Parte dez

A MENINA QUE ROUBAVA LIVROS
APRESENTANDO:
o fim de um mundo
o nonagésima oitavo dia
um guerreador
o caminho das palavras
uma menina catatônica
confissões
o livrinho preto de ilsa hermann
alguns aviões com sua caixa torácica
e uma cordilheira de escombros

O FIM DO MUNDO (Parte I)

Mais uma vez, ofereço-lhe um vislumbre do fim. Talvez seja para abrandar o golpe que virá depois, ou para me preparar melhor para contá-lo. Seja como for, devo informar-lhe que chovia na Rua Himmel quando o mundo acabou para Liesel Meminger.
O céu gotejava.
Como uma torneira que uma criança fez todo o possível para fechar, mas não conseguiu. As primeiras gotas foram frias. Senti-as nas mãos, ao parar na porta de Frau Diller.

Lá no alto, eu os escutava.
Através do céu nublado, levantei os olhos e vi os aviões destruidores. Vi suas barrigas abertas e as bombas displicentemente lançadas. Erraram o alvo, é claro. Era frequente errarem o alvo.

• UMA TRISTE ESPERANCINHA •
Ninguém queria bombardear
a Rua Himmel
Ninguém bombardearia um lugar
que tinha o nome do céu, não é?
Será que bombardearia?

As bombas desceram e, em pouco tempo, as nuvens se empastaram e as frias gotas de chuva transformaram-se em cinzas. Flocos quentes de neve foram despejados no chão.
Em suma, a Rua Himmel foi arrasada.
As casas foram espadanadas de um lado da rua para o outro. Uma foto emoldurada de um Führer de ar muito sério foi derrubada e espancada, no piso desfeito em pedaços. Mas ele continuou a sorrir, com aquele seu jeito sério. Sabia uma coisa que nem todos sabíamos. Mas eu sabia algo que ele não sabia. Tudo enquanto as pessoas dormiam.
Rudy Steiner estava dormindo. Mamãe e papai dormiam. Frau Holtzapfel, Frau Diller. Tommy Muller. Todos dormindo. Todos morrendo.

Só uma pessoa sobreviveu.
Ela sobreviveu porque estava sentada num porão, lendo a história de sua própria vida, verificando os erros. Antes disso, o cômodo fora declarado raso demais, porém, nessa noite de 7 de outubro, foi suficiente. As cápsulas da destruição desceram trotando e, horas depois, quando o silêncio estranho e desarrumado acomodou-se em Molching, a LSE local ouviu alguma coisa. Um eco. Lá embaixo, em algum lugar, uma menina martelava com um lápis uma lata de tinta.
Todos pararam, com os corpos e orelhas recurvados, e, ao ouvirem de novo, começaram a cavar.

• ITENS PASSADOS DE MÃO EM MÃO •
Blocos de cimento e telhas.
Um pedaço de parede com a
pintura de um sol gotejante.
Um acordeão de ar infeliz,
espiando por sua caixa carcomida.

• • •

Foram jogando tudo para cima.
Quando mais um pedaço de parede partida foi retirado, um deles viu o cabelo da menina que roubava livros.
O homem deu uma risada de puro prazer. Estava trazendo ao mundo um recém-nascido.
— Nem posso acreditar! Ela está viva!
Houve grande alegria entre os homens que gritavam em algazarra, mas não pude compartilhar inteiramente seu entusiasmo.

Antes disso, eu havia segurado o papai dela num braço e sua mamãe no outro. Duas almas muito suaves.

Mais adiante, seus corpos tinham sido estendidos, como o resto. Os encantadores olhos prateados do pai já começavam a enferrujar, e os lábios de papelão da mãe fixavam-se, entreabertos, provavelmente na forma de um ronco incompleto. Para blasfemar como os alemães, Jesus, Maria e José.

As mãos resgatadoras puxaram Liesel para fora e sacudiram de sua roupa as migalhas de detritos.
— Mocinha — disseram —, as sirenes chegaram tarde demais. O que você estava fazendo no porão? Como foi que soube?
O que eles não notaram foi que a menina ainda segurava o livro. E gritou sua resposta. Um grito assombroso dos vivos.
— Papai!
Segunda vez. Seu rosto crispou-se, enquanto ela atingia um tom mais agudo, mais marcado pelo pânico.
— Papai, papai!
Suspenderam-na enquanto ela gritava, gemia e chorava. Se estava ferida, ela ainda não sabia, porque se debateu até se soltar, e saiu procurando, chamando e gemendo um pouco mais.

Continuava apertando o livro.
Continuava desesperadamente agarrada às palavras que lhe tinham salvado a vida.

O NONAGÉSIMO OITAVO DIA

Nos primeiros noventa e sete dias depois da volta de Hans Hubermann, em abril de 1943, tudo correu bem. Em muitas ocasiões, ele ficava pensativo, meditando sobre o filho que lutava em Stalingrado, mas tinha a esperança de que um pouco de sua sorte corresse no sangue do rapaz.
Em sua terceira noite em casa, ele tocou acordeão na cozinha. Promessa era promessa. Houve música, sopa e piadas, e o riso de uma menina de quatorze anos.
— Saumensch — alertou-a a mãe —, pare de rir alto assim. As piadas dele não são tão engraçadas. E, além disso, são sujas...
Após uma semana, Hans retomou o trabalho, deslocando-se para um dos escritórios do exército na cidade. Disse que havia um bom suprimento de cigarros e comida por lá e, vez por outra, conseguia levar para casa uns biscoitos ou uma porção extra de geléia. Foi como nos velhos tempos. Um pequeno ataque aéreo em maio. Um "heil Hitler" aqui e ali, e estava tudo bem.
Até o nonagésimo oitavo dia.

• PEQUENA DECLARAÇÃO •
DE UMA ANCIÃ
Na Rua Munique, ela disse:
— Jesus, Maria e José, eu gostaria que
não os fizessem passar por aqui.
Esses judeus infelizes dão um azar desgraçado,
São mau sinal!
Toda vez que os vejo, sei que seremos destruídos.

Era a mesma velha que havia anunciado os judeus da janela, na primeira vez em que Liesel os vira. Visto de perto, o rosto dela era uma ameixa seca. Os olhos tinham o azul escuro de uma veia. E sua previsão foi correta.

No auge do verão, Molching recebeu um sinal das coisas que estavam por vir. Ele entrou no campo visual como sempre fazia. Primeiro, a cabeça de um soldado, subindo e descendo, e a arma cutucando o ar acima dele. Depois, a corrente maltrapilha dos judeus aprisionados.
A única diferença, dessa vez, é que eles vieram da direção oposta. Foram levados à cidade vizinha de Nebling, para esfregar as ruas e fazer o trabalho de limpeza que o exército se recusava a executar. No fim do dia, foram reconduzidos em marcha ao campo, lentos e exaustos, derrotados.
Mais uma vez, Liesel procurou Max Vandenburg, achando que ele poderia muito bem ter acabado em Dachau sem que o fizessem marchar por Molching. Ele não estava. Não nessa ocasião.
Mas bastava dar tempo ao tempo, porque, numa tarde quente de agosto, Max com certeza marcharia pela cidade com os demais. Ao contrário dos outros, porém, não olharia para a estrada. Não olharia ao acaso para as arquibancadas alemãs do Führer.

• UM DADO CONCERNENTE A •
MAX VANDENBURG
Ele perscrutaria os rostos da Rua Munique,
à procura de uma menina que roubava livros.

Nessa ocasião, em julho, no que Liesel depois calculou ter sido o nonagésimo oitavo dia desde o regresso do pai, ela parou e estudou a pilha móvel de judeus pesarosos — à procura de Max. Que mais não fosse, isso aliviava a dor de simplesmente olhar.
É uma ideia terrível, escreveria ela em seu porão da Rua Himmel, mas sabia que era verdade. A dor de olhá-los. E quanto à dor deles? E a dor dos sapatos trôpegos, da tortura e dos portões do campo a se fechar?

Eles passaram duas vezes em dez dias e, logo depois, a mulher anônima da Rua Munique, com sua cara de ameixa seca, revelou-se absolutamente correta. O sofrimento decididamente havia chegado, e, se eles culpavam os judeus como uma advertência ou um prólogo, deveriam ter culpado o Führer e sua busca da Rússia como a causa real — porque, quando a Rua Himmel acordou, no fim de julho, descobriu-se que um soldado regressado estava morto. Pendia de um dos caibros de uma lavanderia perto da loja de Frau Diller. Mais um pêndulo humano. Mais um relógio parado.
O proprietário, descuidado, deixara a porta aberta.

• 24 DE JULHO, 6:03H DA MANHÃ •
A lavanderia era quente,
os caibros eram firmes,
e Michael Holtzapfel pulou da cadeira
como se ela fosse um penhasco.

• • •

Muita gente me perseguiu nessa época, invocando meu nome, pedindo-me que eu os levasse comigo. E havia também a pequena percentagem que me chamava de vez em quando e sussurrava com a voz estreitada.
— Leve-me — diziam eles, e não havia como detê-los. Estavam apavorados, não há dúvida, mas não tinham medo de mim. Era o medo de estragarem tudo e terem que se enfrentar novamente, e terem que enfrentar o mundo, e gente como você.
Não havia nada que eu pudesse fazer.
Eles tinham jeitos demais, recursos demais — e, quando o faziam realmente bem, qualquer que fosse o método escolhido, eu não tinha condições de recusar.
Michael Holtzapfel sabia o que estava fazendo.
Matou-se por querer viver.

É claro que não vi Liesel Meminger nesse dia. Como geralmente acontece, informei a mim mesma que estava ocupada demais para permanecer na Rua Himmel e escutar os gritos. Já é ruim o bastante quando as pessoas me apanham com a boca na botija, de modo que tomei a decisão costumeira de sair de fininho, rumo ao sol cor de café-da-manhã.
Não ouvi a detonação da voz de um velho quando ele encontrou o corpo suspenso, nem o som dos pés em correria e dos arquejos de queixo caído, quando as outras pessoas chegaram. Não ouvi um homenzinho magrelo de bigode resmungar: "Que vergonha, maldita vergonha"...
Não vi Frau Holtzapfel estirada na Rua Himmel, de braços abertos, com o rosto gritando em total desespero. Não, não descobri nada disso até voltar, alguns meses depois, e ler uma coisa chamada A Menina que Roubava Livros. Explicaram-me que, no final, Michael Holtzapfel foi vencido não pela mão mutilada, nem por qualquer outro ferimento, mas pela culpa de estar vivo. No período que antecedeu sua morte, a menina havia percebido que ele não vinha dormindo, que toda noite era um veneno. Muitas vezes o imagino deitado, desperto, transpirando em lençóis de neve, ou tendo visões das pernas decepadas do irmão. Liesel escreveu que, em alguns momentos, ela quase lhe falou de seu irmão, como fizera com Max, mas parecia haver uma grande diferença entre uma tosse interurbana e duas pernas obliteradas. Como consolar um homem que viu essas coisas? Seria possível dizer-lhe que o Führer se orgulhava dele, que o Führer o amava pelo que ele tinha feito em Stalingrado? Como é que alguém se atreveria? Só se podia deixar que ele falasse. O dilema, é claro, é que as pessoas como essas guardam suas palavras mais importantes para depois, para quando os humanos em volta têm a infelicidade de encontrá-las. Um bilhete, uma frase, até uma pergunta ou uma carta, como na Rua Himmel, em julho de 1943.

• MICHAEL HOLTZAPFEL •
O ÚLTIMO ADEUS
Querida mamãe,
Será que um dia você poderá me perdoai?
É que não pude suportar mais.
Vou ao encontro do Robert.
Pouco me importa o que dizem os malditos católicos.
Deve haver um lugar no paraíso para
os que estiveram onde eu estive.
Talvez você pense que eu não a amo,
por causa do que eu fiz, mas eu a amo.
Do seu, Michael.

Foi a Hans Hubermann que pediram que desse a notícia a Frau Holtzapfel. Ele parou na soleira da casa e ela deve ter visto tudo em seu rosto. Dois filhos em seis meses.
O céu matinal resplandecia atrás dele quando a mulher magra e rija passou. Ela correu aos soluços até a aglomeração, mais adiante na Rua Himmel. Disse o nome de Michael pelo menos duas dúzias de vezes, mas Michael já tinha respondido. Segundo a menina que roubava livros, Frau Holtzapfel ficou abraçada ao corpo durante quase uma hora. Depois, voltou para o sol ofuscante da Rua Himmel e se sentou. Não conseguia mais andar.
A uma certa distância, as pessoas observaram. Essas coisas eram mais fáceis quando vistas ao longe.
Hans Hubermann sentou-se com ela.
Pôs suas mãos na dela, quando a mulher se prostrou no chão duro.
Deixou que seus gritos enchessem a rua.

Muito mais tarde, Hans caminhou ao lado dela, com esmerado cuidado, fazendo-a atravessar o portão e entrar em casa. E, não importa quantas vezes eu tente ver as coisas de outra maneira, não consigo...
Quando imagino essa cena da mulher transtornada e do homem alto, de olhos de prata, ainda neva na cozinha da Rua Himmel, número 31.

O GUERREADOR

Havia um cheiro de caixão recém-construído. Vestidos pretos. Bolsas enormes sob os olhos. Liesel ficou em pé na relva, como os demais. Leu para Frau Holtzapfel na mesma tarde. O Carregador de Sonhos, o favorito de sua vizinha.
Foi mesmo um dia muito atarefado.

• 27 DE JULHO DE 1943 •
Michael Holtzapfel foi sepultado e
a menina que roubava livros leu para a mãe enlutada.
Os Aliados bombardearam Hamburgo —
e quanto a isso, é uma sorte eu ser meio milagrosa.
Ninguém mais conseguiria carregar quase
quarenta e cinco mil pessoas num prazo tão curto.
Nem em um milhão de anos humanos.

Os alemães, a essa altura, começavam a pagar de verdade. Os joelhinhos espinhentos do Führer estavam começando a tremer.
Mas uma coisa eu reconheço nesse tal de Führer.
Ele tinha, com certeza, uma vontade férrea.
Não houve afrouxamento na condução da guerra, nem qualquer redução na escala do extermínio e castigo de uma certa peste judaica Embora a maioria dos campos se espalhasse por toda a Europa, ainda existiam alguns na própria Alemanha.
Nesses campos, muita gente ainda era obrigada a trabalhar e andar.
Max Vandenburg era um desses judeus.

O CAMINHO DAS PALAVRAS

Aconteceu numa cidadezinha do centro vital de Hitler.
O fluxo de mais sofrimento foi bem bombeado, e um pedacinho dele chegou.
Havia judeus sendo obrigados a marchar pelos arredores de Munique e, de algum modo, uma menina adolescente fez o impensável e abriu caminho para andar com eles. Quando os soldados a arrancaram de lá e a derrubaram no chão, ela tornou a se levantar. E continuou.

A manhã estava quente.
Mais um belo dia para um desfile.

Os soldados e os judeus atravessaram diversas cidades e estavam chegando a Molching. Era possível que fosse preciso fazer mais trabalho no campo, ou que vários prisioneiros houvessem morrido. Qualquer que fosse a razão, um novo lote de judeus recém-chegados e exaustos estava sendo levado a pé para Dachau.
Como sempre fizera, Liesel correu para a Rua Munique, com o bando habitual de circunstantes.

• • •

— Heil Hitler!
Ela ouviu o primeiro soldado lá longe, na rua, e partiu em direção a ele pela multidão, ao encontro do desfile. A voz a surpreendeu. Transformou o céu infinito num teto, logo acima de sua cabeça, e as palavras quicaram de volta, caindo em algum ponto do solo de trôpegos pés judaicos.
Os olhos.
Eles observavam a rua em movimento, um por um, e, quando Liesel encontrou um lugar de onde tinha uma boa visão, parou para estudá-los. Vasculhou às pressas os arquivos de um rosto após outro, tentando cotejá-los com o judeu que escrevera O Vigiador e A Sacudidora de Palavras.
Cabelos de penas, pensou.
Não, cabelos iguais a gravetos. Era essa a sua aparência quando ele não era lavado. Procure cabelos iguais a gravetos, olhos alagadiços e barba de aparas de madeira.

Meu Deus, havia muitos deles.
Inúmeros pares de olhos agonizantes e pés arrastados.
Liesel os vasculhou, e não foi propriamente um reconhecimento de feições que revelou Max Vandenburg. Foi o modo como o rosto agia — também estudando a multidão. Com uma concentração fixa. Liesel sentiu-se hesitar, ao deparar com o único rosto que olhava diretamente para os espectadores alemães. Examinava-os com tamanha determinação, que as pessoas dos dois lados da menina que roubava livros o notaram e apontaram.
— Que é que ele está olhando? — disse uma voz masculina ao lado de Liesel.

A roubadora de livros deu um passo em direção à rua.
Nunca um movimento tinha sido tamanho fardo. Nunca um coração fora tão palpável e grande em seu peito adolescente.
Liesel deu um passo à frente e disse, muito baixinho:
— Ele está procurando por mim.

Sua voz extinguiu-se e desapareceu dentro do corpo. A menina teve que reencontrá-la — procurar lá no fundo, reaprender a falar e chamar o nome dele.
Max.

— Estou aqui, Max!
Mais alto.
— Max, estou aqui!

Ele a ouviu.

• MAX VANDENBURG, AGOSTO DE 1943 •
Havia gravetos de cabelo, como Liesel tinha pensado,
e os olhos alagadiços foram andando de ombro em ombro,
por cima dos outros judeus. Ao chegarem a ela, foram súplices.
A barba afagou o rosto de Max e sua boca tremeu
ao dizer a palavra, o nome, a menina.
Liesel.

Espremendo-se, Liesel escapou por inteiro da multidão e entrou na maré de judeus, trançando por entre eles até segurá-lo pelo braço com a mão esquerda.
O rosto de Max pousou sobre ela.
Curvou-se quando ela tropeçou, e o judeu, o judeu execrável, ajudou-a a se levantar. Precisou de todas as suas forças.
— Estou aqui, Max — repetiu a menina. — Estou aqui.
— Nem acredito... — pingaram as palavras da boca de Max Vandenburg. — Veja só como você cresceu! — e havia uma intensa tristeza em seus olhos, que ficaram marejados. — Liesel... eles me pegaram há alguns meses — disse a voz; capengava, mas arrastou-se até a menina: — A meio caminho de Stuttgart.

Por dentro, a torrente de judeus era uma obscura calamidade feita de braços e pernas. Uniformes esfarrapados. Até então, nenhum soldado a vira, e Max a advertiu:
— Você tem que me soltar, Liesel.
Tentou até empurrá-la, mas a menina era forte demais. Os braços esfaimados de Max não conseguiram afastá-la, e ela continuou andando em meio à imundície, à fome e à confusão.
Após uma longa fileira de passos, o primeiro soldado notou.
— Ei! — gritou. Apontou o chicote. — Ei, garota, o que está fazendo? Saia daí.
Quando ela o ignorou por completo, o soldado usou o braço para separar a massa grudenta de gente. Empurrou-os para os lados e abriu caminho. Avultou diante dela, enquanto Liesel lutava para seguir em frente, e notou a expressão estrangulada no rosto de Max Vandenburg. Liesel já o vira com dor, mas nunca daquele jeito.
O soldado a segurou.
Suas mãos maltrataram-lhe a roupa.
Liesel sentiu os ossos dos dedos militares e o caroço de cada nó. Eles lhe rasgavam a pele.
— Eu disse para sair! — ordenou o soldado, e nesse momento a arrastou de banda e a atirou na muralha de espectadores alemães. Estava ficando mais quente. O sol queimava o rosto de Liesel. A menina caiu, esparramada de dor, mas tornou a se levantar. Recuperou-se e esperou. Entrou novamente.
Dessa vez, abriu caminho por trás.
Mais adiante, vislumbrou os claros gravetos de cabelos e andou em direção a eles. Dessa vez, Liesel não estendeu a mão — parou. Em algum lugar dentro dela estavam as almas das palavras. Que subiram e pararam a seu lado.
— Max — disse Liesel. O rapaz se virou e fechou os olhos por um instante, enquanto a menina prosseguia. — "Era uma vez um homenzinho estranho" — fez ela. Seus braços pendiam, mas suas mãos eram punhos cerrados junto ao corpo. — "Mas havia também uma sacudidora de palavras."

Um dos judeus a caminho de Dachau parou de andar.
Ficou absolutamente imóvel, enquanto os outros se desviavam, carrancudos, deixando-o completamente só. Seus olhos hesitaram, e foi muito simples. As palavras foram doadas, passando da menina para o judeu. Escalaram-no.

Quando Liesel voltou a falar, as perguntas lhe saíram da boca aos tropeços. Em seus olhos, lutavam por espaço as lágrimas quentes que ela não deixava sair. Era melhor manter-se resoluta e orgulhosa. As palavras que cuidassem de tudo.
— "É você mesmo?, perguntou ao rapaz" — disse Liesel. — "Será que foi do seu rosto que tirei a semente?"

Max Vandenburg continuou estático.
Não caiu de joelhos.
Pessoas, judeus e nuvens, todos pararam. Ficaram observando.
Postado ali, Max olhou primeiro para a menina, depois fitou diretamente o céu, amplo, azul e magnífico. Havia feixes pesados — pranchas de sol — caindo na estrada ao acaso, maravilhosamente. As nuvens arquearam as costas para olhar para trás, recomeçando sua caminhada.
— Está um dia tão lindo — disse Max, com a voz em muitos pedaços. Um grande dia para morrer. Um grande dia para morrer, como esse.
Liesel caminhou até ele. Era tão corajosa que estendeu a mão e segurou seu rosto barbudo.
— É você mesmo, Max?
Um dia alemão muito brilhante, com sua multidão atenta.
Ele deixou seus lábios beijarem a palma da menina.
— Sim, Liesel, sou eu — e segurou a mão dela junto ao rosto, e chorou em seus dedos. Chorava quando os soldados chegaram e um grupinho de judeus insolentes parou para olhar.
De pé, ele foi açoitado.
— Max — chorou a menina.
Depois, em silêncio, enquanto era arrastada para longe.
Max.
O lutador judeu.
Por dentro, ela disse tudo.
Máxi Táxi. Foi assim que aquele seu amigo o chamou em Stuttgart, quando você brigava na rua, lembra-se? Lembra-se, Max? Você me contou. Eu me lembro de tudo...
Esse era você — o menino de punhos rígidos, e você disse que daria um soco na cara da morte quando ela viesse buscá-lo.
Lembra-se do boneco de neve, Max?
Lembra-se?
No porão?
Lembra-se da nuvem branca de coração cinzento?
O Führer ainda vai lá procurá-lo, de vez em quando. Sente sua falta. Todos sentimos a sua falta.
O chicote. O chicote.

O chicote continuou, brandido pela mão do soldado. Desceu sobre o rosto de Max. Recortou-lhe o queixo e lanhou sua garganta.
Max bateu no chão e o soldado se virou para a menina. Sua boca se abriu. Tinha dentes imaculados.
O clarão súbito faiscou diante dos olhos de Liesel. Ela se lembrou do dia em que quisera que Ilsa Hermann ou a confiável Rosa, pelo menos, a esbofeteassem, mas nenhuma das duas se dispusera a fazê-lo. Nesse dia, não foi decepcionada.
O chicote talhou sua clavícula e se estendeu até a omoplata.
— Liesel!
Ela conhecia essa pessoa.

Enquanto o soldado balançava o braço, ela avistou o aflito Rudy Steiner nas lacunas da multidão. Ele a chamava. A menina viu-lhe o rosto torturado e o cabelo amarelo.
— Liesel, saia daí!
A roubadora de livros não saiu.
Fechou os olhos e recebeu o risco ardente que veio em seguida, e mais outro, até seu corpo bater no pavimento morno da rua. Ele lhe aqueceu a face.
Chegaram mais palavras, dessa vez do soldado.
— Steh'auf.
A frase econômica não foi dirigida à menina, mas ao judeu. Estendeu-se em maiores detalhes.
— Levante, seu babaca imundo, seu judeu filho-da-puta, levante, levante...

Max içou-se até ficar de pé.
Só mais uma flexão, Max.
Só mais uma flexão no piso frio do porão.

Os pés dele se mexeram.
Arrastaram-se, e ele seguiu viagem.
Suas pernas bambearam e suas mãos alisaram as marcas do açoite, para aliviar a ardência. Quando ele tentou novamente buscar Liesel com os olhos, as mãos do soldado foram postas em seus ombros ensangüentados e empurraram.

O menino chegou. Suas pernas desengonçadas agacharam-se e ele gritou para a esquerda:
— Tommy, venha aqui me ajudar. Temos que pô-la de pé. Depressa, Tommy!
Ergueu a roubadora de livros pelas axilas.
— Vamos, Liesel, você tem que sair da rua.
Quando conseguiu ficar de pé, ela olhou para os alemães chocados, de rosto congelado, recém-saído da embalagem. Aos pés deles, deixou-se desabar, mas apenas por um momento. Um arranhão riscou um fósforo do lado de seu rosto, no ponto em que ela batera no chão. O latejo o fez virar-se, fritando dos dois lados.
Lá longe, na rua, ela via as pernas e os calcanhares indistintos do último judeu caminhante.

Seu rosto ardia e havia uma dor infernal em seus braços e pernas — um torpor a um tempo doloroso e exaustivo.
Liesel levantou-se pela última vez.
Obstinadamente, começou a andar e a correr pela Rua Munique, para alcançar os últimos passos de Max Vandenburg.
— Liesel, que está fazendo?!
Ela escapou das garras das palavras de Rudy e ignorou as pessoas ao lado que a observavam. Quase todas estavam mudas. Estátuas com o coração batendo. Talvez espectadores das etapas finais de uma maratona. Liesel tornou a gritar e não foi ouvida. Tinha o cabelo nos olhos.
— Por favor, Max!
Depois de uns trinta metros, talvez, no exato momento em que um soldado se virava para olhar, a menina foi derrubada. As mãos fecharam-se sobre ela por trás, feito pinças, e o menino da casa ao lado jogou-a no chão. Fincou-lhe os joelhos na rua, à força, e suportou o castigo. Recebeu os socos como se fossem presentes. As mãos e cotovelos ossudos da menina foram acolhidos sem nada além de pequenos gemidos. Rudy acumulou os borrifos ruidosos e desajeitados de saliva e lágrimas, como se fossem um afago encantador em seu rosto, e, o que é mais importante, conseguiu segurá-la no chão.

Na Rua Munique, um menino e uma menina se entrelaçaram.
Ficaram incomodamente retorcidos no chão.
Juntos, viram os seres humanos desaparecerem. Viram-nos dissolver-se feito pastilhas móveis no ar úmido.

CONFISSÕES

Depois que os judeus se foram, Rudy e Liesel se desenredaram e a menina que roubava livros não falou. Não havia respostas para as perguntas de Rudy.
Ela tampouco foi para casa. Andou desamparada até a estação ferroviária e passou horas esperando o pai. Rudy ficou com ela nos primeiros vinte minutos, mas, como ainda faltava um bom meio dia até a hora de Hans chegar, foi buscar Rosa. Na volta para a estação, contou-lhe o que tinha acontecido e, quando Rosa chegou, não perguntou nada à menina. Já havia montado o quebra-cabeça e apenas parou a seu lado, e acabou convencendo-a a se sentar. Esperaram juntas.
Quando o pai soube, deixou cair a sacola e chutou o ar da Bahnhof.
Nessa noite, nenhum deles comeu. Os dedos do pai profanaram o acordeão, assassinando uma melodia após outra, por mais que ele se esforçasse. Nada mais funcionava.

Durante três dias, a menina que roubava livros permaneceu na cama.
Toda manhã e toda tarde, Rudy Steiner batia à porta e perguntava se ela ainda estava doente. Liesel não estava doente.

• • •

No quarto dia, a menina foi até a porta de entrada do vizinho e perguntou se ele poderia voltar ao bosque com ela, ao lugar onde haviam distribuído pão no ano anterior.
— Eu devia ter-lhe contado há mais tempo — disse.
Como prometido, os dois percorreram um longo trecho da estrada para Dachau. Pararam junto às árvores. Havia longas formas de luz e sombra. E pinhas dispersas feito biscoitos.
Obrigada, Rudy.
Por tudo. Por ter-me ajudado na rua, por ter-me feito parar...
Liesel não disse nenhuma dessas coisas.
Descansou a mão num ramo descascado junto a seu corpo.
— Rudy, se eu lhe contar uma coisa, você jura não dizer uma palavra a ninguém?
— É claro.
Ele captou a seriedade no rosto da menina e o peso em sua voz. Encostou-se na árvore ao lado dela.
— O que é?
— Jure.
— Já jurei.
— Jure de novo. Você não pode contar a sua mãe, a seu irmão nem ao Tommy Müller. A ninguém.
— Eu juro.
Encostada.
Olhando para o chão.
Ela tentou várias vezes descobrir o lugar certo em que começar, lendo as frases a seus pés, juntando as palavras com as pinhas e os restos de galhos partidos.
— Lembra-se de quando eu me machuquei na rua, jogando futebol? — perguntou.
Foram precisos aproximadamente três quartos de hora para explicar duas guerras, um acordeão, um lutador judeu e um porão. Sem esquecer o que tinha acontecido quatro dias antes, na Rua Munique.
— Foi por isso que você chegou mais perto para olhar — disse Rudy — naquele dia do pão. Para ver se ele estava lá.
— Foi.
— Cristo crucificado!
— É.

As árvores eram altas e triangulares. Permaneceram caladas. Liesel tirou da bolsa A Sacudidora de Palavras e mostrou uma página a Rudy. Nela havia um menino com três medalhas penduradas no pescoço.
— "Cabelos da cor de limões" — leu Rudy. Seus dedos tocaram as palavras.
— Você falou de mim com ele?
No começo, Liesel não conseguiu dizer nada. Talvez fosse a súbita turbulência do amor que sentiu por ele. Ou será que sempre o tinha amado? Era provável. Impedida como estava de falar, desejou que ele a beijasse. Quis que ele arrastasse sua mão e a puxasse para si. Não importava onde a beijasse. Na boca, no pescoço, na face. Sua pele estava vazia para o beijo, esperando.
Anos antes, quando os dois haviam apostado corrida num campo lamacento, Rudy era um conjunto de ossos montado às pressas, com um riso irregular e hesitante. Sob o arvoredo, nessa tarde, era um doador de pão e ursinhos de pelúcia. Um tríplice campeão de atletismo da Juventude Hitlerista. Era seu melhor amigo. E estava a um mês de sua morte.
— É claro que falei de você com ele — disse Liesel.
Estava se despedindo, e nem sabia.

O LIVRINHO PRETO
DE ILSA HERMANN

Em meados de agosto, ela pensou em ir ao número 8 da Grande Strasse, em busca do mesmo velho remédio.
Para se animar.
Foi isso que pensou.

Tinha feito calor durante o dia, mas havia previsão de chuvas à noite. Em O Ultimo Forasteiro Humano, havia uma citação perto do final. Liesel lembrou-se dela, ao passar pela loja de Frau Diller.

• O ÚLTIMO FORASTEIRO HUMANO PÁGINA 211•
O sol mistura a terra. Rodando, rodando,
ele nos mistura como um ensopado.

Na ocasião, Liesel só pensou nisso porque o dia estava muito quente.
Na Rua Munique, lembrou-se dos acontecimentos da semana anterior. Reviu os judeus vindo pela rua, suas fileiras, seus números e seu sofrimento.
Resolveu que faltava uma palavra em sua citação.
A palavra é ensopado repulsivo, pensou com seus botões.
Tão repulsivo que não posso suportá-lo.

Liesel cruzou a ponte sobre o Rio Amper. A água estava gloriosa, esmeralda, vivida. Ela viu as pedras no fundo e ouviu o cantarolar conhecido da água. O mundo não merecia um rio daqueles.
Escalou a ladeira para a Grande Strasse. As casas eram encantadoras e repugnantes. Ela gostou da dorzinha nas pernas e nos pulmões. Ande mais rápido, pensou, e começou a subir, como um monstro elevando-se da areia. Sentiu o cheiro da relva na vizinhança. Ela era nova e doce, verde com pontas amarelas. Liesel atravessou o jardim sem virar uma só vez a cabeça, sem a menor pausa de paranóia.

A janela.
Mãos no caixilho, pernas em tesoura.
Pés pousando.
Livros e páginas e um lugar feliz.

Tirou um livro da estante e sentou-se com ele no chão.
Será que ela está em casa?, pensou, mas não lhe importava se Ilsa Hermann estava fatiando batatas na cozinha ou fazendo fila no correio. Ou parada feito um fantasma acima dela, examinando o que a menina lia.
Ela simplesmente já não se importava.
Durante muito tempo, ficou sentada e viu.
Ela vira seu irmão morrer com um olho aberto, o outro ainda no sonho. Dissera adeus à mãe e imaginara sua espera solitária de um trem, de volta para o limbo. Uma mulher de arame tinha-se deitado no chão, com seu grito percorrendo a rua, até cair de lado, como uma moeda rolada que houvesse perdido o impulso. Um rapaz pendera de uma corda feita das neves de Stalingrado. Ela vira um piloto de bombardeiro morrer numa caixa de metal. Vira um homem judeu, que por duas vezes lhe dera as mais belas páginas de sua vida, ser forçado a marchar para um campo de concentração. E, no centro de tudo, viu o Führer berrando suas palavras e passando-as adiante.
Essas imagens eram o mundo, que cozinhava em fogo brando dentro dela, sentada ali com os livros encantadores e seus títulos manicurados. Fermentava dentro dela, enquanto a menina olhava as páginas, com suas panças cheias até o gorgomilo de parágrafos e palavras.
Seus cretinos, pensou.
Seus cretinos encantadores.
Não me façam feliz. Por favor, não me saciem nem me deixem pensar que alguma coisa boa pode sair disso. Olhem para meus machucados. Olhem para este arranhão. Estão vendo o arranhão dentro de mim? Estão vendo ele crescer bem diante dos seus olhos, me corroendo? Não quero ter esperança de mais nada. Não quero rezar para que Max esteja vivo e em segurança. Nem Alex Steiner.
Porque o mundo não os merece.

Arrancou uma página do livro e a rasgou ao meio.
Depois, um capítulo.
Em pouco tempo, não restava nada senão tiras de palavras, derramadas feito lixo entre suas pernas e em toda a sua volta. As palavras. Por que tinham que existir? Sem elas, não haveria nada disso. Sem as palavras, o Führer não era nada. Não haveria prisioneiros claudicantes, nem necessidade de consolo ou de truques mundanos para fazer com que nos sentíssemos melhor.
De que adiantavam as palavras?
Dessa vez ela o disse em voz alta, para a sala iluminada de laranja.
— De que servem as palavras?

A menina que roubava livros levantou-se e andou com cuidado até a porta da biblioteca, cujo protesto foi pequeno e sem ânimo. O corredor arejado estava impregnado do vazio da madeira.
— Frau Hermann?
A pergunta voltou para ela e tentou um novo avanço até a porta da frente. Só chegou à metade do caminho, onde desabou, enfraquecida, num par de tábuas gordas do piso.
— Frau Hermann?
Nada acolheu os chamados senão o silêncio, e Liesel sentiu-se tentada a procurar a cozinha, para Rudy. Conteve-se. Não seria correto roubar comida de uma mulher que lhe deixara um dicionário encostado numa vidraça de janela. Isso e, ainda por cima, ela acabara de destruir um de seus livros, página por página, capítulo por capítulo. Já tinha feito estragos suficientes.
Voltou para a biblioteca e abriu uma das gavetas da escrivaninha. Sentou-se.

• A ÚLTIMA CARTA •
Cara Sra. Hermann,
Como a senhora pode ver, estive novamente em sua biblioteca
e destruí um de seus livros. É que eu estava com tanta raiva
e tanto medo, que quis matar as palavras.
Eu a roubei e agora destruí sua propriedade. Desculpe-me.
Para me castigar, acho que vou parar de vir aqui.
Ou será que isso é mesmo um castigo?
Adoro este lugar e o odeio, porque ele é cheio de palavras.
A senhora tem sido minha amiga, embora eu
a tenha magoado, embora eu tenha sido ignominiosa
(palavra que consultei no seu dicionário),
e acho que agora vou deixá-la em paz.
Sinto muito por tudo. Obrigada, mais uma vez.
Liesel Meminger

Deixou o bilhete na escrivaninha e se despediu do aposento pela última vez, dando três voltas e passando as mãos pelos títulos. Por mais que os detestasse, não pôde resistir. Havia flocos de papel picado espalhados em torno de um livro chamado As normas de Tommy Hoffmann. Na brisa que entrava pela janela, alguns de seus fiapos subiam e desciam.
A luz ainda era laranja, mas não tão luminosa quanto antes. As mãos de Liesel sentiram a compressão final do caixilho da janela, e veio a última agitação da barriga mergulhando, e o impacto da dor nos pés ao pisar na terra.
Quando ela acabou de descer a colina e atravessar a ponte, a luz laranja havia desaparecido. As nuvens se amontoavam.
Ao andar pela Rua Himmel, Liesel já pôde sentir as primeiras gotas de chuva. Nunca mais verei Ilsa Hermann, pensou consigo mesma, porém a menina que roubava livros era melhor para ler e estragar livros do que para fazer suposições.

• TRÊS DIAS DEPOIS •
A mulher bateu no número trinta e
três e esperou que atendessem.

Foi estranho para Liesel vê-la sem o roupão de banho. O vestido de verão era amarelo, com um debrum vermelho. Havia um bolso com uma florzinha. Nada de suásticas. Sapatos pretos. Até então, a menina nunca havia notado as canelas de Ilsa Hermann. A mulher tinha pernas de porcelana.
— Frau Hermann, eu sinto muito... pelo que fiz na biblioteca da última vez.
A mulher acalmou-a. Enfiou a mão na bolsa e puxou um livrinho preto. Dentro não havia nenhuma história, mas papel pautado.
— Achei que, se você não vai mais ler nenhum dos meus livros, talvez queira escrever um. A sua carta, ela foi... — e entregou o livro a Liesel com as duas mãos.
— Você com certeza sabe escrever. Você escreve bem.
O livro era pesado, de capa dura e opaca como O Dar de Ombros.
— E, por favor — aconselhou Ilsa Hermann —, não se castigue, como disse que faria. Não seja como eu, Liesel.
A menina abriu o livro e tocou o papel.
— Danke schön, Frau Hermann. Posso lhe fazer um café, se a senhora quiser. Quer entrar? Estou sozinha em casa. Minha mãe está aqui ao lado, com Frau Holtzapfel.
— Devemos usar a porta ou a janela?
Liesel desconfiou que foi o sorriso mais largo que Ilsa Hermann já se permitira dar em anos.
— Acho que usamos a porta. É mais fácil.
Sentaram-se na cozinha.
Canecas de café e pão com geléia. Ambas se esforçaram por falar e Liesel pôde ouvir Ilsa Hermann engolir em seco, mas, de algum modo, não foi incômodo. Foi até agradável ver a mulher soprar delicadamente o café para esfriá-lo.
— Se um dia eu escrever alguma coisa e o terminar — disse Liesel —, eu lhe mostro.
— Seria muito bom.
Quando a mulher do prefeito se foi, Liesel a olhou subir a Rua Himmel. Olhou para seu vestido amarelo, seus sapatos pretos e suas pernas de porcelana.
Junto à caixa do correio, Rudy perguntou:
— Aquela era quem eu estou pensando?
— Era.
— Você está de brincadeira.
— Ela me deu um presente.

Como se veio a constatar, Ilsa Hermann não deu apenas um livro a Liesel Meminger nesse dia. Deu-lhe também um motivo para passar tempo no porão — seu lugar favorito, primeiro com o pai, depois com Max. Deu-lhe uma razão para ela escrever suas próprias palavras, para ver que as palavras também lhe tinham dado vida.
— Não se castigue — a menina a ouviu dizer outra vez. Mas haveria castigo e sofrimento, e haveria também felicidade. Em escrever.

À noite, quando a mãe e o pai foram dormir, Liesel desceu furtivamente ao porão e acendeu a lamparina de querosene. Durante a primeira hora, só fez olhar para o papel e o lápis. Obrigou-se a lembrar e, como era seu hábito, não desviou os olhos.
— Schreibe — instruiu a si mesma. Escreva.
Passadas mais de duas horas, Liesel Meminger começou a escrever, sem saber como conseguiria fazer isso direito. Como poderia saber que alguém apanharia sua história e a carregaria consigo por toda parte?
Ninguém espera essas coisas.
Ninguém as planeja.

Usando uma lata pequena de tinta como assento e uma grande como mesa, Liesel pôs o lápis na primeira página. No centro, escreveu o seguinte:

• A MENINA QUE ROUBAVA LIVROS •
uma pequena história
de
Liesel Meminger

OS AVIÕES COM CAIXA TORÁCICA

Na página três, sua mão estava dolorida.
As palavras pesam muito, pensou ela, mas, no correr da noite, conseguiu terminar onze páginas.

• PÁGINA 1 •
Eu tento ignorar, mas sei que tudo isso começou
com o trem, a neve e meu irmão tossindo.
Roubei meu primeiro livro naquele dia.
Era um manual para cavar sepulturas, e eu o roubei
quando estava a caminho da Rua Himmel...

Ela adormeceu lá embaixo, numa cama feita de mantas de proteção contra respingos, com o papel enrolando nas bordas, em cima da lata mais alta de tinta. De manhã, a mãe postou-se junto dela, os olhos clorados cheios de perguntas.
— Liesel, que é que você está fazendo aqui embaixo? — perguntou.
— Estou escrevendo, mamãe.
— Jesus, Maria e José — fez Rosa, e subiu a escada pisando duro. — Trate de voltar lá para cima em cinco minutos, se não vai receber o tratamento do balde. Verstehst?
— Entendi.

Toda noite, Liesel descia ao porão. Carregava o livro consigo o tempo todo. Escrevia durante horas, tentando terminar a cada noite dez páginas de sua vida. Havia muito a considerar, muitas coisas que corriam o risco de ser deixadas de fora. Seja paciente, ela dizia a si mesma, e, com o crescer das páginas, a força do punho que escrevia aumentou.
Vez por outra, ela escrevia sobre o que estava acontecendo no porão na hora de redigir. Havia acabado de concluir o momento em que o pai a esbofeteara na escada da igreja, e de contar como os dois tinha dito ‘’ Heil Hitler’’ juntos. Do outro lado, Hans Hubermann guardava o acordeão. Acabara de passar meia hora tocando, enquanto Liesel escrevia.

• PÁGINA 42 •
Esta noite papai, ficou sentado comigo.
Trouxe o acordeão cá para baixo e
se sentou perto de onde Max costumava sentar.
Muitas vezes, olho para os seus dedos e seu rosto,
quando ele toca. O acordeão respira.
Há rugas nas faces de papai. Parecem tensas
e, por algum motivo, quando as vejo, sinto
vontade de chorar. Não é por tristeza nem orgulho.
É só que gosto do jeito de elas se mexerem e mudarem.
Às vezes, acho que meu pai é um acordeão .
Quando ele olha pra miim,
Sorri e respira, escuto notas.

Após dez noites de redação, Munique tornou a ser bombardeada. Liesel havia chegado à página 102 e estava dormindo no porão. Não ouviu o cuco nem as sirenes, e dormia abraçada ao livro quando o pai foi acorda-lá. ‘’Venha, Liesel.’’ Ela pegou A Menina que Roubava Livros e cada um de seus outros livros, e os dois foram buscar Frau Holtzapfel.

• PÁGINA 175 •
Um livro desceu flutuando pelo Rio Amper.
Um menino pulou na água, alcançou-o
e segurou com a mão direita.
Sorriu. Estava afundado até a cintura
na gélida água dezembrina.
— Que tal u m beijo, Saumensch? — disse.

No bombardeio seguinte, em 2 de outubro, ela havia terminado. Restavam apenas algumas dúzias de páginas em branco, e a roubadora de livros já começava a reler o que tinha escrito. O livro era dividido em dez partes, todas as quais haviam recebido títulos de livros ou histórias e descreviam o modo como cada um havia afetado sua vida.
Muitas vezes me pergunto a que página ela teria chegado quando percorri a Rua Himmel, sob o tamborilar da chuva pingante, cinco noites depois. Penso no que estaria lendo quando a primeira bomba caiu da caixa torácica de um avião.
Pessoalmente, gosto de imaginá-la dando uma rápida olhadela para a parede, para a nuvem encordoada de Max Vanderburg, com seu sol gotejante e as figuras caminhando em direção a ele. Depois, ela olha para as tentativas aflita de sua ortografia pintada a tinta. Vejo o Führer descendo a escadaa do porão, com suas luvas de boxe amarradas uma na outra, displicentemente penduradas no pescoço. E a roubadora de livros lê, relê e relê sua última frase, durante muitas horas.

•  A MENINA QUE ROUBAVA LIVROS — ÚLTIMA LINHA •
Odiei as palavras e as amei,
e espero tê-las usado direito.

Lá fora, o mundo sibilava. A chuva manchou-se.

O FIM DO MUNDO (Parte II)

Quase todas as palavras estão desbotadas. O livro preto vem-se desintegrando sob o peso de minhas viagens. Essa foi outra razão para eu contar esta história. Que foi que dissemos antes? Diga uma coisa um número suficiente de vezes, e você nunca mais a esquece. Ademais, posso lhe contar o que aconteceu depois que as palavras da menina que roubava livros pararam, e como vim a tomar conhecimento de sua história, para começo de conversa. Foi assim.

Imagine-se andando pela Rua Himmel no escuro. Seu cabelo começa a ficar molhado e a pressão do ar está à beira de uma mudança drástica. A primeira bomba atinge o prédio de apartamentos de Tommy Müller. O rosto dele se contorce inocentemente em seu sono, e eu me ajoelho junto a sua cama. Depois, sua irmã. Os pés de Kristina projetam-se para fora do cobertor. Combinam com as pegadas do jogo de amarelinha na rua. Os dedinhos. A mãe deles dorme a menos de um metro de distância. Há quatro cigarros desfigurados em seu cinzeiro, e o teto sem telhado é vermelho como uma chapa quente. A Rua Himmel está em chamas.

As sirenes começaram a uivar.
— Agora é tarde demais para esse exerciciozinho — murmurei, porque todos tinham sido enganados, e enganados de novo. Primeiro, os Aliados tinham fingido um ataque a Munique, para bombardear Stuttgart. Mas, depois, dez aviões tinham ficado. Ah, houve alertas, é claro. Em Molching, eles chegaram com as bombas.

• CHAMADA NOMINAL DAS RUAS •
Munique, Ellenberg, Johannson, Himmel
A rua principal e mais três,
na zona mais pobre da cidade.

No espaço de alguns minutos, todas desapareceram.
Uma igreja foi deitada abaixo.
A terra foi destruída no lugar em que Max Vandenburg se postara de pé.

No número 31 da Rua Himmel, Frau Holtzapfel parecia estar à minha espera na cozinha. Havia à sua frente uma xícara quebrada e, num último momento de vigília, seu rosto parecia perguntar por que diabo eu tinha demorado tanto.
Em contraste, Frau Diller dormia a sono solto. Suas vidraças à prova de balas estavam estilhaçadas ao lado da cama. Sua loja fora obliterada, com o balcão lançado do outro lado da rua, e sua fotografia emoldurada de Hitler fora arrancada da parede e jogada no chão. Decididamente, o homem tinha sido agredido e espancado até se transformar numa pasta de vidro moído. Pisei nele ao sair.
Os Fiedler eram bem organizados, todos na cama, todos cobertos. Pfiffikus estava escondido até o nariz.
Na casa dos Steiner, deslizei os dedos pelo cabelo encantadoramente penteado de Barbara, tirei o ar de seriedade do sério rosto adormecido de Kurt e, uma a uma, dei um beijo de boa-noite nas menorezinhas.
E aí, Rudy.

•••

Ah, Cristo crucificado, Rudy...

Estava deitado com uma das irmãs. Ela devia tê-lo chutado, ou aberto caminho na marra pela maior parte do espaço da cama, porque o menino estava bem na beirada, com o braço em volta dela. Dormia. Seu cabelo de luz de vela inflamava a cama, e peguei ele e Bettina com as almas ainda no cobertor. Que mais não fosse, os dois tinham morrido depressa e aquecidos. O menino do avião, pensei. O do ursinho de pelúcia. Onde estava o consolo de Rudy? Onde haveria alguém para aliviar esse roubo de sua vida? Quem o reconfortaria, ao se puxar o tapete debaixo de seus pés adormecidos?
Ninguém.
Havia apenas eu.
E não sou muito boa nessa história de consolar, especialmente quando tenho as mãos frias e a cama é quente. Carreguei-o com delicadeza pela rua destroçada, com sal nos olhos e o coração mortalmente pesado. Observei por um instante o conteúdo de sua alma, e vi um menino pintado de preto, gritando o nome de Jesse Owens ao cruzar uma fita de chegada imaginária. Vi-o afundado até os quadris em água gelada, perseguindo um livro, e vi um garoto deitado na cama, imaginando que gosto teria um beijo de sua gloriosa vizinha do lado. Ele mexe comigo, esse garoto. Sempre. É sua única desvantagem. Ele pisoteia meu coração. Ele me faz chorar.

Por último, os Hubermann.
Hans.
O papai.
Era alto na cama, e vi a prata por entre suas pálpebras. Sua alma sentou-se. Veio a meu encontro. As almas desse tipo sempre o fazem — as melhores. As que se levantam e dizem: "Sei quem você é e estou pronta. Não que eu queira ir, é claro, mas irei." Essas almas são sempre leves, porque um número maior delas foi dispensado. Um número maior delas já encontrou o caminho para outros lugares. Essa foi despachada pelo sopro de um acordeão, pelo estranho sabor do champanhe no verão e pela arte de cumprir promessas. Ele deitou em meus braços e descansou. Houve um pulmão comichando por um último cigarro, e uma imensa atração magnética pelo porão, pela menina que era sua filha e estava escrevendo um livro lá embaixo, um livro que um dia ele esperava ler.
Liesel.
Foi o que sua alma sussurrou quando o carreguei. Mas não havia Liesel naquela casa. Não para mim, pelo menos.
Para mim, havia apenas Rosa e, sim, acho mesmo que a peguei no meio de um ronco, pois sua boca estava aberta e seus lábios rosados de papel ainda executavam o ato de se mexer. Se me visse, tenho certeza de que ela me chamaria de Saukerl, embora eu não a levasse a mal. Depois de ler A Menina que Roubava Livros, descobri que era assim que ela chamava todo o mundo. Saukerl. Saumensch. Especialmente as pessoas a quem amava. Seu cabelo elástico estava solto. Roçava o travesseiro, e seu corpo de guarda-roupa se levantara com o pulsar de seu coração. Não se deixe enganar, a mulher tinha coração. Um coração maior do que as pessoas suporiam. Havia muita coisa armazenada nele, em quilômetros de prateleiras altas e ocultas. Lembre-se de que ela foi a mulher com o instrumento preso ao corpo pelas alças na longa noite enluarada. Foi a que alimentou um judeu, sem uma única pergunta na primeira noite de um homem em Molching. E foi a que esticou o braço, bem no fundo de um colchão, para entregar um caderno de desenho a uma adolescente.

• A ÚLTIMA SORTE •
Andei de rua em rua e voltei para
buscar um único homem, chamado
Schultz, no fim da Himmel
•••

Ele não conseguira agüentar, dentro da casa desabada, e eu carregava sua alma pela Rua Himmel quando notei a gritaria e as risadas da LSE.
Havia um pequeno vale na cordilheira de escombros.
O céu quente estava vermelho e mudando. Listras de pimenta começavam a rodopiar, e fiquei curiosa. Sim, sim, eu sei o que lhe disse no começo. Em geral, minha curiosidade leva ao testemunho pavoroso de algum tipo de clamor humano, mas, nessa ocasião, devo dizer que, embora aquilo me partisse o coração, fiquei e continuo feliz por ter estado lá.

Quando a tiraram do fundo, é verdade que ela começou a chorar e a gritar por Hans Hubermann. Os homens da LSE tentaram segurá-la em seus braços poeirentos, mas a menina que roubava livros conseguiu safar-se. Os humanos desesperados sempre parecem capazes de fazê-lo.
Ela não sabia por onde estava correndo, porque a Rua Himmel já não existia. Tudo era novo e apocalíptico. Por que o céu estava vermelho? Como podia estar nevando? E por que os flocos de neve lhe queimavam os braços?
Liesel reduziu o passo a um andar trôpego e se concentrou no que havia adiante.
Onde estava a loja de Frau Diller?, pensou. Onde...
Perambulou um pouco mais, até que o homem que a havia encontrado segurou-a pelo braço e continuou a falar.
— Você está apenas em choque, minha menina. E só o choque, você ficará bem.
— Que aconteceu? — indagou Liesel. — Aqui ainda é a Rua Himmel?
— Sim — fez o homem de olhar decepcionado. Que teriam visto aqueles olhos nos anos anteriores? — Aqui é a Himmel. Vocês foram bombardeados, minha menina. Es tut mit leid, Schatzi. Sinto muito, tesouro.
A boca da menina continuou vagando, embora seu corpo estivesse imóvel. Ela havia esquecido seus lamentos anteriores por Hans Hubermann. Aquilo fora anos antes — um bombardeio faz essas coisas. Liesel disse:
— Temos que buscar meu pai, minha mãe. Temos que tirar o Max do porão. Se ele não estiver lá, estará no corredor, olhando pela janela. Às vezes ele faz isso, quando há um bombardeio... ele não tem muita chance de olhar para o céu, sabe? Tenho que lhe dizer como está o tempo agora. Ele jamais acreditará em mim...
Nesse momento, o corpo dela vergou-se e o homem da LSE a segurou e a pôs sentada.
— Vamos levá-la num instante — disse a seu sargento.
A menina que roubava livros olhou para algo pesado que machucava sua mão.

O livro.
As palavras.
Seus dedos estavam sangrando, como haviam sangrado em sua chegada à cidade.

O homem da LSE levantou-a e começou a levá-la embora. Havia uma colher de pau pegando fogo. Passou um homem com uma caixa de acordeão quebrada e Liesel viu o instrumento dentro dela. Viu seus dentes brancos e as notas pretas de permeio. Eles lhe sorriram e acionaram um alerta para sua realidade. Fomos bombardeados, pensou, e então se virou para o homem a seu lado e disse:
— Aquele é o acordeão do papai — e de novo: — Aquele é o acordeão do papai.
— Não se preocupe, mocinha, você está em segurança; é só andar um pouquinho mais.
Porém Liesel não andou.
Olhou para onde o homem levava o acordeão e o seguiu. Com o céu vermelho ainda mandando sua bela chuva de cinzas, ela deteve o trabalhador alto da LSE e disse:
— Eu levo isso, se o senhor quiser; é do meu pai.
Devagarzinho, tirou-o das mãos do homem e começou a carregá-lo.  Foi mais ou menos nessa hora que viu o primeiro corpo.
A caixa do acordeão soltou-se de seu punho. Um som de explosão.
Frau Holtzapfel estirava-se no chão como uma tesoura.

• OS DOZE SEGUNDOS SEGUINTES •
DA VIDA DE LIESEL MEMINGER
Ela girou nos calcanhares e olhou o mais longe
que pôde, naquele canal destroçado que
um dia fora a Rua Himmel
Viu dois homens carregando um cadáver e os seguiu.

Ao ver o resto deles, Liesel tossiu. Ouviu momentaneamente um homem dizer aos outros que um dos corpos fora encontrado em pedaços, num dos áceres.
Havia pijamas assustados e rostos rasgados. Foi o cabelo do menino que ela viu primeiro.
Rudy?
Em seguida, fez mais do que apenas mover os lábios para enunciar a palavra.
— Rudy?
Ele estava deitado com seus cabelos amarelos e os olhos fechados, e a menina que roubava livros correu em sua direção e desabou. Deixou cair o livro preto.
— Rudy, acorde — soluçou. Agarrou-o pela camisa e lhe deu a mais leve sacudidela incrédula. — Acorde, Rudy — e já então, enquanto o céu continuava a esquentava a despejar uma chuva de cinzas, Liesel agarrava o peito da camisa de Rudy Steiner.
— Rudy, por favor — e as lágrimas se engalfinhavam com seu rosto. —Rudy, por favor, acorde, que diabo, acorde, eu amo você. Ande, Rudy, vamos, Jesse Owens não sabe que eu amo você? Acorde, acorde, acorde...
Mas nada se importou.
Os destroços apenas subiram, mais altos. Montanhas de concreto com tampas de vermelho. E uma linda menina, pisoteada pelas lágrimas, sacudindo os mortos.
— Vamos, Jesse Owens...
Mas o menino não acordou.
Incrédula, Liesel afundou a cabeça no peito de Rudy. Segurou seu corpo amolecido, tentando impedir que pendesse para trás, até que precisou devolvê-lo ao chão massacrado. E o fez com delicadeza.
Devagar. Devagar.
— Meu Deus, Rudy...
Inclinou-se, olhou para seu rosto sem vida, e então beijou a boca de seu melhor amigo, Rudy Steiner, com suavidade e verdade. Ele tinha um gosto poeirento e adocicado. Um gosto de arrependimento à sombra do arvoredo e na penumbra da coleção de ternos do anarquista. Liesel beijou-o demoradamente, suavemente, e, quando se afastou, tocou-lhe a boca com os dedos. Suas mãos estavam trêmulas, seus lábios eram carnudos, e ela se inclinou mais uma vez, agora perdendo o controle e fazendo um erro de cálculo. Os dentes dos dois se chocaram no mundo demolido da Rua Himmel.
Liesel não disse adeus. Foi incapaz de fazê-lo e, após mais alguns minutos ao lado do amigo, conseguiu levantar-se do chão. Fico impressionada com o que os seres humanos são capazes de fazer, mesmo quando há torrentes a lhes descer pelos rostos e eles avançam cambaleando, tossindo e procurando, e encontrando.

• A DESCOBERTA SEGUINTE •
Os corpos de mamãe e papai, ambos emaranhados
no lençol de cascalho da Rua Himmel.

Liesel não correu, não andou nem se mexeu. Seus olhos haviam esquadrinhado os humanos e parado, confusamente, ao notar o homem alto e a mulher baixa, em formato de guarda-roupa. Aquela é a mamãe. Aquele é o papai. As palavras foram grampeadas nela.
— Eles não estão se mexendo — disse baixinho. — Não estão se mexendo.
Talvez, se ela ficasse imóvel por tempo suficiente, eles é que se mexessem, só que eles permaneceram imóveis pelo mesmo tempo que Liesel. Naquele momento, percebi que ela não calçava sapatos. Que coisa estranha para se notar, justamente numa hora dessas. Talvez eu estivesse tentando evitar seu rosto, porque a menina que roubava livros era, de verdade, uma mixórdia irresgatável.
Avançou um passo e não sentiu vontade de dar nenhum outro, mas deu. Lentamente, andou até a mãe e o pai e se sentou entre eles, Segurou a mão da mãe e começou a falar com ela.
— Lembra-se de quando eu vim para cá, mamãe? Agarrei-me ao portão e chorei. Você se lembra do que disse a todo o mundo que passava na rua, naquele dia? — e sua voz vacilou. — Você disse: "O que é que estão olhando, seus babacas?"
Pegou a mão da mãe e a tocou no pulso.
— Mamãe, eu sei que você... Gostei de quando você foi à escola e me contou que o Max tinha acordado. Sabe que eu vi você com o acordeão do papai? — e apertou mais forte a mão que endurecia. — Eu cheguei e fiquei olhando, e você estava linda. Puxa vida, você estava tão linda, mamãe!

• MUITOS MOMENTOS DE EVITAÇÃO •
Papai. Ela não queria,
não podia olhar para o pai.
Ainda não. Agora não.

O pai era um homem de olhos de prata, não olhos mortos.
Papai era um acordeão!
Mas todos os seus foles estavam vazios.
Não entrava nem saía nada.

Liesel começou a balançar o corpo para frente e para trás. Uma nota estridente, e alada, untuosa, ficou presa em algum ponto de sua boca, até que ela finalmente conseguiu se virar.
Para o pai.

Nesse ponto, não pude evitar. Andei em volta dela, para vê-la melhor, e, desde o instante em que revi seu rosto, eu soube que aquele era o que ela mais amava. Sua expressão afagou o rosto do homem. Seguiu uma das rugas que lhe desciam pela face. Ele se sentara com ela no banheiro e lhe ensinara a enrolar cigarros. Dera pão a um homem morto na Rua Munique e dissera à menina para continuar lendo no abrigo antiaéreo. Talvez, se não o tivesse feito, ela não houvesse acabado escrevendo no porão.
Papai, o acordeonista — e a Rua Himmel.
Um não podia existir sem o outro, porque, para Liesel, eles eram uma coisa só. Sim, isso é o que era Hans Hubermann para Liesel Meminger.
A menina virou-se e falou com os homens da LSE.
— Por favor, o acordeão do papai. Vocês podem pegá-lo para mim?
Após alguns minutos de confusão, um membro mais velho trouxe a caixa corroída e Liesel a abriu. Tirou o instrumento machucado e o depositou junto ao cadáver do pai.
— Tome, papai.
E uma coisa eu posso lhe jurar, porque foi algo que vi muitos anos depois — uma visão da própria roubadora de livros: quando se ajoelhou ao lado de Hans Hubermann, ela o viu levantar-se e tocar o acordeão. Ele se pôs de pé, prendeu o instrumento no corpo pelas alças, nos Alpes de casas destroçadas, e tocou o acordeão com seus olhos prateados de bondade, e até com um cigarro pendendo dos lábios. Chegou mesmo a cometer um erro, e riu, numa rememoração encantadora. Os foles respiraram e o homem alto tocou para Liesel Meminger pela última vez, enquanto o céu era lentamente tirado do fogão.
Continue tocando, papai.
Papai parou.
Deixou cair o acordeão, e seus olhos de prata continuaram a enferrujar. Agora restava apenas um corpo no chão, e Liesel o ergueu e o abraçou. Chorou no ombro de Hans Hubermann.
— Adeus, papai, você me salvou. Você me ensinou a ler. Ninguém sabe tocar como você. Nunca mais tomarei champanhe. Ninguém sabe tocar como você.
Seus braços o envolveram. Ela o beijou no ombro —- não suportou mais olhar para seu rosto — e o repôs no chão.
A menina que roubava livros chorou, até ser gentilmente levada dali.

Mais tarde, eles se lembraram do acordeão, mas ninguém notou o livro. Havia muito trabalho a fazer e, com uma coleção de outros materiais, A Menina que Roubava Livros foi pisoteada várias vezes, e acabou sendo apanhada, sem sequer um olhar de relance, e atirada num caminhão de lixo. Pouco antes de o caminhão partir, subi depressa e peguei o livro...
Foi sorte eu ter estado lá.
Mas, a quem é que estou enganando? Passo pela maioria dos lugares pelo menos uma vez, e, em 1943, estive praticamente em toda parte.

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