Parte dois

O DAR DE OMBROS
APRESENTANDO:
uma menina feita de trevas
a alegria dos cigarros
a andarilha da cidade
umas cartas mortas
o aniversário de Hitler
suor alemão cem por cento puro
os portões do furto
e um livro de fogo


UMA MENINA FEITA DE TREVAS

• ALGUNS DADOS ESTATÍSTICOS •
Primeiro livro furtado: 13 de janeiro de 1939
Segundo livro furtado: 20 de abril de 1940
Intervalo entre os citados livros furtados: 463 dias

Se você quisesse usar de insolência, diria que bastou um pouquinho de fogo, na verdade, com uma gritaria humana para acompanhar. Diria que isso foi tudo de que Liesel Meminger precisou para arrebatar seu segundo livro roubado, ainda que ele fumegasse em suas mãos. Ainda que lhe acendesse as costelas.
Mas o problema é este:
Não é hora de insolências.
Não é hora de atenção parcial, nem de virar as costas e ir dar uma olhada no fogão — porque, quando a menina que roubava livros roubou seu segundo livro, não só houve muitos fatores implicados em sua ânsia de fazê-lo, como o ato de furtá-lo desencadeou o ponto crucial do que estava por vir. Isso lhe proporcionaria uma abertura para o roubo contínuo de livros. Inspiraria Hans Hubermann a conceber um plano para ajudar o lutador judeu. E mostraria a mim, mais uma vez, que uma oportunidade conduz diretamente a outra, assim como o risco leva a mais risco, a vida, a mais vida, e a morte, a mais morte.

• • •

De certo modo, foi o destino.
Sabe, talvez lhe digam que a Alemanha nazista ergueu-se sobre o antissemitismo, sobre um líder meio exagerado no entusiasmo e uma nação de fanáticos cheios de ódio, mas tudo teria dado em nada se os alemães não adorassem uma atividade em particular:
Queimar.
Os alemães adoravam queimar coisas. Lojas, sinagogas, Reichstags, casas, objetos pessoais, gente assassinada e, é claro, livros. Adoravam uma boa queima de livros, com certeza — o que dava às pessoas que tinham predileção por estes uma oportunidade de pôr as mãos em certas publicações que de outro modo não conseguiriam. Uma das pessoas que tinha essa inclinação, como sabemos, era uma garota ossuda chamada Liesel Meminger. Ela pode ter esperado 463 dias, mas valeu a pena. No fim de uma tarde em que houvera muita animação, muita maldade bonita, um tornozelo encharcado de sangue e um tapa vindo de uma mão que inspirava confiança, Liesel Meminger obteve sua segunda história de sucesso. O Dar de Ombros. Era um livro azul com letras vermelhas gravadas na capa, e havia um desenhinho de um cuco abaixo do título, também em vermelho. Quando olhou para trás, Liesel não se envergonhou de tê-lo roubado. Ao contrário, foi orgulho o que mais se assemelhou àquele bolinho de uma coisa sentida em seu estômago. E foram a raiva e um ódio tenebroso que alimentaram seu desejo de roubá-lo. Na verdade, em 20 de abril — o aniversário do Führer —, quando surrupiou aquele livro debaixo de uma pilha fumegante de cinzas, Liesel era uma menina feita de trevas.
A pergunta, é claro, seria: por quê?
Que razão havia para sentir raiva?
O que tinha acontecido, nos quatro ou cinco meses anteriores, para culminar nesse sentimento?
Em suma, a resposta ia da Rua Himmel para o Führer e para a localização inencontrável de sua mãe de verdade, e perfazia o caminho de volta.
Como a maioria dos sofrimentos, esse começou com uma aparente felicidade.


A ALEGRIA DOS CIGARROS

Ali pelo fim de 1939, Liesel se acomodara bastante bem na vida em Molching. Ainda tinha pesadelos com o irmão e sentia saudade da mãe, mas agora também havia alguns consolos.
Ela gostava muito do pai, Hans Hubermann, e até da mãe de criação, apesar das grosserias e das agressões verbais. Amava e odiava seu melhor amigo, Rudy Steiner, o que era perfeitamente normal. E gostava do fato de que, apesar do fracasso na sala de aulas, sua leitura e sua escrita vinham tendo uma melhora decisiva e logo estariam à beira de alguma coisa respeitável. Tudo isso resultava pelo menos numa certa forma de contentamento, e em pouco tempo se erigiria em algo próximo do conceito de Ser Feliz.

• AS CHAVES DA FELICIDADE •
1. Terminar O Manual do Coveiro.
2. Escapar à ira de Irmã Maria.
3. Ganhar dois livros no Natal.

• • •

17 de dezembro.
Ela se lembrava bem dessa data, por ter sido exatamente uma semana antes do Natal.
Como de praxe, seu pesadelo de todas as noites interrompeu-lhe o sono e ela foi acordada por Hans Hubermann. A mão dele segurou o tecido encharcado de seu pijama.
— O trem? — murmurou o pai.
— O trem — confirmou Liesel.
Engoliu ar até ficar pronta, e os dois começaram a ler o décimo primeiro capítulo do Manual do Coveiro. Terminaram pouco depois das três da manhã, e só ficou faltando o último capítulo, "O respeito ao cemitério". Papai, com os olhos de prata inchados de cansaço e o rosto coberto de pêlos de barba, fechou o livro e aguardou suas sobras de sono. Não as conseguiu.
Mal fazia um minuto que a luz fora apagada quando Liesel se dirigiu a ele, na escuridão.
— Papai?
Ele apenas fez um ruído, em algum lugar da garganta.
— Está acordado, papai?
— Ja.
Apoiada num dos cotovelos:
— Podemos terminar o livro, por favor?
Houve um longo suspiro, o raspar da mão coçando a barba e, em seguida, a luz. Ele abriu o livro e começou.
— “Capítulo Doze. O respeito ao cemitério."

Leram até ficar de manhãzinha, circundando e anotando as palavras que a menina não compreendia, e virando páginas em direção ao amanhecer. Em alguns momentos, o pai quase dormiu, sucumbindo à fadiga que lhe comichava os olhos e à inclinação da cabeça. Liesel o flagrou em todas as ocasiões, mas não teve o altruísmo de deixá-lo dormir nem o descaramento de ficar ofendida. Era uma menina com uma montanha para escalar.
Enfim, quando a escuridão lá fora começou a clarear um pouco, eles terminaram. O último trecho dizia assim:

Nós, da Associação Bávara de Cemitérios, esperamos ter informado e
entretido o leitor quanto ao funcionamento, às medidas de segurança e
aos deveres da escavação de túmulos. Desejamos extremo sucesso em sua
carreira nas artes funerárias e esperamos que este livro tenha contribuído
de algum modo.

Fechado o livro, os dois trocaram um olhar de viés. O pai falou.
— Conseguimos, hein?
Liesel, meio enrolada no cobertor, estudou o livro preto em sua mão e as letras prateadas. Fez que sim com a cabeça, de boca seca e com a fome matinal. Foi um daqueles momentos de cansaço perfeito, de haver dominado não só o trabalho por fazer, mas também a noite que atrapalhava.
Papai se espreguiçou, com os punhos cerrados e os olhos arranhando para fechar, e a manhã não se atreveu a ser chuvosa. Os dois se puseram de pé, andaram até a cozinha e, através da neblina e dos cristais de gelo na janela, puderam ver as faixas róseas de luz sobre as camadas de neve nos telhados da Rua Himmel.
— Veja as cores — disse o pai. É difícil não gostar de um homem que não apenas nota as cores, mas fala delas.
Liesel continuava segurando o livro. Apertou-o com mais força quando a neve se alaranjou. Num dos telhados, via um garotinho sentado, olhando para o céu.
— O nome dele era Werner — mencionou. As palavras foram saindo, involuntariamente.
— Sim — disse o pai.

Na escola, nessa época, não tinha havido outras provas de leitura em voz alta, mas, à medida que foi aos poucos ganhando mais confiança, certa manhã Liesel pegou um livro didático que estava por perto, para ver se conseguia lê-lo sem dificuldade. Conseguiu ler todas as palavras, mas continuou presa a um ritmo muito inferior ao dos colegas de turma. É muito mais fácil, percebeu, estar à beira de alguma coisa do que ser de fato aquilo. Isso ainda levaria tempo.
Uma tarde, ela se sentiu tentada a furtar um livro da estante da sala de aulas, mas, com franqueza, a perspectiva de outra Watschen no corredor, nas mãos de Irmã Maria, foi um fator de dissuasão suficientemente forte. Além disso, ela não tinha mesmo um desejo verdadeiro de tirar os livros da escola. O mais provável é que a intensidade de seu fracasso de novembro houvesse causado esse desinteresse, mas Liesel não tinha certeza. Só sabia que era assim.
Em aula, ela não falava.
Nem sequer olhava na direção errada.
Com a aproximação do inverno, deixou de ser vítima das frustrações de Irmã Maria, preferindo observar outros serem levados em marcha ao corredor para receber sua justa recompensa. O som de outro aluno debatendo-se no corredor não era particularmente agradável, mas o fato de se tratar de uma outra pessoa era, se não um consolo verdadeiro, ao menos um alívio.

Quando as aulas tiveram uma breve interrupção para a Weihnachten, Liesel até se permitiu dizer "Feliz Natal" à Irmã Maria, antes de ir embora. Ciente de que os Hubermann estavam essencialmente duros, ainda quitando dívidas e pagando o aluguel mais depressa do que o dinheiro conseguia entrar, ela não esperava nenhum tipo de presente. Talvez apenas uma comida melhor. Para sua surpresa, na noite de Natal, depois da missa da meia-noite com mamãe, papai, Hans Júnior e Trudy, ela voltou para casa e encontrou uma coisa embrulhada em papel de jornal embaixo da árvore de Natal.
— Do Papai Noel — disse-lhe o pai, mas a menina não se deixou enganar. Abraçou os pais de criação, ainda com a neve espalhada nos ombros.
Ao desdobrar o papel, desembrulhou dois livrinhos. O primeiro, Fausto, o cachorro, fora escrito por um homem chamado Mattheus Ottleberg. Ao todo, ela o leria treze vezes. Na noite de Natal, leu as primeiras vinte páginas à mesa da cozinha, enquanto papai e Hans Júnior discutiam sobre uma coisa que ela não compreendia. Uma coisa chamada política.
Depois, leu um pouco mais na cama, aderindo à tradição de circundar as palavras que não conhecia e escrevê-las. Fausto, o cachorro também tinha desenhos — curvas e orelhas e caricaturas encantadoras de um pastor alemão com um problema vexatório de babar e dotado da capacidade da fala.
O segundo livro chamava-se O Farol e fora escrito por uma mulher, Ingrid Rippinstein. Esse era um pouquinho mais longo, de modo que Liesel só conseguiu lê-lo até o fim nove vezes, aumentando ligeiramente o ritmo ao final dessas leituras prolíficas.
Foi dias depois do Natal que ela fez uma pergunta a respeito dos livros. A família fazia uma refeição na cozinha. Olhando para as colheradas de sopa de ervilha que entravam na boca da mãe, Liesel resolveu desviar o foco para o pai.
— Preciso perguntar uma coisa.
A princípio, nada.
— Então?
Foi a mãe, ainda com a boca meio cheia.
— Eu só queria saber como vocês arranjaram o dinheiro para comprar meus livros.
Um sorrisinho sorriu para a colher do pai.
— Quer mesmo saber?
— É claro.
Papai tirou do bolso o que restava de sua quota de fumo e começou a enrolar um cigarro, ao que Liesel se impacientou.
— Vai me dizer ou não?
O pai riu.
— Mas já estou lhe dizendo, menina.
Concluiu a produção de um cigarro, bateu-o na mesa e começou a enrolar outro.
— Foi exatamente assim.
Foi nessa hora que mamãe terminou a sopa com uma batida da colher, reprimiu um leve arroto e respondeu no lugar de Hans.
— Esse Saukerl! — começou. — Sabe o que ele fez? Enrolou todos esses cigarros nojentos, foi à feira quando ela passou pela cidade, e os trocou com um cigano qualquer.
— Oito cigarros por livro — disse o pai, pondo um na boca, com ar triunfal. Acendeu-o e tragou fumaça.
— Louvado seja Deus pelos cigarros, hein, mamãe?
Ela só fez dirigir-lhe um dos olhares de nojo que eram sua marca registrada, seguido pela quota mais comum de seu vocabulário:
— Saukerl.
Liesel trocou a piscadela costumeira com o pai e acabou de tomar a sopa. Como sempre, um dos livros estava a seu lado. Ela não pôde negar que a resposta à pergunta fora mais do que satisfatória. Não havia muita gente capaz de dizer que sua instrução tinha sido paga com cigarros.
A mãe, por outro lado, disse logo que, se Hans Hubermann prestasse para alguma coisa, trocaria um pouco do fumo pelo vestido novo de que ela precisava desesperadamente, ou por sapatos melhores.
— Mas não... — completou, esvaziando as palavras na pia. — Quando se trata de mim, você prefere fumar uma quota inteira, não é? E mais alguma do vizinho.
Algumas noites depois, entretanto, Hans Hubermann chegou em casa com uma caixa de ovos.
— Desculpe, mamãe — disse, colocando-a na mesa. — Eles não tinham sapatos.
Mamãe não reclamou.
Chegou até a cantarolar sozinha, enquanto cozinhava os ovos até quase queimarem. Parecia haver uma grande alegria nos cigarros, e foi um período feliz na casa dos Hubermann.
Acabou semanas depois.


A ANDARILHA DA CIDADE

O estrago começou com a roupa lavada e aumentou rapidamente.
Num dia em que Liesel acompanhava Rosa Hubermann em suas entregas por Molching, um de seus fregueses, Ernst Vogel, informou-lhes que não poderia mais pagar para mandar lavar e passar sua roupa.
— São os tempos — desculpou-se —, como é que eu vou dizer? Estão ficando mais difíceis. A guerra está trazendo um aperto.
Olhou para a menina e completou:
— Tenho certeza de que você recebe uma pensão para cuidar da garotinha, não é?
Para desolação de Liesel, a mãe ficou sem palavras.
Com um saco vazio a seu lado.
Vamos, Liesel.
As palavras não foram ditas. Foram arrastadas pela mão junto com ela, asperamente.
Vogel chamou-as da escada da frente. Teria talvez 1,75m, e seus fiapos de cabelo untuosos pendiam sem vida pela testa.
— Sinto muito, Frau Hubermann!
Liesel acenou para ele.
Vogel retribuiu o aceno. Mamãe praguejou.
— Não dê adeusinho para esse Arschloch — disse. — E ande depressa.
Nessa noite, quando Liesel tomou banho, a mãe a esfregou com rispidez especial, o tempo todo resmungando sobre aquele Saukerl do Vogel e imitando-o a intervalos de dois minutos.
— "A senhora deve receber uma pensão pela menina..."
Castigou o peito nu de Liesel com suas esfregadelas.
— Você não tem todo esse valor, Saumensch. Não está me deixando rica, sabe?
Liesel continuou sentada e aguentou.

Não mais de uma semana depois desse incidente específico, Rosa a rebocou para a cozinha.
— Muito bem, Liesel — disse, fazendo-a sentar à mesa. — Já que você passa metade do tempo na rua, jogando futebol, pode muito bem tornar-se útil aqui. Para variar.
Liesel olhava apenas para as próprias mãos.
— O que foi, mamãe?
— De agora em diante, você vai buscar e entregar a roupa para mim. É menos provável que aqueles ricaços nos despeçam, se for você parada na frente deles. Se lhe perguntarem por mim, diga que estou doente. E faça uma cara triste quando disser isso. Você já é magrela e pálida o bastante para inspirar pena neles.
— Herr Vogel não sentiu pena de mim.
— Bem... — Era visível a agitação de Rosa. — Pode ser que os outros sintam. Por isso, não discuta.
— Sim, mamãe.
Por um instante, a mãe adotiva pareceu prestes a consolá-la, ou a lhe dar um tapinha no ombro.
Boa menina, Liesel. Você é uma boa menina. Tape, tape, tape.
Mas ela não disse nada parecido.
Em vez disso, Rosa Hubermann levantou-se, escolheu uma colher de pau e a segurou embaixo do nariz da menina. Aquilo era uma necessidade, no que lhe dizia respeito.
— Quando estiver na rua, você leva a sacola de roupa a cada lugar e a traz direto para casa, com o dinheiro, ainda que ele não seja quase nada. Nada de ir atrás do papai, se por acaso ele estiver trabalhando, para variar. Nada de fazer bagunça por aí com aquele Saukerlzinho do Rudy Steiner. Direto. Para casa.
— Sim, mamãe.
— E, quando segurar a sacola, segure direito. Nada de balançar, nem de deixá-la cair no chão, nem de amassá-la, nem de jogá-la no ombro.
— Sim, mamãe.
— Sim, mamãe — repetiu Rosa Hubermann, que era uma grande imitadora, e das mais fervorosas. — É melhor mesmo, Saumensch. Eu descubro, se você fizer uma dessas coisas. Sabe disso, não sabe?
— Sim, mamãe.
Dizer essas duas palavras era, muitas vezes, a melhor maneira de sobreviver, assim como obedecer quando era mandada; e, a partir de então, Liesel passou a palmilhar as ruas de Molching, do bairro pobre para o rico, apanhando e entregando roupa. No começo, foi um trabalho solitário, do qual ela nunca se queixava. Afinal, na primeiríssima vez que carregou a sacola pela cidade, ela dobrou a esquina da Rua Munique, olhou para um lado e para o outro, e lhe deu uma enorme girada — uma revolução completa —, e depois verificou o conteúdo. Felizmente, não havia amassados. Nada de rugas. Só um sorriso, e a promessa de nunca mais balançá-la outra vez.
De modo geral, Liesel gostava da tarefa. Não havia participação no pagamento, mas ela ficava longe de casa, e andar pelas ruas sem a mãe já era, porsi só, um paraíso. Nada de dedos apontados nem xingamentos. Ninguém olhando para as duas, enquanto ela era xingada por não carregar a sacola direito. Nada além de serenidade.
Liesel também passou a gostar das pessoas:
* Os Pfaffelhürver, que inspecionavam a roupa e diziam: "ja, ja, sehrgut, sehrgut" Liesel imaginava que eles faziam tudo duas vezes.
* A delicada Helena Schmidt, que entregava o dinheiro com um trejeito da mão artrítica.
* Os Weingartner, cujo gato de bigodes tortos sempre atendia à porta com eles. Pequeno Goebbels, era assim que o chamavam, por causa do homem que era o braço-direito de Hitler.
* E Frau Hermann, a mulher do prefeito, parada com seu cabelo fofo e toda trêmula no vão enorme e frio de sua porta de entrada. Sempre calada. Sempre sozinha. Nem uma palavra, nem uma vez.

De quando em quando, Rudy também ia.
— Quanto dinheiro você tem aí? — perguntou ele, certa tarde. Já ia anoitecendo e os dois andavam em direção à Rua Himmel, passando pela loja. — Você já ouviu falar da Frau Diller, não foi? Dizem que ela tem balas escondidas em algum lugar e, pelo preço certo...
— Nem pense nisso — disse Liesel. Como sempre, segurava o dinheiro com força. — Pra você não é muito ruim: você não tem que encarar a minha mãe.
Rudy deu de ombros.
— Valeu a tentativa.

Em meados de janeiro, o trabalho escolar voltou a atenção para a redação de cartas. Depois de aprender os fundamentos, cada aluno tinha que escrever duas cartas, uma para um amigo, uma para alguém de outra turma.
A carta que Liesel recebeu de Rudy foi assim:

Cara Saumensch,
Você continua tão inútil no futebol quanto era da última vez que jogamos?
Espero que sim. Isso significa que posso passar correndo por você, de
novo, que nem o Jesse Owens na olimpíada...

Quando a Irmã Maria a encontrou, fez uma pergunta muito amável ao menino.

• O OFERECIMENTO DE IRMÃ MARIA •
— Está com vontade de visitar o corredor, Sr, Steiner?

Nem é preciso dizer que a resposta de Rudy foi negativa, o papel foi rasgado e ele recomeçou. A segunda tentativa foi escrita para uma pessoa chamada Liesel e indagou quais seriam os passatempos dela.
Em casa, enquanto terminava uma carta da tarefa escolar, Liesel resolveu que, na verdade, escrever para Rudy ou outro Saukerl parecido era ridículo. Não significava nada. Enquanto redigia no porão, ela falou com o pai, que repintava a parede mais uma vez. Ele e os vapores da tinta viraram-se.
— Was wuistz?
Bom, essa era a mais grosseira forma de alemão que alguém podia falar, mas foi dita com ar de absoluta satisfação.
— Que é?
— Será que eu poderia escrever uma carta prá mamãe?
Pausa.
— Para que você quer lhe escrever uma carta? Já tem que aguentá-la todos os dias — disse papai, schmunzelando, com um sorriso maroto. — Isso já não é ruim o bastante?
— Não é essa mamãe — disse Liesel, engolindo em seco.
— Ah.
O pai voltou-se para a parede e continuou a pintar.
— Bem, acho que sim. Você poderia mandá-la para a... como é mesmo o nome? Aquela que trouxe você para cá e veio visitar algumas vezes, a do pessoal da adoção.
— Frau Heinrich.
— Isso mesmo. Mande-a para ela. Talvez ela possa mandá-la para sua mãe.
Já nessa hora ele não soou convincente, como se deixasse de dizer alguma coisa a Liesel. As notícias sobre sua mãe também tinham sido silenciadas nas breves visitas de Frau Heinrich.
Em vez de perguntar qual era o problema, Liesel começou a escrever na mesma hora, optando por ignorar a sensação de mau presságio que se acumulava rapidamente em seu peito. Precisou de três horas e seis rascunhos para aperfeiçoar a carta, contando à mãe tudo sobre Molching, seu papai e o acordeão dele, o jeito estranho, mas sincero, de Rudy Steiner, e as façanhas de Rosa Hubermann. Também explicou como estava orgulhosa por saber ler e escrever um pouquinho, agora. No dia seguinte, despachou a carta na loja de Frau Diller, com um selo tirado da gaveta da cozinha. E começou a esperar.

Na noite em que escreveu a carta, ela entreouviu uma conversa entre Hans e Rosa.
— Para que ela está escrevendo para a mãe? — perguntou mamãe. Sua voz era surpreendentemente calma e atenciosa. Como você pode imaginar, isso deixou a menina preocupadíssima. Ela preferiria ouvi-los brigando. Adultos aos cochichos dificilmente inspiravam confiança.
— Ela me pediu — respondeu o pai —, e não consegui dizer não. Como poderia?
— Jesus, Maria, José — de novo, o cochicho. — Ela devia mesmo era esquecê-la. Quem sabe por onde ela anda? Quem sabe o que fizeram com ela?
Na cama, Liesel se abraçou, apertado. Enroscou-se feito uma bola.
Pensou na mãe e repetiu as perguntas de Rosa Hubermann.
Onde estava ela?
O que eles teriam feito com ela?
E na verdade, de uma vez por todas, quem eram eles?


CARTAS MORTAS

Avanço rápido para o porão, setembro de 1943.
Uma menina de quatorze anos escreve num caderninho de capa escura. É ossuda, mas forte, e já viu muita coisa. Papai está sentado com o acordeão junto aos pés.
Diz ele:
— Sabe, Liesel? Quase lhe escrevi uma resposta e assinei o nome da sua mãe — e coçou a perna, onde tinha estado o gesso. — Mas não pude. Não consegui fazer isso.

Em várias ocasiões, durante o resto de janeiro e todo o mês de fevereiro de 1940, quando Liesel vasculhava a caixa do correio em busca de uma resposta à sua carta, aquilo claramente partia o coração de seu pai adotivo. "Sinto muito", ele lhe dizia. "Nada hoje, hein?" Olhando para trás, ela percebeu que aquilo tudo fora inútil. Se sua mãe estivesse em condições de fazê-lo, já teria entrado em contato com o pessoal da agência de lares de criação, ou diretamente com ela, ou então com os Hubermann. Mas não houvera nada.
Para piorar as coisas, em meados de fevereiro, Liesel recebeu uma carta de outro freguês da lavagem de roupa — os Pfaffelhürver, da Heide Strasse. O casal postou-se com grande altivez na porta, dando-lhe um olhar melancólico.
— É para sua mamãe — disse o homem, entregando-lhe o envelope. — Diga a ela que sentimos muito. Diga-lhe que lamentamos.
Não foi uma noite muito boa na residência dos Hubermann.
Mesmo quando se recolheu ao porão, para escrever sua quinta carta à mãe (todas ainda por enviar, exceto a primeira), Liesel pôde ouvir Rosa praguejando e xingando aqueles Arschlöcher dos Pfaffelhürver e aquele nojento do Ernst Vogel.
— Feuer soll'n's brunzen für einen Monatl!— ouviu-a gritar. Tradução: "Eles todos deviam urinar fogo durante um mês!"
Liesel escreveu.

Quando chegou seu aniversário, não houve presente. Não houve presente porque não havia dinheiro e, na ocasião, papai estava sem fumo.
— Eu disse a você — acusou a mãe, apontando-lhe o dedo. — Eu lhe disse para não dar os dois livros a ela no Natal. Mas não. Você escutou? É claro que não!
— Já sei! — disse Hans, voltando-se para a menina, em voz baixa: — Desculpe, Liesel. Não podemos arcar com a despesa.
Liesel não se importou. Não resmungou nem gemeu nem bateu com os pés. Simplesmente engoliu a decepção e optou por um risco calculado — um presente dela para si mesma. Juntaria todas as cartas acumuladas para a mãe, poria tudo num envelope e usaria só um tiquinho do dinheiro da roupa lavada e passada para enviá-lo pelo correio. Depois, é claro, levaria a Watschen, muito provavelmente na cozinha, e não emitiria um som.

Três dias depois, o plano foi posto em prática.
— Está faltando um pouco — disse a mãe, contando o dinheiro pela quarta vez, com Liesel parada junto ao fogão. Estava quentinho ali, e cozinhava o fluxo acelerado de seu sangue. — Que aconteceu, Liesel?
Ela mentiu:
— Devem ter-me dado menos que de costume.
— Você contou o dinheiro?
Liesel rendeu-se:
— Eu o gastei, mamãe.
Rosa aproximou-se. Aquilo não era bom sinal. Ficou muito perto das colheres de pau.
— Você o quê?
Antes que houvesse possibilidade de resposta, a colher de pau baixou sobre o corpo de Liesel Meminger feito os passos de Deus. Marcas vermelhas, como pegadas, e ardiam. Do chão, quando a surra acabou, a menina olhou para cima e se explicou.
Havia a pulsação e a luz amarela, tudo junto. Seus olhos piscavam.
— Eu mandei minhas cartas.
O que lhe ocorreu nesse momento foi o empoeirado do chão, a sensação de que sua roupa estava mais junto dela do que nela, e o súbito reconhecimento de que tudo aquilo não adiantaria nada — sua mãe nunca responderia às cartas e ela nunca mais a veria. A realidade disso foi uma segunda Watschen. Foi como uma ferroada, e durou vários minutos até parar.
Acima dela, Rosa parecia um borrão, mas logo ficou nítida, quando seu rosto encarquilhado chegou mais perto. Desalentada, ela ficou parada ali, com todas as suas formas roliças, segurando a colher de pau junto ao corpo, como um porrete. Estendeu a mão e se deixou extravasar um pouco.
— Desculpe, Liesel.
Liesel a conhecia bem o bastante para compreender que não era pela surra.
As marcas vermelhas estenderam-se em tiras sobre sua pele, enquanto a menina continuava deitada no pó, na sujeira e na luz mortiça. Sua respiração se acalmou e uma lágrima amarela e perdida escorreu-lhe pelo rosto. Ela voltou a sentir o próprio corpo junto ao chão. Um braço, um joelho. Um cotovelo. Uma bochecha. Um músculo da panturrilha.
O chão era frio, especialmente a parte encostada no rosto, mas ela não conseguia se mexer.
Nunca mais voltaria a ver sua mãe.
Durante quase uma hora, ficou ali, estirada embaixo da mesa da cozinha, até papai chegar em casa e tocar o acordeão. Só então foi que ela se sentou e começou a se recuperar.
Quando escreveu sobre essa noite, não guardava nenhum rancor de Rosa Hubermann, nem de sua mãe, aliás. Para Liesel, as duas eram apenas vítimas das circunstâncias. A única ideia que lhe voltou continuamente foi a da lágrima amarela. Se estivesse escuro, percebeu, a lágrima teria sido preta.
Mas estava escuro, disse a si mesma.
Não importa quantas vezes tentasse imaginar a cena, com a luz amarela que ela sabia ter estado presente, precisava se esforçar para visualizá-la. Levara uma surra no escuro e havia permanecido lá, num piso frio e enegrecido de cozinha. Até a música de papai tinha sido da cor da escuridão.
Até a música de papai.
O mais estranho era que ela se sentia vagamente consolada por essa ideia, em vez de aflita.
A escuridão, a luz.
Qual era a diferença?
Os pesadelos reforçaram-se nas duas, quando a menina que roubava livros começou realmente a compreender como eram as coisas e como sempre seriam. Pelo menos, ela poderia se preparar. Talvez tenha sido por isso que, no aniversário do Führer, quando a resposta à pergunta referente ao sofrimento de sua mãe evidenciou-se por completo, ela pôde reagir, a despeito de sua perplexidade e sua raiva.
Liesel Meminger estava pronta.
Feliz aniversário, Herr Hitler.
Muitos anos de vida.


O ANIVERSÁRIO DE HITLER, 1940

Contra toda a desesperança, Liesel continuou a examinar a caixa do correio todas as tardes, durante o mês inteiro de março e boa parte de abril. E isso, apesar de uma visita (pedida por Hans) de Frau Heinrich, que explicou aos Hubermann que o escritório da agência de adoção perdera completamente o contato com Paula Meminger. Mesmo assim, a menina persistiu e, como você poderia esperar, a cada dia que ela examinava a correspondência, não havia nada.
Molching, como o resto da Alemanha, estava em plenos preparativos para o aniversário do Führer. Nesse ano, em particular, com o desenrolar da guerra e a posição então vitoriosa de Hitler, os partidários dos nazistas em Molching queriam que a comemoração fosse especialmente adequada. Haveria um desfile. Gente marchando. Música. Cantoria. E haveria uma fogueira.
Enquanto Liesel andava pelas ruas de Molching, recolhendo e entregando roupa para lavar e passar, os membros do Partido Nazista acumulavam combustível. Umas duas vezes, Liesel foi testemunha de homens e mulheres que batiam às portas, perguntando às pessoas se elas possuíam alguma coisa que achassem que devia ser jogada fora ou destruída. O exemplar do Expresso de Molching de papai anunciou que haveria uma fogueira comemorativa na praça central, junto à qual estariam presentes todas as divisões locais da Juventude Hitlerista. Ela celebraria não apenas o aniversário do Führer, mas também a vitória sobre seus inimigos e sobre as restrições que haviam mantido a Alemanha atrasada desde o fim da Primeira Guerra Mundial. "Qualquer material daquela época" pedia o jornal — "jornais, cartazes, livros, bandeiras —, assim como qualquer propaganda de nossos inimigos que seja encontrada, deve ser levado ao escritório do Partido Nazista, na Rua Munique." Até a Schiller Strasse — a rua das estrelas amarelas —, que ainda estava à espera de uma reforma, foi saqueada pela última vez, a fim de se encontrar alguma coisa, qualquer coisa, que pudesse ser queimada em nome da glória do Führer. Não seria surpresa se alguns membros do partido se afastassem e publicassem uns mil livros ou cartazes de material moral venenoso, simplesmente para incinerá-los.
Estava tudo preparado para produzir um magnífico 20 de abril. Seria um dia repleto de queimação e vivas.
E furto de livros.

Naquela manhã, na casa dos Hubermann, foi tudo típico.
— Aquele Saukerl está de novo na janela — praguejou Rosa Hubermann. — Todo dia — continuou. — Que é que você está olhando, desta vez?
— Ahhhh — suspirou papai, encantado. A bandeira lhe cobria as costas, pendendo do alto da janela. — Você devia dar uma olhada na mulher que estou vendo! — disse. Olhou por cima do ombro e sorriu para Liesel. — Eu seria capaz de sair correndo atrás dela. Dá de dez a zero em você, mamãe.
— Schwein! — e Rosa sacudiu a colher de pau para o marido.
Papai continuou a olhar pela janela para a mulher imaginária, e para um corredor muito real de bandeiras alemãs.

Nas ruas de Molching, nesse dia, todas as janelas estavam decoradas para o Führer. Em alguns lugares, como na loja de Frau Diller, os vidros tinham sido vigorosamente lavados e a suástica parecia uma joia, deitada sobre um cobertor vermelho e branco. Noutros, a bandeira tremulava nos beirais feito roupa pendurada para secar. Mas estava lá.

Um pouco antes, tinha havido uma pequena calamidade. Os Hubermann não conseguiam encontrar sua bandeira.
— Eles virão nos buscar — Rosa alertara o marido. — Virão para nos levar embora.
Eles.
— Temos que achá-la!
A horas tantas, achou-se que o pai teria que descer ao porão e pintar uma bandeira numa das mantas que usava para proteger os móveis dos respingos de tinta. Felizmente, descobriu-se que ela estava enfiada atrás do acordeão, no armário.
— Esse acordeão infernal, estava tapando minha visão! — exclamou a mãe girando-o. — Liesel!
A menina teve a honra de prender a bandeira no caixilho da janela.
Hans Júnior e Trudy chegaram para a refeição vespertina, como faziam no Natal e na Páscoa. Este parece ser um bom momento para apresentá-los com mais detalhes.
Hans Júnior tinha os olhos e a altura do pai. Mas o prateado de seus olhos não era teimoso como o do pai — tinha sido Führerizado. Havia também um pouco mais de carne sobre seus ossos, e ele tinha cabelos louros espetados e uma pele feito tinta cor de pérola.
Trudy, ou Trudel, como muitas vezes era conhecida, era poucos centímetros mais alta que a mãe. Havia clonado o andar lamentável e meio gingado de Rosa Hubermann, mas o resto era muito mais suave. Como doméstica residente num bairro rico de Munique, o mais provável era que estivesse farta de crianças, mas sempre conseguia produzir ao menos algumas palavras risonhas em direção a Liesel. Tinha lábios macios. E falava baixo.
Os dois chegaram juntos no trem de Munique, e não demorou para que surgissem as antigas tensões.

• BREVE HISTÓRIA DE •
HANS HUBERMANN VERSUS SEU FILHO
O rapaz era nazista, o pai, não.
Na opinião de Hans Júnior, seu pai fazia parte de
uma Alemanha velha e decrépita —
que havia deixado o mundo inteiro lhe passar o
proverbial conto-do-vigário, enquanto seu povo sofria.
Quando adolescente, ele tomara conhecimento de que
o pai era chamado de "Der Juden Maler" —
o pintor dos judeus —, por pintar casas de judeus.
Depois tinha havido um incidente, que lhe exporei na íntegra
daqui a pouco — no dia em que Hans estragou tudo,
quando estava prestes a se filiar ao partido.
Todo o mundo sabia que ninguém devia cobrir de tinta
os insultos escritos na fachada de uma loja judaica.
Esse comportamento era ruim para a Alemanha
e era ruim para o transgressor.

— E então, eles já o deixaram entrar? — perguntou Hans Júnior, retomando o assunto onde ele havia parado no Natal.
— Onde?
— Adivinhe. No partido.
— Não, acho que se esqueceram de mim.
— Bem, você pelo menos fez outra tentativa? Não pode ficar aí sentado, esperando que o novo mundo venha buscá-lo. Você tem que sair para fazer parte dele... apesar de seus erros do passado.
O pai ergueu os olhos.
— Erros? Já cometi muitos erros na vida, mas não me filiar ao Partido Nazista não é um deles. Eles ainda têm o meu formulário de solicitação, você sabe disso, mas não pude voltar lá para perguntar.  Eu só...

Foi nessa hora que entrou um grande arrepio.
Veio bailando pela janela com a corrente. Talvez fosse a brisa do Terceiro Reich, ganhando cada vez mais força. Ou talvez fosse só a Europa de novo, respirando. De um jeito ou de outro, caiu entre eles, enquanto seus olhos metálicos se chocavam feitos latas na cozinha.
— Você nunca se importou com este país — Hans Júnior. — Não o bastante, pelo menos.
Os olhos do pai começaram a corroer. Mas isso não deteve Hans Júnior. Nessa hora, por algum motivo, ele olhou para a menina. Com seus três livros erguidos sobre a mesa, como se conversassem entre si, Liesel mexia a boca em silêncio, enquanto lia um deles.
— E qual é a porcaria que essa menina anda lendo? Devia estar lendo Mein Kampf.
Liesel ergueu os olhos.
— Não se preocupe Liesel — disse o pai. — Continue a ler. Ele não sabe o que diz.
Mas Hans Júnior não havia terminado. Chegou mais perto e disse:
— Ou você está do lado do Führer ou está contra ele. E percebo que está contra ele.  Sempre esteve.
Liesel observava o rosto de Hans Júnior, fixada na finura de seus lábios e na linha rochosa de seus dentes inferiores.
— É patético — decretou o rapaz — que um homem possa ficar parado, sem fazer nada, enquanto um nação inteira joga o lixo fora e se torna grandiosa.
Trudy e a mãe sentavam-se em silêncio, amedrontadas, assim como Liesel. Havia um cheiro de sopa de ervilha, de alguma coisa queimando e de confronto.
Todas esperaram pelas palavras seguintes
Elas vieram do filho. Apenas duas.

— Seu covarde.
Ele as virou na cara do pai e se retirou prontamente da cozinha e da casa.
Ignorando a inutilidade, o pai foi até a porta e chamou o filho.
— Covarde? Eu é que sou covarde?
Em seguida, precipitou-se para o porão e foi atrás dele, com apelos aflitos. A mãe correu para a janela, arrancou a bandeira e abriu os batentes. Ela, Trudy e Liesel se acotovelaram, vendo o pai alcançar o filho e segurá-lo, implorando-lhe que parasse. As três não conseguiam ouvir nada, mas o modo como Hans Júnior se soltou com um safranão foi alto o bastante.  Visão do pai observando-o afastar-se gritou da rua para elas.
— Hansi! — a mãe finalmente chamou. Trudy e Liesel recuaram de sua voz. — Volte!
O rapaz se fora.
É, o rapaz se fora, e eu gostaria de poder lhe dizer que tudo correu bem para o Hans Hubermann mais moço, porém não correu.
Ao desaparecer da Rua Himmel naquele dia, em nome do Führer, ele se atirou pelos acontecimentos de uma outra história, na qual cada passo levava tragicamente à Rússia.
A Stalingrado.

• ALGUNS FATOS SOBRE STALINGRADO •
1. Em 1942 e no começo de 1943, nessa cidade, o céu
branqueou-se como um lençol, todas as manhãs.
2. O dia inteiro, enquanto eu carregava as almas por ele, esse lençol era
Respingado de sangue, até ficar cheio e abaulado em direção a terra.
3. À noite, era torcido e novamente alvejado,
Pronto para o alvorecer seguinte.
4. E isso foi na época em que os  combates eram só durante o dia.

Partido o filho, Hans Hubermann deixou-se ficar por mais alguns minutos. A rua parecia imensa.
Quando reapareceu dentro de casa, a mãe fixou os olhos nele, mas não se trocou uma palavra. Ela não o admoestou, o que, como você sabe, era sumamente inusitado. Talvez tenha decidido que ele já fora magoado bastante, depois de ser rotulado como covarde pelo único filho.
Durante algum tempo, Hans continuou calado à mesa, depois que todos acabaram de comer. Seria realmente um covarde, como o filho tinha assinalado com tanta brutalidade? Certamente, na Primeira Guerra Mundial, era assim que se havia considerado. Atribuíra sua sobrevivência a isso. Mas, afinal, será que é covardia reconhecer o medo? Haverá covardia e ficar contente por ter sobrevivido?
Seus pensamentos ziguezagueavam pela mesa enquanto ele a fitava.
— Papai? — disse Liesel, mas Hans não a olhou. — Do que ele estava falando? O que ele quis dizer quando...
— Nada — respondeu o pai. Falou baixo e com calma, dirigindo-se à mesa. — Não é nada. Esqueça-se dele, Liesel.
Deve ter demorado um minuto para falar outra vez.
— Não está na hora de você se aprontar? — perguntou, dessa vez olhando para a menina — Você não tem que ir a uma fogueira?
— Sim, papai.
A roubadora de livros foi trocar de roupa, vestiu seu uniforme da Juventude Hitlerista e, meia hora depois, os dois saíram, caminhando em direção à sede da BDM. De lá, as meninas seriam levadas em seus grupos ao centro da cidade.
Far-se-iam discursos.
Uma fogueira.
Um livro seria furtado.


SUOR ALEMÃO CEM POR CENTO PURO

As pessoas perfilaram-se nas ruas enquanto a juventude da Alemanha marchava para a prefeitura e a praça. Num bom número de ocasiões, Liesel esqueceu-se da mãe e de qualquer outro problema de que detivesse a posse naquele momento. Havia um inchaço em seu peito, enquanto as pessoas aplaudiam. Algumas crianças acenaram para os pais, porém muito rapidamente — havia uma instrução explícita de que marchassem em frente e não olhassem nem acenassem para a multidão.
Quando o grupo de Rudy entrou na praça e recebeu a ordem de fazer alto, houve uma discrepância. Tommy Müller. O resto do regimento parou de marchar e Tommy trombou diretamente com o menino à sua frente.
— Dummkopf! — cuspiu o garoto, antes de se virar para trás.
— Desculpe — disse Tommy, com os braços arrependidamente estendidos. Seu rosto tropeçou nele mesmo. — Eu não ouvi.
Foi só um breve momento, mas foi também uma prévia dos problemas que viriam. Para Tommy. Para Rudy.

Terminada a marcha, as divisões da Juventude Hitlerista tiveram permissão de se dispersar. Teria sido quase impossível mantê-los todos juntos, enquanto a fogueira ardia em seus olhos e os deixava alvoroçados. Juntos, eles gritaram um "heil Hitler" em uníssono e ficaram livres para perambular. Liesel procurou Rudy, mas, uma vez espalhada a multidão de crianças, ela se viu presa numa confusão de uniformes e palavras estridentes. Crianças chamando outras crianças.
Por volta das quatro e meia, o ar havia esfriado consideravelmente.
As pessoas brincavam, dizendo que precisavam se aquecer. — É para isso que serve toda essa porcaria, afinal.
Usaram-se carroças para transportar tudo. A tralha foi jogada no meio da praça central e encharcada de um líquido doce. Os livros, papeis e outros materiais escorregavam ou despencavam, mas eram atirados de novo na pilha. De uma distância maior, aquilo parecia uma coisa vulcânica. Ou algo grotesco e estranho que, de algum modo, tivesse sido milagrosamente descarregado no meio da cidade e precisasse ser destruído com um atiçador, e rápido.
O cheiro aplicado aos papéis inclinou-se para a multidão, mantida a uma boa distância. Havia bem mais de mil pessoas, no chão, na escadaria da prefeitura e nos telhados que cercavam a praça.
Quando Liesel tentou passar, um som estralejante a fez supor que a fogueira já tinha começado a arder. Não tinha. O som era da cinética humana, fluindo, arremetendo.
Começaram sem mim!
Embora alguma coisa dentro dela lhe dissesse que aquilo era um crime — afinal, seus três livros eram os bens mais preciosos que possuía —, a menina sentiu-se impelida a ver a coisa acesa. Não pôde evitá-lo. Acho que os seres humanos gostam de assistir a uma destruiçãozinha. Castelos de areia, castelos de cartas, é por aí que começam. Sua grande aptidão está em sua capacidade de promover a escalada.
A ideia de perder o espetáculo diminuiu quando ela achou uma brecha entre os corpos e pôde ver a montanha de culpa, ainda intacta. A coisa foi cutucada e borrifada, e até cuspiram nela. Aquilo fez Liesel pensar numa criança impopular, desamparada e perplexa, impotente para modificar seu destino. Ninguém gostava dela. Cabeça baixa. Mãos nos bolsos. Para sempre. Amém.
Pedaços soltos continuavam a despencar pelos lados, enquanto Liesel caçava Rudy. Onde estava aquele Saukerl?
Quando ela levantou os olhos, o céu se agachava.
Um horizonte de bandeiras e uniformes nazistas se erguia, barrando-lhe a visão, toda vez que ela tentava enxergar acima da cabeça de uma criança pequena. Era inútil. A multidão era uma coisa com vida própria. Não havia como controlá-la, espremer-se por ela ou ponderar com ela. A pessoa respirava com ela e entoava seus cânticos. Aguardava sua fogueira.

Um homem num pódio pediu silêncio. Seu uniforme era marrom reluzente. O ferro praticamente permanecera nele. Começou o silêncio.
Suas primeiras palavras: — Heil Hitler!
Seu primeiro ato: a saudação ao Führer.

— Hoje é um lindo dia — prosseguiu. — Não só é o aniversário de nosso líder, como também detivemos nossos inimigos mais uma vez. Impedimos que chegassem a nossas mentes...
Liesel continuava tentando abrir caminho, nos trancos.
— Pusemos fim à doença que se espalhou pela Alemanha nos últimos vinte anos, ou até mais até!
Agora ele apresentava o que se chama de Schreierei — uma exibição completa de gritaria apaixonada —, alertando a multidão a ser atenta, vigilante, a desvendar e destruir as maquinações maléficas que conspiravam para infectar a pátria com seus costumes deploráveis.
— Os imorais! Os Kommunisten!
Aquela palavra de novo. Aquela velha palavra. Salas escuras. Homens de terno.
— Die Juden, os judeus!

Na metade do discurso, Liesel desistiu. Enquanto a palavra comunistas se apoderava dela, o resto do recital nazista foi passando pelos dois lados, perdido em algum ponto dos pés alemães que a cercavam. Cascatas de palavras. Uma menina tentando não perder pé. Pensou naquilo de novo. Kommunisten.
Até essa ocasião, na BDM, tinham-lhes dito que a Alemanha era a raça superior, porém ninguém mais, em particular, fora mencionado. É claro que todos sabiam dos judeus, já que eles eram o principal infrator, no que dizia respeito a violar o ideal alemão. Nem uma vez, entretanto, os comunistas tinham sido mencionados até esse dia, a despeito do fato de que as pessoas desse credo político também deviam ser punidas.

Liesel tinha que sair.
À sua frente, uma cabeça com o cabelo louro repartido e trancinhas apoiava-se sobre os ombros, absolutamente imóvel. Fixando os olhos nela, Liesel revisitou aqueles cômodos escuros do passado e sua mãe respondendo a perguntas feitas de uma palavra só.
Enxergou tudo com perfeita clareza.
Sua mãe passando fome, seu pai desaparecido. Kommunisten.
Seu irmão morto.
— E agora, vamos dizer adeus a esse lixo, a esse veneno.
Pouco antes de Liesel Meminger rodopiar de náusea para sair da multidão, a criatura reluzente de camisa marrom desceu do pódio. Recebeu uma tocha de um cúmplice e acendeu a pilha, que o apequenava com toda a sua culpa.
— Heil Hitler!
E a platéia:
— Heil Hitler!
Um batalhão de homens desceu de uma plataforma e circundou a pilha, acendendo-a, para a enorme aprovação de todos. As vozes se elevaram acima dos ombros e o cheiro de puro suor alemão lutou para se soltar, a princípio, depois desprendeu-se. Contornou esquina após esquina, até todos nadarem nele. Nas palavras, no suor. E no riso. Não esqueçamos o riso.
Seguiram-se muitos comentários jocosos, assim como outra investida furiosa de gritos de "heil Hitler". Sabe, realmente me pergunto se algum dia alguém perdeu um olho, ou machucou a mão ou o pulso com todos aqueles gestos. Era só estar olhando na direção errada na hora errada, ou estar ligeiramente perto demais de outra pessoa. Talvez alguém se machucasse, sim. Pessoalmente, só posso lhe dizer que ninguém morreu disso, ou, pelo menos, não fisicamente. Houve, é claro, a questão dos quarenta milhões de pessoas que peguei, quando a coisa toda acabou, mas isso está ficando muito metafórico. Deixe-me devolver-nos à fogueira.

As labaredas cor de laranja acenavam para a multidão, à medida que papel e tinta se dissolviam dentro delas. Palavras em chamas eram arrancadas de suas frases.
Do outro lado, para além do calor das formas indistintas, era possível ver as camisas pardas e as suásticas dando as mãos. Não se via gente. Apenas uniformes e símbolos.
No alto, os pássaros davam voltas.
Descreviam círculos, atraídos de algum modo pelo brilho — até chegarem perto demais do calor. Ou seriam os seres humanos? Com certeza, o calor não era nada.

Em sua tentativa de fugir, uma voz a encontrou.
— Liesel!
Abriu caminho e a menina a reconheceu. Não era Rudy, mas ela conhecia aquela voz.
Liesel contorceu-se para se libertar e achou o rosto ligado à voz. Ah, não. Ludwig Schmeikl. Ele não deu risinhos de mofa nem fez piadas, como a menina esperava, nem entabulou nenhuma conversa. Tudo que conseguiu fazer foi puxá-la para si e apontar para o próprio tornozelo. Ele fora esmagado, em meio à empolgação, e sangrava, escuro e ominoso, pela meia. O rosto de Ludwig exibia uma expressão de desamparo, abaixo do cabelo louro embaraçado. Um bicho. Não um cervo assustado. Nada tão típico nem específico. Ele era apenas um animal, ferido na confusão de sua própria espécie, prestes a ser pisoteado por ela.
De algum modo, Liesel o ajudou a ficar de pé e o arrastou para os fundos. Ar puro.
Cambalearam até a escadaria na lateral da igreja. Ali havia algum espaço e os dois descansaram, ambos aliviados.
A respiração despencava da boca de Schmeikl. Escorregou, desceu-lhe pela garganta. Ele conseguiu falar.
Sentado, segurou o tornozelo e encontrou o rosto de Liesel Meminger.
— Obrigado — disse, dirigindo-se mais à boca do que aos olhos da menina.
Novas golfadas de ar. — E... — o menino viu imagens de travessuras escolares, seguidas por uma surra no pátio da escola. — Sinto muito por... você sabe.
Liesel tornou a escutar a palavra.
Kommunisten.
Mas optou por se concentrar em Ludwig Schmeikl:
— Eu também.
Depois disso, ambos se concentraram em respirar, porque não havia mais nada a fazer nem dizer. Seu assunto tinha chegado ao fim.
O sangue aumentou no tornozelo de Ludwig Schmeikl.
Uma única palavra encostava-se na menina.
A esquerda dos dois, as labaredas e os livros em chamas eram saudados como heróis.


OS PORTÕES DO FURTO

Ela continuou na escada, à espera do pai, observando as cinzas que se espalhavam e o cadáver dos livros reunidos. Tudo muito triste. Brasas alaranjadas e vermelhas pareciam balinhas recusadas, e quase toda a multidão havia sumido.
Liesel vira Frau Diller ir embora (muito satisfeita) e Pfiffikus (cabeleira branca, uniforme nazista, os mesmos sapatos dilapidados e um assobio triunfal). Agora, não faltava nada além da limpeza e, em pouco tempo, ninguém sequer imaginaria que aquilo tinha acontecido.
Mas era possível sentir o cheiro.

— Que está fazendo?
Hans Hubermann chegou à escadaria da igreja.
— Oi, papai.
— Era para você estar em frente à prefeitura.
— Desculpe, papai.
Hans sentou-se a seu lado, reduzindo sua altura pela metade no concreto e segurando uma mecha do cabelo de Liesel. Seus dedos a ajeitaram com delicadeza atrás da orelha da menina.
— Liesel, o que foi?
Por algum tempo ela não disse nada. Estava fazendo contas, embora já soubesse. Uma menina de onze anos pode ser muitas coisas, mas burra não é.

• UMA SOMINHA •
A palavra comunista + uma grande fogueira
+ uma coleção de cartas mortas + o sofrimento da mãe
+ a morte do irmão = o Führer

O Führer.
Era ele o eles de quem Hans e Rosa Hubermann haviam falado, na noite em que Liesel escrevera sua primeira carta à mãe. Ela sabia, mas tinha que perguntar.
— Minha mãe é comunista? — indagou. Olhando fixo. Para frente. — Estavam sempre perguntando coisas a ela, antes de eu vir para cá.
Hans chegou um pouquinho para a beirada do degrau, compondo o começo de uma mentira.
— Não faço ideia... nunca a conheci.
— O Führer levou ela embora?
A pergunta surpreendeu os dois e obrigou o pai a ficar de pé. Ele olhou para os homens de camisas pardas que remexiam a pilha de cinzas com pás. Podia ouvi-los a escavá-la. Outra mentira crescia em sua boca, mas foi impossível soltá-la.
— Acho que ele pode tê-la levado, sim.
— Eu sabia.
As palavras foram jogadas nos degraus e Liesel sentiu a lama de raiva quente que se agitava em sua barriga.
— Odeio o Führer — disse. — Odeio ele.
E Hans Hubermann?
Que foi que ele fez?
O que disse?
Porventura se curvou e abraçou a filha de criação, como teve vontade de fazer? Disse-lhe que sentia muito pelo que estava acontecendo com ela, com sua mãe, e pelo que havia acontecido com seu irmão?
Não exatamente.
Fechou os olhos com força. Tornou a abri-los. Plantou uma sólida bofetada no rosto de Liesel Meminger.
— Nunca mais diga isso!
Sua voz foi baixa, mas contundente.
Enquanto a menina tremia e se arqueava na escada, Hans sentou-se a seu lado e cobriu o rosto com as mãos. Seria fácil dizer que ele era só um homem alto, sentado com uma postura precária e abalada numa escadaria de igreja. Mas não era. Naquele momento, Liesel não fazia ideia de que seu pai de criação, Hans Hubermann, enfrentava um dos dilemas mais perigosos que um cidadão alemão podia encarar. E não apenas isso, mas o vinha encarando fazia quase um ano.
— Papai?
A surpresa em sua própria voz a apressava, mas também a deixou sem ação. Ela teve vontade de correr, mas não pôde. Podia levar uma Watschen de freiras e de Rosas, mas doía muito mais quando vinha do papai. Agora as mãos tinham saído do rosto dele, que encontrou forças para falar de novo.
— Você pode dizer isso na nossa casa — autorizou, com um olhar grave para a face de Liesel. — Mas nunca o diga na rua, na escola, na BDM, nunca!
Pôs-se de pé diante dela e a levantou pelos tríceps. Sacudiu-a.
— Está me ouvindo?
Com os olhos arregalados, aprisionados, Liesel acenou sua concordância com um gesto da cabeça.
Na verdade, isso foi um ensaio para uma preleção futura, quando todos os piores temores de Hans Hubermann chegassem à Rua Himmel, no fim do ano, nas primeiras horas de uma madrugada de novembro.
— Ótimo — e a repôs no chão. — Agora, vamos tentar...
Na base da escadaria, o pai empertigou-se numa postura ereta e estendeu o braço. Quarenta e cinco graus.
— Heil Hitler.
Liesel levantou-se e também esticou o braço. Com absoluta infelicidade, repetiu:
— Heil Hitler.
Foi uma visão e tanto: uma menina de onze anos, esforçando-se para não chorar na escadaria da igreja, fazendo a saudação ao Führer, enquanto as vozes atrás dos ombros do pai picotavam e surravam a forma escura ao fundo.

— Ainda somos amigos?
Passados quinze minutos, talvez, o pai estendeu uma oferta de paz, sob a forma de cigarros na palma da mão — o papel e o fumo que havia acabado de receber. Sem dizer palavra, Liesel estendeu tristonhamente a mão e começou a enrolá-lo.
Por um bom tempo, ficaram sentados juntos.
A fumaça ergueu-se sobre os ombros do pai.
Passados mais dez minutos, os portões do furto se abririam só uma frestinha, e Liesel Meminger os abriria um pouco mais e se espremeria para atravessá-los.

• DUAS PERGUNTAS •
Os portões se fechariam atrás dela?
Ou teriam a boa vontade de deixá-la sair de costas?

Como Liesel descobriria, um bom ladrão precisa de muitas coisas.
Movimentos furtivos. Coragem. Velocidade.
Mais importante que qualquer dessas coisas, no entanto, era um último requisito.
Sorte.

De verdade.
Esqueça os dez minutos.
Os portões se abrem agora.


UM LIVRO DE FOGO

A escuridão chegou aos pedaços e, terminado o cigarro, Liesel e Hans Hubermann começaram a caminhar para casa. Para sair da praça, teriam que passar pelo local da fogueira e por uma ruazinha que dava na Rua Munique. Não chegaram tão longe.
Um carpinteiro de meia-idade, de nome Wolfgang Edel, chamou. Havia construído as plataformas em que os figurões nazistas ficariam durante a fogueira e estava no processo de desmontá-las.
— Hans Hubermann? — disse. Tinha longas costeletas que apontavam para a boca e uma voz soturna. — Hansi!
— Olá, Wolfal — respondeu Hans. Houve uma apresentação à menina e um "heil Hitler".
— Muito bem, Liesel.
Nos minutos seguintes, Liesel ficou num raio de cinco metros da conversa. Alguns fragmentos passaram por ela, mas a menina não prestou muita atenção.
— Tem arranjado muito trabalho?
— Não, está tudo mais difícil agora. Você sabe como é, especialmente quando o sujeito não é filiado.
— Você me disse que ia se filiar, Hansi.
— Tentei, mas cometi um erro... Acho que eles ainda estão considerando.

• • •

Liesel perambulou até a montanha de cinzas. Parecia um ímã, uma anomalia. Irresistível para os olhos, semelhante à rua das estrelas amarelas.
Como em sua ânsia anterior de ver a pilha se acender, ela não conseguia desviar os olhos. Inteiramente só, não tinha disciplina para se manter a uma distância segura. A pilha a sugava, e Liesel começou a circundá-la.
Acima dela, o céu concluía sua rotina de escurecer, mas ao longe, acima do ombro da montanha, havia um vestígio opaco de luz.
— Pass auf, Kind — disse-lhe um uniforme, a certa altura. "Cuidado, menina", enquanto jogava mais umas pás de cinza numa carroça.
Mais perto da prefeitura, embaixo de uma lâmpada, algumas sombras conversavam de pé, provavelmente exultando pelo sucesso da fogueira. Da posição em que estava Liesel, suas vozes eram apenas sons. Nada de palavras.
Durante alguns minutos, ela observou os homens que removiam a pilha com pás, primeiro reduzindo-a dos lados, para deixar que uma parte maior desmoronasse. Iam e voltavam de um caminhão e, depois de três viagens, quando a pilha estava quase reduzida à base, um pedacinho de material vivo escorregou do interior das cinzas.

• O MATERIAL •
Meia bandeira vermelha, dois cartazes anunciando
um poeta judeu, três livros e uma placa de madeira,
com uma inscrição em hebraico.

Talvez estivessem molhados. Talvez a fogueira não tivesse ardido por tempo suficiente para atingir as profundezas em que se encontravam. Qualquer que fosse a razão, estavam aninhados entre as cinzas, abalados. Sobreviventes.
— Três livros — disse Liesel, baixinho, olhando para as costas dos homens.
— Vamos — disse um deles. — Ande logo, sim? Estou morto de fome.
Dirigiram-se ao caminhão.
O trio de livros espichou o nariz para fora.
Liesel aproximou-se.

O calor ainda era forte o bastante para aquecê-la, quando parou ao pé da pilha de cinzas. Quando estendeu a mão, levou uma mordida, mas, na segunda tentativa, ela se certificou de ser bem rápida. Fisgou o livro mais próximo. Estava quente, mas também molhado, queimado apenas nas bordas, mas, afora isso, intacto.
Era azul.
A capa dava a sensação de ter sido feita de centenas de cordas firmemente esticadas e presas. Havia letras vermelhas impressas nessas fibras. A única palavra que Liesel teve tempo de ler foi ombros. Não sobrou muito tempo para o resto, e havia um problema. A fumaça.

A fumaça erguia-se da capa do livro, quando ela o pegou num passe de mágica e se afastou depressa. Manteve a cabeça baixa, e a beleza doentia do nervosismo revelou-se de maneira mais horripilante a cada passo. Foram quatorze passos até a voz.
Voz que se perfilou atrás dela.
— Ei!
Foi quando ela quase voltou correndo e atirou o livro na pilha, mas não conseguiu. O único movimento de que dispunha era o gesto de se virar.
— Tem uns troços aqui que não queimaram!
Era um dos homens da limpeza. Não olhava para a menina, mas para as pessoas paradas junto ao prédio da prefeitura.
— Bom, então queime de novo — veio a resposta. — E fique olhando até queimarem.
— Acho que estão molhados!
— Jesus, Maria, José, será que eu tenho que fazer tudo sozinho?
O som das passadas ladeou-a. Era o prefeito, usando um sobretudo preto por cima do uniforme nazista. Não notou a menina, parada absolutamente imóvel, a uma pequena distância.

• UMA PERCEPÇÃO •
Havia uma estátua da roubadora de livros na praça...
É muito raro, não acha?, uma estátua aparecer
antes de o homenageado ter-se tornado famoso.

Liesel desabou.
A emoção de ser ignorada!

Agora o livro parecia frio o bastante para que ela o enfiasse dentro do uniforme. No começo, fez um calorzinho gostoso em seu peito. Mas, quando a menina começou a andar, ele tornou a se aquecer.
Quando Liesel voltou para junto do pai e de Wolfgang Edel, o livro começava a queimá-la. Parecia estar pegando fogo.
Os dois homens a olharam.
Ela sorriu.
Imediatamente, quando o sorriso encolheu em seus lábios, sentiu uma outra coisa. Ou, para falar com mais exatidão, outra pessoa. Não havia como confundir a sensação de estar sendo observada. Ela a invadiu por inteiro, e foi confirmada quando a menina se atreveu a virar de frente para as sombras junto à prefeitura. Ao lado da coletânea de silhuetas havia uma outra, a alguns metros de distância, e Liesel percebeu duas coisas.

• PEDACINHOS DE RECONHECIMENTO •
1. A identidade da sombra e
2. O fato de que ela vira tudo.

As mãos da sombra estavam nos bolsos do casaco.
O cabelo dela era fofo.
Se ela tivesse rosto, sua expressão seria de mágoa.
— Goltverdammt — disse Liesel, baixinho, só para ela mesma. "Que diabo!"

— Estamos prontos para ir?
Nos instantes anteriores de perigo estupendo, o pai se despedira de Wolfgang Edel e estava pronto para acompanhar Liesel até em casa.
— Pronta — respondeu ela.
Começaram a deixar a cena do crime, e agora o livro a queimava para valer. O Dar de Ombros estava grudado em sua caixa torácica.
Quando os dois passaram pelas sombras incertas junto à prefeitura, a menina que roubava livros estremeceu.
— O que foi? — perguntou o pai.
— Nada.
Mas uma porção de coisas estava decididamente errada:
Havia fumaça saindo da gola de Liesel.
Um colar de suor formara-se em torno de sua garganta.
Embaixo da blusa, um livro a estava devorando.

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