Capítulo 6

MINHA PRIMEIRA SEMANA de aula tinha sido incrível. Não consegui
parar de sorrir nem por um minuto sequer. Tudo bem que ninguém
mais se aproximou de mim para puxar papo além do Zeca e do Davi.
Tudo bem que vi algumas meninas apontando para mim e rindo, uns
meninos tapando o nariz quando eu passava (Rá. Rá. Entendi a piada e
passei batido, segui o conselho do Zeca), mas eu sentia que agora minha
vida começava a mudar. A conclusão inevitável a que cheguei foi: a
demissão do meu pai acabou me fazendo bem. Que loucura!
Se não fosse o fato de ele estar desempregado, eu estaria sofrendo em
silêncio na antiga escola dia após dia. Lá todo mundo queria ser
popular, as amizades eram superficiais, ninguém gostava
profundamente de ninguém, pelo menos era o que eu sentia. Parecia que
eu era a única que não ligava para o que todo mundo ligava. E então as
pessoas simplesmente não falavam comigo. Talvez por não me
entenderem, por não se identificarem comigo. Não tinha ninguém igual
a mim. Mas existem pessoas iguais? O legal da vida não é cada ser
humano ser diferente do outro?
Copacabana, ao contrário da Barra, é um bairro onde se faz tudo a pé.
Nunca pensei que gostaria tanto de andar de um lugar para outro. É um
bairro cheio de velhinhos, farmácias e supermercados. E de bancos e
padarias, e livrarias e confeitarias, e bares, muitos bares e botequins.
Na sexta-feira, depois da aula, cheguei ao meu prédio toda serelepe,
louca para contar para a minha família mais novidades da escola nova.
Assim que pisei na entrada, a Elizângela, filha do porteiro, seu
Procópio, logo veio falar comigo, com um sorriso plastificado no rosto.
– Tetêêêê! – chamou a garota, que tinha me visto poucas vezes na
vida.
– Elizâââângelaaaa! – devolvi a montanha de vogais.
– Quer que eu te ajude com a mochiiiilaaaa?
– Imagiiiinaaaaa, não preciiiisaaaa. Obrigaaaadaaaa!
– Nãããão! Deixa que eu te ajuuuudoooo! – insistiu, tentando tirar a
mochila à força das minhas costas.
– Não! Vim carregando até aqui, agora é só pegar o elevador e chegar
em casa.

E para de falar assiiiim! Tá me irritandooooo!, eu quase disse.
– Mas eu faço questão! – insistiu a menina.
– E eu faço questão que você me deixe levar a mochila.
– Por favor, Tetê! O que é que custa? – ela insistiu, e eu não estava
entendendo bem por quê.
– Por que você quer tanto carregar minha mochila da portaria até o
elevador, Elizângela?
– Porque… porque… Porque eu quero ser sua amiga!
Ai, meu Deus!
– Entendi! Você ficou sabendo do meu antigo apelido por alguém do
prédio e ficou com pena, quer fazer a fofa. Obrigada, não preciso de
pena.
– Que apelido?
– Tetê do Cecê!
– Tetê do Cecê? – perguntou ela, espantada, com as duas mãos na
boca e os olhos arregalados. – Te chamam assim? Ai, meu Deus, tadinha!
Droga! Eu e minha boca gigante!
– Não me chamam assim.
– Mas você acabou de falar!
– Cha-ma-vam!
– Tetê do Cecê? – aumentou consideravelmente o tom de voz.
– Fala mais alto. Meu bisavô, que tem problemas de audição, não
escutou lá do oitavo andar.
– TETÊ DO CE…
Foi a minha vez de arregalar os olhos para ela. Olhos de ódio, de
repreensão, de “cala a boca, Elizângela!”.
– Aaaah… Entendi… Você estava sendo irônica.
– Isso – respondi, já irritada com aquela conversa descabida.
– Mas por que esse apelido? Você parece tão limpinha!
– Eu SOU limpinha!
– Tadinhaaaa!
– Mais um “tadinha” e eu nunca mais falo com você.
– Não! – gritou. Sim, ela gritou. – Isso, não!
Nossa! Ela queria muito ser minha amiga. Uau! Quem diria…
Copacabana estava fazendo bem para minha alma, para a minha energia,
para a minha aura. Uma quase estranha sendo extremamente simpática
e prestativa, e não era por causa do meu apelido. Ela queria só ser
minha amiga. Mas… por quê?
– Tá bem, não vou deixar de falar com você, Elizângela. Agora preciso
ir.
– Vou com você.
– Você… Vo-você quer almoçar lá em casa? Não avisei, mas…
– Não! Já almocei!
– Então a gente se vê outra hora! Tô morta de fome, preciso subir pra
comer.
– Mas não quero te deixar sozinha.
– Eu só vou ficar sozinha até chegar em casa. Meu pai está lá, meus
avós est…
– Você está sempre sozinha, Tetê…
– Como você sabe que estou sempre sozinha? Estou sempre sozinha
aqui, mas vivo saindo com meus amigos da Barra.
– Não vive saindo, não.
– Vivo, sim.
– Não vive, não.
Eu quis matar a Elizângela. Só um pouquinho.
– Você não tem amigos.
– Aiiiii! Que loucaaaa! Que menina loucamente louca você é! Eu sou
cheia de amigos, não tenho nem dedos pra contar quantos amigos eu
tenho – menti descaradamente.
Mas no fundo… Ah! No fundo eu adoraria que fosse verdade…
– Eu sei que você não tem amigo nenhum, Tetê.
– Por que você está insistindo nessa loucura?
– Porque seu bisavô me contou.
– Contou o quê?
– Que você é muito sozinha, que não tem amigos, que isso te deixa
muito triste.
– E por isso você quer ser minha amiga?
Ela respirou fundo antes de responder:
– Por isso e porque… é… porque…
– Porque… – repeti, impaciente.
– Porque… p-porque seu bisavô pediu.
– Meu bisavô pediu pra você ser minha amiga?! – Levei um susto.
– Isso. Ele quer que a gente comece uma amizade…
Eu não sabia nem o que pensar. Estava atônita com a revelação.
– E como amiga eu vou ter que ser sincera com você. Amiga que é
amiga não mente.
Medo.
– O seu bisavô, na verdade… Ele… ele me pagou.
– Pagou o quê?
– Ele me deu dinheiro pra eu ser sua amiga.
– Oi?
– Pra eu ser…
– Ser minha amiga! Entendi!
O elevador chegou e eu entrei pisando forte, bufando, deixando
Elizângela com cara de caneca na portaria. Entrei em casa perguntando
pelo meu bisavô, que tinha ido à padaria.
– Vó, você acredita que o biso PAGOU a Elizângela, filha do porteiro,
pra ela ser minha amiga?
– Seu biso fez isso? – perguntou ela, chocada.
– Fez!
– Inacreditável! – reagiu vovó.
– Exatamente! Inacreditável! – eu repeti indignada.
– Como é que ninguém pensou nisso antes! – vovó exclamou com um
sorriso.
– Vó!
– Droga! Eu não devia ter dito isso em voz alta. Perdão, Tetê. Perdoa a
vovó, a vovó é velha, velho fala coisas que não deve de vez em quando –
ela se justificou, percebendo o absurdo.
– Ninguém me entende nesta casa! Ninguém me entende nesta vida!
– reclamei, antes de deixá-la na cozinha terminando de fazer o almoço.
Logo num dia tão feliz, logo no último dia da minha primeira semana
de aula, logo quando eu finalmente tinha amigos, meu bisavô decide
pagar para uma estranha ser legal comigo. E minha avó achou bom!
Inacreditável!
Aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaah!, gritei. Mas só por
dentro. Sou educada e tenho bons modos, jamais gritaria desse jeito
numa casa cheia de gente.
Fui até o banheiro para tentar me acalmar, e, quando saí, já estavam
todos sentados à mesa para o almoço. Fui logo falando com meu bisavô.
– Biso! Fiquei sabendo da Elizângela.
– Uma graça de menina, não é, queridinha?
Ai, eu derreto com o “queridinha” do meu biso.
– Ela me contou…
– Contou o quê?
– Que você deu dinheiro pra ela!
– Que eu afanei o pinheiro dela? – ele respondeu perguntando.
– Não! Que você DEU DINHEIRO pra ela.
– Eu nem tenho pinheiro! – A gente nunca sabia se ele estava
fingindo surdez ou não.
– DINHEIRO!
– Ah! Dinheiro! O que é que tem? Dinheiro o quê?
– Você deu dinheiro pra ela.
– Ah, sim. Dei mesmo.
– Pra ela ficar minha amiga? Não precisava!
– Não precisa agradecer, queridinha!
– Ela não está agradecendo, papai. Ela está chateada com o senhor! –
explicou minha avó.
– Ela está dançando com o avô?
– Pai, às vezes acho que o senhor faz de propósito, sabia? Finge ser
surdo só pra irritar a gente – reclamou vovó. – Como é que a Tetê estaria
dançando com o avô se ela está na nossa frente?
– Biso! Não precisa pagar ninguém!
– Precisa sim, Tetê! Você não tem amiguinhos! Achei que só o
sentimento de pena não faria as pessoas se aproximarem de você. Mas
por um dinheirinho…
– Biso! – bronqueei. – Obrigada, mas me deixa fazer amizade do jeito
tradicional, por favor?
– Você não sabe fazer isso, minha filha… – papai intrometeu-se na
conversa.
– Conta, Tetê, conta mais como está sendo na escola nova? – pediu
meu avô, mudando o rumo da conversa, irritado com os demais.
Era a minha hora de brilhar e surpreender a todos.
– Querem saber? Está sendo maravilhoso! Fiz dois amigos. Dois!
Amigos pra vida inteira – disse, orgulhosa, sorriso indisfarçável no
rosto, cabeça erguida de felicidade.
– Verdade? Quem são? – quis saber meu pai.
– Davi e Zeca. Dois fofos, dois queridos.
– E por que eles viraram seus amigos?
– Porque eu sou legal, pai – respondi, toda inflada.
– Sério, Tetê, como se aproximou deles?
– É… É que… eles são meio excluídos também – falei baixinho.
– Ótimo! É isso aí! – Minha avó aplaudiu.
Não é exagero. Ela realmente bateu palminhas irritantemente
empolgadinhas.
– Lembre-se: os nerds de hoje serão os milionários de amanhã, os
horrendos serão os lindos, as lindas serão as mocreias e os lindos serão
carecas e barrigudos – alertou meu pai. – Taí um ensinamento para a
vida toda.
– Você era feio ou bonito? – questionei.
– Lindo. Um dos mais lindos. E olha a tragédia que eu fiquei. Careca
ainda não estou, mas essa pança…
– Inacreditável. Reynaldo Afonso parece que está com oito meses de
gestação – brincou minha avó (ela adora implicar com meu pai).
– Também, com o tanto de comida gostosa que a Tetê faz fica difícil
emagrecer. Essa torta de limão, por exemplo, é a melhor sobremesa do
mundo!
O meu pai sempre gostou da minha comida. Provava desde que eu era
criança e fazia experimentos doidos na cozinha. E sempre lambia os
beiços.
– E namoradinho? Algum em vista?
– Vó, as aulas acabaram de começar. Ainda não, né…?
– A menina mal tem amigos, imagina namorado, Djanira! – disse
meu bisavô, mostrando que entendia tudo bem direitinho quando
queria.
Pensei no Erick. No lindo, maravilhoso, apoteótico, estupendo Erick.
No perfeito e impossível Erick.
– Tem certeza? Acho que vi um olhinho brilhando aí…
– Para, vó!
Toda família puxa esse tipo de papo ou é só a minha? Que mania de
saber da minha vida sentimental!
– Cadê meu genro? Só namora se eu aprovar, hein? – meu pai
continuou o assunto, para aumentar ainda mais minha irritação.
– Mas já beijou?
– Claro que não, biso! De onde veio essa pergunta? Não ouviu que eu
não tenho namorado? Vou beijar quem?
– Não fala assim com o biso. Olha o respeito! – brigou minha avó.
Vovô seguiu com a superinteressante conversa:
– Um desses meninos, o Davi ou o Zeca, não pode virar namoradinho?
Por que alguns adultos usam o diminutivo para se referir a paixões
ou amigos? Eu tenho 15 anos, poxa!
– O Davi não faz o meu tipo e o Zeca… Não. Não namoraria nenhum
dos dois.
– Então só pega, boba! – minha vó soltou a pérola.
– Vó! – Ri, vermelha.
– Dona Djanira! Não coloque ideias na cabeça da minha filha! –
reclamou meu pai.

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