Capítulo 6

— Desculpe. Meu despertador não tocou.
Passei depressa por Richard e pendurei o casaco no gancho, descendo minha saia sintética pelas coxas.
— Quarenta e cinco minutos de atraso. Isso é inaceitável.
Eram oito e meia. Reparei que não havia ninguém além de nós dois no bar.
Carly tinha saído: nem se dera o trabalho de avisar Richard pessoalmente. Apenas mandou uma mensagem de texto para dizer que devolveria aquele maldito uniforme no fim da semana e que, como lhe deviam duas semanas de férias, estava descontando do maldito aviso prévio. Se ela ao menos tivesse lido o manual dos funcionários, dissera ele irritado, saberia que substituir férias por aviso prévio é totalmente inaceitável. Estava no Parágrafo Três, claro como água, se ela tivesse se importado em dar uma olhada. E o palavreado dela era simplesmente desnecessário.
Ele estava procurando uma substituta. O que significava que, até isso ser decidido, haveria só eu. E Richard.
— Sinto muito. Aconteceu... uma coisa lá em casa.
Eu tinha acordado sobressaltada às sete e meia. Passara vários minutos sem conseguir lembrar em que país estava e qual era o meu nome, então continuei deitada na cama, incapaz de me mexer enquanto refletia sobre os acontecimentos da noite anterior.
— Um bom funcionário não mistura vida pessoal com trabalho — comentou Richard ao passar por mim com sua prancheta.
Fiquei parada observando-o se afastar, me perguntando se ao menos ele tinha vida pessoal. Parecia que nunca ficava em casa.
— Bem, pois é. Um bom patrão não obriga o funcionário a usar um uniforme que até uma casa noturna teria rejeitado por ser vulgar — resmunguei, enquanto digitava meu código na caixa, puxando a barra da saia de Lurex com a mão livre.
Ele se virou depressa e veio do outro lado do bar.
— O que foi que você disse?
— Nada.
— Disse, sim.
— Falei que não me esquecerei disso da próxima vez. Muito obrigada por me lembrar.
Sorri docemente para ele.
Richard ficou me olhando por vários segundos a mais do que seria confortável para qualquer um de nós. E depois completou:
— A faxineira está doente de novo. Você vai ter que limpar o banheiro masculino antes de começar o trabalho no bar.
Ele tinha um olhar firme, que me desafiava a dizer alguma coisa. Mas lembrei que não podia me dar o luxo de perder o emprego. Engoli em seco.
— Está bem.
— Ah, e o cubículo três está imundo.
— Que maravilha — falei.
Ele girou nos calcanhares lustrosos e voltou para sua sala. Atirei flechas mentais de vodu na sua nuca durante todo o caminho.

* * *

— Esta semana o Grupo Seguindo em Frente vai abordar o tema da culpa: a culpa do sobrevivente, a culpa de não termos feito o bastante... São esses sentimentos que costumam nos impedir de seguir adiante.
Marc esperou que passássemos a lata de biscoitos e depois inclinou-se para a frente na cadeira de plástico, com as mãos cruzadas no colo. Fingiu não ouvir o burburinho de descontentamento por não ter biscoito recheado.
— Eu perdia muito a paciência com Jilly — disse Fred, quebrando o silêncio. — Quer dizer, quando ela teve demência. Ela guardava os pratos sujos nos armários da cozinha, e eu só os encontrava dias depois e... fico com vergonha de dizer, mas gritei com ela, sim, algumas vezes. — Ele enxugou os olhos. — Antes ela tinha muito orgulho da casa. Isso foi o pior.
— Você conviveu com a demência de Jilly por muito tempo, Fred. Teria que ser sobre-humano para não achar estressante.
— Pratos sujos me enlouqueceriam — disse Daphne. — Acho que eu teria gritado alguma coisa horrível.
— Mas não era culpa dela, certo? — Fred endireitou-se na cadeira. — Estou sempre pensando nesses pratos. Quem me dera poder voltar atrás. Eu os lavaria sem reclamar. Daria apenas um grande abraço nela.
— Fico fantasiando sobre homens no metrô — revelou Natasha. — Às vezes, enquanto desço a escada rolante, troco olhares com algum homem aleatório que está subindo. E, antes mesmo de chegar à plataforma, já estou criando um relacionamento inteiro com ele na minha cabeça, em que ele desce correndo a escada rolante porque simplesmente tem certeza de que há alguma coisa mágica entre nós, e ficamos parados ali, olhando um para o  outro no meio da multidão de passageiros de Picadilly, depois vamos beber alguma coisa e, de repente, estamos...
— Parece um filme do Richard Curtis — disse William.
— Gosto dos filmes do Richard Curtis — comentou Sunil. — Especialmente aquele sobre a atriz e o homem de cueca.
— Um Lugar Chamado Shepherd’s Bush — falou Daphne.
Houve uma pequena pausa.
— Acho que é Um Lugar Chamado Notting Hill, Daphne — corrigiu Marc.
— Prefiro a versão da Daphne. O que foi? — disse William, bufando. — Não temos mais permissão para rir?
— Então na minha cabeça já estamos nos casando — prosseguiu Natasha. — E, de pé no altar, penso: o que estou fazendo? Faz só três anos que Olaf morreu e estou fantasiando sobre outros homens.
Marc se recostou na cadeira.
— Depois de três anos sozinha, não acha que isso é natural? Fantasiar sobre outros relacionamentos?
— Mas se eu tivesse amado Olaf de verdade, com certeza não pensaria em mais ninguém.
— Não vivemos mais na Era Vitoriana — disse William. — Você não precisa ficar de luto até a velhice.
— Se fosse eu que tivesse morrido, odiaria imaginar Olaf se apaixonando por outra pessoa.
— Você não saberia — observou William. — Estaria morta.
— E você, Louisa? — Marc tinha reparado no meu silêncio. — Sente culpa?
— A gente pode... pode passar para outra pessoa?
— Sou católica — comentou Daphne. — Sinto culpa por tudo. São as freiras, sabe.
— O que você acha difícil nesse assunto, Louisa?
Tomei um gole do café. Sentia que todo mundo estava me olhando.
Vamos, disse a mim mesma, engolindo em seco.
— O fato de não ter conseguido impedi-lo — confessei. — Às vezes acho que se eu tivesse sido mais inteligente, ou... se tivesse lidado com as coisas de outra maneira... ou simplesmente tivesse sido mais, sei lá, qualquer coisa.
— Você se sente culpada pela morte do Bill porque acha que poderia tê-la impedido?
Puxei um fio da roupa. Quando saiu na minha mão, pareceu soltar alguma coisa no meu cérebro.
— E por estar levando uma vida que é muito diferente da que prometi a ele. Também me sinto culpada porque ele praticamente pagou meu apartamento, sendo que minha irmã talvez nunca arranje dinheiro para ter o dela. E por nem sequer gostar muito de morar lá, pois não parece meu, e dá a impressão de ser errado arrumá-lo, afinal tudo o que associo ao lugar é o fato de que Wi... Bill morreu e de alguma forma lucrei com isso.
Houve um breve silêncio.
— Você não deveria se sentir culpada por causa de um imóvel — disse Daphne.
— Quem me dera que alguém deixasse um apartamento para mim — confessou Sunil.
— Mas esse é um final de conto de fadas, não é? O cara morre, todo mundo aprende alguma coisa, segue em frente e cria algo maravilhoso a partir da morte dele. — Comecei a falar sem pensar. — Só que eu não fiz nenhuma dessas coisas. Basicamente falhei em tudo.
— Meu pai chora quase toda vez que transa com alguém que não é minha mãe — revelou Jake, contorcendo as mãos e nos olhando por baixo da franja. — Ele seduz as mulheres para dormirem com ele, depois sente prazer em estar triste. É como se não tivesse problema, desde que ele se sinta culpado.
— Você acha que ele usa a culpa como apoio psicológico.
— Só acho que ou você transa e fica feliz com isso...
— Eu não me sentiria culpado por estar fazendo sexo... — opinou Fred.
— Ou trata as mulheres como seres humanos e se dá conta de que não tem por que se sentir culpado. Ou então não dorme com ninguém e preza a memória da minha mãe até que esteja realmente pronto para seguir em frente.
Sua voz embargou com a palavra preza e a mandíbula ficou tensa. A essa altura já estávamos acostumados com o enrijecimento súbito das expressões, e uma gentileza tácita do grupo consistia em todo mundo desviar os olhos até qualquer lágrima em potencial desaparecer.
Marc tinha um tom de voz gentil.
— Já contou ao seu pai como se sente, Jake?
— A gente não fala sobre a minha mãe. Ele fica bem desde que, sabe, o nome dela não seja mencionado.
— Isso é um fardo e tanto para você carregar sozinho.
— É. Bem... Por isso estou aqui, não é?
Houve um breve silêncio.
— Coma um biscoito, Jake querido — ofereceu Daphne.
Passamos de novo a lata pela roda, e nos sentimos um pouco mais tranquilos, de alguma forma que ninguém conseguia explicar muito bem, porque Jake finalmente pegou um.
Eu não parava de pensar em Lily. Quase não prestei atenção na história de quando Sunil chorou na padaria do supermercado e por pouco não fiz uma expressão compreensiva pelo gesto solitário de Fred, que marcara o aniversário de Jilly com balões metálicos. Durante dias, toda aquela situação com Lily ganhara um teor de sonho, ao mesmo tempo vívido e surreal.
Como Will poderia ter uma filha?

* * *

— Você não parece contente.
O pai de Jake estava encostado na moto quando passei pelo estacionamento da igreja.
Parei na frente dele.
— É uma terapia de luto. Dificilmente vou sair sapateando.
— Justo.
— Não é o que você está pensando. Quer dizer, não sou eu — falei. —
Tem a ver com... uma adolescente.
Ele inclinou a cabeça para trás, olhando para Jake às minhas costas.
— Ah. Certo. Bem, me solidarizo com você. Parece jovem para ter uma filha adolescente, se não se importa que eu comente.
— Ah. Não. Não é minha! É... complicado.
— Eu adoraria lhe dar conselhos. Mas não sei nada. — Deu um passo à frente e abraçou Jake, o que o garoto tolerou, fechando a cara. — Está tudo bem, rapaz?
— Tranquilo.
— Tranquilo — repetiu Sam, me olhando de soslaio. — Pronto. A resposta universal de todos os adolescentes para tudo. Guerra, miséria, prêmio de loteria, fama global. Está tudo tranquilo.
— Você não precisava me buscar. Vou para a casa da Jools.
— Quer uma carona?
— Ela mora, tipo, ali. Naquele prédio. — Jake apontou. — Acho que consigo chegar lá sozinho.
A expressão de Sam permaneceu a mesma.
— Então será que da próxima vez você poderia me mandar uma mensagem? Me poupa de ficar esperando aqui.
Jake deu de ombros e saiu com a mochila no ombro. Ficamos em silêncio observando-o se afastar.
— Vejo você mais tarde, hein, Jake?
O menino ergueu a mão sem olhar para trás.
— Muito bem — falei. — Agora me sinto um pouquinho melhor.
Sam balançou de leve a cabeça. Ficou vendo o filho se distanciar, como se ainda não conseguisse suportar a ideia de deixá-lo ir.
— Alguns dias ele sente mais do que em outros. — Em seguida se virou para mim. — Quer tomar um café ou alguma outra coisa, Louisa? Só para que eu não me sinta o maior otário do mundo? É Louisa, não é?
Pensei no que Jake dissera naquela noite: Na sexta-feira, meu pai levou para casa uma loura psicopata chamada Mags, que é obcecada por ele. Enquanto ele tomava banho, ela ficou me perguntando se meu pai falava dela quando não estava lá.
O mulherengo compulsivo. Mas ele era bem simpático e me ajudara na ambulância. Além do mais, a alternativa era passar outra noite em casa me perguntando o que estava passando pela cabeça de Lily Houghton-Miller.
— Só se falarmos sobre qualquer coisa, menos adolescentes.
— Podemos falar sobre sua roupa?
Olhei para minha saia de Lurex verde e meus sapatos de dança irlandeses.
— De jeito nenhum.
— Não custa tentar — disse ele, subindo na moto.

* * *

Nós nos sentamos do lado de fora de um bar quase vazio perto do meu apartamento. Ele bebeu café, e eu, um suco de fruta.
Eu tinha tempo de observá-lo disfarçadamente, pois não precisava me esquivar de carros num estacionamento nem estava amarrada a uma maca de hospital. O nariz dele era um pouco grande e os olhos se enrugavam de uma maneira que insinuava que ele já vira os mais diversos comportamentos humanos, dos quais, talvez, não tenha achado graça. Era alto e musculoso, com feições de alguma forma mais grosseiras que as de Will, mas se movia com delicadeza, como se procurasse se esforçar para não estragar as coisas por causa de seu tamanho. Ficou evidente que ele se sentia mais à vontade ouvindo do que falando, ou talvez eu achasse desconcertante ficar sozinha com um homem após tanto tempo e por isso estivesse falando sem parar. Contei sobre o meu trabalho no bar, fazendo-o rir de Richard Percival e dos horrores da minha roupa, e comentei como tinha sido estranho passar um tempo na casa dos meus pais outra vez, mencionei também as piadas sem graça do meu pai, vovô e os donuts e a forma não ortodoxa como meu sobrinho usara uma caneta azul. Mas, enquanto falava, eu tinha consciência, o que acontecia com frequência atualmente, dos assuntos que eu não abordava: Will, o acontecimento surreal da noite anterior, minha vida. Com Will, nunca tive que ponderar sobre o que dizia: conversar com ele era tão natural quanto respirar. Mas acabei aprendendo a não falar nada sobre mim mesma.
Ele ficou apenas sentado, assentindo com a cabeça em determinados momentos, observando o tráfego, enquanto bebericava seu café, como se achasse perfeitamente normal sair com uma desconhecida que falava pelos cotovelos e usava uma minissaia de Lurex verde.
— E como é que está o seu quadril? — perguntou ele, quando fiz uma pausa, por fim.
— Nada mal. Só que eu gostaria muito de não mancar mais.
— Você vai chegar lá, se continuar com a fisioterapia. — Por um instante, ouvi aquela voz do fundo da ambulância. Calma, imperturbável e tranquilizadora. — E as outras lesões?
Olhei para o meu corpo, como se conseguisse enxergar através da roupa.
— Bom, tirando o fato de parecer que me riscaram toda com uma caneta de cor vermelho-vivo, estou bem.
Sam balançou a cabeça.
— Você teve sorte. Foi uma queda e tanto.
E surgiu aquilo de novo: o frio na minha barriga, o ar sob meus pés.
Nunca se sabe o que vai acontecer quando se cai de uma grande altura.
— Eu não estava tentando...
— Já falou isso.
— Mas acho que ninguém acredita realmente em mim.
Trocamos um sorriso sem graça e por um instante fiquei questionando se ele também não acreditava.
— Então... você resgata muita gente que cai do alto de prédios?
Ele negou com a cabeça e olhou para o outro lado da rua.
— Só os pedaços. Ainda bem que no seu caso os pedaços se encaixaram de volta.
Ficamos em silêncio por mais algum tempo. Eu continuava pensando no que devia dizer, mas estava tão desacostumada a ficar sozinha com um homem – sóbria, pelo menos – que perdia a coragem e abria e fechava a boca feito um peixinho.
— Então quer me contar sobre essa adolescente? — sugeriu Sam.
Era um alívio explicar aquilo a alguém. Contei sobre a batida à porta tarde da noite, sobre nosso encontro bizarro, o que eu vira no Facebook e o jeito como ela fugira antes que eu tivesse a chance de decidir o que devia fazer.
— Nossa — disse ele, quando terminei. — Isso é... — Ele balançou ligeiramente a cabeça. — Acha que ela é quem diz ser?
— Ela parece um pouco com ele, sim. Mas, para ser sincera, não sei. Será que estou procurando sinais? Estou vendo o que quero ver? É possível. Passo metade do tempo pensando em como é incrível que tenha restado alguma coisa dele e a outra me perguntando se sou uma idiota completa. E tem muita coisa no meio. Por exemplo, se ela é mesmo filha dele, então como pode ser justo que nunca a tenha conhecido? E como os pais dele devem lidar com isso? Será que conhecê-la teria feito ele mudar de ideia? E se esse fosse o detalhe capaz de convencê-lo... — Minha voz sumiu.
Sam recostou-se na cadeira, com a testa franzida.
— E esse homem é o motivo de você frequentar o grupo.
— É.
Eu conseguia senti-lo me observando, talvez reavaliando o que Will significara para mim.
— Não sei o que fazer — falei. — Não sei onde procurá-la, ou se deveria deixar isso tudo para lá.
Ele olhou para a rua, pensativo. Em seguida disse:
— Bem, o que ele teria feito?
De repente, titubeei. Todos os meus pensamentos evaporaram quando olhei atentamente para aquele homem de olhar penetrante, com uma barba que não era feita havia pelo menos dois dias e mãos bondosas e competentes.
— Você está bem?
Tomei um grande gole do suco, tentando disfarçar que meus sentimentos estavam estampados no rosto. Então, sem nenhum motivo aparente, fiquei com vontade de chorar. Era demais. Aquela noite estranha, desestabilizadora. O fato de Will ter aparecido de novo, sempre presente em todas as conversas. Visualizei repentinamente seu rosto, aquela sobrancelha irônica erguida, como se perguntasse: Que diabo você está aprontando agora, Clark?
— Foi só... um dia longo. Na verdade, você se importaria se eu...
Sam afastou a cadeira, levantando-se.
— Não. Não. Vá. Desculpe. Não achei que...
— Foi muito legal. É só que...
— Sem problemas. Foi um dia longo. E ainda tem o luto. Eu entendo. Não, não, não se preocupe — disse ele, quando peguei minha bolsa. — Mesmo. Posso pagar seu suco de laranja.
Acho que devo ter corrido até o carro, apesar de estar mancando. Senti seus olhos fixos em mim durante todo o caminho.

* * *

Parei no estacionamento e soltei o ar que eu tinha a impressão de estar prendendo desde que saíra do bar. Olhei para a loja da esquina, depois de novo para o meu apartamento, e decidi que não queria ser sensata. Eu queria vinho, várias taças grandes de vinho, até ser capaz de me persuadir a parar de olhar para trás. Ou talvez a não olhar para nada, no fim das contas.
Meu quadril doeu quando desci do carro. E doía com frequência desde que Richard aparecera. O fisioterapeuta no hospital me dissera para não passar muito tempo em pé. Mas eu ficava apavorada só de pensar em comunicar isso ao meu patrão.
Entendi. Então você trabalha num bar, mas quer ter permissão para passar o dia sentada, é isso?
Aquela expressão insolente de quem se prepara para exercer uma gerência medíocre, aquele corte de cabelo cuidadosamente indefinido, o ar enfadonho de superioridade, embora ele fosse apenas dois anos mais velho que eu. Fechei os olhos e tentei desfazer o nó de ansiedade na minha barriga.
— Só isso, por favor — falei, colocando uma garrafa gelada de Sauvignon Blanc no caixa.
— Festa, é?
— O quê?
— Sua fantasia. Você vai de... Não me conte ainda. — Samir coçou o queixo. — Branca de Neve?
— Isso mesmo — respondi.
— É bom tomar cuidado com isso. São calorias vazias, não são? É melhor tomar vodca, que é uma bebida limpa. Talvez com uma rodela de limão. É o que falo para Ginny, que mora ali na frente. Você sabia que ela é dançarina erótica? Essas mulheres precisam cuidar da forma.
— Conselho de dieta. Legal.
— É como toda essa questão sobre o açúcar. Tem que tomar cuidado. Não adianta comprar coisas com baixo teor de gordura se são cheias de açúcar, não é mesmo? São as calorias vazias. Bem aí nessa garrafa. E o açúcar industrializado é ainda pior porque gruda no nosso intestino.
Ele registrou o vinho e me deu o troco.
— O que você está comendo, Samir?
— Macarrão instantâneo sabor bacon defumado. É bom, cara.
Quando a vi, eu estava imersa em meus pensamentos, em algum ponto obscuro entre meu quadril dolorido, meu desespero existencial relacionado ao trabalho e um estranho desejo súbito por macarrão instantâneo sabor bacon defumado. Ela estava no portão do meu prédio, sentada no chão, abraçando os joelhos. Peguei meu troco com Samir e atravessei a rua meio andando, meio correndo.
— Lily?
Ela ergueu lentamente o olhar. E com os olhos injetados, como se tivesse chorado, disse com uma voz arrastada:
— Ninguém me deixou entrar. Toquei todas as campainhas, mas ninguém me deixou entrar.
Eu me atrapalhei na hora de enfiar a chave no portão e escorei-a com a bolsa, me agachando ao seu lado.
— O que aconteceu?
— Só quero dormir — disse ela, esfregando os olhos. — Estou muito, muito cansada. Queria pegar um táxi para casa, mas não tinha dinheiro.
Senti o cheiro azedo de álcool.
— Você está bêbada?
— Não sei. — Ela piscou para mim, inclinando a cabeça. Então me perguntei se era só bebida. — Se eu não estiver, você virou um leprechaun. — Ela apalpou os bolsos. — Ah, olhe... olhe o que eu tenho! — Lily mostrou um cigarro enrolado e, pelo cheiro, até eu conseguia perceber que não era só tabaco. — Vamos fumar um, Lily — disse ela. — Ah, não. Você é Louisa. Eu sou Lily.
Ela riu e, tirando canhestramente um isqueiro do bolso, tentou acender a ponta errada.
— Muito bem. Hora de ir para casa. — Peguei o cigarro da mão dela e, ignorando seus vagos protestos, pisoteei-o com firmeza. — Vou chamar um táxi para você.
— Mas eu não...
— Lily!
Ergui os olhos. Havia um rapaz parado do outro lado da rua, as mãos nos bolsos da calça jeans, observando-nos fixamente. Lily o encarou, mas em seguida desviou os olhos.
— Quem é esse? — perguntei.
Ela olhou para os próprios pés.
— Lily. Venha cá. — A voz dele era marcada pela segurança da posse.
O garoto estava em pé, com as pernas ligeiramente afastadas, como se mesmo daquela distância esperasse que ela obedecesse. No mesmo instante, algo me deixou inquieta.
Ninguém se mexeu.
— É o seu namorado? Quer falar com ele? — perguntei baixinho.
Não consegui entender a primeira resposta que ela deu. Tive que me aproximar e pedir para que ela repetisse.
— Mande ele embora. — Ela fechou os olhos e virou o rosto para a porta. — Por favor.
Ele começou a atravessar a rua na nossa direção. Fiquei parada e tentei fazer minha voz soar o mais autoritária possível.
— Pode ir agora, obrigada. Lily vai entrar comigo. — Ele parou no meio da rua. Sustentei seu olhar. — Pode falar com ela outra hora, está bem?
Peguei o interfone e comecei a murmurar para um namorado imaginário musculoso, de pavio curto.
— Isso. Pode descer e me dar uma mão, Dave? Obrigada.
A expressão do rapaz sugeria que aquilo ainda não tinha acabado. Então ele se virou, pegou o celular no bolso e, enquanto se afastava, começou a conversar com urgência e em voz baixa com alguém, ignorando a buzina do táxi que precisou desviar dele e dando apenas uma rápida olhada para nós duas às suas costas.
Suspirei, tremendo um pouco mais do que gostaria. Depois enfiei as mãos embaixo das axilas de Lily Houghton-Miller de forma nada elegante e, dizendo vários palavrões abafados, consegui arrastá-la até a portaria.

* * *

Naquela noite ela dormiu no meu apartamento. Não consegui pensar no que mais podia fazer com ela. Lily vomitou duas vezes no banheiro, me expulsando quando tentei segurar seu cabelo. Ela se recusou a me dar o número do telefone de sua casa, ou talvez não conseguisse lembrar, e seu celular era bloqueado por senha. Limpei-a, ajudei-a a vestir uma calça de moletom e uma camiseta e a levei até a sala.
— Você arrumou aqui! — exclamou ela, como se eu tivesse feito aquilo só para ela.
Eu a forcei a beber um copo d’água e a coloquei deitada de lado no sofá, embora àquela altura eu tivesse quase certeza de que não havia mais nada para sair de dentro dela.
Quando ergui sua cabeça e a apoiei no travesseiro, ela abriu os olhos, como se me reconhecesse pela primeira vez.
— Desculpe — falou tão baixinho que, por um instante, fiquei sem ter certeza absoluta de que foi isso mesmo que ela disse.
Seus olhos brilharam brevemente quando as lágrimas brotaram. Cobri-a com uma manta e observei-a pegar no sono: seu rosto pálido, as olheiras arroxeadas, as sobrancelhas arqueadas assim como as de Will, as mesmas sardas tênues.
Já um pouco tarde, tranquei a porta do apartamento e levei a chave para o quarto comigo, enfiando-a embaixo do travesseiro para impedir que Lily roubasse qualquer coisa, ou que simplesmente fosse embora, eu não sabia muito bem o motivo. Fiquei deitada sem conseguir dormir, a mente ainda ocupada com o barulho das sirenes e do aeroporto e com as expressões desconsoladas no salão da igreja, com o olhar severo e cúmplice do rapaz do outro lado da rua e com o fato de ter uma pessoa que não passava de uma desconhecida dormindo sob o meu teto. E, o tempo todo, uma voz perguntava: o que você está fazendo?
O que mais eu poderia ter feito? Por fim, pouco depois de os pássaros terem começado a cantar e a van da padaria ter feito sua entrega diária lá embaixo, meus pensamentos foram se aquietando e adormeci.

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