Parte nove

O ULTIMO FORASTEIRO HUMANO
APRESENTANDO:
a tentação seguinte
um jogador de cartas
as neves de stalingrado
um irmão sem idade
um acidente
o gosto amargo das perguntas
uma caixa de ferramentas,
um homem ensanguentado, um urso
um avião partido
e um regresso ao lar

A TENTAÇÃO SEGUINTE

Dessa vez, foram biscoitos.
Mas estavam dormidos.
Eram Kipferl que haviam sobrado do Natal, e tinham ficado na escrivaninha pelo menos por duas semanas. Como ferraduras em miniatura, com uma camada de cobertura de açúcar, os do fundo estavam grudados no prato. Os demais empilhavam-se por cima, formando um monte quase puxa-puxa. O aroma foi logo chegando à menina quando seus dedos comprimiram o parapeito da janela. A sala tinha gosto de açúcar e massa, e de milhares de páginas.
Não havia bilhete, mas Liesel não demorou a perceber que Ilsa Hermann havia entrado em ação de novo, Ilsa com certeza não estava disposta a correr o risco de que os biscoitos não fossem para ela. Voltou à janela e passou um sussurro pela abertura. O nome do sussurro era Rudy.
Tinham ido a pé, nesse dia, porque a estrada estava escorregadia demais para as bicicletas. O menino ficara embaixo da janela, montando guarda. Quando ela o chamou, seu rosto apareceu, e Liesel o presenteou com o prato. Não foi preciso muito convencimento para que Rudy o pegasse.
Seus olhos banquetearam-se com os biscoitos e ele fez algumas perguntas.
— Mais alguma coisa? Algum leite?
— O quê?
— Leite — repetiu ele, um pouco mais alto, dessa vez. Se havia reconhecido o tom ofendido na voa: de Liesel, com certeza não o demonstrou.
O rosto da menina que roubava livros tornou a aparecer acima dele.
— Você é burro? Será que eu posso roubar o livro?
— É claro. Eu só estava dizendo...
Liesel foi até a estante do fundo, atrás da escrivaninha. Encontrou papel e caneta na gaveta de cima e escreveu Obrigada, deixando o bilhete no tampo.
À sua direita, um livro se projetava feito um osso. Sua palidez trazia quase a cicatriz das letras escuras do título. Die Letzte Menschliche Fremde — O Ultimo Forasteiro Humano. O livro sussurrou baixinho quando ela o retirou da prateleira. Uma chuvinha de poeira espalhou-se.
Na janela, quando a menina estava prestes a sair, a porta da biblioteca se abriu com um rangido.
O joelho de Liesel estava levantado e sua mão de roubar livros pousava sobre o caixilho. Ao virar de frente para o ruído, ela deparou com a mulher do prefeito, num roupão de banho novinho em folha e de chinelos. No bolso do roupão, na altura do seio, havia uma suástica bordada. A propaganda chegava até mesmo ao banheiro.
As duas se observaram.
Liesel olhou para o seio de Ilsa Hermann e levantou o braço.
— Heil Hitler.
Já ia saindo, quando se deu conta de uma coisa.
Os biscoitos.
Fazia semanas que tinham estado lá.
Isso significava que, se o próprio prefeito usava a biblioteca, devia tê-los visto. Devia ter perguntado por que estavam ali. Ou então — e, assim que Liesel intuiu essa ideia, ela a encheu de um estranho otimismo —, talvez a biblioteca não fosse mesmo do prefeito; era dela. De Ilsa Hermann.
Ela não sabia por que isso era tão importante, mas gostou do fato de o cômodo cheio de livros pertencer à mulher. Fora ela quem a apresentara à biblioteca, para começo de conversa, e quem lhe dera a janela de oportunidade inicial, inclusive literal. Era melhor assim. Tudo parecia encaixar-se.
Quando ia começando a se mexer outra vez, Liesel estancou e disse:
— Este cômodo é seu, não é?
A mulher do prefeito enrijeceu-se.
— Eu costumava ler aqui com meu filho. Mas depois...
A mão de Liesel apalpou o ar às suas costas. Ela viu uma mãe lendo no chão com um garotinho, apontando para as figuras e as palavras. Depois, viu uma guerra na janela.
— Eu sei.
Veio uma exclamação do lado de fora.
— O que você disse?
Liesel falou num sussurro ríspido, para trás.
— Fique quieto, Saukerl, e vigie a rua.
A Ilsa Hermann, entregou lentamente as palavras.
— Então, todos esses livros...
— São quase todos meus. Alguns são de meu marido, alguns eram do meu filho, como você sabe.
Houve então um constrangimento em Liesel. Suas bochechas ficaram em chamas.
— Sempre achei que essa sala era do prefeito.
— Por quê? — fez a mulher, com um ar que parecia divertido.
Liesel notou que também havia suásticas nos dedões dos pés dos chinelos.
— Ele é o prefeito. Achei que tinha lido muito.
A mulher do prefeito pôs as mãos nos bolsos laterais.
— Ultimamente, é você quem mais utiliza este cômodo.
— A senhora leu este? — perguntou a menina, levantando O Ultimo Forasteiro Humano.
Ilsa olhou mais de perto para o título.
— Li, sim.
— É bom?
— Não é mau.
Veio uma ânsia de ir embora nesse momento, mas também uma obrigação peculiar de ficar. Liesel preparou-se para falar, mas as palavras disponíveis eram muito numerosas e rápidas demais. Houve várias tentativas de agarrá-las, mas foi a mulher do prefeito quem tomou a iniciativa.
Ela viu o rosto de Rudy na janela, ou, mais exatamente, seu cabelo de luz de vela.
— Acho melhor você ir — disse. — Ele a está esperando.

A caminho de casa, os dois comeram.
— Você tem certeza de que não havia mais nada? — perguntou Rudy. — Devia haver.
— Tivemos sorte de arranjar os biscoitos — e Liesel examinou o presente no colo do amigo. — Agora, diga a verdade. Você comeu algum antes de eu sair?
Rudy ficou indignado.
— Ei, a ladra aqui é você, não eu.
— Não tente me enrolar, Saukerl, eu vi o açúcar do lado da sua boca.
Paranóico, Rudy segurou o prato com apenas uma das mãos e limpou a boca com a outra.
— Não comi nenhum, juro.

Metade dos biscoitos havia acabado antes de eles chegarem à ponte, e o resto os dois dividiram com Tommy Müller na Rua Himmel.
Quando terminaram de comer, restou apenas uma consideração, e Rudy a verbalizou:
— Que é que a gente vai fazer com o prato?

O JOGADOR DE CARTAS

Mais ou menos na hora em que Liesel e Rudy comiam os biscoitos, os homens da LSE jogavam cartas em sua folga, numa cidadezinha não muito distante de Essen. Tinham acabado de fazer uma longa viagem, voltando de Stuttgart, e estavam apostando cigarros. Reinhold Zucker não era um homem feliz.
— Ele está trapaceando, eu juro — resmungou. O grupo se encontrava num galpão que lhe servia de quartel, e Hans Hubermann acabara de vencer a terceira rodada consecutiva. Zucker jogou as cartas na mesa, enojado, e penteou o cabelo engordurado com um trio de unhas sujas.

• ALGUNS DADOS SOBRE •
REINHOLD ZUCKER
Ele tinha vinte e quatro anos.
Quando vencia uma partida de carteado,
ria da desgraça alheia — segurava os cilindros finos
de tabaco junto ao nariz e inspirava.
"O cheiro da vitória", dizia. Ah, e mais uma coisa.
Ele morreria de boca aberta.

• • •

Ao contrário do rapaz à sua esquerda, Hans Hubermann não tripudiou ao vencer. Foi até generoso o bastante para devolver a cada colega um de seus cigarros e acendê-lo para ele. Todos aceitaram a oferta, menos Reinhold Zucker.
Pegou o oferecimento e o jogou de volta no meio da caixa emborcada.
— Não preciso da sua caridade, velhote.
Levantou-se e saiu.
— Qual é o problema dele? — indagou o sargento, mas ninguém se importou em responder. Reinhold Zucker era só um garoto de vinte e quatro anos que não saberia jogar cartas nem que fosse para salvar a vida.
Se não houvesse perdido seus cigarros para Hans Hubermann, não o teria desprezado. Se não o houvesse desprezado, talvez não tivesse tomado o seu lugar, semanas depois, numa estrada bastante inócua.
Um assento, dois homens, uma discussão rápida e eu.

Às vezes me arrasa o jeito como as pessoas morrem.

AS NEVES DE STALINGRADO

Em meados de janeiro de 1943, o corredor da Rua Himmel estava escuro e miserável como de praxe. Liesel fechou o portão, caminhou até a porta de Frau Holtzapfel e bateu. Ficou surpresa com quem veio atender.
Sua primeira ideia foi que o homem devia ser um dos filhos dela, mas não se parecia com nenhum dos dois irmãos das fotos emolduradas junto à porta. Parecia velho demais, embora fosse difícil saber. Tinha o rosto pontilhado de fios de barba e, nos olhos, um ar dolorido e gritante. Uma mão enfaixada pendia da manga de seu casaco, e havia cerejas de sangue filtrando-se pelas ataduras.
— Talvez você deva voltar depois.
Liesel tentou olhar por trás dele. Estava quase chamando Frau Holtzapfel, mas o homem a barrou.
— Menina — disse. — Volte mais tarde. Eu vou chamá-la. De onde você é?

Mais de três horas depois, a batida chegou ao número 33 da Rua Himmel e o homem parou diante dela. As cerejas de sangue haviam-se transformado em ameixas.
— Agora ela está pronta para você.

•••

Do lado de fora, na luz cinzenta e vaga, Liesel não conseguiu deixar de perguntar ao homem o que acontecera com sua mão. Ele soprou o ar pelas narinas — uma única sílaba — antes de responder.
— Stalingrado.
— Perdão? — fez Liesel. Ele tinha olhado para o vento ao falar. — Não consegui ouvir.
O homem tornou a responder, só que mais alto, e, dessa vez, deu uma resposta completa à pergunta.
— O que aconteceu com minha mão foi Stalingrado. Levei um tiro nas costelas e três de meus dedos foram arrancados. Isso responde à sua pergunta? — e pôs a mão não machucada no bolso, estremecendo de desdém pelo vento alemão. — Você acha que está frio aqui?
Liesel tocou a parede a seu lado. Não pôde mentir.
— Sim, é claro.
O homem riu.
— Isto não é frio.
Puxou um cigarro e o pôs na boca. Com uma só mão, tentou acender um fósforo. Naquele tempo desolador, já seria difícil com as duas, porém com uma só era impossível. Ele deixou a caixa de fósforos cair e soltou um palavrão.
Liesel apanhou-a.
Pegou o cigarro e o pôs na boca. Também ela não conseguiu acendê-lo.
— Você tem que sugar — explicou o homem. — Com este tempo, só acende se você sugar. Verstehst?
Ela fez outra tentativa, procurando lembrar como o pai fazia. Dessa vez, sua boca encheu-se de fumaça. Que trepou em seus dentes e lhe arranhou a garganta, mas ela se impediu de tossir.
— Muito bem — fez ele. Ao pegar o cigarro e tragá-lo, estendeu sua mão não ferida, a esquerda. — Michael Holtzapfel.
— Liesel Meminger.
— Você vai ler para a minha mãe?
Nesse ponto, Rosa aproximou-se por trás e Liesel sentiu o susto às suas costas.
— Michael? — perguntou Rosa. — É você?
Michael Holtzapfel acenou que sim com a cabeça.
— Guten Tag, Frau Hubermann. Há quanto tempo!
— Você parece tão...
— Velho?
Rosa ainda estava em choque, mas se recompôs.
— Não quer entrar? Estou vendo que você já conheceu minha filha de criação... — e sua voz foi sumindo, à medida que ela notou a mão ensanguentada.
— Meu irmão morreu — disse Michael Holtzapfel, e não poderia ter desferido um murro mais certeiro com seu único punho utilizável. Ele fez Rosa cambalear. A guerra significava morrer, sem dúvida, mas o chão sempre balançava sob os pés da pessoa, quando se tratava de alguém que um dia vivera e respirara em estreita proximidade. Rosa tinha visto os dois meninos Holtzapfel crescerem.
De algum modo, o rapaz envelhecido encontrou uma forma de expor o que acontecera sem perder o sangue-frio.
— Eu estava num dos prédios que usávamos como hospital quando o trouxeram. Foi uma semana antes do dia em que era para eu vir para casa. Passei três dias daquela semana sentado ao lado dele, antes de ele morrer...
— Sinto muito — disse Rosa. As palavras não pareceram sair de sua boca. Era uma outra pessoa que se postava atrás de Liesel Meminger nessa tarde, mas ela não se atreveu a olhar.
— Por favor — deteve-a Michael. — Não diga mais nada. Posso levar a menina para ler? Duvido que minha mãe escute, mas ela disse para a menina ir.
— Sim, leve-a.
Estavam a meio caminho quando Michael Holtzapfel lembrou-se de alguma coisa e se virou.
— Rosa? — e houve um momento de espera, enquanto a mãe tornava a escancarar a porta. — Eu soube que seu filho estava lá. Na Rússia. Encontrei uma outra pessoa de Molching e ela me disse. Mas tenho certeza de que você já sabia.

Rosa tentou impedir a saída do rapaz. Correu para o lado de fora e o segurou pela manga.
— Não. Ele saiu daqui um dia e nunca mais voltou. Tentamos encontrálo, mas aí aconteceu tanta coisa, houve...
Michael Holtzapfel estava decidido a escapar. A última coisa que queria era ouvir mais uma história soluçante. Puxando o braço, disse:
— Ao que eu saiba, ele está vivo.
Juntou-se a Liesel no portão, mas a menina não foi para a casa vizinha. Ficou observando o rosto de Rosa. Um rosto que se animou e desabou no mesmo instante.
— Mamãe?
Rosa levantou a mão.
— Vá.
Liesel esperou.
— Eu disse para você ir.

Quando a menina o alcançou, o soldado de regresso tentou entabular conversa. Devia estar arrependido de seu erro verbal com Rosa e tentou sepultá-lo sob outras palavras. Segurando a mão enfaixada, disse:
— Ainda não consigo fazê-la parar de sangrar.
Liesel sentiu-se contente, na verdade, por entrar na cozinha dos Holtzapfel. Quanto mais cedo começasse a ler, melhor.
Frau Holtzapfel estava sentada, com úmidos riachos de arame no rosto.
Seu filho estava morto.
Mas isso era só a metade.
Ela nunca saberia realmente como havia ocorrido, mas posso lhe dizer, sem a menor dúvida, que um de nós aqui sabe. Sempre pareço saber o que acontece, quando há neve e armas e as várias confusões da linguagem humana.
Quando imagino a cozinha de Frau Holtzapfel, pelas palavras da menina que roubava livros, não vejo o fogão, as colheres de pau, a bomba d'água ou nada parecido. Não de início, pelo menos. O que vejo é o inverno russo, a neve caindo do teto e o destino do segundo filho de Frau Holtzapfel.
Ele se chamava Robert, e foi isto que lhe aconteceu:

• UMA HISTORINHA DE GUERRA •
Suas pernas foram decepadas na altura das canelas,
e ele morreu com o irmão a velá-lo
num hospital frio e fedorento.

Foi na Rússia, em 5 de janeiro de 1943, apenas mais um dia gelado. Em meio à cidade e à neve, havia russos e alemães mortos por toda parte. Os que tinham sobrado disparavam contra as páginas em branco à sua frente. Três línguas se entrelaçaram. O russo, as balas e o alemão.
Quando caminhei por entre as almas caídas, um dos homens dizia: "Minha barriga está coçando." Disse-o muitas vezes. Apesar de seu choque, rastejou até uma figura escura e desfigurada mais adiante, que se esvaía sentada no chão. Ao chegar, o soldado com o ferimento na barriga viu que se tratava de Robert Holtzapfel. Ele tinha as mãos empapadas de sangue e empilhava neve sobre a região logo acima das canelas, onde suas pernas tinham sido decepadas pela última explosão. Havia mãos quentes e um grito rubro.
Do chão subia vapor. A visão e o cheiro da neve apodrecida.
— Sou eu — disse-lhe o soldado. — É o Pieter — e se arrastou mais alguns centímetros para perto.
— Pieter? — perguntou Robert, com voz sumida. Deve ter sentido que eu estava por perto.
— Pieter? — uma segunda vez.
Por algum motivo, os homens agonizantes sempre fazem perguntas cujas respostas já sabem. Talvez seja para poderem morrer tendo razão.

Súbito, todas as vozes soaram iguais.
Robert Holtzapfel tombou para a direita, no chão gelado e vaporífero.
Tenho certeza de que esperou encontrar-me ali, naquele momento.
Não me encontrou.
Infelizmente para o jovem alemão, não o levei naquela tarde. Passei por cima dele, com as outras pobres almas nos braços, e voltei para os russos.
Para lá e para cá eu andava.
Homens desmantelados.
Não foi nenhuma excursão de esqui, posso lhe garantir.
Como Michael contou à mãe, foi três longuíssimos dias depois que finalmente busquei o soldado que havia deixado os pés em Stalingrado. Apareci convidadíssima no hospital temporário e estremeci com o cheiro.
Um homem com a mão enfaixada dizia ao soldado mudo, de rosto em choque, que ele sobreviveria.
— Você logo irá para casa — assegurou-lhe.
É, para casa, pensei. Para sempre.
— Vou esperá-lo — continuou. — Eu ia voltar no fim da semana, mas vou esperar. No meio da última frase de seu irmão, recolhi a alma de Robert Holtzapfel. Em geral, preciso me esforçar para olhar através do teto quando estou do lado de dentro, mas nessa construção eu tive sorte. Uma pequena parte do telhado fora destruída e pude olhar diretamente para cima. A um metro de distância, Michael Holtzapfel continuava a falar. Tentei ignorá-lo, observando o buraco acima de mim. O céu estava branco, mas se deteriorava depressa. Como sempre, ia-se transformando numa imensa manta para respingos. O sangue escoava por ela e, em alguns trechos, as nuvens estavam sujas, como pegadas na neve derretida.
Pegadas?, perguntaria você.
Bem, eu me pergunto de quem seriam.

Na cozinha de Frau Holtzapfel, Liesel leu. As páginas foram passando sem ser ouvidas e, para mim, quando o cenário russo esmaeceu em meus olhos, a neve se recusou a parar de cair do teto. A chaleira ficou coberta, assim como a mesa.
Também os seres humanos usavam tiras de neve na cabeça e nos ombros.
O irmão estremeceu.
A mulher chorou.
E a menina continuou a ler, pois era para isso que estava ali, e era bom servir para alguma coisa depois das neves de Stalingrado.

O IRMÃO SEM IDADE

Liesel Meminger estava a poucas semanas de fazer quatorze anos.
Seu papai continuava fora.
Ela havia concluído mais três sessões de leitura com uma mulher arrasada. Em muitas noites, vira Rosa sentar-se com o acordeão e rezar, com o queixo sobre os foles.
Agora, pensou, está na hora. Em geral, era roubar que a animava, mas, nesse dia, foi a devolução de algo.
Enfiou a mão embaixo da cama e tirou o prato. Lavou-o na cozinha, o mais depressa que pôde, e saiu. Era agradável andar por Molching. O ar era cortante e uniforme, como a Watschen de um professor ou uma freira sádicos. Seus sapatos eram o único som na Rua Munique.

Quando ela atravessou o rio, um rumor de sol posicionou-se atrás das nuvens.
No número oito da Grande Strasse, ela subiu a escada, deixou o prato junto à porta de entrada e bateu, e, quando a porta se abriu, já havia dobrado a esquina. Liesel não olhou para trás, mas sabia que, se o fizesse, encontraria seu irmão outra vez na base da escada, com o joelho completamente curado. Chegou até a ouvir sua voz.
— Assim é melhor, Liesel.

Foi com grande tristeza que ela se deu conta de que seu irmão teria seis anos para sempre, mas, ao reter essa idéia, também fez um esforço para sorrir.
Permaneceu na ponte sobre o Rio Amper, onde o pai costumava parar e se debruçar.
Sorriu e sorriu que, quando pôs tudo para fora, voltou caminhando para casa, e o irmão nunca mais penetrou em seu sono. De muitas maneiras, Liesel sentiria sua falta, mas jamais teria saudade de seus olhos mortos no piso do trem nem do som de uma tosse que matava.

Nessa noite, a roubadora de livros deitou-se na cama e o menino só chegou antes de ela fechar os olhos. Era um componente de um elenco, pois Liesel era sempre visitada nesse cômodo. Seu papai chegava e a chamava de meia mulher. Max escrevia A Sacudidora de Palavras num canto. Rudy ficava nu junto à porta. Vez por outra, sua mãe postava-se numa estação de trem ao lado da cama. E ao longe, no quarto que se estendia como uma ponte até uma cidade sem nome, seu irmão, Werner, brincava na neve do cemitério.
Do fim do corredor, como um metrônomo para marcar o andamento das visões, vinha o som dos roncos de Rosa, e Liesel ficou desperta, cercada, mas também relembrando uma citação de seu livro mais recente.

• O ÚLTIMO FORASTEIRO HUMANO, PÁGINA 38 •
Havia gente por toda parte, na rua da cidade,
mas o forasteiro não poderia sentir-se mais só
se ela estivesse deserta.

•••

Quando veio a manhã, as visões se foram e ela pôde ouvir o recital de palavras murmuradas na sala. Rosa estava sentada com o acordeão, rezando.
— Faça-os voltar vivos — repetia. — Por favor, Senhor, por favor. Todos eles.
Até as rugas ao redor de seus olhos uniam as mãos em prece.
Rosa jamais falaria com Hans sobre esses momentos, mas Liesel achou que devem ter sido essas orações que ajudaram seu papai a sobreviver ao acidente com a LSE em Essen. Se não ajudaram, elas certamente não devem ter atrapalhado.

O ACIDENTE

Fazia uma tarde surpreendentemente clara e os homens estavam subindo no caminhão. Hans Hubermann acabara de se sentar em seu lugar designado.
Reinhold Zucker parou diante dele.
— Saia daí — disse.
— Bitte? Perdão?
Zucker recurvava-se sob o teto do veículo.
— Eu disse para sair daí, Arschloch — repetiu. A selva ensebada de sua franja caía-lhe em grumos sobre a testa. — Vou trocar de lugar com você.
Hans ficou confuso. O assento dos fundos era, provavelmente, o mais incômodo de todos. O mais cheio de correntes de ar, o mais frio.
— Por quê?
— E isso importa? — fez Zucker, perdendo a paciência. — Pode ser que eu queira descer primeiro para usar a latrina.
Hans logo se deu conta de que o resto da unidade já observava essa briga deplorável entre dois homens supostamente adultos. Não queria sair perdendo, mas também não queria ser mesquinho. Além disso, o grupo acabara de concluir um turno cansativo, e ele não tinha forças para levar a coisa adiante. Com as costas recurvadas, dirigiu-se ao assento vazio no meio do caminhão.
— Por que você se submeteu àquele Scheisskopft — perguntou o homem a seu lado.
Hans riscou um fósforo e se ofereceu para dividir o cigarro.
— O vento lá atrás entra direto nos meus ouvidos.

O caminhão verde-oliva estava a caminho do acampamento, talvez a uns dezesseis quilômetros de distância. Brunnenweg contava uma piada sobre uma garçonete francesa, quando o pneu dianteiro esquerdo furou e o motorista perdeu o controle. O veículo capotou várias vezes, e os homens foram xingando enquanto davam cambalhotas no ar, na luz, no entulho e no fumo. Lá fora, o céu azul passava de teto a chão, enquanto eles se esforçavam para se agarrar a alguma coisa.
Quando o movimento cessou, estavam todos apinhados na parede direita do caminhão, com os rostos espremidos contra os uniformes imundos mais próximos. Circularam perguntas a respeito da saúde, até que um dos homens, Eddie Alma, começou a gritar:
— Tirem esse sacana de cima de mim! — gritou três vezes, depressa. Fitava os olhos não pestanejantes de Reinhold Zucker.

• OS DANOS, ESSEN •
Seis homens queimados por cigarros.
Duas mãos quebradas.
Vários dedos quebrados.
Uma perna quebrada em Hans Hubermann.
Um pescoço quebrado em Reinhold Zucker,
partido quase na altura dos lobos das orelhas.

Os homens arrastaram uns aos outros, até restar apenas o cadáver no caminhão. O motorista, Helmut Brohmann, ficou sentado no chão, coçando a cabeça.
— O pneu — explicou —, ele estourou.
Alguns homens sentaram-se a seu lado e repetiram em eco que não fora culpa dele. Outros ficaram andando a esmo, fumando e perguntando uns aos outros se achavam que suas lesões eram graves o bastante para que eles fossem dispensados de suas funções. Um terceiro grupinho reuniu-se na traseira do caminhão e se pôs a olhar o corpo.
Junto a uma árvore, uma tira fina de dor intensa continuava a se abrir na perna de Hans Hubermann.
— Devia ter sido eu — disse ele.
— O quê? — perguntou o sargento, falando do caminhão.
— Ele estava sentado no meu lugar.

Helmut Brohmann recompôs-se e voltou a entrar na cabine do motorista. De lado, tentou ligar o motor, mas não houve jeito de dar a partida. Chamou-se outro caminhão, assim como uma ambulância. A ambulância não veio.
— Vocês sabem o que isso significa, não é? — perguntou Boris Schipper. Eles sabiam.

Quando reiniciaram a viagem para o acampamento, cada um dos homens procurou não olhar para o esgar boquiaberto de Reinhold Zucker.
— Eu disse a você que a gente devia tê-lo virado de bruços — mencionou alguém.
Em certos momentos, alguns simplesmente esqueceram e apoiaram os pés no cadáver. Ao chegarem, todos tentaram evitar a tarefa de puxá-lo para fora. Concluído o trabalho, Hans Hubermann deu uns passos abreviados, até a dor fraturar-lhe a perna e derrubá-lo no chão.
Uma hora depois, quando o médico o examinou, disseram-lhe que ela estava decididamente quebrada. O sargento estava por perto e exibiu um meio sorriso.
— Bem, Hubermann. Parece que você se safou, não é?
Balançou o rosto redondo, fumando, e fez a lista do que aconteceria a seguir:
— Você ficará descansando. Vão me perguntar o que devem fazer a seu respeito. Eu direi que você fez um ótimo trabalho — e soprou outra baforada de fumaça. — E acho que vou dizer que não serve mais para trabalhar na LSE e deve ser mandado de volta a Munique, para trabalhar num escritório ou fazer a limpeza que precise ser feita por lá. Que lhe parece?
Incapaz de resistir a uma risada em meio à careta de dor, Hans respondeu:
— Parece bom, sargento.
Boris Schipper terminou o cigarro.
— Pode apostar que parece bom. É sorte sua eu gostar de você, Hubermann. Sorte sua você ser um bom homem, e generoso com os cigarros.
No cômodo ao lado, preparavam o gesso.

O GOSTO AMARGO DAS PERGUNTAS

Pouco mais de uma semana depois do aniversário de Liesel, em meados de fevereiro, ela e Rosa finalmente receberam uma carta detalhada de Hans Hubermann. Liesel correu da caixa de correio para dentro e a mostrou à mãe.
Rosa a mandou lê-la em voz alta, e as duas mal conseguiram conter a agitação quando a menina leu sobre a perna quebrada. Liesel ficou tão atônita que murmurou a frase seguinte só para si.
— O que foi? — pressionou Rosa. — Saumensch?
Liesel ergueu os olhos da carta e por pouco não gritou. O sargento mantivera sua palavra.
— Ele está vindo para casa, mamãe. Papai está voltando para casa!
As duas se abraçaram na cozinha, amarrotando a carta entre seus corpos. Com certeza, uma perna quebrada era algo para se comemorar.
Quando Liesel levou a notícia à casa ao lado, Barbara Steiner ficou radiante. Afagou o braço da menina e chamou o resto da família. Na cozinha, o clã dos Steiner pareceu extasiado com a notícia de que Hans Hubermann voltaria para casa. Rudy sorriu e gargalhou, e Liesel pôde perceber que ele estava ao menos tentando. Mas também pôde intuir o gosto amargo das perguntas em sua boca.
Por que ele?
Por que Hans Hubermann, e não Alex Steiner?
Ele tinha razão em perguntar.

UMA CAIXA DE FERRAMENTAS,
UM HOMEM ENSANGUENTADO,
UM URSO

Desde que seu pai fora recrutado pelo exército, em outubro do ano anterior, a raiva de Rudy vinha crescendo para valer. A notícia da volta de Hans Hubermann era tudo de que ele precisava para intensificá-la um pouco mais. Rudy não conversou com Liesel sobre o assunto. Não houve queixas de que não era justo. Sua decisão foi agir.
Saiu carregando uma caixa de metal pela Rua Himmel, no típico horário de roubos da tarde crepuscular.

• A CAIXA DE FERRAMENTAS DE RUDY •
Era de um vermelho desigual e tinha o comprimento
de uma caixa de sapatos agigantada.
Continha o seguinte:
Canivete enferrujado x 1
Lanterninha x 1
Martelo x 2
(um médio, um pequeno)
Toalha de mão x 1
Chave de fenda x 3
(tamanhos variados)
Máscara de esqui x 1
Meias limpas x 1
Urso de pelúcia x 1

Liesel o viu da janela da cozinha — passos decididos e rosto resoluto, exatamente como no dia em que saíra para procurar o pai. Segurava a alça da caixa com toda a força possível e tinha os movimentos rígidos de raiva.
A menina que roubava livros largou o pano de prato que segurava e o trocou por uma única ideia.
Ele vai roubar.
E correu a seu encontro.

Não houve nem mesmo um simulacro de olá.
Rudy simplesmente continuou a andar e a falar, voltado para o ar frio à sua frente. Perto do edifício de Tommy Müller, disse:
— Sabe de uma coisa, Liesel, eu andei pensando. Você não é ladra coisa nenhuma — e nem lhe deu chance de responder. — Aquela mulher deixa você entrar. Até lhe deixa biscoitos, pelo amor de Deus! Não chamo isso de roubo. Roubo é o que o exército faz. Tirar o seu pai e o meu — explicou. Deu um pontapé numa pedra, que bateu com som metálico num portão. Apertou o passo. — Todos aqueles nazistas ricos de lá, na Grande Strasse, na Gelb Strasse, na Heide Strasse.
Liesel não podia concentrar-se em nada além de acompanhar o ritmo do amigo. Já haviam passado pela loja de Frau Diller e percorrido um bom trecho da Rua Munique.
— Rudy...
— Como é, afinal?
— Como é o quê?
— Quando você tira um daqueles livros.
Nesse momento, ela optou por ficar quieta. Se Rudy quisesse uma resposta, teria que tentar de novo, e tentou.
— E então?
Mais uma vez, porém, foi o próprio Rudy quem respondeu, antes que Liesel sequer conseguisse abrir a boca.
— É bom, não é? Retomar alguma coisa.
Liesel forçou a atenção para a caixa de ferramentas, tentando fazê-lo diminuir o passo.
— O que você tem aí?
O menino se inclinou e abriu a caixa.
Tudo parecia fazer sentido, menos o ursinho de pelúcia.

Enquanto continuavam a andar, Rudy explicou em detalhe a caixa de ferramentas e o que faria com cada um de seus componentes. Por exemplo, os martelos eram para quebrar janelas, e a toalha era para envolvê-los, a fim de abafar o som.
— E o ursinho?
Pertencia a Anna-Marie Steiner e não era maior que um dos livros de Liesel. O pêlo estava emaranhado e puído. Os olhos e as orelhas tinham sido repetidamente recosturados, mas, apesar disso, ele tinha um ar amistoso.
— Esse — respondeu Rudy — é o golpe de mestre. Para o caso de uma criança entrar quando eu estiver lá dentro. Entrego o ursinho e ela se acalma.
— E o que você pretende roubar?
Ele deu de ombros.
— Dinheiro, comida, jóias. Qualquer coisa em que eu possa pôr as mãos.
Parecia bem simples.

Só depois de uns quinze minutos, ao observar o silêncio repentino no rosto do amigo, foi que Liesel percebeu que Rudy Steiner não roubaria nada. O ar resoluto havia desaparecido e, embora ele ainda fitasse a glória imaginária de roubar, era perceptível que já não acreditava nisso. Tentava acreditar, e isso nunca é bom sinal. Sua grandiosidade no crime desdobrava-se diante de seus olhos e, à medida que os passos ficaram mais lentos e os dois observaram as casas, o alívio de Liesel foi puro e triste dentro dela.
Estavam na Gelb Strasse.
Em geral, as casas eram escuras e imensas.

Rudy tirou os sapatos e os segurou na mão esquerda. Com a direita, segurava a caixa de ferramentas.
Entre as nuvens havia uma lua. Talvez um quilômetro de luz.
— Que é que eu estou esperando? — perguntou-se o menino, mas Liesel não respondeu. Rudy tornou a abrir a boca, mas sem nenhuma palavra. Depositou a caixa no chão e sentou-se em cima dela.
Suas meias ficaram frias e úmidas.
— É sorte haver outro par na caixa de ferramentas — sugeriu Liesel, e percebeu que ele tentava não rir, a despeito de si mesmo.

Rudy chegou para a ponta e se virou para o outro lado, e passou a haver espaço também para Liesel.
A menina que roubava livros e seu melhor amigo ficaram sentados, um de costas para o para o outro, numa caixa de ferramentas de um vermelho desbotado, no meio da rua. Cada qual voltado para uma direção diferente, ali permaneceram um bom tempo. Quando se levantaram e foram para casa, Rudy trocou de meias e deixou a anterior na rua. Um presente para a Gelb Strasse, decidiu.

• A VERDADE VERBALIZADA •
DE RUDY STEINER
— Acho que sou melhor para deixar
coisas do que para roubá-las.

Semanas depois, a caixa de ferramentas acabou servindo pelo menos para uma coisa. Rudy retirou dela as chaves de fenda e os martelos e, em vez disso, resolveu guardar muitos objetos de valor dos Steiner, para o bombardeio aéreo seguinte. A única peça que permaneceu foi o ursinho de pelúcia.
Em 9 de março, Rudy saiu de casa com essa caixa, quando as sirenes tornaram a fazer sentir sua presença em Molching.
Enquanto os Steiner corriam pela Rua Himmel, Michael Holtzapfel bateu furiosamente na porta de Rosa Hubermann. Quando ela e Liesel saíram, entregou-lhes seu problema.
— Minha mãe — disse, e as ameixas de sangue continuavam em sua atadura. — Ela se recusa a sair. Está sentada à mesa da cozinha.
No correr das semanas, Frau Holtzapfel ainda não havia começado a serecuperar. Quando Liesel chegava para ler, a mulher passava a maior parte do tempo olhando fixo para a janela. Suas palavras eram baixas, quase imóveis. Toda a rispidez e censura tinham sido arrancadas de seu rosto. Em geral, era Michael quem dizia até logo a Liesel, ou lhe oferecia café e lhe agradecia. E agora, isto.
Rosa entrou em ação.
Gingou com agilidade portão adentro e parou no vão da porta aberta.
— Holtzapfel! — gritou. Não havia nada senão as sirenes e Rosa. — Holtzapfel, venha cá, sua velha porca infeliz!
O tato nunca fora um ponto forte de Rosa Hubermann.
— Se você não sair, vamos todos morrer aqui na rua! — e se virou, olhando para as figuras desamparadas na calçada. Uma sirene havia acabado desoltar seu lamento.
— E agora?
Michael encolheu os ombros, desnorteado, perplexo. Liesel deixou cair a sacola de livros e o fitou. Gritou, no começo da sirene seguinte: — Posso entrar? — mas não esperou a resposta. Perfez correndo a curta distância da calçada e passou pela mãe com um tranco.
Frau Holtzapfel mantinha-se imóvel à mesa.
Que vou dizer?, pensou Liesel.
Como faço ela se mexer?
Quando as sirenes pararam mais uma.vez para respirar, ela ouviu Rosa chamando:
— Deixe-a para lá, Liesel, temos que ir embora! Se ela quer morrer, é problema dela — mas as sirenes recomeçaram. Chegaram e atiraram longe a voz.
Restaram então apenas o barulho, a menina e a mulher magra e rija.
— Frau Holtzapfel, por favor!
Tal como em sua conversa com Ilsa Hermann, no dia dos biscoitos, havia uma multidão de palavras e frases na ponta de sua língua. A diferença era que hoje havia bombas. Hoje era ligeiramente mais urgente.

• AS OPÇÕES •
"Frau Holtzapfel, nós temos que ir."
"Frau Holtzapfel nós vamos morrer, se ficarmos aqui"
"A senhora ainda tem um filho"
"Estão todos à sua espera."
"As bombas vão arrancar sua cabeça."
"Se a senhora não vier, eu não venho mais ler,
e isso significa que a senhora vai perder sua única amiga."

Liesel optou pela última frase, gritando as palavras bem no meio das sirenes. Tinha as mãos plantadas na mesa.
A mulher levantou os olhos e tomou sua decisão. Não se mexeu.
Liesel foi embora. Afastou-se da mesa e saiu correndo da casa.

Rosa manteve o portão aberto e as duas começaram a correr para o número quarenta e cinco. Michael Holtzapfel continuou paralisado na Rua Himmel.
— Vamos! — implorou-lhe Rosa, mas o soldado de regresso hesitou. Estava prestes a voltar para dentro de casa quando algo o fez virar-se. Sua mão mutilada era a única coisa que o prendia ao portão e, envergonhado, ele a soltou e seguiu as duas.
Todos olharam para trás várias vezes, mas nada ainda de Frau Holtzapfel.
A rua parecia muito larga e, quando a última sirene evaporou-se no ar, as últimas três pessoas da Rua Himmel entraram no porão dos Fiedler.
— Por que vocês demoraram tanto? — perguntou Rudy. Segurava a caixa de ferramentas.
Liesel depositou a sacola de livros no chão e se sentou em cima.
— Estávamos tentando trazer Frau Holtzapfel.
Rudy olhou em volta.
— Cadê ela?
— Em casa. Na cozinha.

No canto oposto do abrigo, Michael se encolhia, trêmulo.
— Eu devia ter ficado lá — dizia —, eu devia ter ficado, devia ter ficado...
Sua voz era quase inaudível, mas os olhos gritavam mais do que nunca. Agitavam-se furiosos em suas órbitas, enquanto ele apertava a mão ferida e o sangue brotava, pela atadura.
Foi Rosa quem o deteve.
— Por favor, Michael, a culpa não é sua.
Mas o rapaz de poucos dedos remanescentes na mão direita estava inconsolável. Agachou-se nos olhos de Rosa.
— Me diga uma coisa — pediu —, porque eu não consigo entender...
Inclinou-se para trás e se sentou, encostado na parede.
— Diga-me, Rosa, como é que ela pode ficar lá sentada, pronta para morrer, enquanto eu ainda quero viver? — afligiu-se. O sangue tornou-se mais espesso. — Por que é que eu quero viver? Não devia querer, mas quero.
Com a mão de Rosa em seu ombro, o rapaz chorou de forma incontrolável por vários minutos. As outras pessoas olhavam. Ele não conseguiu parar nem mesmo quando a porta do porão abriu e fechou, e Frau Holtzapfel entrou no abrigo.
Seu filho ergueu os olhos.
Rosa afastou-se.
Quando os dois se juntaram, Michael pediu desculpas.
— Desculpe, mamãe, eu devia ter ficado com você.
Frau Holtzapfel não ouviu. Apenas sentou-se com o filho e suspendeu sua mão enfaixada.
— Você está sangrando de novo — disse, e, com todos os demais, eles esperaram.
Liesel enfiou a mão na sacola e esquadrinhou os livros.

• O BOMBARDEIO DE MUNIQUE, 9 E 10 DE MARÇO •
Foi uma longa noite de bombas e leitura.
Sua boca estava seca, mas a menina que roubava livros
batalhou até concluir cinqüenta e quatro páginas.

A maioria das crianças dormiu e não escutou as sirenes da segurança renovada. Os pais as acordaram ou as carregaram no colo, subindo a escada do porão para o mundo das trevas.
Ao longe, os incêndios ardiam, e eu havia colhido pouco mais de duzentas almas assassinadas.
Estava a caminho de Molching, mais uma vez.

A Rua Himmel foi liberada.
As sirenes haviam soado por muitas horas, para a eventualidade de outra ameaça e para deixar que a fumaça se espalhasse pela atmosfera.
Foi Bettina Steiner quem notou o pequeno incêndio e o filete de fumaça mais adiante, perto do Rio Amper. Ele formava uma trilha para o céu, e a menina levantou o dedo.
— Olhem.

Bettina pode tê-lo visto primeiro, mas foi Rudy quem reagiu. Na pressa, nem soltou a caixa de ferramentas, ao disparar para o fim da Rua Himmel, enveredar por algumas ruelas e penetrar no arvoredo. Liesel foi atrás (depois de entregar os livros a Rosa, em meio a seus veementes protestos), seguida por um pequeno número de pessoas saídas de diversos abrigos pelo caminho.
— Rudy, espere!
Rudy não esperou.
Liesel só conseguia enxergar a caixa de ferramentas em algumas lacunas entre as árvores, enquanto ele abria caminho para o brilho agonizante e o avião enfumaçado. Estava parado, fumegante, na clareira junto ao rio, o piloto tentara pousar nela.
A menos de vinte metros, Rudy estancou.
Quando eu mesma cheguei, notei-o postado lá, recobrando o fôlego.
Os ramos das árvores espalhavam-se pela escuridão.
Havia gravetos e carumas acumulados em volta do avião, como combustível para uma fogueira. À esquerda, três rasgos tinham queimado a terra. O tiquetaque descontrolado do metal que esfriava acelerou os minutos e segundos, até parecer que fazia horas que os dois estavam ali. A multidão crescente juntava-se atrás deles, grudando sua respiração e suas frases às costas de Liesel.
— Bem — disse Rudy —, será que devemos dar uma olhada?
Deu alguns passos por entre o resto das árvores, até onde a carcaça do avião se fixara no solo. O nariz estava na água corrente, e as asas, tortas, tinham sido deixadas para trás.
Rudy o contornou lentamente, começando pela cauda e seguindo pela direita.
— Tem vidro — disse. — O pára-brisa está em todo canto.
E então viu o corpo.

Rudy Steiner nunca vira um rosto tão pálido.
— Não venha aqui, Liesel.
Mas Liesel foi.
Viu o rosto quase inconsciente do piloto inimigo, enquanto as árvores altas observavam e o rio corria. O avião tossiu mais algumas vezes e a cabeça lá dentro inclinou-se da esquerda para a direita. Disse alguma coisa, que eles obviamente não conseguiram compreender.
— Jesus, Maria e José — murmurou Rudy. — Ele está vivo.
A caixa de ferramentas bateu na lateral do avião e trouxe consigo o som de mais vozes e pés humanos.
O brilho do fogo havia sumido e a manhã estava calma e negra. Havia apenas a fumaça em seu caminho, mas também ela não tardaria a se esvair.
A muralha de árvores mantinha à distância a cor de Munique em chamas. A essa altura, os olhos do menino tinham-se adaptado não apenas à escuridão, mas também ao rosto do piloto. Os olhos pareciam nódoas de café, e havia cortes riscados nas faces e no queixo. Um uniforme amarrotado pesava desleixadamente sobre seu peito.

Apesar do conselho de Rudy, Liesel chegou ainda mais perto, e posso lhe jurar que nós duas nos reconhecemos, naquele exato momento.
Eu a conheço, pensei.
Havia um trem e um garoto que tossia. Havia neve e uma menina aflita.
Você cresceu, pensei, mas eu a reconheço.
Ela não recuou nem tentou combater-me, mas sei que alguma coisa disse à menina que eu estava ali, será que ela sentiu o cheiro de meu bafo? Será que ouviu meu maldito bater circular do coração, girando como o crime que ele é em meu peito mortífero? Não sei, mas ela me conhecia, fitou-me cara a cara e não desviou o olhar.
Enquanto a luz começava a desencarvoar o céu, nós duas prosseguimos. Ambas vimos o menino enfiar de novo a mão na caixa de ferramentas, remexer numas fotos emolduradas, à procura de alguma coisa, e retirar um brinquedinho amarelo de pelúcia.
Com cuidado, ele trepou até onde estava o homem agonizante.
Depositou cautelosamente o ursinho risonho no ombro do piloto. A ponta de sua orelha encostou na garganta do rapaz.
O homem agonizante aspirou o cheiro. E falou. Em inglês, disse: "Obrigado". Seus cortes retos abriram-se com sua fala, e uma gotinha de sangue escorreu torta por sua garganta.
— O quê? — fez Rudy. — Was hast du gesagt? O que você disse?
Infelizmente, venci-o na corrida para a resposta. Era chegada a hora e estendi a mão para o cockpit. Devagar, extraí a alma do piloto de seu uniforme amassado e o resgatei do avião partido. A multidão brincou com o silêncio enquanto eu passava. Livrei-me dela com alguns encontrões.
No alto, o céu se eclipsou — apenas um último instante de escuridão —, e juro que vi uma assinatura negra, sob a forma de uma suástica. Ela se demorou lá em cima, desarrumada.
— Heil Hitler — disse eu, mas já me embrenhara por entre as árvores.
Atrás de mim, um ursinho de pelúcia descansava no ombro de um cadáver. Havia uma vela de limão abaixo dos galhos. A alma do piloto estava em meus braços.
Provavelmente, é lícito dizer que, em todos os anos do império de Hitler, nenhuma pessoa pôde servir ao Führer com tanta lealdade quanto eu. O ser humano não tem um coração como o meu. O coração humano é uma linha, ao passo que o meu é um círculo, e tenho a capacidade interminável de estar no lugar certo na hora certa. A conseqüência disso é que estou sempre achando seres humanos no que eles têm de melhor e de pior. Vejo sua feiúra e sua beleza, e me pergunto como uma mesma coisa pode ser as duas. Mas eles têm uma coisa que eu invejo. Que mais não seja, os humanos tem o bom senso de morrer.

REGRESSO AO LAR

Foi uma época de ensangüentados, aviões partidos e ursinhos de pelúcia, mas o primeiro trimestre de 1943 terminaria numa nota positiva para a menina que roubava livros.
No início de abril, o gesso de Hans Hubermann foi cortado na altura do joelho e ele embarcou num trem para Munique. Teria uma semana de descanso e recreação em casa, antes de se juntar às fileiras de escrevinhadores do exército na cidade. Ajudaria com a papelada na limpeza de fábricas, residências, igrejas e hospitais de Munique. O tempo diria se ele seria mandado para o trabalho de restauração. Tudo dependeria de sua perna e da situação da cidade.

Estava escuro quando ele chegou em casa. Foi um dia depois do esperado, já que o trem sofrera um atraso por causa de um alerta de bombardeio aéreo. Hans parou à porta da Rua Himmel, 33, e cerrou o punho.
Quatro anos antes, Liesel Meminger fora persuadida a cruzar aquela porta, ao aparecer pela primeira vez. Max Vandenburg postara-se diante dela, com uma chave a lhe queimar a mão. Agora era a vez de Hans Hubermann. Ele bateu quatro vezes, e a roubadora de livros foi atender.
— Papai, papai!
Deve tê-lo repetido uma centena de vezes, enquanto o abraçava na cozinha e se recusava a soltá-lo.

Mais tarde, depois de comer, os três sentaram-se à mesa da cozinha até tarde da noite, e Hans contou tudo a sua mulher e a Liesel Meminger. Explicou a LSE, as ruas cheias de fumaça e as pobres almas perdidas que vagavam. E Reinhold Zucker. O pobre, estúpido Reinhold Zucker. Levou horas.
À uma da madrugada, Liesel foi se deitar e o pai entrou no quarto para se sentar ao lado dela, como tinha sido seu costume. A menina acordou várias vezes para se certificar de que ele estava ali, e o pai não a deixou em falta.
Foi uma noite calma.
A cama estava quente e macia de contentamento.

Sim, foi uma grande noite para Liesel Meminger, e a calma, o calor e a maciez persistiriam por aproximadamente mais três meses.

Mas a história dela dura seis.

Nenhum comentário :

Postar um comentário

Atenção: para postar um comentário, escolha Nome/Url. Se quiser insira somente seu nome.

Please, no spoilers!

Expresse-se:
(◕‿◕✿) 。◕‿◕。 ●▽●

⊱✿◕‿◕✿⊰(◡‿◡✿)(◕〝◕) ◑▂◐ ◑0◐

◑︿◐ ◑ω◐ ◑﹏◐ ◑△◐ ◑▽◐ ●▂● 

●0● ●︿● ●ω● ●﹏● ●△● ●▽●

Topo