Parte cinco

O ASSOBIADOR
APRESENTANDO:
um livro flutuante
os jogadores
um fantasminha
dois cortes de cabelo
a juventude de rudy
azarados e desenhos
um assobiador e alguns sapatos
três atos de estupidez
e um garoto assustado de pernas geladas

O LIVRO FLUTUANTE (Parte I)

Um livro desceu flutuando pelo Rio Amper.
Um menino pulou na água, alcançou-o e o segurou com a mão direita. Sorriu.
Estava afundado até a cintura na gélida água dezembrina.
— Que tal um beijo, Saumensch? — disse.
O ar em volta era de um frio encantador, fantástico, nauseante, para não falar na dor concreta da água, que o endurecia dos pés aos quadris.
Que tal um beijo?
Que tal um beijo?
Pobre Rudy.

• PEQUENO AVISO •
SOBRE RUDY STEINER
Ele não merecia morrer como morreu.

Em suas visões, você vê as bordas empapadas do papel, ainda grudadas em seus dedos. Vê uma franja loura tremendo. E conclui antecipadamente, como faria eu, que Rudy morreu nesse mesmo dia, de hipotermia. Pois não morreu. Esse tipo de recordação só me faz lembrar que ele não merecia o destino que teve, pouco menos de dois anos depois.
Em muitos sentidos, levar um menino como Rudy foi um roubo — tanta vida, tanta coisa por que viver —, mas, de algum modo, tenho certeza de que ele teria adorado ver os escombros assustadores e a inclinação do céu na noite em que se foi. Teria gritado, rodopiado e sorrido, se ao menos pudesse ver a roubadora de livros apoiada nas mãos e nos joelhos, junto a seu corpo dizimado. Teria ficado contente em vê-la beijar seus lábios poeirentos, atingidos pela bomba.
É, eu sei.
Na escuridão de meu coração tenebroso, eu sei. Ele teria adorado, com certeza.
Viu?
Até a morte tem coração.

OS JOGADORES
(um dado de sete lados)

É claro que estou sendo grosseira. Estragando o fim não apenas do livro inteiro, mas desse seu pedaço em particular. Dei a você dois acontecimentos de antemão porque não tenho muito interesse em construir mistérios. O mistério me entedia. Dá trabalho. Sei o que acontece, e você também. As maquinações que nos levam até lá é que me irritam, me deixam perplexa, me interessam e me estarrecem.
Há muitas coisas em que pensar.
Muitas histórias.
Há, com certeza, um livro chamado O Assobiador, que realmente precisamos discutir, além de saber exatamente como ele veio a flutuar rio abaixo no Amper, no período que conduziu ao Natal de 1941. Devemos lidar com tudo isso primeiro, não acha?

Então, está resolvido.
Lidaremos.

Começou com um jogo. Role um dado, escondendo um judeu, e é assim que você vive. É desse jeito.

O CORTE DE CABELO: MEADOS DE ABRIL DE 1941

A vida ao menos começava a imitar a normalidade com mais força: Hans e Rosa Hubermann discutiam na sala, ainda que a briga fosse muito mais sussurrada do que costumava ser. Liesel, como era típico, fazia a espectadora.
A briga se originara na noite anterior, no porão, onde Hans e Max sentavam-se com latas de tinta, palavras e mantas de proteção contra respingos. Max havia perguntado se, em algum momento, Rosa poderia cortar-lhe o cabelo. "Está entrando em meus olhos", dissera, ao que Hans tinha respondido: "Verei o que posso fazer."
Agora, Rosa vasculhava as gavetas. Suas palavras eram jogadas no marido, junto com o resto da tralha.
— Onde está aquela maldita tesoura?
— Não está na gaveta de baixo?
— Essa eu já examinei.
— Talvez você não a tenha visto.
— Eu tenho cara de cega? — disse Rosa, que levantou a cabeça e gritou: — Liesel!
— Estou bem aqui.
Hans se encolheu:
— Droga, mulher, por que não me deixa logo surdo?
— Calado, Saukerl — e Rosa continuou a vasculhar, dirigindo-se à menina: — Liesel, onde está a tesoura?
Mas Liesel também não fazia ideia.
— Saumensch, você é mesmo uma inútil, não?
— Deixe-a fora disso.
Mais palavras foram trocadas de um lado para outro, da mulher de cabelos de elástico para o homem de olhos prateados, até Rosa bater a gaveta com força.
— O provável é que eu faça mesmo tudo errado com ele.
— Errado?
O pai, àquela altura, parecia prestes a arrancar os próprios cabelos, mas manteve a voz num sussurro quase inaudível.
— E quem é que vai vê-lo?
Ele fez que ia falar de novo, mas foi distraído pelo aparecimento plumoso de Max Vandenburg, que, constrangido, parou educadamente no vão da porta. Trazia sua própria tesoura e se aproximou, entregando-a não a Hans nem a Rosa, mas à menina de doze anos. Ela era a opção mais calma. Sua boca tremeu por um instante, antes de ele dizer:
— Você pode?
Liesel pegou a tesoura e a abriu. Estava enferrujada e brilhosa em áreas diferentes. Ela se virou para o pai e, quando este acenou que sim, acompanhou Max até o porão.
O judeu sentou-se numa lata de tinta. Pôs-se uma pequena manta de proteção contra respingos em seu ombro.
— Cometa quantos erros quiser — disse ele.
O pai acomodou-se na escada.
Liesel levantou os primeiros tufos do cabelo de Max Vandenburg.
Enquanto ia cortando os fios plumosos, estranhou o som da tesoura. Não o barulho do corte, mas o rangido de cada lâmina de metal ao desbastar cada grupo de fibras.
Terminado o trabalho, meio drástico nuns pontos, meio torto em outros, ela subiu com o cabelo nas mãos e o jogou no fogão. Riscou um fósforo e observou o montinho encolher-se e afundar, laranja e vermelho.
Max estava de novo à porta, dessa vez no alto da escada do porão.
— Obrigado, Liesel.
Sua voz soou alta e rouca, trazendo como que embutido um sorriso oculto.
Mal falou, ele tornou a desaparecer, de volta ao subterrâneo.

O JORNAL: INÍCIO DE MAIO

— Há um judeu no meu porão.
— Há um judeu. No meu porão.

Sentada no piso da sala repleta de livros do prefeito, Liesel Meminger ouviu essas palavras. A seu lado havia um saco de roupa para lavar, e a figura fantasmagórica da mulher do prefeito sentava-se à escrivaninha, recurvada como um bêbado. A sua frente, Liesel lia O Assobiador, páginas 22 e 23. Olhou para cima. Imaginou-se andando até lá, afastando delicadamente para o lado o cabelo fofo e murmurando no ouvido da mulher:
— Há um judeu no meu porão.
Enquanto o livro tremia em seu colo, o segredo sentou-se em sua boca. Acomodou-se. Cruzou as pernas.
— Está na hora de eu ir para casa.
Dessa vez, ela falou de verdade. Suas mãos tremiam. Apesar de um vestígio de sol ao longe, uma brisa suave soprava pela janela aberta, aliada à chuva, que entrava feito serragem.
Quando Liesel repôs o livro em seu lugar, a cadeira da mulher arranhou o chão e ela se aproximou. Era sempre assim, no final. Os anéis delicados de rugas pesarosas alargaram-se por um instante, quando ela estendeu a mão e tornou a pegar o livro.
Ofereceu-o à menina.
Liesel recuou, tímida.
— Não, obrigada — disse. — Tenho livros que cheguem em casa. Talvez noutra ocasião. Estou relendo uma coisa com meu pai. A senhora sabe, o que roubei da fogueira naquela noite.
A mulher do prefeito assentiu com a cabeça. Se havia uma coisa a dizer sobre Liesel Meminger, era que seus roubos não eram gratuitos. Ela só furtava livros com base no que sentia ser uma necessidade de tê-los. Nessa ocasião, tinha um número suficiente. Já lera quatro vezes Os homens de lama e vinha desfrutando de seu reencontro com O Dar de Ombros. Além disso, toda noite, antes de dormir, abria um guia infalível para a escavação de sepulturas. Enterrado em suas profundezas residia O Vigiador. Liesel enunciava as palavras em silêncio e tocava nos pássaros. Virava as páginas barulhentas, devagar.
— Até logo, Frau Hermann.
Saiu da biblioteca, percorreu o corredor de tábuas e cruzou a monstruosa porta de entrada. Como era seu hábito, deteve-se por alguns momentos nos degraus, olhando para Molching, lá embaixo. Nessa tarde, a cidade estava coberta de uma neblina amarela, que afagava os telhados como se fossem animais de estimação e enchia as ruas feito um banho.
Ao chegar à Rua Munique, a menina que roubava livros desviou-se dos homens e mulheres de guarda-chuvas — uma garota de capa de chuva que abria caminho de uma lata de lixo para outra, sem a menor vergonha. Com a regularidade de um relógio.
— Achei!
Riu para as nuvens acobreadas, comemorando, antes de estender a mão e pegar o jornal mutilado. Embora a primeira e a última páginas estivessem riscadas de negras lágrimas de tinta, ela o dobrou ao meio com cuidado e o enfiou embaixo do braço. Tinha sido assim toda quinta-feira, nos últimos meses.
Agora, a quinta-feira era o único dia de entrega que restava a Liesel Meminger e, em geral, ele fornecia algum tipo de dividendo. Ela não conseguia empanar a sensação de vitória, toda vez que encontrava um Expresso de Molching, ou qualquer outra publicação. Achar um jornal era um bom dia. Se era um jornal em que não tinham feito as palavras cruzadas, era um grande dia. A menina voltava para casa, fechava a porta e o levava lá embaixo para Max Vandenburg.
— E as palavras cruzadas? — perguntava ele.
— Vazias.
— Excelente.
O judeu sorria ao aceitar o pacote de papel e começava a lê-lo, à luz racionada do porão. Muitas vezes, Liesel o observava concentrado na leitura do jornal, fazendo as palavras cruzadas e começando a relê-lo, de trás para frente.
Com o tempo mais quente, Max ficava no subsolo o tempo todo. Durante o  dia, a porta do porão ficava aberta, para que a pequena réstia de luz do corredor pudesse alcançá-lo. O corredor em si não era exatamente ensolarado, mas, em certas situações, a gente aceita o que consegue. A luz tristonha era melhor do que nenhuma, e eles precisavam ser frugais. O querosene ainda não se aproximara de um nível perigosamente baixo, mas era melhor reduzir seu uso ao mínimo.
Liesel costumava sentar-se em mantas de proteção. Ficava lendo enquanto Max terminava as palavras cruzadas. Sentavam-se a poucos metros de distância, falando muito raramente, e só havia mesmo o barulho das páginas virando. Muitas vezes, ela também deixava seus livros para Max ler, no horário em que ia à escola. Enquanto, em última instância, Hans Hubermann e Erik Vandenburg tinham-se unido pela música, Max e Liesel eram unidos pela reunião silenciosa de palavras.
— Oi, Max.
— Oi, Liesel,
Eles sentavam e liam.
Vez por outra, ela o observava. Decidiu que a melhor maneira de resumi-lo era como uma imagem de pálida concentração. Pele de tom bege. Um pântano em cada olho. E respirava feito um fugitivo. Desesperado, mas mudo. Só o peito é que o denunciava como um ser vivo.
Cada vez mais, Liesel fechava os olhos e pedia a Max que lhe fizesse perguntas sobre as palavras que ela errava continuamente, e xingava quando estas ainda lhe escapavam. Depois, punha-se de pé e pintava essas palavras na parede, em qualquer lugar, até doze vezes. Juntos, Max Vandenburg e Liesel Meminger aspiravam o odor de tinta e cimento.
— Tchau, Max.
— Tchau, Liesel.
Na cama, ela ficava acordada, a imaginá-lo lá embaixo no porão. Em suas visões noturnas, ele sempre estava inteiramente vestido, inclusive de sapatos, para o caso de precisar fugir de novo. Dormia com um olho aberto.

A METEOROLOGISTA: MEADOS DE MAIO

Liesel abriu a porta e a boca, simultaneamente.
Na Rua Himmel, seu time havia arrasado o de Rudy por 6 X 1 e, triunfante, ela irrompeu na cozinha, contando tudo à mãe e ao pai sobre o gol que havia marcado. Em seguida, desceu correndo ao porão para descrevê-lo passe a passe a Max, que baixou o jornal, ouviu atentamente e riu com a menina.
Concluída a história do gol, fez-se silêncio por uns bons minutos, até Max levantar lentamente os olhos.
— Quer fazer uma coisa para mim, Liesel?
Ainda empolgada com seu gol na Rua Himmel, a menina pulou das mantas de proteção. Não o disse, mas seu movimento deixou clara a sua intenção de fornecer exatamente o que ele quisesse.
— Você me contou tudo sobre o gol — disse Max — mas não sei que tipo de dia está fazendo lá em cima. Não sei se você fez o gol ao sol, ou se as nuvens cobriam tudo.
Passou a mão pelo cabelo à escovinha, e seus olhos alagadiços imploraram a mais simples das coisas:
— Você pode subir e me dizer como está o tempo?
Naturalmente, Liesel subiu a escada correndo. Parou perto da porta manchada de cuspe e se virou ali mesmo, observando o céu. Ao voltar para o porão, contou-lhe:
— Hoje o céu está azul, Max, e tem uma nuvem grande e comprida, espichada feito uma corda. Na ponta dela, o sol parece um buraco amarelo...
Naquele momento, Max soube que só uma criança seria capaz de lhe fornecer um boletim meteorológico desses. Na parede, pintou uma corda comprida e cheia de nós, com um sol amarelo e gotejante na ponta, como se fosse possível mergulhar dentro dele. Na nuvem encordoada, desenhou duas figuras — uma menina magra e um judeu murcho —, e os dois caminhavam, equilibrando os braços, em direção ao sol gotejante. Sob o desenho, Max escreveu esta frase:

• AS PALAVRAS DE MAX VANDENBURG •
ESCRITAS NA PAREDE
Era segunda-feira, e eles andavam
na corda bamba em direção ao sol.

 O BOXEADOR: FIM DE MAIO

Para Max Vandenburg, havia o cimento frio e muito tempo para passar com ele.
Os minutos eram cruéis.
As horas eram um castigo.
Erguendo-se sobre ele, em todos os momentos de vigília, havia a mão do tempo, que não hesitava em atormentá-lo. Sorria, apertava e o deixava viver. Que grande maldade podia haver em se deixar uma coisa viva!
Pelo menos uma vez por dia, Hans Hubermann descia a escada do porão e partilhava uma conversa. Vez por outra, Rosa levava uma sobra de crosta de pão. Mas era na hora que Liesel descia que Max tornava a se descobrir mais interessado na vida. A princípio, tentou resistir, mas foi ficando mais difícil a cada dia que a menina aparecia, sempre com um novo boletim meteorológico, fosse de céu azul puro e nuvens de papelão, fosse de um sol que havia irrompido como Deus empanzinado, sentando-se depois de ter comido demais no jantar.
Quando Max ficava só, sua sensação mais clara era a de estar desaparecendo. Todas as suas roupas eram cinzentas — houvessem ou não começado assim —, desde as calças até o suéter de lã e o paletó, que agora escorria dele feito água. O rapaz verificava com frequência se sua pele estava escamando, pois era como se ele estivesse em processo de dissolução.
O que precisava era de uma série de projetos novos. O primeiro foi o exercício. Ele começou pelas flexões, deitando de bruços no piso frio do porão e içando o corpo para cima. Seus braços pareciam estalar em cada cotovelo, e ele imaginou o coração a lhe escoar do corpo e cair pateticamente no chão. Quando adolescente, em Stuttgart, Max era capaz de fazer cinquenta flexões de cada vez. Agora, aos vinte e quatro anos e talvez uns sete quilos abaixo de seu peso normal, mal conseguia chegar a dez. Passada uma semana, já completava três conjuntos de dezesseis flexões e vinte e duas abdominais. Ao terminar, sentava-se encostado na parede do porão, com seus amigos feitos de latas de tinta, sentindo a pulsação nos dentes. Seus músculos pareciam uma crosta.
Às vezes ele se perguntava se valia mesmo a pena forçar-se daquela maneira. Noutras, porém, quando seus batimentos cardíacos se normalizavam e seu corpo voltava a ser funcional, ele apagava a lamparina e ficava de pé nas brumas do porão.
Max tinha vinte e quatro anos, mas ainda era capaz de fantasiar.
— No canto azul — comentava baixinho —, temos o campeão do mundo, a obra-prima ariana: o Führer.
Respirava fundo e se virava.
— E, no canto vermelho, temos o desafiante judeu com cara de rato: Max Vandenburg.
À sua volta, tudo se materializava.
A luz branca baixava sobre o ringue de boxe e a multidão se punha a murmurar — aquele som mágico de muitas pessoas, todas falando ao mesmo tempo. Como podiam as pessoas ter tanto a dizer ao mesmo tempo? O ringue em si era perfeito. Lona perfeita, cordas encantadoras. Até os fios soltos de cada corda grossa eram impecáveis, cintilando à luz branca e dura. O salão cheirava a cigarros e cerveja.
Na diagonal, Adolf Hitler postou-se num canto com seus auxiliares. Suas pernas protuberavam de um roupão vermelho e branco, com uma suástica negra gravada nas costas. O bigode era bordado em seu rosto. Algumas palavras lhe foram murmuradas por seu treinador, Goebbels. Ele saltitou de um pé para o outro e sorriu. Sorriu ainda mais quando o locutor do ringue listou suas muitas realizações, todas vociferantemente aplaudidas pela multidão adoradora.
— Invicto! — proclamou o mestre de cerimônias no ringue. — Contra muitos judeus e contra qualquer outra ameaça ao ideal alemão! Herr Führer, nós o saudamos! — concluiu. Na multidão: tumulto.
Em seguida, quando todos se haviam acalmado, veio o desafiante.
O apresentador virou-se para Max, sozinho no canto do desafiante. Nada de roupão. Nada de auxiliares. Apenas um jovem judeu solitário de respiração maculada, peito nu, pés e mãos cansados. Naturalmente, seu calção era cinza. Também ele se mexeu de um pé para o outro, mas o mínimo possível, para conservar a energia. Havia suado muito no ginásio para chegar ao peso certo.
— O desafiante! — disse o mestre de cerimônias. — De — e fez uma pausa, para dar mais efeito — sangue judaico.
A multidão apupou, como vampiros humanos.
— Pesando...
O resto da fala não se fez ouvir. Foi abafado pelos insultos da plateia, e Max viu seu adversário tirar o roupão e se encaminhar para o centro do ringue, para ouvir as regras e trocar um aperto de mãos.
— Guten Tag, Herr Hitler — disse Max, com um aceno de cabeça, mas o Führer apenas lhe mostrou os dentes amarelos, depois tornou a cobri-los com os lábios.
— Senhores — começou um árbitro robusto, de calças pretas e camisa azul. Uma gravata-borboleta grudava-se em sua garganta. — Em primeiro lugar, queremos uma luta boa e limpa — e se dirigiu ao Führer. — A menos, é claro, Herr Hitler, que o senhor comece a perder. Caso isso ocorra, estarei perfeitamente disposto a fechar os olhos para qualquer tática inescrupulosa que o senhor queira empregar para triturar na lona esse fedor e imundície judaicos — e baixou a cabeça, com grande cortesia. — Está claro?
O Führer disse então sua primeira palavra.
— Cristalino.
A Max o árbitro fez uma advertência:
— Quanto a você, meu amiguinho judeu, eu agiria com muita cautela, no seu lugar. Muita cautela mesmo — e os dois foram mandados de volta para seus respectivos cantos.
Seguiu-se um breve silêncio.
O gongo.
O primeiro a avançar foi o Führer, de pernas desajeitadas e ossudo, correndo para Max e dando-lhe um jabe firme no rosto. A multidão vibrou, com o gongo ainda soando em seus ouvidos, e seus sorrisos satisfeitos pularam as cordas. O hálito enfumaçado de Hitler saiu em vapor de sua boca, enquanto suas mãos esmurravam o rosto de Max, atingindo-o várias vezes, na boca, no nariz, no queixo — e Max ainda nem se arriscara a sair de seu canto. Para absorver o castigo, ele levantou as mãos, mas então o Führer mirou em suas costelas, seus rins, seus pulmões. Ah, os olhos, os olhos do Führer. Eram tão deliciosamente castanhos — como olhos de judeus — e tão determinados, que até Max ficou hipnotizado por um instante, ao avistá-los por entre o borrão saudável das luvas que batiam.
Houve apenas um assalto, que durou horas, e, em sua maior parte, nada mudou.
O Führer foi esmurrando o judeu saco de pancada.
Havia sangue judaico em toda parte.
Como nuvens vermelhas de chuva sobre a lona branco-celeste a seus pés.
Por fim, os joelhos de Max começaram a dobrar-se, suas maçãs do rosto gemeram em silêncio, e o rosto encantado do Führer continuou a triturar, triturar, até que, esgotado, surrado e alquebrado, o judeu desabou no chão.
Primeiro, um bramido. 
Depois, silêncio.
O árbitro contou. Tinha um dente de ouro e uma pletora de pêlos no nariz.
Aos poucos, Max Vandenburg, o judeu, pôs-se de pé e ficou ereto. Sua voz vacilou. Um convite. — Venha, Führer — disse, e, dessa vez, quando Adolf Hitler partiu para seu adversário judaico, Max se esquivou e o fez mergulhar no canto. Esmurrou-o várias vezes, sempre visando uma coisa só.
O bigode.
No sétimo soco, errou. Foi o queixo do Führer que recebeu o golpe. No mesmo instante, Hitler bateu nas cordas e vergou o corpo, arriando de joelhos. Dessa vez, não houve contagem. O árbitro encolheu-se num canto. A plateia desanimou-se, voltando para sua cerveja. De joelhos, o Führer verificou se estava sangrando e endireitou o cabelo, da direita para a esquerda. Quando se repôs de pé, para grande aprovação da multidão de milhares de pessoas, deu um passinho à frente e fez uma coisa muito estranha. Virou de costas para o judeu e tirou as luvas dos punhos.
O público ficou perplexo.
— Ele desistiu — murmurou alguém, mas, momentos depois, Adolf Hitler estava em pé nas cordas, dirigindo-se à plateia.
— Meus compatriotas — chamou — vocês estão vendo algo aqui esta noite, não é?
De peito à mostra e vitória no olhar, apontou para Max.
— Estão vendo que enfrentamos algo muito mais sinistro e poderoso do que jamais imaginamos. Vocês enxergam isso?
— Sim, Führer — veio a resposta.
— Percebem que esse inimigo encontrou maneiras, suas maneiras desprezíveis, de penetrar em nossa couraça, e que obviamente não posso ficar aqui e combatê-lo sozinho?
As palavras eram visíveis. Caíam de sua boca feito pedras preciosas.
— Olhem para ele! Dêem uma boa olhada! — e todos olharam. Para o ensanguentado Max Vandenburg. — Enquanto falamos, ele arquiteta planos para entrar em seu bairro. Muda-se para a casa ao lado. Infesta vocês com a família dele e está prestes a dominá-los. Ele — e Hitler o fitou por um instante, enojado — ele logo será dono de vocês, até ser ele a ficar não no balcão de sua mercearia, mas sentado nos fundos, fumando seu cachimbo. Quando menos esperarem, vocês estarão trabalhando para ele pelo salário mínimo, enquanto ele mal conseguirá andar, por causa do peso nos bolsos. Vocês vão ficar parados aí, simplesmente, e deixar que ele faça isso? Ficarão olhando, como fizeram seus líderes no passado, quando deram as terras de vocês a todo o mundo, quando venderam seu país por um punhado de assinaturas? Vocês vão ficar aí, impotentes? Ou — e, nesse momento, subiu para uma corda mais alta — entrarão aqui neste ringue comigo?
Max estremeceu. O horror gaguejou em seu estômago.
Adolf acabou com ele.
— Vão subir aqui, para podermos derrotar juntos esse inimigo?
No porão do número 33 da Rua Himmel, Max Vandenburg sentiu os punhos de uma nação inteira. Um por um, eles subiram no ringue e o espancaram. Fizeram-no sangrar. Deixaram que sofresse. Milhões deles — até que, pela última vez, quando juntou forças para ficar de pé...
Viu a pessoa seguinte atravessar as cordas. Era uma menina, e, quando ela cruzou devagar a lona, Max notou uma lágrima a lhe rasgar a face esquerda. Na mão direita havia um jornal.
— As palavras cruzadas — disse ela, delicadamente: — estão em branco — e estendeu o jornal a Max.
Escuridão.
Agora, nada além de escuridão.
Apenas porão. Apenas judeu.

O NOVO SONHO: ALGUMAS NOITES DEPOIS

Era de tarde. Liesel desceu a escada do porão. Max já fizera metade de suas flexões. Ela observou um pouco, sem que ele soubesse, e, quando se aproximou e sentou a seu lado, o rapaz se levantou e se encostou na parede.
— Já lhe contei — perguntou ele — que tenho tido um novo sonho, ultimamente?
Liesel mudou um pouco de posição, para ver o rosto de Max.
— Mas esse eu sonho quando estou acordado — e fez sinal para a lamparina de querosene sem brilho. — Às vezes, apago a luz. E então fico aqui e espero.
— O quê?
Max a corrigiu.
— Não o quê. Quem.
Por alguns instantes, Liesel ficou calada. Era uma daquelas conversas que precisam que um tempo se escoe entre um dito e outro.
— Quem você espera?
Max não se mexeu.
— O Führer — disse, em tom muito displicente. — É para isso que estou treinando.
— As flexões?
— Isso mesmo.
Andou até a escada de concreto.
— Toda noite, espero no escuro e o Führer desce essa escada. Vem até aqui, e ele e eu lutamos por horas.
Agora Liesel estava de pé.
— Quem ganha?
Primeiro, ele ia dizer que ninguém ganhava, mas então notou as latas de tinta, as mantas de proteção contra respingos e a pilha crescente de jornais na periferia de sua visão. Observou as palavras, a nuvem comprida e os desenhos na parede.
— Sou eu — disse.
Foi como se lhe tivesse aberto a palma da mão, posto as palavras dentro dela e tornado a fechá-la.
No subsolo, em Molching, na Alemanha, duas pessoas paradas conversavam num porão. Parece o começo de uma piada:
— Um judeu e uma alemã estão parados num porão, certo?...
Mas aquilo não era piada.

 OS PINTORES: COMEÇO DE JUNHO

Outro projeto de Max era o restante de Mein Kampf. Cada página era delicadamente arrancada do livro e estendida no chão, para receber uma camada de tinta. Depois, era pendurada para secar e reposta entre a primeira e a última capas. Um dia, quando desceu ao voltar da escola, Liesel encontrou Max, Rosa e o pai, todos pintando várias páginas. Muitas delas já estavam penduradas numa corda esticada, presas por pregadores, como devia ter acontecido com O Vigiador.
Os três levantaram os olhos e falaram.
— Oi, Liesel.
— Tome um pincel, Liesel.
— Já estava na hora, Saumensch. Onde foi que demorou tanto?
Ao começar a pintar, Liesel pensou em Max Vandenburg lutando com o Führer, exatamente como ele havia explicado.

• VISÕES DO PORÃO, JUNHO DE 1941 •
Desferem-se socos, a multidão salta das paredes.
Max e o Führer lutam pela vida, ambos recuando da escada.
Há sangue no bigode do Führer, assim como
no repartido do cabelo, do lado direito da cabeça.
— Venha, Führer — diz o judeu.
Faz sinal para que ele avance. — Venha, Führer.

Quando as visões se dissiparam e ela terminou a primeira página, o pai deu-lhe uma piscadela. A mãe a repreendeu por ter exagerado na tinta. Max examinou cada uma das páginas, talvez observando o que planejava produzir nelas. Passados muitos meses, também pintaria a capa do livro e lhe daria um novo título, baseado numa das histórias que escreveria e ilustraria nele.
Nessa tarde, no piso secreto abaixo do número 33 da Rua Himmel, os Hubermann, Liesel Meminger e Max Vandenburg prepararam as páginas de A Sacudidora de Palavras.
Era bom ser pintor.

A HORA DA VERDADE: 24 DE JUNHO

Então veio a sétima face do dado. Dois dias depois de a Alemanha invadir a Rússia. Três dias antes de a Grã-Bretanha e os soviéticos unirem forças.

Sete.
Você o joga e o vê chegando, e percebe com clareza que não se trata de um dado comum. Diz que foi azar, mas sabia o tempo todo que ele teria que vir. Você o introduziu na sala. A mesa farejou-o em seu hálito. O judeu projetava-se de seu bolso desde o começo. Sujou sua lapela e, no momento de jogar, você sabe que é um sete — a única coisa que, de algum modo, encontra um jeito de feri-lo. O dado cai. Fita você nos dois olhos, miraculoso e repugnante, e você desvia o olhar enquanto ele lhe devora o peito.
Um simples azar.
É o que você diz.
Sem a menor importância.
É nisso que você se faz acreditar — porque, no fundo, sabe que essa pequena mudança da sorte é um sinal das coisas que estão por vir. Você esconde um judeu. Você paga. De um modo ou de outro, tem que pagar.

Olhando para trás, Liesel disse a si mesma que não foi tão importante assim. Talvez tenha sido porque aconteceram muitas outras coisas na época em que ela escreveu sua história no porão. No esquema geral das coisas, ela ponderou que o fato de Rosa ser despedida pelo prefeito e sua mulher não teve nada de azar. Não teve nada a ver com esconder judeus. Teve tudo a ver com o contexto maior da guerra. Na época, entretanto, decididamente houve uma sensação de castigo.

O começo, na verdade, foi cerca de uma semana antes de 24 de junho. Liesel catou um jornal para Max Vandenburg, como sempre fazia. Vasculhou uma lata de lixo pertinho da Rua Munique e o enfiou embaixo do braço. Depois que o entregou a Max e ele iniciou sua primeira leitura, o rapaz a olhou e apontou para uma fotografia na primeira página.
— Não é para esse que você entrega a roupa lavada e passada?
Liesel afastou-se da parede. Estivera escrevendo seis vezes a palavra argumento, ao lado do desenho que Max fizera da nuvem encordoada e do sol gotejante. Max entregou-lhe o jornal e a menina confirmou.
— É ele.
Quando ela leu o artigo, o texto informava que Heinz Hermann, o prefeito, tinha dito que, embora a guerra estivesse progredindo esplendidamente, o povo de Molching, como todos os alemães responsáveis, devia tomar providências adequadas e se preparar para a possibilidade de tempos mais difíceis. "Nunca se sabe", declarou ele, "o que nossos inimigos estão pensando, ou como tentarão nos debilitar."
Uma semana depois, as palavras do prefeito frutificaram de forma execrável. Como sempre fazia, Liesel apareceu na Grande Strasse e leu O Assobiador no chão da biblioteca do prefeito. A mulher do prefeito não deu nenhum sinal de anormalidade (ou, sejamos francos, nenhum sinal a mais), até a hora da partida.
Dessa vez, ao oferecer O Assobiador a Liesel, insistiu em que a menina o aceitasse.
— Por favor.
Quase implorou. O livro era segurado por um punho apertado, comedido.
— Leve-o. Por favor, leve-o.
Comovida pela estranheza da mulher, Liesel não suportou decepcioná-la mais uma vez. O livro de capa cinza e páginas amareladas passou para sua mão, e ela começou a percorrer o corredor. Quando estava prestes a perguntar pela roupa suja, a mulher do prefeito deu-lhe um último olhar de arrependimento envolto em roupão. Abriu uma gaveta da cômoda e tirou um envelope. Sua voz, encaroçada pela falta de uso, tossiu as palavras.
— Sinto muito. É para a sua mamãe.
Liesel parou de respirar.
Súbito, percebeu a sensação de vazio em seus pés, dentro das meias. Alguma coisa expôs sua garganta ao ridículo. Ela tremeu. Quando enfim estendeu a mão e apossou da carta, notou o som do relógio da biblioteca. Sombriamente, apercebeu de que os relógios nem de longe produziam um som que se assemelhasse a um tique-taque. Era mais um som de martelo invertido, batendo metodicamente na terra. Um som de sepultura. Ah, se a minha estivesse pronta agora!, pensou — porque, nesse momento, Liesel Meminger teve vontade de morrer. Quando os outros haviam cancelado o serviço, não tinha doído tanto. Ainda restavam o prefeito, sua biblioteca e ligação de Liesel com a mulher dele. Além disso, esse era o último freguês, a última esperança, acabada. Dessa vez, a sensação foi a da pior das traições.
Como é que ela iria enfrentar a mãe?
Para Rosa, aqueles poucos retalhos de dinheiro ainda haviam ajudado em vários apertos. Um punhado a mais de farinha. Um pedaço de gordura.
Agora, a própria Ilsa Hermann morria... de vontade de se livrar dela. Liesel sentiu isso em algum lugar, no modo como a mulher apertou um pouco mais o roupão. O acanhamento do pesar ainda a mantinha a uma pequena distância, mas estava claro que ela queria acabar com aquilo.
— Diga a sua mamãe — tornou a falar. Agora sua voz se adaptava, à medida que uma frase se transformava em duas — que nós lamentamos.
E começou a conduzir a menina até a porta.
Foi quando Liesel a sentiu nos ombros. A dor, o impacto da rejeição final.
É assim?, perguntou-se, internamente. A senhora só me dá um pontapé?
Com vagar, pegou o saco vazio e andou lentamente para a porta. Do lado de fora, virou-se e fitou a mulher do prefeito pela penúltima vez naquele dia. Olhou-a nos olhos, com um jeito quase selvagem de orgulho.
— Danke schön — disse, e Ilsa Hermann deu-lhe um sorriso inútil, desolado.
— Se um dia você quiser vir aqui só para ler — mentiu a mulher (ou, pelo menos em seu estado de choque e tristeza, a menina o percebeu como uma mentira) —, será muito bem-vinda.
Nesse momento, Liesel admirou-se com a largura do vão da porta. Um espaço enorme me. Por que as pessoas precisavam de tanto espaço para cruzar uma porta? Se Rudy estivesse ali, tê-la-ia chamado de idiota — era para levar todas as coisas deles para dentro.
— Adeus — disse a menina, e devagar, com grande tristeza, a porta se fechou.

Liesel não foi embora.

• • •

Durante muito tempo, sentou-se num degrau da escada e observou Molching. Não fazia calor nem frio, e a cidade estava límpida e imóvel. Molching jazia dentro de um frasco.
A menina abriu a carta. Nela, o prefeito Heinz Hermann resumia, em termos diplomáticos, a razão exata por que tinha de dispensar os serviços de Rosa Hubermann. Basicamente, explicou que ele seria hipócrita se mantivesse seus próprios pequenos luxos, enquanto aconselhava os outros a se prepararem para tempos mais difíceis.
Quando enfim Liesel se levantou e foi andando para casa, seu momento de reação veio mais uma vez, ao ver a tabuleta STEINER - SCHNEIDERMEISTER na Rua Munique. A tristeza a abandonou e ela foi tomada de raiva.
— Aquele prefeito patife — resmungou. — Aquela mulher patética.
A aproximação de tempos difíceis era, com certeza, a melhor razão para manter Rosa empregada, mas não, eles a haviam despedido. De qualquer modo, decidiu Liesel, eles que lavassem e passassem a porcaria da sua roupa, feito as pessoas normais. Feito os pobres.
Em sua mão, O Assobiador ficou mais apertado.
— Quer dizer que a senhora me dá o livro — disse a menina — por pena, para se sentir melhor...
O fato de o livro também ter-lhe sido oferecido antes tinha pouca importância.
Ela fez meia-volta, como já acontecera uma vez, e marchou para o número 8 da Grande Strasse. A tentação de correr era imensa, mas Liesel se conteve, para ter bastante fôlego de reserva para as palavras.
Quando chegou, decepcionou-se com o fato de o próprio prefeito não estar em casa. Não havia um carro cuidadosamente estacionado no acostamento, o que talvez tenha sido bom. Se estivesse ali, não há como dizer o que Liesel teria feito com ele, nesse momento de ricos contra pobres.
Dois degraus de cada vez, ela chegou à porta e bateu com tanta força que chegou a doer. E gostou dos pequenos fragmentos de dor.
É evidente que a mulher do prefeito ficou chocada ao revê-la. Seu cabelo fofo estava ligeiramente molhado e suas rugas se alargaram, quando ela notou a fúria óbvia no rosto comumente pálido de Liesel. Ilsa Hermann abriu a boca, porém não saiu nada, o que foi conveniente, na verdade, porque a fala era de Liesel.
— A senhora acha que pode me comprar com este livro? — disse a menina. Sua voz, embora abalada, agarrou-se ao pescoço da mulher. A raiva cintilante era espessa e desanimadora, mas Liesel batalhou. Agitou-se ainda mais, a ponto de precisar enxugar as lágrimas dos olhos.
— A senhora me dá essa Saumensch de livro e acha que ficará tudo bem, quando eu disser a minha mãe que acabamos de perder nossa última freguesa? Enquanto a senhora fica aqui sentada na sua mansão?
Os braços da mulher do prefeito.
Penderam.
Seu rosto despencou.
Mas Liesel não se curvou. Borrifou as palavras diretamente nos olhos da mulher.
— A senhora e seu marido. Sentados aqui no alto.
Nessa hora, tornou-se vingativa. Mais vingativa e perversa do que se imaginava capaz.
A ofensa das palavras.
Sim, a brutalidade das palavras.
Ela as pegou de algum lugar que só nesse momento reconheceu e atirou-as em Ilsa Hermann.
— Já está mesmo na hora — informou-a — de a senhora lavar a porcaria da sua roupa. Está na hora de enfrentar o fato de que o seu filho está morto. Ele morreu! Foi estrangulado e retalhado há mais de vinte anos! Ou será que morreu congelado? De qualquer jeito, ele está morto! Está morto e é ridículo a senhora ficar aqui sentada, tremendo dentro de casa, para sofrer por causa disso. A senhora pensa que é a única?

Imediatamente.
O irmão postou-se ao lado dela.
Sussurrou para que Liesel parasse, mas também ele estava morto, e não valia a pena dar-lhe ouvidos.
Ele morreu num trem.
Foi enterrado na neve.

Liesel deu-lhe uma olhadela, mas não conseguiu fazer-se parar. Ainda não.
— Este livro — continuou. Empurrou o menino escada abaixo, fazendo-o cair. — Não o quero.
As palavras estavam mais baixas, mas ainda acaloradas como antes. Liesel atirou O Assobiador nos pés da mulher, metidos em chinelas, e ouviu seu baque quando ele bateu no cimento.
— Não quero o infeliz do seu livro...
E então conseguiu. Calou-se.
Agora, tinha a garganta estéril. Sem nenhuma palavra em quilômetros.
Seu irmão, segurando o joelho, desapareceu.
Após uma pausa abortada, a mulher do prefeito deu um passinho à frente e apanhou o livro. Estava machucada e abatida, e não por sorrir, dessa vez. Liesel pôde vê-lo em seu rosto. Havia sangue a lhe escorrer do nariz e lhe empastar os lábios. Seus olhos tinham-se arroxeado. Cortes se abriram e uma série de ferimentos aflorou à superfície da pele. Tudo por causa das palavras. Das palavras de Liesel.
De livro na mão e levantando do agachamento para uma postura encurvada, Ilsa Hermann reiniciou o processo de pedir desculpas, mas a frase não conseguiu sair.
Bata-me, pensou Liesel. Ande, me dê uma bofetada.
Ilsa Hermann não a esbofeteou. Meramente recuou para o ar pesado de sua linda casa, e Liesel, mais uma vez, ficou sozinha, agarrada aos degraus. Sentiu medo de se virar, porque sabia que, quando o fizesse, a redoma de Molching estaria estilhaçada, e ela se alegraria com isso.
Como sua última tarefa, ela leu a carta mais uma vez e, ao chegar perto do portão, amassou-a com toda a força que tinha e a atirou na porta, como se fosse uma pedra. Não faço ideia do que esperava a menina que roubava livros, mas a bola de papel atingiu a sólida folha de madeira e voltou tremelicando escada abaixo. Parou a seus pés.
— É típico — disse Liesel, chutando-a na grama. — Inútil.
A caminho de casa, dessa vez, imaginou o destino daquele papel na próxima chuva, quando a estufa remendada de Molching virasse de pernas para o ar. Já podia ver as palavras se dissolvendo, letra a letra, até não sobrar mais nada. Só papel. Apenas terra.

Em casa, quis a sorte que, quando Liesel cruzou a porta, Rosa estivesse na cozinha.
— E então? — perguntou. — Onde está a roupa?
— Hoje não tem roupa — disse Liesel.
Rosa foi sentar-se à mesa da cozinha. Ela sabia. De repente, pareceu muito mais velha. Liesel imaginou que aparência teria se soltasse o coque e deixasse o cabelo cair sobre os ombros. Uma toalha cinzenta de cabelo elástico.
— Que foi que você fez lá, sua Saumenschzinha?
A frase soou desanimada. Rosa não conseguiu temperá-la com o veneno habitual.
— Foi minha culpa — respondeu Liesel. — Completamente. Insultei a mulher do prefeito e mandei ela parar de chorar o filho morto. Chamei-a de ridícula. Foi nessa hora que eles despediram você. Tome — acrescentou. Dirigiu-se às colheres de pau, pegou um punhado delas e as colocou diante de Rosa. — É só escolher.
Rosa pegou uma delas, mas não a brandiu.
— Não acredito em você.
Liesel sentiu-se dilacerar entre a aflição e a completa perplexidade. Na única vez em que queria desesperadamente uma Watschen, não a conseguia!
— A culpa é minha.
— Não é sua culpa — disse a mãe, que até se levantou e afagou o cabelo lustroso e sem lavar de Liesel. — Sei que você não diria essas coisas.
— Mas eu disse!
— Está bem, você disse.
Ao sair da cozinha, Liesel ouviu as colheres de pau clicarem de volta no lugar, no pote de metal que as guardava. Quando chegou ao quarto, o lote inteiro, inclusive o pote, foi atirado no chão.

Mais tarde, ela desceu ao porão, onde Max estava de pé no escuro, provavelmente boxeando com o Führer.
— Max?
A luz aumentou um pouco — uma moeda vermelha flutuando no canto.
— Pode me ensinar a fazer flexões?
Max mostrou-lhe como era e, em alguns momentos, levantou o tronco de Liesel para ajudar, mas, apesar da aparência ossuda, ela era forte e sustentava bem o peso do corpo. Não contou quantas conseguiu fazer, mas, naquela noite, na luz pálida de porão, a roubadora de livros fez flexões suficientes para ficar dolorida por vários dias. Mesmo quando Max lhe avisou que ela já fizera demais, a menina continuou.

Na cama, leu com o pai, que percebeu haver algo errado. Era a primeira vez que se sentava com ela em um mês, e isso a consolou, nem que fosse um tantinho. De algum modo, Hans Hubermann sempre sabia o que dizer, quando ficar e quando deixá-la sozinha. Talvez Liesel fosse a única coisa em que ele era realmente perito.
— Foi a roupa para lavar? — perguntou Hans.
Liesel balançou a cabeça.
Fazia alguns dias que o pai não se barbeava, e a cada dois ou três minutos esfregava os pêlos prudentes. Seus olhos de prata estavam foscos e calmos, levemente calorosos, como sempre ficavam quando se tratava de Liesel.
Terminada a leitura, o pai adormeceu. Foi então que Liesel falou o que tivera vontade de dizer o tempo todo.
— Papai — murmurou —, acho que eu vou para o inferno.
As pernas dela estavam quentes. Os joelhos, frios.
Ela se lembrou das noites em que havia urinado na cama e o pai lavara os lençóis e lhe ensinara as letras do alfabeto. Agora, a respiração dele soprava o cobertor e a menina beijou-lhe o rosto que arranhava.
— Você precisa fazer a barba — disse-lhe.
— E você não vai para o inferno — respondeu o pai.
Por alguns momentos, ela observou seu rosto. Depois, tornou a se deitar, encostou-se nele e, juntos, os dois dormiram, bem nos arredores de Munique, mas em algum ponto da sétima face do dado da Alemanha.

A JUVENTUDE DE RUDY

No fim, ela teve que dar a mão à palmatória.
Ele sabia representar.

• RETRATO DE RUDY STEINER: •
JULHO DE 1941
Fios de lama grudam-se em seu rosto.
Sua gravata é um pêndulo, morto há muito no relógio.
Seu cabelo cor de limão, iluminado pela lamparina,
é desgrenhado, e ele exibe um absurdo sorriso tristonho.

O menino parou a alguns metros do degrau e falou com grande convicção, grande alegria.
— Alies ist Scheisse — anunciou.
É tudo uma merda.

No primeiro semestre de 1941, enquanto Liesel tratava de esconder Max Vandenburg, furtar jornais e desancar mulheres de prefeitos, Rudy suportava sua própria vida nova na Juventude Hitlerista. Desde o começo de fevereiro, voltava das reuniões em estado consideravelmente pior do que havia entrado. Em muitos desses trajetos de volta, Tommy Müller vinha a seu lado, nas mesmas condições. O problema tinha três componentes.

• UM PROBLEMA TRÍPLICE •
1. Os ouvidos de Tommy Müller.
2. Franz Deutscher, o irado guia da Juventude Hitlerista.
3. A incapacidade de Rudy de ficar fora das confusões.

Ah, se Tommy Müller não tivesse sumido por sete horas num dos dias mais frios da história de Munique, seis anos antes! Suas infecções auditivas e sua lesão no nervo continuavam a deturpar o padrão de marcha da Juventude Hitlerista, o que, posso lhe assegurar, não era uma coisa positiva.
A princípio, o declínio do entusiasmo foi gradativo, mas, com o correr dos meses, Tommy passou a colher sistematicamente a ira dos guias da Juventude Hitlerista, especialmente quando se tratava de marchar. Lembra-se do aniversário de Hitler no ano anterior? Por algum tempo, as infecções no ouvido pioraram. Chegaram a um ponto em que Tommy ficou com autênticos problemas auditivos. Não conseguia entender os comandos gritados para o grupo, ao marchar enfileirado. Não fazia diferença se era no salão ou ao ar livre, na neve ou na lama, ou sob a fustigação da chuva.
O objetivo era sempre o de todos fazerem alto ao mesmo tempo.
— Um único clique! — diziam-lhes. — E só isso que o Führer quer ouvir. Todos unidos. Todos juntos, como um só!
E Tommy.
Era seu ouvido esquerdo, eu acho. Esse era o mais problemático dos dois e, quando o grito penetrante de "Alto!" feria os ouvidos de todos os demais, Tommy continuava a marchar, cômica e desatentamente. Era capaz de transformar uma fileira em marcha numa barafunda, num piscar de olhos.
Em determinado sábado, no começo de julho, pouco depois das três e meia e de uma sucessão de tentativas fracassadas de marchar, inspiradas em Tommy, Franz Deutscher (o supremo sobrenome para o supremo adolescente nazista) perdeu completamente a paciência.
— Müller, du Affe!— gritou. Sua densa cabeleira loura massageava-lhe a cabeça, enquanto suas palavras manipulavam o rosto de Tommy. — Seu macaco, qual é o seu problema?
Tommy encurvou-se, temeroso, mas sua bochecha esquerda ainda conseguiu repuxar-se numa contorção maníaca e animada. Ele parecia não apenas rir um risinho triunfal de chacota, como aceitar o carão com alegria. E Franz Deutscher não estava disposto a nada daquilo. Seus olhos pálidos estraçalharam Tommy.
— Bem? — perguntou. — O que você tem a dizer a seu favor?
O tique de Tommy só fez aumentar, em rapidez e profundidade.
— Está zombando de mim?
— Heil — contorceu-se Tommy, numa tentativa desesperada de obter aprovação, mas não conseguiu chegar ao "Hitler".
Foi então que Rudy se adiantou. Enfrentou Franz Deutscher, erguendo os olhos para ele.
— Ele tem um problema, senhor...
— Isso eu estou vendo!
— ...nos ouvidos — concluiu Rudy. — Ele não...
— Está bem, já chega — fez Deutscher, esfregando as mãos. — Vocês dois: seis voltas no campo.
Eles obedeceram, mas não com rapidez suficiente.
— Schnell! — perseguiu-os a voz de Deutscher.
Completadas as seis voltas, os dois receberam ordens de fazer uma série de exercícios, do tipo correr, agachar, levantar e agachar de novo e, após quinze longuíssimos minutos, ouviram a ordem de ir para o chão, pelo que deveria ser a última vez.
Rudy olhou para baixo.
Um círculo torto de lama lhe sorriu.
Para que é que está olhando?, parecia perguntar.
— No chão! — ordenou Franz.
Naturalmente, Rudy saltou por cima dela e caiu de bruços.
— De pé! — sorriu Franz. — Um passo atrás — e obedeceram. — No chão!
Agora a mensagem estava clara, e Rudy a aceitou. Mergulhou na lama e prendeu, respiração e, nesse momento, com a orelha na terra encharcada, o exercício acabou.
— Vielen Dank, meine Herren — disse Franz Deutscher, polidamente. Muito obrigado, meus senhores.
Rudy pôs-se de joelhos, escavacou um pouco a orelha e olhou para Tommy.
Tommy fechou os olhos e careteou.

Quando os dois voltaram para a Rua Himmel nesse dia, Liesel pulava amarelinha com algumas crianças menores, ainda usando seu uniforme da BDM. Pelo canto do olho, ela viu as duas figuras melancólicas andando em sua direção. Uma delas a chamou.
Encontraram-se na escada da frente da casa dos Steiner, aquela caixa de sapatos de concreto, e Rudy lhe contou tudo sobre o episódio do dia.
Após dez minutos, Liesel sentou-se.
Após onze minutos, sentado ao lado dela, Tommy disse:
— Foi tudo culpa minha — mas Rudy descartou-o com um gesto, num ponto qualquer entre a frase e o sorriso, cortando pela metade uma tira de lama. — Foi mi... — tentou Tommy outra vez, mas Rudy interrompeu a frase por completo e lhe apontou um dedo.
— Tommy, por favor.
Havia uma expressão peculiar de contentamento no rosto de Rudy. Liesel nunca tinha visto ninguém tão infeliz, mas tão completamente vivo.
— Fique sentadinho aí e... faça uma careta ou qualquer coisa — e continuou a história.
Andou de um lado para outro.
Brigou com a gravata.
As palavras foram lançadas em Liesel, caindo em algum ponto do degrau de concreto.
— Aquele tal de Deutscher — resumiu, animado. — Ele nos pegou, hein. Tommy?
Tommy assentiu com a cabeça, fez outro espasmo e falou, não necessariamente nessa ordem:
— Foi por minha causa.
— Tommy, que foi que eu disse?
— Quando?
— Agora! Fique quieto.
— É claro, Rudy.

Quando Tommy voltou sorumbático para casa, um pouco depois, Rudy experimentou o que parecia ser uma nova tática magistral.
A piedade.
Na escada, investigou a lama que secara como uma crosta sobre o uniforme e lançou um olhar desamparado a Liesel.
— Que tal, Saumensch?
— Que tal o quê?
— Você sabe...
Liesel reagiu da maneira usual.
— Saukerl — riu, e percorreu o pequeno trajeto para casa. Uma mescla desconcertante de lama e piedade era uma coisa, mas beijar Rudy Steiner era outra, inteiramente diferente.
Com um sorriso tristonho na escada, ele gritou para a menina, enfiando a mão pelo cabelo:
— Um dia — alertou-a. — Um dia, Liesel!

No porão, pouco mais de dois anos depois, às vezes Liesel doía de vontade de ir à casa ao lado e vê-lo, mesmo quando escrevia nas primeiras horas da madrugada. Também se deu conta de que, provavelmente, aqueles dias encharcados na Juventude Hitlerista é que haviam alimentado o desejo de cometer crimes de Rudy e, posteriormente, o dela.
Por fim, a despeito das chuvaradas de praxe, o verão começou a chegar como convinha. As maçãs Klar deviam estar amadurecendo. Havia mais furtos a praticar.

OS AZARADOS

Em matéria de furto, Liesel e Rudy encasquetaram primeiro a ideia de que a segurança estava na quantidade. Andy Schmeikl os convidou para uma reunião à margem do rio. Entre outras coisas, estaria em pauta uma estratégia para roubar frutas.
— Quer dizer que, agora, é você o chefe? — perguntou Rudy, mas Andy abanou a cabeça, carregado de decepção. Estava claro que gostaria de ter cacife para isso.
— Não — disse, e sua voz fria tinha um calor inusitado. Mal pensado. — Há uma outra pessoa.

• O NOVO ARTHUR BERG •
Ele tinha cabelos esvoaçantes e olhos enevoados,
e era o tipo de delinquente que
não tinha outra razão para roubar,
exceto o fato de que gostava disso.
Seu nome era Viktor Chemmel.

Ao contrário da maioria das pessoas dedicadas às várias artes da ladroagem, Viktor Chemmel tinha tudo. Morava na melhor parte de Molching, no alto, numa mansão que fora fumigada depois de os judeus serem expulsos. Tinha dinheiro. Tinha cigarros. Porém, o que queria era mais.
— Não é crime querer um pouquinho mais — afirmava, deitado de costas na grama, com uma patota de meninos a seu redor. — Querer mais é nosso direito fundamental, como alemães. Que diz o nosso Führer? — perguntava, e respondia a sua própria retórica: — Devemos tomar o que é nosso por direito.
À primeira vista, Viktor Chemmel era, claramente, o típico adolescente cheio de conversa fiada. Infelizmente, quando se dispunha a revelá-lo, possuía também um certo carisma, uma espécie de siga-me.
Quando Liesel e Rudy se aproximaram do grupo à margem do rio, ela o ouviu fazer outra pergunta:
— E onde estão os dois desviantes de que você anda se gabando? Já são quatro e dez.
— Não no meu relógio — respondeu Rudy.
Viktor Chemmel apoiou-se num dos cotovelos.
— Você não está de relógio.
— Eu estaria aqui, se fosse rico o bastante pra ter um relógio?
O novo chefe acabou de sentar-se e sorriu, com uma fileira de dentes brancos. Em seguida, voltou seu foco displicente para a menina.
— E quem é a putinha?
Muito acostumada aos insultos verbais, Liesel apenas observou a textura nublada dos olhos de Viktor.
— Ano passado — listou ela — roubei pelo menos trezentas maçãs e dezenas de batatas. Não tenho dificuldade com cercas de arame farpado e posso ficar à altura de qualquer um aqui.
— É mesmo?
— É.
Ela não se encolheu nem se afastou.
— Só peço uma pequena parte do que pegarmos. Uma dúzia de maçãs aqui ou ali. Umas sobras para mim e meu amigo.
— Bem, acho que isso pode se arranjar — disse Viktor. Acendeu um cigarro e o levou à boca. Fez um esforço deliberado para soprar a tragada seguinte no rosto de Liesel.
Ela não tossiu.

Era o mesmo grupo do ano anterior, com a única exceção do chefe. Liesel se perguntou por que nenhum dos outros meninos havia assumido o comando, mas, olhando de um rosto para outro, percebeu que nenhum deles levava jeito. Eles não tinham escrúpulos de roubar, mas precisavam ser mandados. Gostavam de ser mandados, e Viktor Chemmel gostava de mandar. Era um belo microcosmo.
Por um momento, Liesel ansiou pelo ressurgimento de Arthur Berg. Ou será que também ele se submeteria à liderança de Chemmel? Não tinha importância. Liesel só sabia é que não havia um único osso tirânico no corpo de Arthur Berg, ao passo que o novo chefe tinha centenas deles. No ano anterior, ela soubera que, se ficasse presa numa árvore, Arthur voltaria para buscá-la, mesmo dizendo que não. Nesse ano, em comparação, soube instantaneamente que Viktor Chemmel nem se incomodaria em olhar para trás.
Chemmel ficou ali, olhando para o menino desengonçado e a menina de aparência desnutrida.
— Quer dizer que vocês querem roubar comigo?
Que tinham a perder? Fizeram que sim.
Ele chegou mais perto e segurou o cabelo de Rudy:
— Eu quero ouvir.
— Decididamente — disse Rudy, antes de ser empurrado de volta pela franja.
— E você?
— É claro.
Liesel foi rápida o bastante para evitar o mesmo tratamento.
Viktor sorriu. Pisoteou o cigarro, respirou fundo e coçou o peito.
— Meus senhores, minha cadela, parece que é hora de irmos às compras.
Quando o grupo saiu andando, Liesel e Rudy ficaram para trás, como sempre tinham feito no passado.
— Você gostou dele? — murmurou Rudy.
— E você?
Rudy fez uma breve pausa.
— Acho que ele é um perfeito cretino.
— Eu também.
O grupo já se afastava.
— Vamos — disse Rudy. — Estamos ficando para trás.

Após alguns quilômetros, chegaram à primeira fazenda. O que os recebeu foi um choque. As árvores, que eles haviam imaginado carregadas de frutas, eram frágeis e tinham uma aparência machucada, apenas com um punhadinho de maçãs miseráveis pendendo de cada galho. A fazenda seguinte foi a mesma coisa. Talvez fosse uma estação ruim, ou eles não tivessem acertado o momento.
No fim da tarde, ao ser distribuído o produto do roubo, Liesel e Rudy receberam uma maçã diminuta para dividir. Com toda a justiça, os lucros tinham sido incrivelmente precários, mas Viktor Chemmel também tinha a mão mais fechada.
— Que nome eu dou a isso? — perguntou Rudy, com a maçã pousada na palma da mão.
Viktor nem se virou.
— O que lhe parece?
As palavras foram jogadas por cima do ombro.
— Uma porcaria de maçã?
— Tome — e outra maçã, parcialmente comida, também foi jogada na direção deles, caindo na terra com a parte comida para baixo. — Vocês também podem ficar com essa.
Rudy enfureceu-se.
— Pro diabo com isso! Não andamos quinze quilômetros por uma maçã esquelética e meia, não é, Liesel?
Liesel não respondeu.
Não teve tempo, porque Viktor Chemmel montou em Rudy antes que ela conseguisse proferir uma palavra. Seus joelhos imobilizaram os braços do menino e ele lhe pôs as mãos no pescoço. As maçãs foram catadas por ninguém menos do que Andy Schmeikl, a pedido de Viktor.
— Você está machucando ele — disse Liesel.
— Estou? — e Viktor voltou a sorrir.
Ela odiava aquele sorriso.
— Ele não está me machucando — precipitaram-se as palavras de Rudy, cujo rosto se avermelhava com o esforço. Seu nariz começou a sangrar.
Após um ou dois instantes de aumento da pressão, Viktor o soltou e saiu de cima dele, dando alguns passos descuidados.
— Levante, garoto — disse, e Rudy, fazendo a opção sensata, obedeceu.
Viktor aproximou-se de novo, com displicência, e o encarou. Deu-lhe uma esfregada de leve no braço. E um sussurro:
— A não ser que queira que eu transforme esse sangue numa fonte, sugiro que você vá embora, garotinho.
Olhou para Liesel:
— E leve a putinha com você.
Ninguém se mexeu.
— Bom, o que estão esperando?
Liesel pegou a mão de Rudy e os dois se foram, não sem que Rudy se virasse pela última vez e cuspisse sangue e saliva nos pés de Viktor Chemmel. O que provocou um último comentário.

• UMA PEQUENA AMEAÇA DE •
VIKTOR CHEMMEL A RUDY STEINER
— Você pagará por isso depois, meu amigo.

Digam o que disserem de Viktor Chemmel, ele com certeza tinha paciência e boa memória. Levou aproximadamente cinco meses para transformar sua afirmação em realidade.

DESENHOS

Se o verão de 1941 estava erigindo muros ao redor de gente como Rudy e Liesel, ele se escreveu e se pintou na vida de Max Vandenburg. Em seus momentos mais solitários no porão, as palavras começaram a se amontoar a seu redor. As visões começaram a jorrar e cair e, vez por outra, a sair coxeando de suas mãos.
Max dispunha do que chamava de apenas uma raçãozinha de instrumentos:
Um livro pintado
Um punhado de lápis.
Uma cabeça cheia de ideias.
Como um simples quebra-cabeça, juntou-as.

Originalmente, Max havia pretendido escrever sua história.
A ideia era escrever sobre tudo que lhe acontecera — tudo que o tinha levado a um porão na Rua Himmel —, mas não foi isso que saiu. O exílio de Max produziu algo inteiramente diverso. Era uma coleção de ideias ao acaso, e ele escolheu abraçá-las. Soavam verdadeiras. Eram mais reais do que as cartas que ele escrevia aos familiares e a seu amigo Walter Kugler, sabendo perfeitamente que nunca poderia enviá-las. As páginas profanadas de Mein Kampf foram-se transformando numa série de desenhos, página após página, que resumiam, para ele, os acontecimentos que haviam trocado sua vida anterior por outra. Alguns levaram minutos. Outros, horas. Ele resolveu que, quando terminasse o livro, iria dá-lo a Liesel, quando ela tivesse idade suficiente e quando, ao que Max esperava, todo aquele absurdo houvesse acabado.
A partir do momento em que testou os lápis na primeira página pintada, o judeu manteve o livro permanentemente fechado. Muitas vezes, ele ficava junto de Max, ou ainda em suas mãos quando o rapaz dormia.
Uma tarde, depois das flexões e abdominais, ele adormeceu, encostado na parede do porão. Quando Liesel desceu, encontrou o livro pousado ao lado dele, inclinado sobre sua coxa esquerda, e foi vencida pela curiosidade. Inclinou-se e o pegou, esperando que Max se mexesse. Não se mexeu. Estava sentado com a cabeça e os ombros encostados na parede. Liesel mal pôde discernir o som de sua respiração, deslizando para dentro e para fora dele, quando abriu o livro e vislumbrou algumas páginas ao acaso...



•••

Assustada com o que viu, Liesel repôs o livro no lugar, exatamente como o encontrara, encostado na perna de Max. Uma voz a assustou.
— Danke schön — disse a voz, e, quando a menina olhou, seguindo o rastro do som até seu dono, havia um pequeno toque de satisfação nos lábios do judeu.
— Nossa! — arquejou a menina. — Você me assustou, Max.
Ele voltou a dormir e, ao subir a escada, Liesel arrastou consigo a mesma ideia.
Você me assustou, Max.

O ASSOBIADOR E OS SAPATOS

O mesmo padrão se manteve até o fim do verão e em boa parte do outono. Rudy fez o melhor que pôde para sobreviver à Juventude Hitlerista. Max fez flexões e desenhos. Liesel encontrou jornais e escreveu palavras na parede do porão.
Também vale a pena mencionar que todo padrão tem ao menos um pequeno viés, que um dia se inclina ou cai de uma página para outra. Nesse caso, o fator dominante foi Rudy. Ou, pelo menos, Rudy e um campo de esportes recém-adubado.
No fim de outubro, tudo parecia o de praxe. Um menino imundo descia a Rua Himmel. Em poucos minutos, a família aguardaria a sua chegada e ele mentiria, dizendo que todos em sua divisão da Juventude Hitlerista tinham feito exercícios extras no campo. Seus pais até esperariam algumas risadas. Que não viriam.
Nesse dia, Rudy havia esgotado inteiramente os risos e mentiras.

Nessa exata quarta-feira, ao olhar mais de perto, Liesel percebeu que Rudy Steiner estava sem camisa. E furioso.
— Que aconteceu? — perguntou-lhe, quando ele passou se arrastando.
Rudy retrocedeu e lhe estendeu a camisa.
— Cheire — disse.
— O quê?
— Você está surda? Eu disse para cheirar.
Relutante, Liesel se inclinou e captou um bafejo pavoroso cla camisa parda.
— Jesus, Maria e José! Isso é...?
O menino acenou que sim.
— Também está no meu queixo. No meu queixo! Foi sorte eu não tê-lo engolido!
— Jesus, Maria e José.
— O campo da Juventude Hitlerista acabou de ser adubado.
Rudy fez outra avaliação desanimada e enojada da camisa:
— É estrume de boi, eu acho.
— Aquele tal de, como se chama, Deutscher, sabia do estrume?
— Disse que não. Mas estava rindo.
— Jesus, Maria e...
— Quer parar de dizer isso?!

O que Rudy precisava, àquela altura, era de uma vitória. Saíra perdendo no trato com Viktor Chemmel. Suportara um problema após outro na Juventude Hitlerista. Tudo que queria era uma nesguinha de triunfo, e estava determinado a consegui-la.
Continuou a andar para casa, mas, ao chegar ao degrau de concreto, mudou de ideia e voltou para a menina, devagar e deliberadamente.
Com cuidado e baixinho, falou:
— Sabe o que me animaria?
Liesel encolheu-se.
— Se está pensando que eu vou... nesse estado...
Rudy pareceu desapontado com ela.
— Não, não é isso — suspirou, chegando mais perto. — É outra coisa.
Após um momento de reflexão, levantou a cabeça, só um tantinho.
— Olhe para mim. Estou imundo. Fedendo a cocô de boi, ou cocô de cachorro, conforme a sua opinião, e, como de praxe, estou absolutamente morto de fome — e fez uma pausa. — Preciso de uma vitória, Liesel. Sinceramente.
Liesel sabia.
Teria chegado mais perto, não fosse o cheiro dele.
Roubar.
Eles tinham que roubar alguma coisa.
Não.
Tinham que roubar de volta alguma coisa. Não importava o quê. Mas precisava ser logo.
— Só você e eu, desta vez — sugeriu Rudy. — Nada de Chemmels nem Schmeikls. Só você e eu.
A menina não pôde resistir.
Suas mãos comichavam, seu pulso disparou e sua boca sorriu, tudo ao mesmo tempo.
— Boa ideia.
— Então, está combinado — e, embora tentasse evitar, Rudy não conseguiu esconder o sorriso adubado que se alargou em seu rosto. — Amanhã?
Liesel fez que sim.
— Amanhã.
O plano era perfeito, exceto por um detalhe:
Eles não tinham ideia de onde começar.
As frutas estavam fora de questão. Rudy torceu o nariz para as cebolas e as batatas, e os dois barraram a ideia de outro assalto a Otto Sturm e sua bicicleta de mantimentos. Uma vez era imoral. Duas eram uma completa canalhice.
— Então, prá onde diabos nós vamos? — perguntou Rudy.
— Como é que eu vou saber? A ideia foi sua, não foi?
— Isso não significa que você também não deva pensar um pouquinho. Não posso pensar em tudo.
— Você mal consegue pensar em alguma coisa...
Os dois continuaram a discutir enquanto percorriam a cidade. Nos arredores, observaram a primeira fazenda e as árvores que pareciam estátuas emaciadas. Os galhos eram cinzentos e, quando eles olharam para cima, não havia nada além de membros esfarrapados e um céu vazio.
Rudy cuspiu.

Tornaram a cruzar Molching, fazendo sugestões:
— Que tal Frau Diller?
— O que tem ela?
— Talvez, se dissermos "heil Hitler" e aí roubarmos alguma coisa, dê tudo certo.
Depois de vagarem pela Rua Munique durante cerca de uma hora, a luz do dia começou a esmaecer e eles estavam prestes a desistir.
— Não adianta — disse Rudy — e estou com mais fome do que nunca. Estou morrendo de fome, pelo amor de Deus.
Deu mais doze passos antes de parar e virar para trás.
— Que há com você?
É que Liesel estava completamente imóvel, e havia um instante de reconhecimento amarrado em seu rosto.
Por que não havia pensado nisso antes?
— O que foi? — insistiu Rudy, impacientando-se. — Saumensch, que está havendo?
Nesse exato momento, Liesel viu-se diante de uma decisão. Poderia de fato levar a cabo aquilo em que estava pensando? Seria mesmo capaz de se vingar de uma pessoa desse jeito? Era possível que desprezasse alguém tanto assim?
Começou a andar na direção oposta. Quando Rudy a alcançou, ela diminuiu um pouco o passo, na vã esperança de enxergar comum pouco mais de clareza. Afinal, a culpa já estava presente. Era úmida. A semente já desabrochava numa flor de folhas escuras. Ela ponderou se realmente conseguiria levar aquilo a cabo. Num cruzamento, parou.
— Sei de um lugar.

Encaminharam-se para o rio e subiram a colina.
Na Grande Strasse, absorveram o esplendor das casas. As portas de entrada reluziam, polidas, e as telhas nos telhados acomodavam-se feito perucas, penteadas à perfeição. As paredes e janelas eram manicuradas, e as chaminés quase exalavam anéis de fumaça.
Rudy fincou os pés.
— A casa do prefeito?
Liesel acenou com a cabeça, a sério. Pausa.
— Eles despediram minha mãe.
Ao dobrarem a esquina em direção à casa, Rudy perguntou como iriam entrar, em nome de Deus, mas Liesel sabia.
— Conhecimento do local — respondeu ela. — Conhec...
Mas então conseguiram enxergar a janela da biblioteca, no extremo oposto da casa, e Liesel foi saudada por um choque. A janela estava fechada.
— E aí? — perguntou Rudy.
Liesel fez meia-volta devagar e saiu correndo.
— Hoje não — disse. Rudy riu.
— Eu sabia — comentou, alcançando-a. — Eu sabia, sua Saumensch nojenta. Você não conseguiria entrar lá nem que tivesse a chave.
— Quer dar licença? — disse ela. Apertou ainda mais o passo e descartou o comentário de Rudy. — Só temos que esperar a oportunidade certa.
Internamente, procurou livrar-se de uma espécie de alegria pelo fato de a janela estar fechada. Censurou-se com aspereza. Por quê, Liesel?, perguntou a si mesma. Por que você tinha que explodir quando despediram a mamãe? Por que não podia ficar com essa sua matraca fechada? Ao que você saiba, agora a mulher do prefeito está completamente reformada, depois de você gritar e berrar com ela. Talvez tenha se aprumado, tenha se recuperado. Pode ser que nunca mais se permita ficar tremendo naquela casa e que a janela permaneça fechada para sempre... Sua Saumensch idiota!

Uma semana depois, entretanto, na quinta visita à parte alta de Molching, lá estava ela.
A janela aberta, inspirando uma fatia de ar fresco.
Era o quanto bastava.

Foi Rudy quem parou primeiro. Cutucou Liesel nas costelas, com o dorso da mão.
— Aquela janela está aberta? — murmurou. A ansiedade em sua voz pendeu-lhe da boca, como um braço no ombro de Liesel.
— Jawohl — respondeu. Com certeza.
E como seu coração começou a esquentar!

• • •

Em cada uma das ocasiões anteriores, ao depararem com a janela firmemente trancada, a decepção aparente de Liesel havia mascarado um alívio feroz. Teria mesmo peito para entrar? E para quem e por que entraria, na verdade? Para Rudy? Para procurar comida?
Não. A verdade repugnante era esta:
Liesel não se incomodava com a comida. Rudy, por mais que ela tentasse resistir à ideia, era secundário em seu plano. Era o livro que ela queria. O Assobiador. Não suportaria que ele lhe fosse dado por uma velha solitária e patética. Roubá-lo, por outro lado, parecia um pouco mais aceitável. Roubá-lo, em certo sentido doentio, era como merecê-lo.

A luz ia mudando em blocos de sombras.
O par se aproximou da casa maciça e imaculada. Sussurrou seus pensamentos.
— Está com fome? — perguntou Rudy.
— Faminta — fez Liesel. Por um livro.
— Olhe, acabou de acender uma luz lá em cima.
— Estou vendo.
— Continua faminta, Saumensch?
Deram uma risada nervosa por um instante, antes de entrarem na discussão sobre quem deveria entrar e quem deveria vigiar. Como homem da operação, Rudy claramente achava que devia ser ele o agressor, mas era óbvio que Liesel conhecia o lugar. Ela é que entraria. Sabia o que havia do outro lado da janela.
E foi o que disse.
— Tenho que ser eu.

Liesel fechou os olhos. Com força.
Obrigou-se a lembrar, a visualizar o prefeito e sua mulher. Fitou a amizade feita com Ilsa Hermann e se certificou de lhe dar um chute nas canelas e deixá-la à beira da estrada. Funcionou. Ela detestava os dois.

Eles examinaram a rua e atravessaram o pátio em silêncio.
Agacharam-se embaixo da fresta da janela do térreo. O som de sua respiração aumentou.
— Dê seus sapatos aqui — disse Rudy. — Você fará menos barulho.
Sem reclamar, Liesel desatou os surrados cadarços pretos e deixou os sapatos no chão. Levantou-se e Rudy abriu suavemente a janela, apenas o bastante para que a menina a pulasse. O barulho passou sobre suas cabeças como um avião voando baixo.
Liesel soergueu-se no parapeito e pelejou até conseguir entrar. Tirar os sapatos, percebeu, tinha sido uma ideia brilhante, já que ela aterrissou no piso de madeira com muito mais peso do que havia previsto. As solas dos pés expandiram-se dolorosamente, pressionando as bordas internas das meias.
A sala em si estava como sempre fora.
Na penumbra empoeirada, Liesel pôs de lado o sentimento de saudade. Avançou furtivamente e deixou seus olhos se adaptarem.
— Que está havendo? — veio o sussurro forte de Rudy do lado de fora, mas ela o descartou com um gesto que significava Halt's Maul. Cale a boca.
— A comida — lembrou-lhe o menino. — Ache a comida. E cigarros, se puder.
Mas esses dois artigos eram as últimas coisas na cabeça de Liesel. Ela estava à vontade, entre os livros de toda cor e descrição pertencentes ao prefeito, com suas letras prateadas e douradas. Sentia o cheiro das páginas. Quase conseguia provar as palavras empilhadas a seu redor. Seus pés a levaram à parede da direita. Ela sabia qual livro queria — sua posição exata —, mas, ao chegar ao lugar costumeiro do Assobiador na prateleira, ele não estava lá. Em seu lugar havia um espaço estreito.
Lá em cima, Liesel ouviu passos.
— A luz! — sussurrou Rudy. As palavras foram atiradas pela janela aberta. — Apagou!
— Scheisse.
— Estão descendo.
Veio então a duração gigantesca de um momento, a eternidade de uma decisão em fração de segundo. Os olhos da menina vasculharam a sala e ela viu O Assobiador, descansando pacientemente na escrivaninha do prefeito.
— Depressa! — alertou Rudy. Com muita calma e precisão, no entanto, Liesel foi até a escrivaninha, pegou o livro e se encaminhou com cautela para a saída. De ponta-cabeça, pulou a janela e conseguiu novamente aterrissar de pé, voltando a sentir a pontada de dor, dessa vez nos tornozelos.
— Ande — implorou Rudy. — Corra, corra. Schnell!
Uma vez dobrada a esquina, na estrada que descia em direção ao rio e à Rua Munique, ela parou para se curvar e recobrar o fôlego. Ficou com o corpo dobrado ao meio, o ar semicongelado na boca e o coração badalando nos ouvidos.
Foi o mesmo com Rudy.
Ao olhá-la, ele viu o livro embaixo do braço de Liesel. Esforçou-se para falar.
— Qual é — perguntou, lutando com as palavras — a do livro?
Agora a escuridão se adensava de verdade. Liesel arfou, enquanto o ar em sua garganta descongelava.
— Foi só o que eu consegui achar.
Infelizmente, Rudy farejou tudo. A mentira. Inclinou a cabeça e declarou o que julgava ser a realidade.
— Você não entrou para pegar comida, não foi? Conseguiu o que queria...
Liesel endireitou o corpo e se sentiu tomada pelo mal-estar de outra descoberta.
Os sapatos.
Olhou para os pés de Rudy, depois para suas mãos e para o chão em volta dele.
— O quê? — perguntou ele. — O que foi?
— Saukerl! — acusou-o Liesel. — Cadê meus sapatos?
O rosto de Rudy empalideceu, o que não lhe deixou nenhuma dúvida.
— Ficaram na casa — sugeriu a menina —, não foi?
Rudy procurou desesperadamente a seu redor, implorando, contra toda a realidade, que os tivesse carregado. Imaginou-se apanhando-os, torcendo para que fosse verdade — mas os sapatos não estavam lá. Descansavam inutilmente — ou, o que era muito pior, incriminadoramente — junto à parede do número 8 da Grande Strasse.
— Dummkopf! — repreendeu-se o menino, dando um tapa no ouvido. Baixou os olhos, envergonhado, à visão soturna das meias de Liesel. — Idiota! — e não levou muito tempo para tomar a decisão de consertar as coisas. Compenetrado, disse: — Espere aí — e voltou correndo, dobrando a esquina.
— Não se deixe apanhar! — gritou Liesel, mas ele não ouviu.

Foram pesados os minutos de sua ausência.
A escuridão já era completa e Liesel teve certeza da grande probabilidade de uma Watschen, reservada para quando chegasse em casa. — Depressa — murmurou, mas nada ainda de Rudy. Imaginou o som de uma sirene da polícia lançando-se no ar e se puxando de volta. Recolhendo-se.
E nada.
Só quando ela voltou para o cruzamento das duas ruas, com suas meias úmidas e sujas, foi que o viu. O rosto triunfante de Rudy estava bem erguido, enquanto ele avançava com passos saltitantes em sua direção. Os dentes rangiam num sorriso e os sapatos lhe pendiam da mão.
— Quase me mataram — disse Rudy —, mas consegui.
Depois que os dois atravessaram o rio, entregou os sapatos a Liesel, que os deixou cair.
Sentando-se no chão, ergueu os olhos para seu melhor amigo.
— Danke — disse. Obrigada.
Rudy fez uma mesura: — O prazer é meu — e arriscou um pouco mais: — Nem adianta perguntar se ganho um beijo por isso, não é?
— Por buscar meus sapatos, que você largou lá?
— É justo — assentiu ele. Levantou as mãos e continuou a falar enquanto caminhavam, e Liesel fez um esforço deliberado para ignorá-lo. Só ouviu a última parte.
— Provavelmente, eu não ia mesmo querer beijar você, não se o seu hálito for parecido com os seus sapatos.
— Você me enoja — informou-lhe a menina, e torceu para que ele não visse os primórdios fugidios de um sorriso que lhe caía da boca.

Na Rua Himmel, Rudy pegou o livro. Sob um poste de luz, leu o título em voz, alta e perguntou sobre que seria.
Com ar sonhador, Liesel respondeu.
— É só um assassino.
— Só isso?
— Tem também um policial que tenta pegá-lo.
Rudy devolveu o livro.
— Por falar nisso, acho que nós dois estamos meio fritos quando chegarmos em casa. Especialmente você.
— Por que eu?
— Você sabe... a sua mãe.
— Que é que tem ela?
Liesel exercia o direito flagrante da pessoa que um dia fez parte de uma família. Está muito bem que essa pessoa resmungue e se lamurie e critique seus familiares, mas não permite que ninguém mais o faça. E nessa hora que você empertiga a coluna e demonstra lealdade.
— Por acaso tem alguma coisa errada com ela?
Rudy recuou.
— Desculpe, Saumensch. Não tive a intenção de ofender.
Mesmo à noite, Liesel podia perceber que Rudy estava crescendo. O rosto ia ficando mais comprido. A cabeleira loura escurecia só um tantinho e as feições pareciam estar mudando de forma. Porém havia uma coisa que nunca mudaria. Era impossível ficar zangada com ele por muito tempo.
— Alguma coisa boa pra comer na sua casa, hoje? — perguntou Rudy.
— Duvido.
— Eu também. É uma pena a gente não poder comer livros. O Arthur Berg disse uma coisa assim daquela vez. Lembra-se?
Os dois rememoraram os bons tempos no resto do caminho, e Liesel olhou várias vezes para O Assobiador, com sua capa cinza e o título impresso em tinta preta.

Antes que entrassem em suas respectivas casas, Rudy parou por um instante e disse:
— Até logo, Saumensch — e riu. — Boa noite, roubadora de livros.
Era a primeira vez que Liesel se via marcada por seu título, e não pôde esconder que isso lhe agradou muito. Como nós dois sabemos, ela já tinha furtado livros, mas, no fim de outubro de 1941, a coisa se tornou oficial. Nessa noite, Liesel Meminger transformou-se verdadeiramente na menina que roubava livros.

TRÊS ATOS DE ESTUPIDEZ DE RUDY STEINER

• RUDY STEINER, PURO GÊNIO •
1. Roubou a maior batata da loja
de Mamer, o merceeiro local.
2. Enfrentou Franz Deutscher
na Rua Munique.
3. Faltou a todas as reuniões
da Juventude Hitlerista.

O problema do primeiro ato de Rudy foi a gula. Era uma tarde tipicamente enfadonha de meados de novembro de 1941.
Mais cedo, ele havia costurado brilhantemente por entre as mulheres com seus cupons, eu quase diria que com um toque de genialidade criminal. Por pouco não passou inteiramente despercebido.
Por mais inconspícuo que fosse, no entanto, conseguiu apoderar-se da maior batata do lote — a mesmíssima que várias pessoas na fila andavam vigiando. Todas viram quando um punho de treze anos se ergueu e a agarrou. Um coro de Helgas pesadonas apontou para ele, e Thomas Mamer partiu esbaforido em direção ao fruto maculado.

— Meine Erdäpfel — disse ele. Minhas batatas.
A batata ainda estava nas mãos de Rudy (que não conseguia segurá-la com uma só) e as mulheres juntaram-se em volta dele como um bando de lutadores. Fazia-se necessária uma fala rápida.
— Minha família — Explicou Rudy. Um fluxo conveniente de líquido transparente começou a lhe escorrer do nariz. Ele fez questão de não secá-lo. — Estamos todos passando fome. Minha irmã precisa de um casaco novo. O último foi roubado.
Mamer não era bobo. Ainda segurando Rudy pelo colarinho, perguntou:
— E você está planejando vesti-la com uma batata?
— Não, senhor — disse o menino, olhando em diagonal para o olho que conseguia ver de seu captor. Mamer era uma pipa de gordo, com dois buraquinhos de bala por onde enxergar. Tinha os dentes feito uma platéia de futebol, apinhados na boca. — Nós trocamos todos os cupons que tínhamos pelo casaco, há três semanas, e agora não temos nada para comer.
O merceeiro segurava Rudy com uma das mãos e a batata com a outra. Disse a palavra temida à sua mulher:
— Polizei.
— Não, por favor — implorou Rudy. Mais tarde, diria a Liesel que não sentira o menor medo, mas, naquele momento, tenho certeza de que seu coração estava prestes a explodir. — A polícia, não. Por favor, a polícia, não.
— Polizei — repetiu Mamer, sem se deixar comover, enquanto o menino se debatia e dava socos no ar.

Quem também estava na fila nessa tarde era um professor, Herr Link. Fazia parte da percentagem de professores da escola que não eram padres nem freiras. Rudy o localizou e o abordou com o olhar.
— Herr Link — chamou. Era sua última chance. — Herr Link, conte a ele, por favor. Diga a ele como sou pobre.
O merceeiro olhou para o professor com ar indagativo. Herr Link aproximou-se e disse:
— Sim, Herr Mamer. Esse menino é pobre. É da Rua Himmel.
Nesse momento, a multidão, predominantemente composta de mulheres, conferenciou, ciente de que a Rua Himmel não era exatamente o epítome da vida idílica em Molching. Era bem conhecida como de um bairro relativamente pobre.
— Ele tem oito irmãos.
Oito!
Rudy teve que prender o riso, embora ainda não estivesse livre. Pelo menos, agora fizera o professor mentir. De algum modo, Herr Link havia conseguido acrescentar mais três filhos à família Steiner.
— Muitas vezes, ele chega à escola sem o café da manhã — prosseguiu, e a multidão de mulheres voltou a conferenciar. Parecia uma demão de tinta sobre a situação, acrescentando um pouquinho mais de potência e clima.
— E isso significa que ele deve ter permissão para roubar minhas batatas?
— A maior de todas! — exclamou uma das mulheres.
— Fique quieta, Frau Metzing — alertou-a Mamer, e ela se acalmou rapidamente.
No começo, todas as atenções concentraram-se em Rudy e seu cangote. Em seguida, deslocaram se de um lado para outro, do menino para a batata e para Mamer — da aparência melhor para a pior — e exatamente o que foi que levou o merceeiro a decidir a favor de Rudy ficaria para sempre sem resposta.
Teria sido a natureza patética do menino?
A dignidade de Herr Link?
A chatice de Frau Metzing?
Fosse o que fosse, Mamer repôs a batata na pilha e arrastou Rudy para fora de sua loja. Deu-lhe um bom pontapé com a bota direita e disse:
— Não volte aqui.
De fora, Rudy ficou observando Mamer voltar ao balcão e servir mantimentos e sarcasmo a sua freguesa seguinte:
— Eu me pergunto que batata a senhora vai pedir — disse ele, ainda com um olho no menino.
Para Rudy, foi mais um fracasso.

• • •

O segundo ato de estupidez foi igualmente perigoso, mas por razões diferentes.
Rudy terminaria essa altercação específica com um olho roxo, umas costelas quebradas e um corte de cabelo.
Mais uma vez, nas reuniões da Juventude Hitlerista, Tommy Müller vinha tendo seus problemas, e Franz Deutscher só estava à espera de que Rudy se metesse. Não demorou muito.
Rudy e Tommy receberam outra sessão completa de exercícios, enquanto os demais entravam para aprender tática. Ao correrem na friagem, eles viam pelas janelas as cabeças e ombros aquecidos. Mesmo quando se juntaram ao resto do grupo, os exercícios não acabaram propriamente. Assim que Rudy desabou num canto e salpicou lama de sua manga na janela, Franz disparou-lhe a pergunta predileta da Juventude Hitlerista.
— Em que dia nasceu o nosso Führer, Adolf Hitler?
Rudy ergueu os olhos:
— Perdão?
A pergunta foi repetida e o estupidíssimo Rudy Steiner, que sabia perfeitamente que tinha sido em 20 de abril de 1889, respondeu com a data de nascimento de Cristo. Incluiu até Belém, de quebra, como uma informação adicional.
Franz esfregou as mãos.
Péssimo sinal.
Aproximou-se de Rudy e o mandou de volta lá para fora, para mais algumas voltas ao redor do campo.
Rudy as deu sozinha e, após cada volta, foi-lhe indagada novamente a data de aniversário do Führer. Ele deu sete voltas antes de acertar a resposta.
O problema principal ocorreu dias depois da reunião.
Na Rua Munique, Rudy avistou Deutscher andando pela calçada com uns amigos e sentiu necessidade de lhe atirar uma pedra. Você pode muito bem perguntar que diabo ele estava pensando. A resposta é: provavelmente, nada. Provavelmente, ele diria que estava exercendo seu sagrado direito à estupidez. Ou isso, ou a simples visão de Franz Deutscher provocou-lhe uma ânsia de se destruir.
A pedra atingiu o alvo na espinha, embora não com tanta força quanto Rudy teria esperado. Franz Deutscher girou nos calcanhares e fez uma expressão satisfeita ao vê-lo parado lá, com Liesel, Tommy e a irmãzinha de Tommy, Kristina.
— Vamos correr — recomendou Liesel, com insistência, mas Rudy não arredou pé.
— Não estamos na Juventude Hitlerista — informou-lhe. Os meninos maiores já tinham chegado. Liesel ficou parada ao lado do amigo, assim como o careteiro Tommy e a delicada Kristina.
— Sr. Steiner — declarou Franz, antes de levantá-lo e atirá-lo na calçada.
Quando Rudy se levantou, isso só serviu para enfurecer Deutscher ainda mais. Ele o derrubou no chão pela segunda vez, acompanhando o gesto com uma joelhada na caixa torácica.
Mais uma vez, Rudy levantou-se e, nessa hora, o grupo de meninos mais velhos riu para o amigo. Aquilo não era a melhor notícia para Rudy.
— Você não consegue fazê-lo sentir nada? — perguntou o mais alto. Seus olhos eram azuis e frios como o céu, e as palavras foram todo o incentivo de que Franz precisava. Ele estava determinado a derrubar Rudy no chão e fazê-lo ficar lá.
Uma multidão maior os cercou quando Rudy desferiu um murro na barriga de Deutscher, errando completamente o alvo. No mesmo instante, experimentou a sensação ardente de um punho em seu olho esquerdo. Ela chegou acompanhada de faíscas, e o menino prostrou-se no chão antes mesmo que se desse conta disso. Tornou a levar um murro no mesmo lugar e sentiu o machucado ficar amarelo, azul e roxo, tudo ao mesmo tempo. Três camadas de dor revigorante.
A multidão que crescia aproximou-se e espiou, para ver se Rudy se levantaria de novo. Não se levantou. Dessa vez, permaneceu no chão frio e úmido, sentindo-o subir por sua roupa e se espalhar.
As fagulhas continuavam em seus olhos e era tarde demais quando Rudy notou que agora Franz se erguia sobre ele, com um canivete novo em folha, prestes a se abaixar e cortá-lo.
— Não! — protestou Liesel, mas o garoto alto a segurou. No ouvido da menina, as palavras dele foram graves e antigas.
— Não se preocupe — garantiu o garoto. — Ele não vai fazer isso. Não tem peito.
Estava errado.

Franz pôs-se de joelhos, inclinou-se mais para Rudy e sussurrou:
— Em que dia nasceu o nosso Führer?
Cada palavra foi cuidadosamente fabricada e introduzida no ouvido do menino.
— Vamos, Rudy, em que dia ele nasceu? Você pode me dizer, está tudo bem, não tenha medo.
E Rudy?
Que resposta deu ele?
Será que respondeu com prudência, ou deixou sua estupidez afundá-lo ainda mais na lama?
Ele fitou alegremente os pálidos olhos azuis de Franz Deutscher e murmuro:
— Na segunda-feira de Páscoa.
Em poucos segundos, o canivete foi aplicado a seu cabelo. Foi o corte de cabelo número dois nesse trecho da vida de Liesel. O cabelo de um judeu fora cortado e uma tesoura enferrujada. O de seu melhor amigo foi ceifado com uma lâmina reluzente. Ela não conhecia ninguém que realmente pagasse por um corte de cabelo.
Quanto a Rudy, até ali, nesse ano, ele havia engolido lama, tomado banho de fertilizante, sido parcialmente estrangulado por um criminoso em desenvolvimento agora recebia algo que pelo menos se aproximava da chave de ouro — a humilhação pública na Rua Munique.
Em sua maior parte, a franja foi livremente fatiada, mas, a cada golpe, sempre havia uns fios de cabelo que lutavam pela vida e eram completamente arrancado Ao arrancar de cada um deles, Rudy estremecia, com o olho roxo latejando e costelas dando fisgadas de dor.
— Vinte de abril de mil oitocentos e oitenta e nove! — ensinou-lhe Franz, quando se afastou, liderando seus comandados, a platéia se dispersou, deixando apenas Liesel, Tommy e Kristina com o amigo.

Isso nos deixa apenas o ato de estupidez número três — faltar às reuniões Juventude Hitlerista.
Rudy não parou de frequentá-las de imediato, só para mostrar a Deutscher que não tinha medo dele, mas, passadas algumas semanas, abandonou por completo o seu envolvimento.
Orgulhosamente trajado com seu uniforme, ele saía da Rua Himmel e ia andando tendo ao lado seu súdito leal, Tommy.
Em vez de irem para a Juventude Hitlerista, os dois saíam da cidade e margeavam o Rio Amper, saltando pedras, atirando outras enormes na água e, de um modo geral, não fazendo nada que prestasse. Rudy certificava-se de sujar bastante o uniforme, para enganar a mãe, pelo menos até a chegada da primeira carta. Foi quando ele ouviu o chamado temível da cozinha.
Primeiro, os pais o ameaçaram. Ele não compareceu.
Imploraram-lhe que fosse. Ele se recusou.
No fim, foi a oportunidade de se ligar a uma divisão diferente que pôs Rudy no caminho certo. E foi seu não comparecimento. Seu irmão mais velho, Kurt, fez indagações para saber se Rudy poderia entrar na Flieger, que se especializara no ensino sobre aeronaves e pilotagem. Basicamente, os meninos construíam aeromodelos, e não havia nenhum Franz Deutscher. Rudy aceitou e Tommy também se inscreveu. Foi a única vez na vida em que seu comportamento idiota lhe trouxe resultados benéficos.
Na nova divisão, toda vez que lhe faziam a famosa pergunta sobre o Führer, ele sorria e respondia "20 de abril de 1889", e depois, dirigindo-se a Tommy, murmurava uma data diferente, como o aniversário de Beethoven, Mozart ou Strauss. Os dois estavam estudando os compositores na escola, onde, apesar de sua evidente burrice, Rudy se destacava.

O LIVRO FLUTUANTE (Parte II)

No início de dezembro, a vitória finalmente chegou para Rudy Steiner, embora não de maneira típica.
Era um dia frio, mas muito sereno. Quase havia nevado.
Depois da escola, Rudy e Liesel pararam na loja de Alex Steiner e, quando andavam para casa, viram o velho amigo de Rudy, Franz Deutscher, dobrando a esquina. Liesel, como era seu hábito nesses dias, carregava O Assobiador. Gostava de senti-lo em suas mãos. Ou a lombada macia, ou as bordas ásperas do papel. Foi ela a primeira a ver Franz.
— Olhe — apontou. Deutscher marchava pomposamente na direção deles, em companhia de outro guia da Juventude Hitlerista.
Rudy encolheu-se. Apalpou o olho cicatrizado.
— Dessa vez, não — disse. Vasculhou as ruas. — Se passarmos pela igreja, podemos seguir o rio e voltar por lá.
Sem outras palavras, Liesel o acompanhou e os dois evitaram com êxito o torturador de Rudy — para cair direto no caminho de outro.

No começo, eles não deram importância.
O grupo que atravessava a ponte e fumava cigarros podia ser qualquer um, e foi tarde demais para dar meia-volta quando os dois se reconheceram.
— Ah, não, eles nos viram.

Viktor Chemmel sorriu.
Falou com muita amabilidade. O que só podia significar que estava no auge de sua periculosidade.
— Ora, ora, se não são Rudy Steiner e sua putinha — e, muito afável, aproximou-se e arrancou O Assobiador da mão de Liesel. — Que é que você está lendo?
— Isto é entre nós dois — tentou ponderar Rudy. — Não tem nada a ver com ela. Ande, devolva o livro.
— O Assobiador — dirigiu-se Viktor a Liesel. — É bom?
Ela pigarreou.
— Nada mau.
Infelizmente, a menina se entregou. Pelos olhos. Eles estavam agitados. Liesel percebeu o momento exato em que Viktor Chemmel determinou que o livro era um bem precioso.
— É o seguinte — disse ele: — Por cinquenta marcos, você pode tê-lo de volta.
— Cinquenta marcos! — foi a exclamação de Andy Schmeikl. — Ora, Viktor, você pode comprar mil livros com isso!
— Eu lhe pedi para falar?
Andy calou-se. Sua boca pareceu trancar-se de repente. Liesel tentou fazer uma expressão de pôquer.
— Então, pode ficar com ele. Eu já li.
— E o que acontece no fim?
Droga!
Ela ainda não havia chegado a esse pedaço.
Hesitou, e Viktor Chemmel decifrou o blefe no mesmo instante.
Nessa hora, Rudy precipitou-se para ele.
— Ande, Viktor, não faça isso com ela. É atrás de mim que você está. Eu faço o que você quiser.
O garoto mais velho apenas o afastou com um tapa, segurando o livro no alto. E o corrigiu.
— Não — disse. — Eu é que farei o que eu quiser — e se encaminhou para o rio. Todos o seguiram, acelerando para alcançá-lo. Meio andando, meio correndo.
Alguns protestaram. Outros o instigaram a ir em frente.

Foi muito rápido e tranquilo. Houve uma pergunta e uma voz amistosa e zombeteira.
— Digam-me — disse Viktor. — Quem foi o último campeão olímpico do disco em Berlim? — e se virou para encará-los. Aqueceu o braço. — Quem foi? Droga, estou com o nome na ponta da língua. Foi aquele americano, não foi? Carpenter, ou coisa parecida...
— Por favor! — fez Rudy.

A água foi abaixo.
Viktor Chemmel fez o arremesso.
O livro soltou-se gloriosamente de sua mão. Abriu-se e esvoaçou, com as páginas chacoalhando enquanto ele perfazia a distância no ar. Mais abruptamente do que seria esperável, parou e pareceu ser sugado pela água. Fechou-se ao bater na superfície e começou a flutuar correnteza abaixo. Viktor abanou a cabeça.
— Sem altura suficiente. Um arremesso ruim — e tornou a sorrir. — Mas ainda foi bom o bastante para ganhar, hein?
Liesel e Rudy não ficaram por perto para ouvir as risadas.
Rudy, em particular, havia partido pela margem do rio, tentando localizar o livro.
— Você consegue vê-lo? — gritou Liesel.
Rudy correu.

Continuou descendo à beira da água, mostrando a localização do livro.
— Está ali!
Parou, apontou e correu mais, para ultrapassá-lo. Logo em seguida, tirou o casaco e pulou na água, chapinhando até o meio do rio.
Liesel, que reduzira a velocidade à marcha, sentia a dor de cada passo. O frio doloroso.
Quando se aproximou o bastante, viu o livro passar por Rudy, mas ele logo o alcançou. Sua mão se esticou e pegou o que era, àquela altura, um bloco encharcado de papelão e papel.
— O Assobiador! — gritou o menino. Era o único livro flutuando no Rio Amper naquele dia, mas, mesmo assim, ele sentiu necessidade de anunciá-lo.
Outra nota interessante é que Rudy não tentou sair da água, devastadoramente fria, assim que pegou o livro. Por um bom minuto, mais ou menos, ficou lá dentro. Nunca explicou isso a Liesel, mas acho que ela soube muito bem que as razões eram duas.

• OS MOTIVOS CONGELADOS •
DE RUDY STEINER
1. Após meses de fracasso, esse momento era
sua única chance de se comprazer com uma vitória.
2. Essa postura de desprendimento era uma
boa ocasião para pedir a Liesel o favor habitual.
Como é que ela poderia recusá-lo?

— Que tal um beijo, Saumensch?
Ficou parado mais alguns instantes, com água pela cintura, antes de sair do rio e lhe entregar o livro. Tinha as calças grudadas no corpo e não parou de andar. Na verdade, acho que ele sentiu medo. Rudy Steiner ficou com medo do beijo da menina que roubava livros. Devia ter ansiado muito por ele. Devia amá-la com uma intensidade incrível. Tanto que nunca mais tornaria a lhe pedir seus lábios, e iria para sua sepultura sem eles.

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