Parte cinco

                                               



O irmão da Olivia


tenho que admitir que, da primeira vez que vi o irmão mais novo da olivia, fiquei
completamente surpreso.
não deveria, é claro. a olivia tinha me falado sobre a “síndrome” dele. tinha até descrito
como ele era. mas também havia falado sobre todas as cirurgias pelas quais tinha passado ao
longo dos anos, então meio que deduzi que ele teria uma aparência mais normal agora, como
quando uma criança que nasce com lábio leporino faz cirurgia plástica e depois não dá nem
para notar, exceto pela pequena cicatriz acima da boca. achei que o irmão dela teria algumas
cicatrizes aqui e ali. mas não esperava isso. definitivamente, não esperava ver esse menininho
com boné de beisebol que está sentado na minha frente bem agora.
na verdade, há dois meninos: um é totalmente normal, com cabelos louros e cacheados, e se
chama jack; o outro é o auggie.
prefiro achar que consigo esconder minha surpresa. espero que sim. no entanto, surpresa é
uma daquelas emoções que pode ser difícil disfarçar, tanto quando você quer parecer surpreso
e não está quanto quando você está e não quer demonstrar.
aperto a mão dele. aperto a mão do outro garoto. não quero focar em seu rosto.
que quarto legal, digo.
você é o namorado da via?, pergunta ele. acho que está sorrindo.
olivia empurra o boné de beisebol dele para baixo.
isso é uma metralhadora?, pergunta o garoto louro, como se eu não tivesse escutado a
pergunta anterior. e conversamos um pouco sobre zydeco. então a via pega minha mão e me
tira do quarto. assim que fechamos a porta, ouvimos os dois rindo.
sou do brooklyn!, diz um deles.
a olivia revira os olhos e sorri.
vamos para o meu quarto, diz ela.
estamos namorando há dois meses. desde o momento em que a vi, no instante em que ela se
sentou à nossa mesa no refeitório, eu soube que gostava dela. não conseguia desviar os olhos.
realmente linda. pele morena e os olhos mais azuis que já vi na vida. no início ela agia como
se só quisesse ser minha amiga. acho que ela passa essa impressão sem nem se dar conta. fica
afastada. não se importa. não paquera como as outras garotas fazem. quando fala com você,
ela olha diretamente nos olhos, como se o estivesse desafiando. então eu apenas fiquei
olhando nos olhos dela também, como se a desafiasse de volta. depois a chamei para sair e ela
aceitou, o que foi o máximo.
via é uma garota incrível e eu adoro ficar com ela.
ela não me falou sobre o august até nosso terceiro encontro. acho que usou a expressão
“anormalidade crânio-facial” para descrever o rosto dele. ou talvez tenha sido “anomalia
crânio-facial”. sei que não usou a palavra “deformado”, pois eu teria gravado isso.
então, o que você achou?, pergunta ela, nervosa, assim que entramos no quarto. ficou
chocado?
não, minto.
ela sorri e olha para outro lado.
você está chocado.
não estou, garanto. ele é exatamente como você disse.
ela assente e se joga na cama. é meio fofo o fato de ela ainda ter um monte de bichos de
pelúcia na cama. sem pensar, ela pega um deles, um urso-polar, e o põe no colo.
sento em uma cadeira de escritório perto da escrivaninha. o quarto é muito organizado.
quando eu era pequena, diz ela, um monte de crianças nunca veio brincar aqui uma segunda
vez. e estou falando de muitas crianças. tive até amigos que não vinham às minhas festas de
aniversário por causa dele. nunca me disseram isso, mas de alguma forma eu sempre ficava
sabendo. algumas pessoas simplesmente não sabem lidar com o auggie, entende?
concordo.
era como se elas nem percebessem que estavam sendo cruéis, acrescenta ela. mas só
estavam assustadas. quer dizer, vamos encarar os fatos, o rosto dele é mesmo assustador, não
é?
acho que sim, respondo.
mas tudo bem por você? pergunta ela de um jeito doce. você não está muito horrorizado? ou
assustado?
não estou. sorrio.
ela balança a cabeça e baixa os olhos para o urso-polar em seu colo. não sei se acredita em
mim. então ela dá um beijo no nariz do urso e o joga na minha direção com um sorrisinho.
acho que isso significa que acreditou. ou, pelo menos, que quer acreditar.

Dia dos namorados

dou a olivia um colar de coração de presente de dia dos namorados, e ela me dá uma bolsa
carteiro que fez com disquetes. muito legal ela fazer coisas desse tipo. brincos com partes de
placas de circuito. vestidos com camisetas. bolsas com calças jeans velhas. ela é tão criativa!
digo que ela devia ser uma artista, mas ela quer ser cientista. geneticista. quer descobrir a cura
para pessoas como o irmão, acho.
fazemos planos para eu, enfim, conhecer seus pais. um restaurante mexicano na amesfort
avenue perto da casa dela no sábado à noite.
passo o dia inteiro nervoso. e, quando fico nervoso, tenho tiques. quer dizer, sempre tenho
tiques, mas não são mais como quando eu era pequeno: agora são apenas algumas piscadas
mais fortes, uma mexida de cabeça de vez em quando. mas, quando fico estressado, eles
pioram — e estou definitivamente estressado com a ideia de conhecer os pais dela.
quando chego ao restaurante, eles estão esperando lá dentro. o pai se levanta e aperta minha
mão. a mãe me dá um abraço. cumprimento o auggie com um soquinho e dou um beijo no rosto
da olivia antes de me sentar.
é um prazer conhecê-lo, justin! ouvimos falar muito de você!
os pais dela não poderiam ser mais legais. me deixaram à vontade de cara. o garçom traz o
cardápio e percebo sua expressão ao ver o august. acho que esta noite todos estamos fingindo
não notar as coisas. o garçom. meus tiques. o modo como o august quebra as tortillas na mesa
e leva as migalhas à boca. olho para a olivia e ela sorri para mim. ela vê a cara do garçom. vê
meus tiques. a olivia é uma garota que vê tudo.
passamos o jantar inteiro conversando e rindo. os pais dela me perguntam sobre minha
música, sobre como comecei a tocar violino e coisas assim. conto que costumava tocar música
clássica, mas me interessei pela cultura apalache e depois por zydeco. eles ouvem cada
palavra como se realmente estivessem interessados e me pedem que avise da próxima vez que
minha banda for se apresentar, para que possam assistir.
para ser sincero, não estou acostumado a receber tanta atenção. meus pais não têm a menor
ideia do que eu quero fazer da vida. nunca perguntam. nunca conversamos desse jeito. acho
que eles nem sabem que troquei meu violino barroco por um de oito cordas dois anos atrás.
depois do jantar, vamos à casa da olivia tomar sorvete. a cadela deles nos recebe à porta. é
velha. superdoce. no entanto, vomitou todo o corredor. a mãe da olivia corre para pegar
papel-toalha, enquanto o pai pega a cadela no colo, como se fosse um bebê.
o que houve, garota?, pergunta ele, e a cadela fica nas nuvens, com a língua pendurada,
abanando o rabo, as pernas no ar em ângulos estranhos.
pai, conte ao justin como você pegou a daisy, diz a olivia.
é!, concorda o auggie.
o pai sorri e se senta em uma cadeira, ainda com a cadela nos braços. está claro que ele já
contou essa história mil vezes e todos adoram ouvi-la.
um dia, estou saindo do metrô e vindo para casa, diz ele, e um mendigo que eu nunca tinha
visto na vizinhança está empurrando uma vira-lata em um carrinho de bebê. então ele chega
perto de mim e pergunta, ei, senhor, quer comprar meu cachorro? e, sem nem pensar, eu digo,
claro, quanto você quer? ele diz dez pratas, então dou a ele os vinte dólares que tenho na
carteira e ele me entrega o cachorro. justin, eu aposto que você nunca viu nada tão fedido na
vida! ela fedia tanto que não dá nem para descrever! então, dali, eu a levei direto para a
veterinária mais à frente na rua e depois a trouxe para casa.
nem me ligou antes, por sinal!, intervém a mãe, limpando o chão, para ver se eu concordava
com o fato de ele trazer para casa um cachorro de rua.
a cadela realmente olha para a mãe enquanto ela diz isso, como se entendesse tudo o que
estavam falando sobre ela. é uma cachorrinha feliz, como se soubesse a sorte que tivera
naquele dia, ao encontrar essa família.
meio que entendo como ela se sente. gosto da família da olivia. eles riem bastante.
minha família, definitivamente, não é assim. meus pais se separaram quando eu tinha quatro
anos e se odeiam. cresci passando metade das semanas no apartamento do meu pai em chelsea
e a outra metade na casa da minha mãe, em brooklyn heights. tenho um meio-irmão cinco anos
mais velho que mal sabe que eu existo. desde quando lembro, sinto como se meus pais mal
pudessem esperar que eu fosse grande o bastante para cuidar de mim mesmo. “você pode ir à
loja sozinho.” “aqui está a chave do apartamento.” é engraçado que exista a palavra
superprotetores para descrever alguns pais, mas nenhuma para se referir ao oposto. que
palavra se usa para pais que não protegem os filhos o suficiente? subprotetores? negligentes?
egoístas? péssimos? todas as anteriores.
na família da olivia eles dizem “amo você” uns para os outros o tempo todo.
não me lembro da última vez que alguém da minha família me disse isso.
quando fui para casa, todos os meus tiques haviam sumido.


Nossa cidade

estamos montando a peça nossa cidade para a apresentação de primavera deste ano. a olivia
me desafiou a me candidatar ao papel principal, o do diretor, e de algum modo eu consegui.
pura sorte. nunca tinha conseguido o papel principal em nada. disse para a olivia que ela me
dá sorte. infelizmente, ela não conseguiu o principal papel feminino, de emily gibbs. foi a
miranda, a menina do cabelo rosa, que ficou com ele. a olivia pegou um papel menor e
também é a substituta da emily. na verdade, estou mais desapontado que a olivia. ela parece
quase aliviada. não gosto que as pessoas fiquem olhando para mim, diz, o que é meio estranho
vindo de uma garota tão bonita. parte de mim acha que ela foi mal nos testes de propósito.
a apresentação de primavera é no final de abril. agora estamos no meio de março, então
tenho menos de seis semanas para decorar minhas falas. além de ensaiar. e de treinar com
minha banda. além das provas finais. e de passar algum tempo com a olivia. sem dúvida serão
seis semanas difíceis. o sr. davenport, o professor de teatro, já está louco com essa coisa toda.
vai ter nos enlouquecido quando tudo isso acabar, não tenho dúvida. ouvi boatos de que ele
pretendia montar o homem elefante, mas no último minuto mudou para nossa cidade, e isso
nos custou uma semana de ensaios.
não estou ansioso pela loucura do próximo mês e meio.


Joaninha

olivia e eu estamos sentados na varanda da casa. ela está me ajudando com minhas falas. é
uma tarde quente de março, quase parece verão. o céu ainda está bem azul, mas o sol já baixou
e sombras compridas se projetam nas calçadas.
estou recitando: sim, o sol nasceu milhares de vezes. verões e invernos fenderam um pouco
mais as montanhas e as chuvas fizeram deslizar a terra. bebês que antes nem eram nascidos já
começaram a formar frases completas; e muitas pessoas que se achavam jovens e ágeis
notaram que já não podiam subir um lance de escadas como antes, sem que o coração
disparasse um pouco...
balanço a cabeça. não me lembro do resto.
tudo o que pode acontecer em mil dias, lembra a olivia, lendo o roteiro.
isso, isso, falo, balançando a cabeça. suspiro. estou exausto, olivia. como vou me lembrar
de todas essas falas, droga?
você vai, responde ela, confiante. ela estende os braços e fecha as mãos em concha em volta
de uma joaninha que apareceu do nada. está vendo? um sinal de sorte, diz, levantando
lentamente a mão que estava por cima para revelar a joaninha andando na palma da outra mão.
sorte ou só o calor, brinco.
claro que é sorte, diz ela, observando a joaninha subir pelo pulso. devia haver algo sobre
fazer um pedido a uma joaninha. o auggie e eu fazíamos isso com vaga-lumes quando éramos
pequenos. ela fecha a mão em volta da joaninha de novo. vamos, faça um pedido. feche os
olhos.
obedeço. após um longo momento, volto a abrir os olhos.
fez um pedido?, pergunta ela.
fiz.
ela sorri, abre a mão, e a joaninha, como se entendesse a deixa, abre as asas e voa para
longe.
você não quer saber o que eu pedi?, pergunto, dando um beijo nela.
não, responde olivia, tímida, olhando para o céu, que nesse exato momento está da cor de
seus olhos.
também fiz um pedido, diz, em tom de mistério, mas há tantas coisas que ela poderia pedir
que não tenho ideia do que pode ter sido.

O ponto de ônibus

a mãe de olivia, o auggie, o jack e a daisy chegam na varanda no momento em que estou me
despedindo da olivia. um pouco constrangedor, pois estamos no meio de um beijo bem
demorado.
oi, diz a mãe, fingindo que não viu nada, mas os dois garotos estão rindo.
oi, sra. pullman.
por favor, justin, me chame de isabel, pede ela de novo.
é a terceira vez que ela me diz isso, então realmente tenho que começar a chamá-la assim.
estou indo para casa, digo, como que para me explicar.
ah, você vai para o metrô?, pergunta ela, seguindo a cadela com um jornal. pode
acompanhar o jack até o ponto de ônibus?
sem problema.
tudo bem por você, jack?, pergunta isabel, e ele dá de ombros. justin, você pode ficar com
ele até o ônibus chegar?
claro!
todos nos despedimos. a olivia pisca para mim.
não precisa ficar comigo, diz o jack enquanto subimos o quarteirão. pego ônibus sozinho o
tempo todo. a mãe do august é muito superprotetora.
ele tem a voz grave e baixa, como um garotinho durão. parecia um daqueles garotos patifes
de filmes antigos, em preto e branco, talvez devesse estar usando uma boina de jornaleiro e
calções.
chegamos ao ponto e o quadro de horários diz que o próximo ônibus vai chegar em oito
minutos.
vou esperar com você, digo.
você é quem sabe. ele dá de ombros. tem um dólar? quero chiclete.
pego um dólar no bolso e o observo atravessar a rua e ir até uma mercearia na esquina. ele
parece muito pequeno para andar por aí sozinho. então penso que quando tinha aquela idade já
pegava o metrô. novo demais. um dia serei um pai superprotetor, eu sei. meus filhos saberão
que eu me importo com eles.
faz um ou dois minutos que estou esperando quando vejo três garotos subindo o quarteirão,
vindo da outra direção. eles passam direto pela mercearia, mas um deles olha para dentro e
cutuca os outros dois, todos voltam e fazem o mesmo. sei que não têm boas intenções, pelo
modo como se cutucam com os cotovelos, rindo. um deles é da altura do jack, mas os outros
são muito maiores, parecem adolescentes. eles se escondem atrás do balcão de frutas na frente
da loja e, quando o jack sai, vão atrás dele, fazendo barulhos altos, como se estivessem
vomitando. o jack se vira casualmente na esquina para ver quem são e eles saem correndo,
trocando high-fives e rindo. merdinhas.
jack atravessa a rua como se nada tivesse acontecido e para ao meu lado no ponto de
ônibus, fazendo uma bola com o chiclete.
são seus amigos? pergunto por fim.
rá, diz ele. tenta sorrir, mas dá para ver que está chateado. só alguns idiotas da minha
escola, fala. um garoto chamado julian e seus dois gorilas, henry e miles.
eles enchem você, assim, sempre?
não, nunca tinham feito isso. se fizessem isso na escola seriam expulsos. o julian mora a
duas quadras daqui, então acho que só dei azar de esbarrar com ele.
ah, certo. assinto.
não é nada de mais, garante ele.
nós dois olhamos automaticamente para a rua, para ver se o ônibus está vindo.
nós meio que estamos em guerra, diz ele após um minuto, como se isso explicasse tudo.
então pega uma folha de papel amassada do bolso da calça e a entrega para mim. eu a
desdobro e vejo uma lista de nomes divididos em três colunas. ele pôs todos os garotos do
quinto ano contra mim, diz o jack.
nem todos, digo, olhando para a lista.
ele deixa bilhetes no meu armário dizendo coisas tipo todo mundo odeia você.
você deveria contar para um professor.
o jack olha para mim como se eu fosse um idiota e balança a cabeça.
de qualquer jeito, há todos esses neutros, digo, apontando para a lista. se você conquistá-los
para o seu lado, as coisas vão melhorar um pouco.
é, bem, isso vai mesmo acontecer, diz ele, sarcástico.
por que não?
ele me lança outro olhar como se eu fosse o cara mais idiota com quem já falou.
o que foi?, pergunto.
ele balança a cabeça como se eu não tivesse jeito. digamos apenas, ele fala, que sou amigo
de alguém que não é exatamente o garoto mais popular da escola.
então, de repente, eu entendo o que ele não está dizendo às claras: o august. tudo isso é
porque ele é amigo do august. e não quer me falar nada porque sou namorado da irmã dele. é
claro, faz sentido.
vemos o ônibus descendo a amesfort avenue.
bem, apenas aguente firme, digo a ele, devolvendo o papel. essa época é horrível, mas
depois melhora. vai dar tudo certo.
ele dá de ombros e enfia a lista de volta no bolso.
nós acenamos quando ele entra no ônibus, e vejo o veículo se afastar.
quando chego à estação de metrô a duas quadras dali, vejo os mesmos três garotos em frente
a uma padaria. eles ainda estão rindo todos animados, como se fossem membros de uma
gangue, garotos riquinhos, vestidos com calças skinny caras e bancando os durões.
não sei o que dá em mim, mas tiro os óculos, guardo-os no bolso, e coloco o estojo do
violino debaixo do braço, com a parte pontuda para cima. ando na direção deles, de cara
amarrada, um olhar malvado. eles olham para mim, as risadas morrendo em seus lábios ao me
verem, as casquinhas de sorvete em ângulos estranhos.
ouçam aqui. não mexam com o jack, falo muito devagar, rangendo os dentes, a voz durona
como a do clint eastwood. se mexerem com ele de novo, vão se arrepender de verdade.
então dou um tapinha no estojo do violino, para causar impacto.
entenderam?
eles balançam a cabeça ao mesmo tempo, o sorvete pingando em suas mãos.
bom. assinto misteriosamente depois desço as escadas do metrô, dois degraus de cada vez.


Ensaio

a peça vem tomando a maior parte do meu tempo, pois a noite da estreia está perto. muitas
falas para lembrar. longos trechos de monólogo, em que só eu falo. a olivia, porém, teve uma
grande ideia que está me ajudando. levo o violino para o palco e toco um pouco enquanto falo.
não foi escrito assim, mas o sr. davenport acha que o fato de o protagonista tocar violino dá
um toque especial. e para mim é ótimo, porque sempre que preciso de um segundo para me
lembrar da próxima fala começo a tocar “soldier’s joy”, e isso me dá tempo.
passei a conhecer melhor as pessoas da peça, especialmente a garota de cabelo rosa que
interpreta a emily. acontece que ela não é tão metida quanto eu achava que seria por conta da
multidão com quem anda. o namorado é um atleta grandalhão e popular no meio esportivo da
escola. é um mundo com o qual não tenho nada a ver, então fico meio surpreso com o fato de a
miranda ser legal.
um dia estamos sentados no chão da coxia, esperando os técnicos consertarem um dos
holofotes.
há quanto tempo você e olivia estão namorando?, pergunta ela, do nada.
uns quatro meses, respondo.
você conheceu o irmão dela?, diz em tom casual.
isso é tão inesperado que não consigo esconder minha surpresa.
você conhece o irmão da olivia?, pergunto.
a via não contou para você? éramos muito amigas. conheço o auggie desde que ele era bebê.
ah, sim, acho que eu já sabia, sim, respondo. não quero que ela saiba que a olivia não me
contou nada disso. não quero demonstrar toda a minha surpresa com o fato de ela chamá-la de
via. ninguém além da família chama a olivia de via, e aqui está a garota de cabelo rosa, que eu
achava que era uma estranha, chamando-a assim.
a miranda ri e balança a cabeça, mas não diz nada. há um silêncio constrangedor e então ela
começa a remexer na bolsa e pega sua carteira. olha algumas fotografias e me entrega uma. é
de um garotinho no parque, em um dia de sol. ele está de short e camiseta — e um capacete de
astronauta que esconde toda a sua cabeça.
devia estar fazendo uns cem graus nesse dia, diz ela, sorrindo para a foto. mas ele não tirava
esse capacete por nada. ele o usou por uns dois anos direto, no inverno, no verão, na praia. era
uma loucura.
é, vi fotos na casa da olivia.
fui eu que dei o capacete a ele, diz.
parece um pouco orgulhosa disso. pega a foto e a guarda cuidadosamente na carteira.
legal, respondo.
então você não tem problema com isso?, pergunta ela, olhando para mim.
eu a olho sem entender.
problema com o quê?
ela ergue as sobrancelhas como se não acreditasse em mim.
você sabe do que estou falando, diz, e toma um grande gole de sua garrafa d’água. vamos
encarar os fatos, continua, o universo não foi legal com auggie pullman.


Pássaro


por que você não me contou que era amiga de miranda navas?, pergunto para a olivia no dia
seguinte.
estou realmente chateado por ela não ter comentado.
não é nada de mais, responde ela, na defensiva, olhando para mim como se eu fosse
esquisito.
é, sim, digo. fiquei com cara de idiota. como pôde não me contar? você sempre agiu como
se não a conhecesse.
eu não a conheço, responde ela depressa. não sei quem é aquela líder de torcida de cabelo
rosa. a garota que eu conhecia era uma boboca que colecionava bonecas.
ah, por favor, olivia.
por favor, você!
você poderia ter mencionado isso em algum momento, digo baixinho, fingindo não notar a
lágrima pesada que de repente está rolando por seu rosto.
ela dá de ombros, tentando segurar as lágrimas.
tudo bem, não estou zangado, digo, pensando que o choro é por minha causa.
sinceramente, não me importo se você está zangado, diz ela com maldade.
ah, isso é muito bacana, disparo de volta.
ela não diz nada. as lágrimas estão prestes a rolar.
olivia, qual é o problema?, pergunto.
ela balança a cabeça como se não quisesse falar do assunto, mas, de repente, as lágrimas
saem, incontroláveis.
desculpe, não é você, justin. não estou chorando por sua causa, diz ela por fim, entre
lágrimas.
então por que está chorando?
porque sou uma pessoa horrível.
do que você está falando?
ela não me olha e seca as lágrimas com a palma da mão.
não falei com meus pais sobre a peça, diz depressa.
balanço a cabeça, porque não entendo bem o que ela está dizendo.
tudo bem, digo. não é tarde demais, ainda há ingressos disponíveis...
não quero que eles vão, justin, interrompe ela, impaciente. você não entende o que estou
dizendo? não quero que eles vão! se forem, vão levar o auggie, e não quero...
nesse momento ela tem outro acesso de choro que não a deixa terminar de falar. eu a abraço.
sou uma pessoa horrível!, diz ela, em prantos.
não é, não, falo baixinho.
sou, sim! ela soluça. tem sido tão legal estar em uma escola nova, onde ninguém sabe sobre
ele, entende? ninguém fica cochichando sobre isso pelas minhas costas. tem sido tão bom,
justin! mas, se ele for à peça, então todo mundo vai falar disso, todo mundo vai saber... não sei
por que estou me sentindo assim... juro que nunca tive vergonha dele antes.
eu sei, eu sei, digo, tentando acalmá-la. você tem esse direito, olivia. passou por tanta coisa
a vida inteira...
a olivia às vezes me lembra um pássaro, de penas eriçadas quando ela está chateada. e,
quando ela está frágil desse jeito, parece um passarinho perdido à procura do ninho.
então deixo que se esconda debaixo da minha asa.


O Universo

não consigo dormir à noite. minha cabeça está cheia de pensamentos que não desligam. trechos
dos meus monólogos. elementos da tabela periódica que eu deveria estar decorando. teoremas
que eu deveria entender. a olivia. o auggie.
as palavras da miranda não saem da minha mente: o universo não foi legal com auggie
pullman.
pensei muito nisso e em tudo o que significa. ela está certa. o universo não foi legal com
auggie pullman. o que aquele garotinho fez para merecer essa sentença? o que os pais dele
fizeram? ou a olivia? uma vez ela mencionou que um médico disse aos pais dela que a
probabilidade de alguém ter a combinação de síndromes que resultou no rosto do auggie é de
uma em quatro milhões. então isso não faz do universo uma loteria gigantesca? você compra
um bilhete quando nasce. e é só um acaso ter um bilhete bom ou ruim. é questão de sorte.
minha mente gira com isso, mas então surgem pensamentos mais suaves, como um terceiro
violino em uma sinfonia de cordas. não, não é tudo um acaso. se fosse, o universo nos
abandonaria à própria sorte. e o universo não faz isso. ele cuida das suas criações mais
frágeis de formas que não vemos. como com pais que amam cegamente. e uma irmã mais velha
que se sente culpada por ser humana com relação a você. e um garotinho de voz grave que
perdeu os amigos por sua causa. e até uma garota de cabelo rosa que carrega sua foto na
carteira. talvez seja uma loteria, mas o universo deixa tudo certo no final. o universo cuida de
todos os seus pássaros.


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