O PROFESSOR TONY entrou na sala para a primeira aula. E
realmente era espantosa a profusão de pelos nos orifícios da
sua cabeça.
Eu não conseguia olhar para outra coisa. As palavras saíam
da sua boca
mas eu só via seu nariz e suas orelhas. Pareciam ter vida
própria. Era
um urso em cada orelha, um são-bernardo entalado em cada
narina. A
imagem do horror. Do horror!
Comecei a pensar no que aconteceria se os ursos resolvessem
caçar
os são-bernardos nunca tosados e a imaginar os cachorros,
coitadinhos,
fazendo de tudo para entrar no nariz do pobre professor, sem
sucesso,
claro. A mente voou para longe e eu visualizei os ursos
correndo sobre a
bochecha do Tony. E os são-bernardos nunca tosados
desesperados, com
as bundinhas balançando do lado de fora do nariz e…
Droga!
Não foi à toa que tive uma crise de riso. Sabe aqueles risos
que vêm
muito de dentro? Do peito, do estômago, do pulmão, do útero,
sei lá de
onde? Riso incontrolável, riso que você sabe que tem que
parar mas não
consegue? Riso que vira gargalhada infinita com direito a
lágrimas
escorrendo pela cara?
Eu acho que ri pelo conjunto da obra: pelo alívio de ter
feito dois
amigos no primeiro dia de aula, pela cena dos cachorros
fugindo
desesperados dos ursos, por eu agora saber que precisava
tirar a
sobrancelha e o buço também (não era implicância materna),
pelo
nervosismo com a mudança de escola…
Quando eu já era o alvo de todos os olhares, o professor
Tony parou a
aula.
– Algum problema, aluna-nova-que-já-quer-ir-para-a-sala-dodiretor-no-primeiro-dia-de-aula?
A gargalhada forçada e estridente de Valentina ecoou na
sala. Passei
a odiar Valentina oficialmente naquele momento.
– Fala sério,
professor! Nunca teve ataque de riso, não?
Claro que eu não mandei essa! Imagina! Só pensei. Mas achei
que ia
ficar divertido escrever o que eu adoraria ter dito.
Meu riso cessou e eu vermelhei. Nossa, devo ter ficado mais
que
vermelha, provavelmente fiquei roxa-quase-azul, de tanto que
minhas
bochechas queimaram. A cara toda ardeu de vergonha. Poxa, eu
não
podia ser feliz nem um pouquinho?
Não, não podia. E não podia mesmo, caramba! Sempre fui boa
aluna e
não queria causar má impressão logo no primeiro dia. Se tem
uma coisa
que gosto de ser é aluna exemplar. Pedi desculpas, Tony
retomou a aula
mas… algo ainda pior que uma bronca na escola nova
aconteceu.
Um pum na escola nova.
Sim, um pum silencioso, daqueles com um cheiro horrível.
Aqueles que vão chegando de fininho e ninguém consegue ficar
indiferente.
Não é para rir.
Sério, não é para rir.
O que eu vou contar foi uma tragédia. Uma tragédia grega.
Foi a
morte.
De repente, o cheiro estava abominável. Cheguei a prender a
respiração por alguns instantes.
Todos estavam quietos fazendo a tarefa, ninguém falava nada,
ninguém se manifestava. Mas eu via que as pessoas se mexiam,
desconfortáveis.
Que turma civilizada!, suspirei aliviada.
Se fosse na outra escola, já iam ter parado a aula para
falar do fedor.
Isso é que é colégio bom! Gente madura e equilibrada! Gente
que sabe
que pum é normal. Que releva, porque sabe que pum é algo da
natureza
humana, e todo mundo está sujeito a deixar escapar um. E
ninguém é
imaturo aqui a ponto de comentar uma bobagem dessas.
Estou chocada com a maturidade da tur…
– Caraca! Quem comeu repolho com ovo no café da manhã, hein?
Tá
brabo o negócio aqui! – gritou um menino visivelmente nada
maduro e
equilibrado se abanando com o caderno.
– Repolho com ovo só, não! Repolho com ovo e feijão! –
acrescentou
outro de olfato apurado que certamente não achava pum algo
normal da
natureza humana.
Se bem que mesmo uma pessoa com o nariz entupido ficaria
meio
chocada com o cheiro. Estou sendo sincera.
Eu, coitadinha de mim, só tinha comido meu estupendo
biscoito
amanteigado de café da manhã. Nada que gere gases ou coisas
do tipo.
– Gente do céu, alguém abre a janela, peloamorrrr! – pediu
Valentina, a besta, mostrando que o cheiro tinha chegado ao
fundão da
sala.
A turma estava em alvoroço. Ninguém mais prestava atenção na
aula.
Até o Tony se abanava.
– As pessoas não sabem que existe banheiro, pô? – questionou
um
ruivo.
– Gente, isso foi aqui na frente! Deus me livre e guarde!
Alguém está
podre por dentro! Ou então é uma bomba. Corram e salvem suas
vidas
enquanto é tempo! – sugeriu Zeca, causando risos gerais.
– Ia ser no mínimo digno se o criminoso assumisse a culpa –
gritou
Erick.
O Erick se manifestou.
O Erick.
O Erick!!!
Gulp!
Sem pânico, sem
pânico… Respira, Tetê… Respira, pedi a mim
mesma. Não tão
profundamente, Tetê, não tão profundamente porque
tá brabo.
Risos na sala. Mais risos. Risos se multiplicando na velocidade
da
luz.
Tony pediu silêncio. Aos poucos a turma obedeceu.
Silêncio. Silêncio.
Tetê, fica tranquila,
porque não foi você. Fica quieta e continua com
cara de paisagem
ignorando o que acontece em volta, Tetê. Isso, muito
bem, elogiei meu
desempenho exemplar.
Mais silêncio. Silêncio de cemitério.
Ótimo!
Continua calada, Tetê.
Ca-la-da, ordenei para meu lado tagarela.
Repete comigo: “Não
fui eu, está tudo bem”, “Não fui eu”, “Não fui
eu…”
– Quem foi? – algum idiota gritou do meio da sala.
E eu, cretina, tapada, imbecil, fiz exatamente a última
coisa que eu
deveria fazer. Eu estava tão concentrada e com tanto medo
que acabei
gritando a frase que tinha passado na minha cabeça.
– Não fui eu! – berrei (sim, berrei) de olhos fechados,
desobedecendo minha própria ordem.
Gargalhadas gerais.
– Quem nega é sempre o peidorreiro! – condenou um moreno.
Peidorreiro? Sério!? Não, isso não estava acontecendo.
– Olha a boca, Thales! – bronqueou Tony.
Mais gargalhadas. Kkk pra cá, kkk pra lá. Nossa. Tudo muito
engraçado. Muito engraçado mesmo.
– Mas não fui eu mesmo! – repeti.
Burra. Novecentas e noventa e nove mil vezes burra. Todos
gargalhavam, menos eu. Forcei uma gargalhada, para me sentir
parte da
turma. Péssima gargalhada. Logo depois, para piorar a
humilhante e
devastadora situação, adivinha o que a burrona aqui fez? Saí
correndo
da sala, prendendo o choro. E assim foi o primeiro tempo da
primeira
aula no meu primeiro dia numa escola nova.
No intervalo, minha situação não melhorou, não.
– Sabe que seu apelido vai virar peido, né? – alertou Zeca.
Peido? Pei-do? Eu estava perdida. “Peido” ninguém merece.
Preferia
“Tetê do Cecê”. A que ponto cheguei, meu Deus!? E só tenho
15 anos!
Quinze anos!, desabafei com as fadas que moram na minha
cabeça. Eu
não tinha soltado o pum. Que apelido injusto! Eu seria
acusada de um
feito que não era meu!! A falsa autoria de um peido do qual
não sou
dona. Era só o que me faltava. Eu era uma errada mesmo.
– Calma. É só não dar trela que eles param de chamar –
aconselhou
Davi.
– Já estão me chamando de… de p-pei…?
– Já – responderam Zeca e Davi.
– Mas não fui eu!
– É, mas quanto mais você tentar explicar, pior. Agora deixa
quieto.
Mas não tem problema. Eles só queriam alguém pra zoar.
Relaxa! –
disse Zeca.
Droga! Que péssimo!
Péssimo? Eu disse péssimo? Nada péssimo! Eu tenho dois
amigos
que me apoiam! E que não me julgaram! E não me xingaram do
apelido
idiota. Não riram e não me criticaram. E continuaram meus
amigos,
falando comigo, normalmente. Tudo bem, o Zeca riu, mas
normal,
tombos e puns geram riso desde que o mundo é mundo! O fato é
que eu
agora tinha dois amigos. Que me deram seus números de
celular para a
gente se falar! Quer coisa melhor que isso? Isso se chama
felicidade!
Felicidade total! Felicidade geral! Eu ri e eles riram
comigo.
– É só não ligar para as provocações – ensinou Davi. – Até
porque,
vamos combinar, quem nunca passou por momentos de
flatulência
indesejada em lugares inadequados, não é mesmo?
– Fale por você, Davi. Se você faz esse tipo de coisa, não
me bota no
meio. Nem sei o que é isso – desdenhou Zeca.
– Ah, claro. Você não sabe o que é pum. Nunca soltou um
punzinho
na hora errada, Zeca? – debochei.
– Imagina! Nunca! Nem sozinho no escuro – devolveu ele.
– Palhaço! – ataquei fofamente.
– Aliás, esse foi um dos meus apelidos. Bozo, pra ser mais
específico
– confessou Zeca. – Uma época em que eu estava bem mais
magro, as
calças ficavam largas e esquisitas. E a minha canela era
fininha, os pés
gigantes. Parecia mesmo que eu usava aqueles sapatos de
palhaço. Eu
tava beeeem Bozo. Até o cabelo era meio parecido.
– Você não ficou chateado?
– Nem um pouco, Tetê. Eu estava Bozo, não disse? E mesmo
quando
algum apelido me abala eu finjo ignorar. Por isso nenhum
emplacou. E
olha que me chamaram de várias coisas, Tetê: Flor, Diva, Ru
Paul,
Malévola, Dorme…
– Dorme?
– É. De “dorme na caixa”.
– Por causa de defunto?
– Defunto fica no caixão, bobinha! Quem dorme na caixa é
boneca!
Garota lesada!
Rachei de rir.
– Mas desse apelido eu gostei – comentou meu segundo novo
grande
amigo. – Pelo menos tem humor.
Zeca é uma piada, logo cheguei à conclusão. E gente boa. Sem
saber,
me deu um grande ensinamento: é possível, sim, lidar com as
zoações
sem se sentir (tão) na lama. É só não levar a sério.
– Não é a gente que é ruim, eles é que são imaturos, sem
noção e sem
bom senso, por não saberem quão espetaculares nós somos! –
Zeca
anunciou.
– A gente é espetacular? Sério que você acha isso? –
questionei.
– “A gente” é muita gente. Mas que EU sou espetacular, eu
sou,
amorrrr – brincou o Zeca, debochando e se fazendo de diva.
Risos e mais risos. Como era bom ter com quem conversar!
– A gente também é, Tetê. – Davi entrou na brincadeira da
superautoestima. – A gente não pode ficar se lamentando por
causa de
um bando de acéfalos. – E diante de nossas caras de ponto de
interrogação, ele completou: – Carambola!, vocês dois.
Acéfalo é sem
cabeça! É a palavra que meu avô usa para xingar as pessoas
ignorantes!
Ele disse carambola! Não é maravilhoso?!
– Isso aí! Um bando de ignorantes, Davi! – Zeca ratificou o
amigo.
E a segunda-feira correu bem, apesar do ataque de riso, do
pum do
qual eu virei a dona e do apelido infame. Quem liga para
isso? Eu agora
tenho amigos!, era a frase que não saía da minha cabeça.
Muito menos do meu coração.
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