul borrou um pouquinho, mas a maior parte da tinta pareceu passar para sua mão. — Não está saindo. Josie, não está saindo!
Minha mãe deixou vovô de lado e passou a se concentrar em limpar papai com a esponja.
— Fique parado, Bernard. Estou fazendo o que posso.
Treena foi buscar o laptop.
— Vou pesquisar na internet. Tenho certeza de que tem alguma coisa. Pasta de dente, removedor de esmalte, água sanitária ou...
— Você não vai passar água sanitária no meu rosto! — resmungou papai.
Vovô, com seu novo bigode de pirata, ria sentado no canto da sala.
Comecei a passar furtivamente por eles.
Mamãe segurava o rosto de papai com a mão esquerda enquanto esfregava. Ela se virou, como se tivesse acabado de me ver.
— Lou! Eu não perguntei... Você está bem, querida? Sua caminhada foi boa?
Todo mundo parou bruscamente para me dar um sorriso que dizia: Está tudo bem aqui, Lou. Não precisa se preocupar. Eu odiava esse sorriso.
— Foi ótima.
Era a resposta que todos eles queriam. Mamãe virou-se para o meu pai.
— Que maravilha. Não é mesmo, Bernard?
— Sim. É uma notícia excelente.
— Se você separar suas roupas brancas, mais tarde eu coloco na máquina com as do papai.
— Na verdade, não precisa se incomodar — falei. — Andei pensando. Está na hora de eu ir para casa.
Ninguém falou nada. Mamãe olhou para o meu pai. Vovô deu outro risinho e depois tapou a boca com a mão.
— Justo — disse papai, com toda a dignidade que um homem de meia-idade azul poderia reunir. — Mas se vai voltar para aquele apartamento, Louisa, tenho uma condição...

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