ENFIM CHEGOU a segunda-feira.
O despertador do meu celular tocou, mas eu já tinha acordado
antes
com o ronco inacreditável do meu bisavô. Ele devia ter uns
12 berrantes
desafinados dentro dele. Sério mesmo.
Respirei fundo enquanto olhava para o teto do quarto,
tentando não
sofrer por antecipação com minha terceira vez em uma escola
nova. Na
primeira, fiquei até os 6 anos, e dela não tenho muitas
lembranças.
Depois, me mudei para a São Lucas, onde sofri bastante, da
infância ao
último ano do Fundamental. E agora eu iria para o Instituto
Educacional
Copacabana.
Eu me arrumei o mais rápido que pude, tomei um café bem
básico,
peguei minha mochila e saí pela rua em direção ao meu novo
destino de
todos os dias. Assim que passei pelo enorme portão de ferro
da escola
nova, bateu aquele frio na espinha, comecei a suar e logo
senti a “pizza”
se formar no sovaco.
(Taí uma palavra que eu adoro: sovaco. Sovaco e malemolência.
Nem
sei por quê, mas são minhas duas palavras preferidas no
mundo. A
terceira é maresia. Não, de maresia eu só gosto do cheiro.)
Olhei no quadro de avisos no centro do pátio onde seria a
minha sala
e fui procurando o número no corredor. Quando localizei,
respirei
fundo e entrei.
Droga.
Todo mundo se conhecia e falava pelos cotovelos. Todos
pareciam
felizes e contentes, e eu conseguia ouvir nos grupinhos as
pessoas
contando como foram suas maravilhosas férias, as
maravilhosas viagens,
o maravilhoso convívio com suas famílias perfeitas, as idas
à praia com
seus namorados e namoradas sensacionais…
O único que não estava conversando com ninguém era um menino
quase tão branco quanto eu, de óculos de lentes grossas,
muitos pelos
nos braços (muitos mesmo) e cabelos castanhos. Estava com a
cara
enfiada num exemplar de 2001 – Uma odisseia no espaço, do
Arthur C.
Clarke, e parecia não se incomodar com a algazarra à volta.
Era ao lado
dele que eu sentaria.
– O-oi… – sussurrei para o menino.
Só não ouvi grilos porque tudo o que eu escutava eram
gargalhadas e
conversas alegríssimas ao redor. Que ódio de gente feliz em
primeiro
dia de aula!
– Oi – tentei de novo.
Ah, não! Até o nerd da turma ia me ignorar? Não pode, gente!
– Ãhn? Falou comigo? – retrucou ele, tirando os olhos do
livro e
olhando para mim espantado.
– Falei. Falei oi.
– Ooooooiiii! Oi! Oi! Oi! Má oeeeee! – fez ele, sorrindo com
toda a
extensão de sua boca, com uma imensa e indisfarçável
alegria.
Parecia que eu tinha falado que daria a ele um milhão de
dólares e
entrada liberada para todos os jogos do seu time no Maracanã
até ele
ficar bem velhinho.
Foi a minha vez de me espantar.
– Oi… Foi exatamente isso que eu disse… – tentei fazer
graça.
Eu estava tão contente por ter travado contato com um
estranho! Por
dentro eu já estava dando mil pulinhos gritando EU VOU TER
UM
AMIGOOOOO! Um amigo que lê Uma odisseia no espaço! Uhuuuu!
Lê e
en-ten-de Uma odisseia no espaço. Uhuuu de novooo!
– Prazer, Davi. Encantado! – Ele estendeu a mão, como fazem
os
adultos.
Achei meio estranho. Nunca ninguém tinha estendido a mão
para me
cumprimentar. Nem dito “encantado”. Se bem que… Acho que
ninguém
nunca sentiu lá muito encanto em me conhecer.
– Encantado? Comigo? – Não resisti. – Nunca ouvi ninguém de
15
anos usar essa palavra.
Davi ruborizou. Para não deixar sua mão estendida no vácuo,
estendi
a minha e o cumprimentei, me achando muito adulta, madura e
emancipada.
– Prazer. Meu nome é Tetê – eu me apresentei, agora rindo
com todos
os dentes.
Ficamos nos cumprimentando com as mãos por um tempo. Por
mais
tempo que o necessário. Por muito mais tempo que o
necessário. A mão
dele estava suada. A minha também. O meu braço já estava
doendo de
tanto sacudir quando ele perguntou:
– É seu primeiro dia?
– É! Você também é aluno novo, pelo visto – respondi, ainda
com o
braço em movimento.
– Não, não. Estudo aqui há anos. Eles é que fingem que eu
não existo.
– Eu sei!!! – reagi, extremamente feliz, tirando finalmente
minha
mão da dele.
Sim. Extremamente feliz. Sim, eu sou uma estúpida mesmo. E
assustei o coitado, claro.
– Nossa, até você que é nova já percebeu que os outros me
têm por
invisível?
– Não! Não é nada disso! O meu “eu sei” animado foi pra
dizer que
eu entendo o que você vive! Porque eu também fui invisível
durante
anos na minha escola anterior!
– Você? Sério?
– Sério! Não é incrível?! Quero dizer… Não é uma
coincidência
incrível? Quero dizer…
Ai, que droga! Como eu sou zero habilidosa com as palavras!
Sou tão
melhor escrevendo…
– Não se preocupe, entendi o que você quis dizer. Por um
momento
achei que estivesse comemorando o fato de eu ser considerado
um nada,
mas compreendi perfeitamente sua colocação.
– Você não é um nada! Você é um tudo!
– Sou? – reagiu ele, surpreso.
– Não! Tudo também não! – eu tentei consertar.
Davi desanimou na hora. Droga!
– Ah, desculpe… Um tudinho vai… – Fui fofinha.
– Ah… – Ele baixou os olhos, envergonhado.
Eu não podia perder meu primeiro amigo assim, por causa de
uma
palavra estúpida como “tudo”. Então soltei:
– Não! É tudo, sim, senhor! Tudo! Tudo mesmo! Bota tudo
nisso.
Tudo, tudinho, tudão. Muito tudo! Megatudo! Supertudo! –
exclamei,
falando sem respirar. – Tudo! – completei meu raciocínio,
para o caso
de não ter ficado claro.
Ele riu e emendou:
– Topetudo?
– Você não tem topete, então não pode ser topet… ah…
SuperTUDO,
topeTUDO… É negócio de piada, né? – eu falei.
– Tentei… – ele disse, meio atrapalhado.
Tadinho! Ele era tão desajeitado com as palavras quanto eu!
Que máximo!
– Sortudo! – eu emendei.
Ai, meu Deus! Sortudo foi infame…
– Eu acho que sou mesmo é azarado… Mas deixa pra lá, podemos
passar para o próximo tópico.
– Tópico? Taí uma palavra que só vejo em prova. Nunca ouvi
ninguém
falar tópico, eu acho. Você fala difícil! – disse a ele.
Rolou um silêncio.
– Aposto que daqui a pouco você vai fazer mil amigos e
fingir que
sou uma planta também – ele desabafou, desanimado.
– Claro que não! Sou gente boa! Ninguém sabe, mas sou. Minha
mãe
diz que sou uma princesa e não sei. Preferia ser rainha, mas
princesa tá
valendo – eu rebati.
Davi riu. Riu! Eu fiz um ser humano rir! Melhor: um ser
humano do
sexo oposto! Uhuuuuuuuuuuu! Eu estava genuinamente feliz
pela
primeira vez em anos! Se eu tivesse amigas eu mandaria pelo
WhatsApp
um texto bem legal para nosso grupo de BFFs (o sonho da
minha vida):
“Amaaaaaaando a escola nova! Só gente legal
que me curte. (Me curte foi péssimo.) Só
gente legal! Gente irada e conversativa! Love,
TT”
Como não tinha amigas e nunca fiz parte de nenhum grupo,
segui a
conversa:
– Sério, nunca vou tratar ninguém como invisível. Sei o mal
que isso
faz.
Davi sorriu, entre tímido e aliviado.
Iupi! Eu enfim tinha encontrado um dos meus! Um cara que
sorri de
cabeça baixa sem mostrar os dentes! Que não fala com ninguém
(mas só
porque ninguém fala com ele), que senta sozinho na sala de
aula!
Praticamente meu irmão siamês. Mil vezes iupi! Iupi, sim!
(Eu falo iupi
desde sempre, me deixa!)
Eu estava comemorando em pensamento a chegada de um amigo à
minha vida quando o tempo parou e adentrou a sala de aula a
beleza em
forma de menino, todo o charme do mundo transformado em
gente, a
personificação do carisma, o garoto que todas as meninas
adorariam
colocar num potinho e levar para casa, o príncipe da vida
real que todas
procuram: rosto anguloso, orelhas perfeitinhas, nariz de
personalidade,
também conhecido como nariz grande (sempre adorei um
narigão,
alguém me abana!), pescoço longo e cabelos loiros quase
castanhos,
impecavelmente lisos que pareciam voar com um ventilador
imaginário
enquanto ele andava, ombros largos, bíceps trabalhados mas
nada
exagerados, pulsos com veias aparecendo, mãos de pessoa
delicada e
madura, olhos amendoados com cor de mar (ah, quero me afogar
aí,
quis ter coragem de berrar), sobrancelhas grossas e
expressivas e uma
boca carnuda (que Deus do céu!) capaz de levar à loucura
toda e
qualquer representante do sexo feminino.
Para minha surpresa, ele veio na minha direção. Meu Deus do
céu! O
divo estava me confundindo com alguém! Só podia! Uma
enxurrada de
frases invadiu minha cabeça enquanto ele vinha no doce
balanço a
caminho da minha mesa. O
que eu faço agora? O que eu faço? Ai, que
vergonha! Vergonha
gigante! Ele vai falar comigo e eu não tenho ideia
do que falar para ele!
Ninguém nunca fala comigo! Não fala, garoto!
Não fala! Não fala!
Fala! Fala! Fala, sim, deuso! (Eu sei que deuso está
errado, mas eu gosto
de “deuso”!) Não, não fala! Fala, sim, seu lindo!
Fala, olhos de marzão!
Pode vir aqui falar comigo! Vem! Vem! Vem que
vem! Onda, onda, olha
a onda! Tchã, tchã! (Não! Como essa música
antiga de axé veio parar na minha cabeça? Xô, música! Xô!)
O garoto parecia andar em câmera lenta. Se fosse uma cena de
cinema, só ele estaria em foco, o resto seria figuração sem
importância.
Ele tinha um sei-lá-o-quê, uma luz e um ventilador
embutidos, ele era o
pacote completo, a metade da laranja, a tampa da panela, o
spray certo
para minha garganta inflamada. (Senhor! Ele tá chegando!
Chegando!)
Tremi. Num súbito ataque de timidez aguda, abaixei a cabeça
abruptamente, feito louca, com direito a pancada barulhenta
da testa na
mesa. Uma maravilha.
– Qualé?
Qualé?, repeti mentalmente, envolta pelos meus braços e
coberta
pelos meus longos cabelos.
QUALÉ?
Tudo bem, ninguém é perfeito.
– Qua… qual… é… – cumprimentei baixinho, sem levantar a
cabeça,
morta de vergonha.
– Bom dia, Erick. Tudo bem com você? – disse Davi.
Aaaaaah… Ele tinha ido cumprimentar o Davi… Claro. Eu sou
uma
idiota mesmo…
– Tudo ótimo! E aí, cara? Como foram as férias? – perguntou
ele para
meu amigo.
Para! Ele se chamava Erick. E Erick era fofo! A partir
daquele
minuto, Erick, obviamente, passou a ser o nome mais lindo de
toda a Via
Láctea. Me leva pra Lua, divo maravilindo!, sonhei alto. Me
apresenta
pra ele, Davi! Me apresenta pra ele, Davi! ME APRESENTA PRA
ELE,
DAVI!!!!!, implorei em pensamento.
– Ah, nada de especial. Vovô doentinho, vovó e eu passamos a
maior
parte do tempo vendo filmes com ele em casa. E as suas?
Jura que você
respondeu antes de me apresentar para o amor da
minha vida? Poxa,
Davi! E nossa amizade linda? Que decepção!
– Nada de especial também. Fiquei por aqui mesmo, só passei
uns
dias com meu pai no sítio dele em Araras e nos outros dias
eu peguei
onda na Macumba.
Surfista? Ele é surfista?!
Nhooooom!
Já estava vendo Erick, o belo, me ensinar a surfar com toda
a
paciência do mundo (ele tinha cara de superpaciente). Mas
seria
impossível. Eu tenho medo de mar. E de sol. Sou muito
branquinha.
Além do mais, sempre que levo onda na cabeça tenho certeza
de que vou
morrer e fico dias com areia saindo dos ouvidos e dos demais
orifícios
do corpo. Era por isso, e só por isso, que Erick não me
ensinaria a pegar
onda. Que pena, Erick.
Ai, Tetê, se enxerga!!
– Essa é a Tetê – Davi, enfim, me apresentou.
Levantei a cabeça devagar e com ela veio toda a minha longa
cabeleira
castanha. Parecia um comercial de xampu, mas protagonizado
por uma
comediante. Como eu estava suada (suo mais que tampa de
marmita!),
alguns cabelos ficaram presos no meu rosto, outros poucos
dentro da
minha boca de dentes tortos. Então, além da cena bizarra do
levantamento de cabeça, teve o momento cuspida de cabelo da
boca, uma
beleza.
Vamos admitir: eu não era uma excluída à toa.
Então eu dirigi a palavra ao Erick, estendi a mão e falei:
– Cabelo!
Sim. Eu disse cabelo. Cabelo! CABELO? Por quê? Por quê, meu
Deus?!
– Cabelo pra você também! – reagiu ele, estendendo a mão como
eu.
Que fofooooooo!
– Desculpa! Eu não queria falar cabelo, não queria mesmo, só
falei
cabelo porque eu estava com a cabeça baixa, aí eu levantei e
tinha muito
cabelo grudado no meu suor, e na boca, e eu estava pensando
nisso, e aí
você apareceu e foi a palavra cabelo que saiu, olha que
doido. E eu tenho
muito cabelo mesmo pelo corpo, mas eu não depilo… Ai, não…
Desculpa…
Cala a boca, Tetê!
Cala essa boca gigante! Cabelo? Depilo? Tem
palavras mais
descabidas que essas para um primeiro diálogo? Jura
que você está falando
isso para um menino que acabou de conhecer?,
dei bronca em mim mesma. Se eu tivesse um superpoder queria
voltar
no tempo e começar tudo de novo.
– Vamos começar tudo de novo? – sugeriu Erick, ao ver o
desespero
no meu semblante.
Eu queria morrer! Que menino perfeitinho e compreensivo! E
que
lia pensamentos! Own… Que cute-cute!
– Oi, muito prazer, Tetê. Tudo bem com você?
Coisa linda da minha vida! Eu te amo!, eu quis gritar com
meus
olhinhos em forma de coração. Mas, em vez disso, eu falei
outra coisa,
claro:
– É… tudo, mas eu não te conheço ainda… – Oi? Que frase foi
essa,
garota idiota?! Sua anta! Muda agora! Muda agora essa frase
estúpida!, bronqueou a fada enfezada que mora dentro da
minha cabeça.
Tentei consertar: – Mas tô conhecendo agoraaaa! Hehe…
Hehehe…
Hehe? Hehehe? Tetê, eu vou matar você e sua falta de jeito!,
eu e a
fada da minha cabeça brigamos mais uma vez comigo.
– Hahaha. – Ele riu.
Já eu…
– Mas se você não quiser me conhecer eu vou entender
com-ple-tamen-te.
Só falo bobagem! Mentira! Não vou entender, não! Vou, vou
sim!
Vou, sim! Não! Desculpa, não vou, não! Erick, Tetê, Tetê,
Erick. Muito
prazer, brigada, de nada.
Fecha essa máquina de dizer asneiras e para, miga, sua
loucaaaaaaa!, pensou meu lado são (eu juro que tenho um lado
são,
juro!).
Ainda bem que Erick, o belo, não ligou para as múltiplas
besteiras
que saíram da minha boca torta, de dentes tortos. Tá, a
minha boca não é
exatamente torta, mas é feia, parece cinema 3D, parece que
quer sair do
meu rosto. Agora os dentes… Ave Maria! Tortos. Muito tortos.
Cruzes!
Mas o aparelho tá aí pra botar ordem nessa zona dentária!
Ele deu um sorrisinho simpático e falou:
– Sou o Erick, vizinho do Davi.
O divo mora no prédio
do Davi, meu melhor amigo, meu BFF? Vou
morrer, vou morrer,
vou morrer!!!!! !, surtei. Que vida incrível, meu
Deus! Obrigada! Para o diálogo continuar bom é só ele não
perguntar
Tetê de quê. Tetê de quê é proibido! Terminantemente
proibido! Odeio
meu nome!
– Tetê de quê? Teresa?
Poxa, Erick, seu lindo! Custava ler outro pensamento?
Custava?
Droga!
– Também não sei. Tetê de quê? – foi a fatídica pergunta do
Davi.
Valeu, Davi! Isso mesmo, bota lenha na fogueira! Se você não
fosse
meu grande amigo, eu ia achar que queria zoar da minha cara
e ia
terminar nossa amizade de uma vez por todas. Mas não. Era só
interesse
seu mesmo.
– Tetê de Teanira – respondi bem baixinho.
– O quê? Tenira? – indagou Erick.
– Não. Te-a-ni-ra – aumentei o tom de voz, sentindo as
bochechas
queimarem de vergonha. – É a junção do nome do meu avô
Tércio com o
da minha avó Djanira. Odeio meu nome.
– Tem que odiar mesmo! Que nome horroroso é esse?
Não foi o Erick que fez essa pergunta. Muito menos o Davi.
Veio da
perfeição em forma de menina, a beleza personificada.
– Ah… essa é a Valentina – apresentou Erick.
E ela se apressou em dar um selinho nele.
Naquele momento, meus planos de um casamento dos sonhos no
Havaí com meu príncipe, rodeados de anãs sorridentes
dançando hulahula
foram por água abaixo. (Me deixa! Sonhar não custa nada!
Jamais
nesta vida eu teria chances com um cara lindo como o Erick,
eu sei,
mas… Tá… Eu sou uma idiota mesmo.)
– Cara, devia ser proibido pais darem nomes ridículos para
os
filhos, sabia? – ela comentou. Que amor essa Valentina! Que
doçura.
Quantas coisas carinhosas em uma frase tão breve! Time
Valentina para
sempre. Uhu! Só que não! – Como é que uma pessoa vai gostar
dela
mesma se não gosta nem do próprio nome? É o nome mais feio
que já
ouvi em toda a minha vida – a querida continuou.
Tá, já entendi que você odiou meu nome ainda mais do que eu
odeio!
Não precisa ficar me humilhando na frente dos outros!, era o
que eu
adoraria ter tido coragem de dizer para ela.
– Mas tem um significado. É “mulher aprisionada por Hércules
quando ele invadiu Troia” – contei, de uma vez só, engolindo
a timidez,
suando em bicas, citando o sabe-tudo Google.
– Ai… Piorou… – Valentina mandou sem o menor pudor.
Como uma menina assim namora um fofo como o Erick? Como ELA
não é uma excluída? Como ELA não sofre bullying? Alguém me
explica?
Da série “injustiças da vida”.
– Amor! – bronqueou o deuso, transformando em caquinhos meu
coração com a palavra amor saindo de sua boca perfeita,
mesmo que em
tom de repreensão. – Você se lembra do Davi, né?
– Arrã. Vamos lá pra trás, Erick? Você não vai querer sentar
aqui na
frente com esses dois, né? Pelamorrrr!
Um breve silêncio se fez até o belo se manifestar.
– Vou nessa. Valeu, gente! Prazer, Tetê. Bem-vin…
Valentina puxou o deus grego antes que ele terminasse de,
fofura das
fofuras, me dar as boas-vindas. Garota estúpida.
Mal-educada.
Os dois seguiram de mãos dadas para o fundão. Assim que
virou as
costas, Valentina, a delicada, perguntou, em alto e bom som:
– Por que você fala com esse tipo de gente? Não te entendo,
Erick.
Me bateu uma tristeza… Um misto de tristeza com raiva, sabe?
Não
deu para ouvir a resposta do Erick.
– Esse cara é gente boa – Davi retomou a conversa.
E eu estou apaixonada por ele…, quase dei voz aos meus
pensamentos. Claro que não era paixão, eu prometi nunca mais
me
apaixonar na vida, mas… digamos que era algo parecido com
paixão.
– E não te acha invisível – acrescentei.
– É… Mas não sei se ele fala comigo porque a mãe o obriga ou
se é
porque ele tem um bom coração, Tetê. Prefiro ficar com a
segunda opção.
Eu ri.
– Que foi? – Davi perguntou.
– Você fala engraçado. Todo educado, cheio de pompa.
“Prefiro ficar
com a segunda opção.” Nunca ouvi ninguém da nossa idade
falar assim.
Parece adulto. Adulto velho.
– Eu moro com meus avós. Talvez seja por isso que eu cometa
esse
tipo de deslize.
Não é exatamente um deslize!, retruquei mentalmente. Segui a
conversa.
– Eu também moro com meus avós! Eu, eles, meu pai, minha mãe
e
meu bisavô.
– Eu tenho um irmão, o Dudu, que mora em Juiz de Fora com
nosso
tio. Foi fazer faculdade lá, de computação. Então, em casa,
agora somos
apenas eu e meus avós.
“Somos apenas eu e meus avós”? Nem zoei. Estava com medo de
deixá-lo sem graça ou irritado, mas que ele falava
esquisito, falava.
– Mas e seus pais? Onde estão? – perguntei.
– Morreram.
E uma parte de mim morreu ao saber disso. Ainda bem que não
zoei
o “somos apenas eu e meus avós”.
– Ai, meu Deus! Eu e essa minha boca! Desculpa, Davi. Eu
sinto
muito…
– Tudo bem. Eu era pequeno, tinha 5 anos.
– Morreram de quê? Ai… Não precisa responder.
– Imagina – reagiu Davi. – Eles foram fazer uma segunda lua
de mel,
conhecer o Nordeste de carro, e um caminhoneiro bêbado
acabou com a
vida deles em questão de segundos.
– Caramba… Que triste… – falei, realmente consternada.
– É. Mas eles não sofreram. Foi tudo muito rápido. E saber
que eles
não sentiram dor me dá um certo alívio, compreende?
Que coisa horrível crescer sem o pai e sem a mãe… Senti
muita
vontade de dar um abraço nele, mas fiquei com vergonha de
pedir.
Preferi apertar aquele menino frágil com toda a força do meu
pensamento.
– Na minha cabeça, meus avós são meus pais sabe? Meu vô
Inácio é
mais que pai, é meu melhor amigo – contou. – Como não tenho
amigos,
acabo convivendo com os amigos dos meus avós. Saímos, vamos
ao teatro
de van, caminho na praia com minha avó, até jogar dama na
praça eu
jogo… Meu avô não anda muito bem de saúde nos últimos anos e
por
conta disso temos jogado em casa mesmo. Ele também adora
tranca, mas
tem estado tão caidinho que nem se anima muito para jogar…
– Vô e vó são tudo na vida! A minha avó é doida, mas
engraçada, e
meu avô é a pessoa que mais gosta de mim nesta vida. Eu
acho, pelo
menos. Amo ficar com eles. Tô amando conviver mais com os
dois.
– Você me entende, então. Amo meus avós. Sou o mascote da
turma.
Vários garotos talvez odiassem estar no meu lugar. Eu,
sinceramente,
adoro. Meu irmão também gostava, até se mudar.
– Queria tanto ter um irmão ou uma irmã… Quantos anos tem
seu
irmão?
– O Dudu é três anos mais velho que eu. Tem 18. Dudu é meu
amigão.
Adoro ele – disse Davi. – E é superinteligente, entrou na
faculdade com
17.
E eu adorava mais e mais aquele garoto a cada minuto que
passava,
apesar do “amigão” cafonão.
Eu nem sabia, mas estava prestes a adorar outra pessoa: o
Zeca, que
entrou na sala procurando lugar para sentar mas parecia
desfilar numa
passarela imaginária. Alto, magro, elegante, uma maravilhosa
cara
entediada (tipo Paris Hilton nas fotos), corte modernoso de
cabelo e um
aparentemente leve mau humor no semblante. Colocou a mochila
numa
mesa e logo veio um garoto para dizer:
– Aqui não, tem gente!
– Mas estava vazia! – reagiu ele, na hora.
– Isso. Es-ta-va – o garoto falou maldosamente.
Zeca virou-se, e, ao colocar a mochila na mesa ao lado, a
cena se
repetiu, agora com outro garoto que bancava o estressadinho.
– Aqui também tá ocupado.
– Tem certeza que sua sala é essa? – perguntou um outro que
observava de longe.
Os demais meninos só riam. Valentina forçou uma gargalhada
muito
falsa e estridente lá do fundo da sala. Uma garota com a
cara simpática,
que mais tarde eu descobriria se chamar Samantha, partiu em
defesa do
Zeca:
– Deixa ele, gente! Que bobeira!
Admirei aquela menina! Como eu gostaria de ter coragem para
fazer
o mesmo. Mas e o medo? E a insegurança de ser odiada no
primeiro dia
numa escola nova? E o que fazer com meu sangue, que subia
para a testa
e esquentava toda a minha cabeça a cada segundo que passava?
Respirei
fundo, engoli minha timidez e consegui perguntar a ele,
mostrando a
carteira ao lado da minha:
– Quer sentar aqui?
– Hum… Olha! O Zeca arrumou namorada! – zoou um garoto lá de
trás.
Respirei aliviada quando vi que não era o Erick.
– Namorada? Será, Zeca? Será? – questionou outro, sentado ao
lado
do meu príncipe, que riu, tímido, para não deixar o amigo no
vácuo. E
também para fazer parte da turma que ria com vontade do
pobre do
Zeca.
Andando de cabeça erguida, como para mostrar que a chacota e
a
agressividade gratuita não o incomodavam, foi até a primeira
fila da
sala, onde eu estava com Davi, sem se importar com os
idiotas que
cantavam “Olha a cabeleira do Zezeca, será que ele é, será
que ele é?”.
– Olá, Zeca. Tudo certinho com você? – cumprimentou Davi,
meu
melhor amigo.
– Certinho? Certíssimo! Melhor impossível! A-doooo-ro chegar
e ser
tão bem recebido. É sempre uma bênção.
Ponto para o Zeca! Adoro gente debochada! Gostei dele de
cara!
– Essa é a Tetê.
– Oi. Bom dia! – fui fofa.
– Miga, sua louca, que sobrancelha é essa?! Você precisa
tirar essa
taturana da cara! A-go-ra! – estrilou Zeca.
– Oi? – retruquei. Não esperava aquela reação dele.
– Desculpa a sinceridade, mas sou desses. Se não quiser mais
falar
comigo, relaxa. Tô acostumado a ser ignorado.
Num primeiro momento, pensei em tirar dez pontos dele. Mas
logo
depois consegui rir e entender. Ele só queria me ajudar.
– Desde que não seja com cera quente… Acompanhei minha mãe
no
salão uma vez, doeu em mim. Nunca vou depilar. Só raspar –
continuei o
diálogo.
Era a terceira pessoa que conversava comigo naquela manhã!
Me
belisca que eu estou sonhando!, tive vontade de berrar.
– Ah, depila, meu amor. Depila sim, porque mulher
monocelhuda
não dá! Não dá! Não faz a Frida Kahlo, porque ninguém
merece! Mas não
tira com cera não. Depila com linha, boba. Dura mais e não
deixa o rosto
caído. Uma amiga da minha irmã é designer de sobrancelhas e
arranca
buço também. E vai em casa. Te dou o telefone dela. Cera
deixa tudo
flácido e você não quer ficar com cara de velha já, né,
doida?
Gostei dele. Taí um amigo que eu adoraria ter. Torci para
nossa
amizade evoluir. Era inimaginável a ideia de fazer dois
novos amigos
num só dia. Passei anos na minha escola anterior sem
conseguir nada
parecido com isso. Será que agora eu tenho dois melhores
amigos?! No
primeiro dia de aula numa escola nova?! Alguém me belisca,
por favor!
Eu só posso estar sonhando! E meu novo amor? Ai… Eu sei,
prometi
nunca mais amar ninguém e coisa e tal, mas… Gostar do Erick
à
distância estava me fazendo bem. Sabia que era um amor
impossível.
Mas… Ah! Sonhar não custa nada, me deixa!
– É o Tony que vai dar Geometria pra gente? – perguntou
Zeca.
– É. Ele é péssimo, não sei como a escola mantém um
professor tão
ruim – Davi respondeu.
– Ele é um equivocado, né, Davi? Um desaplaudido! E fala com
um
ovo na boca, não entendo nada do que ele diz! Alguém
pre-ci-sa avisar
pra ele que existe um negocinho pra aparar os pelos do nariz
e das
orelhas! Pelo amor de Getúlio!
– Getúlio? – estranhei.
– Meu tataravô, que era de uma elegância ímpar! Puxei a ele
–
explicou o adorável maluquete. – Falando sério, repara,
Tetê! Dá pra
fazer uma trança em cada narina com tanto pelo. Trança
Rapunzel, ok?
Nojo!
Davi e eu rimos com vontade. Zeca também.
– Tá rindo de quê? Enquanto não tirar essa taturana de cima
dos
olhos nem adianta fazer a simpática pra cima de mim! – Zeca
brincou.
Gente, ele levou a sério a taturana.
– Nossa, está tão ruim assim? – perguntei, enquanto os dois
gargalhavam.
– Tá. Tá ruim assim. Péssimo. Muito pior do que você pensa!
Precisa
aumentar o grau desses óculos se não está enxergando direito
– afirmou
Zeca. – Eu sou legal, juro, e vou falar com você, sim. Desde
que você
ligue HOJE pra Heloísa pra marcar de fazer a sobrancelha.
Eu ri. Era a primeira vez que alguém de fora da minha
família
parecia se importar comigo, com a minha aparência. Ele pegou
um
papel, escreveu o telefone da Heloísa e me entregou.
– Combinado – acatei, guardando o papel e rindo com vontade.
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