Parte oito

A SACUDIDORA DE PALAVRAS
APRESENTANDO:
dominós e trevas
a idéia de rudy nu
castigo
a mulher de um cumpridor de promessas
um colecionador
os comedores de pão
uma vela nas árvores
um caderno de desenho escondido
e a coleção de ternos do anarquista

DOMINÓS E TREVAS

Nas palavras das irmãs menores de Rudy, havia dois monstros sentados na cozinha. Suas vozes amassavam metodicamente a porta, enquanto três das crianças Steiner jogavam dominó do outro lado. As outras três ouviam rádio no quarto, distraídas. Rudy esperava que isso não tivesse nada a ver com o que acontecera na escola na semana anterior. Tinha sido algo que ele se recusara a contar a Liesel e sobre o qual não havia falado em casa.

• UMA TARDE CINZENTA, •
UM PEQUENO CONSULTÓRIO NA ESCOLA
Três meninos fizeram fila. Seus históricos escolares
e seus corpos foram minuciosamente examinados.

Quando terminou a quarta partida de dominó, Rudy começou a en-fileirar as pedras na vertical, criando desenhos que serpenteavam pelo chão da sala. Como era seu hábito, também deixou alguns espaços, para o caso de haver interferência do dedo travesso de uma das irmãs, o que geralmente acontecia.
— Posso derrubar eles, Rudy?
— Não.
— E eu?
— Não. Todos vamos derrubá-los.
Rudy montou três formações separadas, que levavam à mesma torre de dominós no centro. Juntos, eles observariam o desmoronamento de tudo que fora tão cuidadosamente planejado, e todos sorririam ante a beleza dá destruição.
As vozes na cozinha estavam ficando mais altas, umas trepando nas outras para se fazerem ouvir. Frases diferentes disputavam a atenção, até que uma pessoa, anteriormente calada, entrou no meio delas.
— Não — disse. — Não — repetiu. Mesmo quando as demais retomaram a , discussão, voltaram a ser silenciadas pela mesma voz, só que, nessa hora, ela ganhou ímpeto. — Por favor — suplicou Barbara Steiner —, meu menino não.

— A gente pode acender uma vela, Rudy?
Era uma coisa que o pai fizera muitas vezes com eles. Apagava a luz e todos viam os dominós caírem à luz da vela. De algum modo, isso tornava o acontecimento mais grandioso, um espetáculo maior.
As pernas de Rudy estavam doloridas, de qualquer jeito.
— Deixem eu procurar um fósforo.

O interruptor ficava junto à porta.
Em silêncio, Rudy aproximou-se dela, com a caixa de fósforos numa das mãos e a vela na outra.
Do lado de lá, os três homens e uma mulher treparam nas dobradiças. — As melhores notas da turma — disse um dos monstros. Muita profundidade e indiferença. — Para não falar em sua capacidade atlética — completou. Droga, por que é que ele tinha que ter ganho todas aquelas corridas na competição?
Deutscher.
Maldito aquele tal de Franz Deutscher.
Mas, então, Rudy compreendeu.
Aquilo não era culpa de Franz Deutscher, mas sua. Ele quisera mostrar a seu antigo torturador do que era capaz, mas também quisera provar-se diante de todos. E agora, o todos estava na cozinha.

Rudy acendeu a vela e apagou a luz.
— Prontas?
— Mas nós ouvimos falar no que acontece por lá — fez a inconfundível voz de carvalho de seu pai.
— Anda, Rudy, anda logo!
— Sim, mas compreenda, Herr Steiner, tudo isso é por um objetivo maior. Pense nas oportunidades que seu filho pode ter. É realmente um privilégio.
— Rudy, a vela está pingando.
O menino fez um gesto para que elas se calassem, novamente à espera de Alex Steiner. Ele veio.
— Privilégios? Como correr descalço na neve? Como saltar de plataformas de dez metros, em noventa centímetros de água?
Agora a orelha de Rudy estava grudada na porta. A cera da vela derretia em sua mão.
— Boatos — fez a voz árida, baixa e sem emoção. Tinha resposta para tudo. — Nossa escola é uma das melhores que já se criaram. É melhor que as de categoria internacional. Estamos criando um grupo de elite de cidadãos alemães, em nome do Führer...

Rudy não conseguiu mais escutar.
Raspou da mão a cera da vela e recuou da emenda de luz que atravessava a rachadura da porta. Ao se sentar, a chama apagou-se. Movimento demais. A escuridão invadiu o cômodo. A única luz disponível era um estêncil retangular branco, na forma da porta da cozinha.
Ele riscou outro fósforo e tornou a acender a vela. O cheiro doce de fogo e carbono.
Cada um deles, Rudy e as irmãs, deu um peteleco num dominó diferente, e em seguida os observaram cair, até que a torre central prostrou-se de joelhos. As meninas deram vivas.
Kurt, o irmão mais velho, entrou na sala.
— Parecem cadáveres — disse.
— O quê?
Rudy espiou o rosto sombrio, mas Kurt não respondeu. Havia notado a discussão que vinha da cozinha.
— Que está acontecendo por lá?
Foi uma das meninas quem respondeu. A mais nova, Bettina. Tinha cinco anos.
— Tem dois monstros — disse. — Vieram buscar o Rudy.
De novo, a criança humana. Muito mais perspicaz.

Depois, quando os homens de sobretudo se foram, os dois rapazinhos, um de dezessete, outro de quatorze anos, encontraram coragem para enfrentar a cozinha.
Pararam à porta. A luz castigava seus olhos.
Foi Kurt quem falou:
— Eles vão levá-lo?
Os braços da mãe estavam arriados na mesa. As palmas das mãos, viradas para cima.
Alex Steiner levantou a cabeça.
Estava pesada.
Sua expressão era nítida e definida, recém-talhada.
A mão de madeira afastou as lascas de franja e ele fez várias tentativas de falar.
— Papai?
Mas Rudy não se aproximou dele.
Sentou-se à mesa da cozinha e segurou a mão da mãe, com sua palma para cima.
Alex e Barbara Steiner não quiseram revelar o que fora dito enquanto os dominós tombavam feito cadáveres na sala de estar. Se Rudy tivesse continuado a escutai junto à porta, só mais uns minutinhos...
Nas semanas seguintes, ele disse a si mesmo — ou, a rigor, protestou consigo mesmo — que, se tivesse ouvido o resto da conversa naquela noite, teria entrado muito antes na cozinha. — Eu vou — teria dito. — Por favor, me levem, estou pronto.
Se houvesse interferido, isso poderia ter modificado tudo.

• TRÊS POSSIBILIDADES •
1. Alex Steiner não teria sofrido o
mesmo castigo que Hans Hubermann.
2. Rudy teria ido embora para a escola.
3. E, talvez, talvez tivesse ficado vivo.

Mas a crueldade do destino não havia deixado que Rudy Steiner entrasse na cozinha no momento oportuno.
Ele tinha voltado para suas irmãs e os dominós.
Sentara-se.
Rudy Steiner não iria a lugar nenhum.

A IDÉIA DE RUDY NU

Havia uma mulher.
Parada num canto.
Tinha a trança mais grossa que ele já vira. Descia-lhe pelas costas feito uma corda e, vez ou outra, quando ela a passava por cima do ombro, espreitava os seios colossais da mulher, como um animal de estimação superalimentado. Na verdade, tudo nela era amplificado. Os quadris, as pernas. Os dentes acavalados. A voz era grande e direta. Sem tempo a perder. — Komm — ela os instruiu. — Venham. Fiquem aqui.
O médico, em comparação, parecia um roedor em processo de calvície. Era miúdo e ágil, e andava de um lado para outro, no consultório da escola, com movimentos e maneirismos maníacos, embora metódicos. E estava resfriado.
Dos três meninos, foi difícil decidir quem relutou mais em tirar a roupa, ao receber essa ordem. O primeiro olhou de uma pessoa pan outra, do professor envelhecido para a enfermeira gargantuesca e o médico tamanho mirim. O do meio só fez olhar para os pés, e o da extrema esquerda julgou-se abençoado por estar no consultório médico da escola, e não numa viela escura. A enfermeira, decidiu Rudy, era de dar medo.
— Quem é o primeiro? — perguntou ela.
Quem respondeu foi o professor que supervisionava o processo, Herr Heckenstaller. Estava mais para um terno preto do que para um homem. Seu rosto era um bigode. Examinando os meninos, sua escolha foi rápida.
— Schwarz.
O pobre Jürgen Schwarz desabotoou o uniforme, com imenso mal-estar. Ficou parado ali, apenas de sapatos e roupa de baixo. Um apelo infeliz pairava em seu rosto alemão.
— E então? — perguntou Herr Heckenstaller. — Os sapatos?
O menino tirou os dois sapatos, as duas meias.
— Und die Unterhosen — fez a enfermeira. — E a cueca.
Aquela altura, Rudy e o outro menino, Olaf Spiegel, também tinham começado a se despir, mas não estavam nem perto da situação periclitante de Jürgen Schwarz. O menino tremia. Era um ano mais novo que os outros dois, porém mais alto. Quando sua cueca arriou, foi com abjeta humilhação que ele se postou no consultório pequeno e frio. Com o amor-próprio enroscado nos tornozelos.
A enfermeira o observava atentamente, com os braços cruzados sobre o peito devastador.
Heckenstaller ordenou que os outros dois andassem logo.
O medico coçou a cabeça e tossiu. A gripe o estava matando.

Os três meninos nus foram individualmente examinados no piso frio.
Cobriram a genitália com as mãos em concha e tremeram como o futuro.

Entre as tossidas e espirros do médico, eles mostraram suas habilidades.
— Inspire.
Uma fungada.
— Expire.
Segunda fungada.
— Abram os braços.
Tosse.
— Eu disse abram os braços.
Saraivada medonha de tosse.
Como fazem os seres humanos, os meninos se entreolharam várias vezes, em busca de algum sinal de solidariedade mútua. Não houve nenhum. Com dificuldade, os três tiraram a mão do pênis e abriram os braços. Rudy não se sentiu parte de uma raça superior.

— Aos poucos, estamos conseguindo criar um novo futuro — informava a enfermeira ao professor. — Será uma nova classe de alemães, física e mentalmente avançados. Uma classe de oficiais.
Infelizmente, seu sermão foi interrompido quando o médico dobrou-se ao meio e tossiu com toda a força sobre as roupas abandonadas. Seus olhos se encheram de lágrimas e Rudy não pôde deixar de se intrigar.
Um novo futuro? Como ele?
Sensatamente, não disse nada.
O exame foi concluído e ele conseguiu fazer seu primeiro "heil Hitler" nu em pêlo. De um jeito meio perverso, admitiu que não foi nada mau.
Despojados de sua dignidade, os meninos tiveram permissão para se vestir e, ao serem conduzidos para fora do consultório, já puderam ouvir às suas costas a discussão em sua homenagem.
— Eles são um pouco mais velhos que de hábito — dizia o médico —, mas estou pensando em pelo menos dois.
A enfermeira concordou:
— O primeiro e o terceiro.

Três meninos parados do lado de fora. Primeiro e terceiro.
— O primeiro foi você, Schwarz — disse Rudy, e então perguntou a Olaf Spiegel: — Quem foi o terceiro?
Spiegel fez as contas. Será que ela se referira ao terceiro da fila, ou ao terceiro a ser examinado? Não tinha importância. Ele sabia em que queria acreditar.
— Foi você, eu acho.
— Bosta, Spiegel, foi você.

• UMA PEQUENA GARANTIA •
Os homens de sobretudo sabiam quem era o terceiro.

No dia seguinte à visita deles à Rua Himmel, Rudy sentou-se com Liesel no degrau da entrada e relatou a saga inteira, até os mínimos detalhes. Desistiu e admitiu o que havia acontecido na escola, no dia em que fora retirado da sala. Houve até umas risadas a respeito da enfermeira elefantina e da expressão no rosto de Jürgen Schwarz. Na maior parte, entretanto, foi uma história de angústia,especialmente no pedaço das vozes na cozinha e dos dominós-cadáveres.
Durante dias, Liesel não conseguiu tirar uma ideia da cabeça.
Era o exame dos três meninos, ou, para ser franca, de Rudy.
Ficava deitada na cama, sentindo saudade de Max, imaginando onde ele estaria e rezando para que estivesse vivo, mas, em algum lugar, no meio daquilo tudo estava Rudy.
Ele reluzia no escuro, completamente nu.
Havia um grande pavor nessa visão, especialmente no momento em que ele era obrigado a retirar as mãos. Aquilo era desconcertante, para dizer o mínimo, mas, por alguma razão, Liesel não conseguia parar de pensar nessa ideia.

CASTIGO

Nos cartões de racionamento da Alemanha nazista não havia uma lista de punições, mas todos tinham que esperar sua vez. Para alguns, ela foi a morte num país estrangeiro, durante a guerra. Para outros, a pobreza e a culpa, uma vez terminada a guerra, quando se fizeram seis milhões de descobertas em toda a Europa. Muita gente deve ter visto o castigo se aproximar, mas apenas uma pequena percentagem o acolheu de bom grado. Uma dessas pessoas foi Hans Hubermann.
Não se pode ajudar judeus na rua.
O porão não deve esconder um deles.
A princípio, o castigo de Hans foi a consciência pesada. Seu desenterrar descuidado de Max Vandenburg o atormentava. Liesel via o castigo sentado junto ao prato do pai, enquanto ele ignorava o jantar, ou de pé com ele na ponte sobre o Amper. Hans já não tocava acordeão. Seu otimismo de olhos prateados estava ferido e estático. Isso já era bastante ruim, mas foi só o começo.
Numa quarta-feira do começo de novembro, o verdadeiro castigo chegou pelo correio. A primeira vista, pareceu uma boa notícia.

• UM PAPEL NA COZINHA •
Temos o prazer de informá-lo que
seu pedido de filiação ao NSDAP foi aprovado...

— O Partido Nazista? — perguntou Rosa. — Pensei que eles não quisessem você.
— Não queriam.
O pai sentou-se e releu a carta.
Não estava sendo processado por traição, nem por ajudar judeus, nem qualquer coisa desse tipo. Hans Hubermann estava sendo recompensado, pelo menos no que dizia respeito a algumas pessoas. Como era possível?
— Tem que haver mais coisa.

Havia.
Na sexta-feira, chegou um comunicado informando que Hans Hubermann deveria alistar-se no exército alemão. Um membro do partido ficaria satisfeito em desempenhar seu papel no esforço de guerra, concluía o texto. Se não ficasse, certamente haveria consequências.
Liesel tinha acabado de voltar da leitura com Frau Holtzapfel. A cozinha estava carregada de vapor de sopa e dos rostos vazios de Hans e Rosa Hubermann. O pai estava sentado. A mãe, de pé ao lado dele, enquanto a sopa começava a queimar.
— Meu Deus, por favor, não me mande para a Rússia — disse o pai.
— Mamãe, a sopa está queimando.
— O quê?
Liesel correu até lá e a tirou do fogão.
— A sopa.
Depois de resgatá-la, virou-se e examinou os pais de criação. Rostos de cidade-fantasma.
— Papai, qual é o problema?
Ele lhe estendeu a carta e as mãos da menina começaram a tremer, à medida que ela avançou na leitura. As palavras tinham sido batidas com força no papel.

• O CONTEÚDO DA IMAGINAÇÃO •
DE LIESEL MEMINGER
Na cozinha bombardeada, em algum
ponto próximo do fogão, havia a imagem de
uma máquina de escrever solitária,
com excesso de trabalho.
Achava-se numa sala distante, quase vazia.
As teclas eram desbotadas e uma folha em branco
esperava pacientemente em pé, na posição correta.
Oscilava de leve à brisa que entrava pela janela.
O intervalo para o café quase havia terminado.
Uma pilha de papéis, da altura de um ser humano,
esperava junto à porta, descontraída.
Poderia muito bem estar fumando.

Na verdade, Liesel só viu a máquina datilográfica tempos depois, ao escrever. Perguntou-se quantas cartas como aquela teriam sido enviadas, a título de castigos, aos Hans Hubermann e Alex Steiner da Alemanha — aos que ajudavam os desamparados e aos que se recusavam a abrir mão de seus filhos.
Era um sinal do desespero crescente do exército alemão.
Eles estavam perdendo na Rússia.
Suas cidades vinham sendo bombardeadas.
Havia necessidade de mais gente, assim como os meios para consegui-la, e, na maioria dos casos, as piores tarefas possíveis seriam dadas às piores pessoas possíveis.

Enquanto seus olhos percorriam o papel, Liesel enxergava a mesa de madeira através dos buracos perfurados pelas letras. Palavras como compulsório e dever tinham sido batidas na página. Desencadeou-se a saliva. Era a ânsia de vômito.
— O que é isso?
Veio a resposta do pai, baixinho:
— Pensei que lhe tivesse ensinado a ler, minha menina.
Não falou com raiva nem sarcasmo. Foi uma voz de vazio, para combinar com o rosto.
Liesel então olhou para a mamãe.
Rosa tinha uma pequena fenda embaixo do olho direito e, em menos de um minuto, seu rosto de papelão se desfez. Não pelo centro, mas à direita. Contorceu-se face abaixo, num arco que terminava no queixo.

• VINTE MINUTOS DEPOIS: •
UMA MENINA NA RUA HIMMEL
Ela levantou os olhos. Falou num sussurro.
— Hoje o céu está fosco, Max.
As nuvens estão muito foscas e tristes, e... —
Desviou os olhos e cruzou os braços.
Pensou no pai, indo para a guerra, e puxou
o casaco dos dois lados do corpo.
— E está frio, Max. Faz muito frio...

Cinco dias depois, quando deu continuidade a seu hábito de verificar o tempo ela não teve chance de ver o céu.
Na casa ao lado, Barbara Steiner sentava-se no degrau da frente, com seu cabelo bem penteado. Fumava um cigarro e tremia. Quando se encaminhava para lá, Liesel foi interrompida pela visão de Kurt. Ele saiu e se sentou com a mãe. Ao ver a menina parar, chamou-a.
— Venha, Liesel. O Rudy vai sair logo.
Após uma breve pausa, ela continuou a andar em direção ao degrau.
Barbara fumava.
Uma ruga de cinza oscilava na ponta do cigarro. Kurt o pegou, bateu a cinza, deu uma tragada e o devolveu.
Terminado o cigarro, a mãe de Rudy ergueu os olhos. Passou a mão pelos fios arrumados do cabelo.
— Nosso pai também vai — disse Kurt.
Depois, silêncio.
Um grupo de crianças chutava uma bola, perto da loja de Frau Diller.
— Quando eles vêm pedir um de seus filhos — explicou Barbara Steiner, sem se dirigir a ninguém em particular —, você tem que dizer sim.

A MULHER DO CUMPRIDOR DE PROMESSAS

• PORÃO, 9 HORAS DA MANHÃ •
Seis horas até a despedida:
— Toquei acordeão, Liesel. De outra pessoa —
e Hans fechou os olhos. — A casa veio abaixo.

Sem contar a taça de champanhe no verão anterior, fazia uma década que Hans Hubermann não consumia uma gota de álcool. E então veio a noite da véspera de sua partida para o treinamento.
Ele foi ao Knoller com Alex Steiner, à tarde, e lá ficou até altas horas. Ignorando as advertências das respectivas esposas, os dois beberam até cair. Não foi de grande ajuda que o proprietário do Knoller, Dieter Westheimer, lhes desse bebida de graça.
Aparentemente, quando ainda estava sóbrio, Hans foi convidado a subir ao palco para tocar seu acordeão. Como seria apropriado, tocou o famigerado "Domingo Sombrio" — o hino do suicídio que vinha da Hungria — e, embora tivesse despertado toda a tristeza pela qual a música era famosa, ele fez a casa vir abaixo. Liesel imaginou a cena e o som. Bocas cheias. Copos vazios de cerveja, com riscos de espuma. Os foles suspiraram e a música terminou. As pessoas aplaudiram. As bocas cheias de cerveja deram vivas e o reconduziram ao bar.
Quando os dois conseguiram encontrar o caminho de casa, Hans não pôde fazer a chave encaixar-se na fechadura. Por isso, bateu. Repetidamente.
— Rosa!
Era a porta errada.
Frau Holtzapfel não se empolgou.
— Schwein! Você está na casa errada — socou as palavras pelo buraco da fechadura. — É a porta ao lado, seu Saukerl idiota!
— Obrigado, Frau Holtzapfel.
— Você sabe o que pode fazer com o seu obrigado, seu babaca.
— Como disse?
— Vá para casa.
— Obrigado, Frau Holtzapfel.
— Não acabei de lhe dizer o que você pode fazer com seu agradecimento?
— Disse?
(É admirável o que se pode recolher de uma conversa de porão e uma sessão de leitura na cozinha de uma velha desagradável.)
— Caia fora daqui, sim?

Quando finalmente chegou em casa, o pai não foi para a cama, e sim ao quarto de Liesel. Parou no vão da porta, trôpego, e observou a menina dormindo. Ela acordou e, no mesmo instante, achou que era Max.
— É você? — perguntou.
— Não — fez Hans. Sabia exatamente no que ela pensava. — É o papai.
Recuou do quarto e ela ouviu seus passos descerem para o porão.
Na sala, Rosa roncava com entusiasmo.

Quase às nove horas da manhã seguinte, na cozinha, Liesel recebeu uma ordem de Rosa.
— Dê-me aquele balde ali.
Encheu-o de água fria e desceu com ele para o porão. Liesel a seguiu, na vã tentativa de detê-la.
— Mamãe, você não pode!
— Não posso? — fez Rosa, e fitou-a brevemente na escada. — Será que eu perdi alguma coisa, Saumensch? Agora é você quem dá as ordens por aqui?
As duas ficaram completamente imóveis.
Nenhuma resposta da menina.
— Achei que não.
Seguiram adiante e o encontraram deitado de costas, em meio a uma cama de mantas de proteção contra respingos. Hans tinha achado que não merecia o colchão de Max.
— Então, vamos ver — disse Rosa, levantando o balde — se ele está vivo.

— Jesus, Maria e José!
A marca da água criou uma forma oval, da metade do peito até a cabeça. O cabelo ficou emplastrado de lado e até os cílios gotejavam.
— Para que foi isso?
— Seu velho bêbado!
— Jesus...
Subia um vapor estranho de sua roupa. A ressaca era visível. Ela trepou nos ombros de Hans e sentou-se neles, feito um saco de cimento molhado. Rosa trocou o balde da mão esquerda para a direita.
— É sorte sua estar indo para a guerra — disse. Levantou um dedo no ar e não teve medo de sacudi-lo. — Senão eu mesma o mataria, você sabe disso, não sabe?
O pai enxugou uma corrente de água do pescoço.
— Você tinha que fazer isso?
— Tinha, sim — fez ela, e começou a subir a escada. — Se você não estiver lá em cima em cinco minutos, vai levar outro balde.
Deixada no porão com o pai, Liesel se ocupou em secar o excesso de água com algumas mantas.
O pai falou. Com a mão molhada, fez a menina parar. Segurou-lhe o braço.
— Liesel? — disse, com o rosto grudado nela. — Você acha que ele está vivo?
A menina sentou-se.
Cruzou as pernas.
A manta molhada encharcou seus joelhos.
— Espero que sim, papai.
Era uma coisa muito idiota para se dizer, muito óbvia, mas não parecia haver grande alternativa.
Para dizer ao menos alguma coisa que prestasse e distraí-los da lembrança de Max, Liesel se agachou e pôs um dedo numa pocinha de água no chão.
— Guten Morgen, papai.
Em resposta, Hans piscou o olho.
Mas não foi a piscadela de hábito. Foi mais pesada, mais desajeitada. A versão pós-Max, versão-ressaca. Hans sentou-se e lhe contou sobre o acordeão na noite anterior, e sobre Frau Holtzapfel.

• COZINHA: 13 HORAS •
Duas horas até a despedida. — Não vá, papai. Por favor.
A mão da menina tremia, segurando a colher. — Primeiro
perdemos o Max. Não posso perder você também, agora — pediu.
Em resposta, o homem de ressaca enfiou o cotovelo
na mesa e tapou o olho direito.
— Agora você é meia mulher, Liesel — disse.
Sentia vontade de desmoronar, mas a rechaçou.
Seguiu em frente. — Cuide da mamãe, sim? — pediu.
A menina só conseguiu fazer meio aceno de cabeça para concordar:
— Sim, papai.

Ele deixou a Rua Himmel visando sua ressaca e um terno.
Alex Steiner só partiria dali a quatro dias. Foi visitá-los uma hora antes da saída para a estação, e desejou a Hans toda a sorte possível. A família Steiner inteira estava lá. Todos lhe apertaram a mão. Barbara o abraçou, beijando-lhe as duas faces.
— Volte vivo.
— Sim, Barbara — e o jeito como o disse foi cheio de confiança. — É claro que voltarei — garantiu. Chegou até a rir: — É só uma guerra, você sabe. Sobrevivi a uma antes.
Quando subiam a Rua Himmel, a mulher magra e rija da casa ao lado saiu e parou na calçada.
— Adeus, Frau Holtzapfel. Desculpe-me por ontem à noite.
— Adeus, Hans, seu Saukerl bêbado — disse ela, mas também lhe ofereceu um toque de amizade: — Volte logo para casa.
— Sim, Frau Holtzapfel. Obrigado.
Ela até brincou um pouquinho:
— Você sabe o que pode fazer com seu agradecimento.
Na esquina, Frau Diller olhou defensivamente de sua vitrine e Liesel pegou a mão do pai. Segurou-a durante todo o trajeto pela Rua Munique, até a Bahnhof. O trem já estava na estação.
Pararam na plataforma.
Rosa o abraçou primeiro.
Nenhuma palavra.
Afundou a cabeça no peito dele, apertado, e se foi.
Depois, a menina.

— Papai?
Nada.
Não vá, papai. Não vá, não. Deixe eles virem buscá-lo, se você ficar. Mas não vá, por favor, não vá.
— Papai?

• ESTAÇÃO DE TREM, 15 HORAS •
Nem uma hora, nem um minuto até o adeus: Ele a abraçou.
Para dizer alguma coisa, para dizer qualquer coisa,
falou por cima do ombro da menina: — Pode cuidar
do meu acordeão, Liesel? Resolvi não levá-lo — e então encontrou
algo que realmente queria dizer: — E, se houver
novos bombardeios, continue a ler no abrigo.
A menina sentiu o sinal contínuo de seus seios ligeiramente
aumentados. Doíam ao encostar na base das costelas do pai.
— Sim, papai — concordou. A um milímetro dos olhos,
fitou o tecido do terno. Falou, encostada nele:
— Você toca uma coisa para nós, quando voltar?

Hans Hubermann sorriu para a filha nessa hora, e o trem se preparou para partir. Ele estendeu o braço e segurou delicadamente o rosto da menina em sua mão: — Prometo — respondeu, e entrou no vagão.
Ficaram olhando um para o outro, enquanto o trem se afastava.
Liesel e Rosa acenaram.
Hans Hubermann foi ficando cada vez menor, e sua mão passou a não segurar nada além do ar vazio.
Na plataforma, as pessoas desapareceram ao redor delas, até não restar mais ninguém. Apenas a mulher em formato de armário e a menina de treze anos.

Nas semanas seguintes, enquanto Hans Hubermann e Alex Steiner passavam por seus diversos campos de treinamento acelerado, a Rua Himmel ficou tensa. Rudy não era o mesmo — não falava. Rosa não era a mesma — não dava espinafrações. Também Liesel sentiu os efeitos. Não havia nenhum desejo de roubar livros, por mais que ela tentasse convencer-se de que isso a animaria.
Após doze dias de ausência de Alex Steiner, Rudy decidiu que já chegava. Precipitou-se portão adentro e bateu na porta de Liesel.
— Kommst?
— Ja.

Ela não quis saber para onde ele ia nem o que estava planejando, mas Rudy se recusava a ir sem ela. Subiram a Himmel, seguiram pela Rua Munique e saíram completamente de Molching. Foi depois de cerca de uma hora que Liesel fez a pergunta vital. Até então, apenas olhara de relance para o rosto decidido de Rudy, ou examinara seus braços duros e os punhos cerrados nos bolsos.
— Para onde estamos indo?
— Não é óbvio?
Ela lutava para acompanhar seus passos.
— Bem, para dizer a verdade... realmente, não.
— Vou procurá-lo.
— Seu pai?
— Sim — e pensou melhor. — Na verdade, não. Acho que vou procurar o Führer, em vez disso.
Passos mais rápidos.
— Por quê?
Rudy parou.
— Porque quero matá-lo.
Chegou até a girar nos calcanhares, voltando-se para o resto do mundo.
— Ouviram, seus canalhas? — gritou. — Eu quero matar o Führer!
Recomeçaram a andar e percorreram mais alguns quilômetros. Foi quando Liesel sentiu a ânsia de dar meia-volta.
— Vai escurecer logo, Rudy.
— E daí? — fez ele. E continuou andando.
— Eu vou voltar.
Nesse momento, Rudy parou e a fitou, como se ela o estivesse traindo.
— Está bem, roubadora de livros. Pode me deixar agora. Aposto que, se houvesse uma porcaria de um livro no fim desta estrada, você continuaria a andar. Não é?
Por algum tempo, nenhum dos dois disse nada, mas Liesel não tardou a encontrar sua vontade.
— Você acha que é o único, Saukerl? — e deu meia-volta. — E você só perdeu o seu pai...
— Que quer dizer isso?
Liesel demorou um instante para contar.
Sua mãe. Seu irmão. Max Vandenburg. Hans Hubermann. Todos desaparecidos. E ela nem sequer tivera um pai de verdade.
— Quer dizer que eu vou para casa.
Durante quinze minutos, andou sozinha, e, mesmo quando Rudy a alcançou e ficou a seu lado, com a respiração arfante e as bochechas suadas, não se disse uma palavra, por mais de uma hora. Eles apenas caminharam juntos para casa, com os pés doloridos e os corações cansados.
Havia um capítulo chamado "Corações Cansados" em Uma Canção no Escuro. Uma mocinha romântica prometera amor a um rapaz, mas ele parecia ter fugido com sua melhor amiga. Liesel tinha certeza de que era o capítulo treze. "Meu coração está muito cansado", dissera a jovem. Estava sentada numa capela, escrevendo em seu diário.
Não, pensou Liesel, enquanto andava. É o meu coração que está cansado. Um coração de treze anos não devia sentir-se assim.

Quando chegaram ao perímetro de Molching, Liesel atirou algumas palavras. Avistou o Oval Hubert.
— Lembra-se de quando corremos ali, Rudy?
— É claro. Eu estava justamente pensando nisso... em como nós dois caímos.
— Você disse que estava coberto de cocô.
— Era só lama — porém ele não pôde conter a diversão. — Fiquei coberto de cocô na Juventude Hitlerista. Você está se confundindo, Saumensch.
— Não estou confundindo nada. Só estou dizendo o que você disse. O que uma pessoa diz e o que acontece costumam ser duas coisas diferentes, Rudy, especialmente quando se trata de você.
Assim era melhor.
Quando tornaram a passar pela Rua Munique, Rudy parou e olhou pela vitrine da loja do pai. Antes de Alex partir, ele e Barbara haviam discutido se a mulher deveria mantê-la em funcionamento durante sua ausência. Tinham resolvido que não, considerando que os negócios andavam mesmo fracos, ultimamente, e que havia pelo menos a ameaça parcial de que uns integrantes do partido fizessem sentir sua presença. O comércio nunca foi bom para os agitadores. O soldo do exército teria que chegar.
Havia ternos pendurados nas araras e os manequins mantinham suas poses ridículas.
— Acho que aquele ali gosta de você — disse Liesel, depois de algum tempo. Era seu jeito de dizer ao amigo que estava na hora de seguirem em frente.
Na Rua Himmel, Rosa Hubermann e Barbara Steiner estavam paradas na calçada, juntas.
— Ai, minha Nossa Senhora — disse Liesel. — Elas estão com cara de preocupadas?
— Elas parecem malucas.
Houve muitas perguntas quando os dois chegaram, principalmente do tipo "Onde diabos vocês se meteram?", mas a raiva logo cedeu lugar ao alívio.
Foi Barbara quem perseguiu as respostas.
— Bem, Rudy?
Liesel respondeu por ele.
— Ele estava matando o Führer — disse, e Rudy fez um ar sinceramente feliz, por um instante longo o bastante para agradá-la.
— Tchau, Liesel.

Passadas várias horas, houve um barulho na sala. Estendeu-se até Liesel em sua cama. Ela acordou e permaneceu imóvel, pensando em fantasmas, no pai, em intrusos e em Max. Veio um som de abrir e arrastar, e depois um silêncio indistinto. O silêncio era sempre a maior tentação.

Não se mexa.
Ela pensou muitas vezes nessa ideia, mas não pensou o suficiente.

Seus pés repreenderam o chão.
O ar transpirava pelas mangas de seu pijama.
Ela atravessou a escuridão do corredor, em direção ao silêncio que antes fora ruidoso, em direção ao fiapo de luar parado na sala. Deteve-se, sentindo a nudez dos tornozelos e dos dedos dos pés. Observou.
Demorou mais do que havia esperado para seus olhos se adaptarem e, quando isso aconteceu, não houve como negar o fato de que Rosa Hubermann estava sentada na beira da cama, com o acordeão do marido pendurado no peito. Os dedos pousavam nas teclas. Ela não se mexia. Nem sequer parecia respirar.
A visão precipitou-se para a menina no corredor.

• UMA IMAGEM PINTADA •
Rosa com o acordeão.
Luar nas trevas.
1,55m X Instrumento X Silêncio.

Liesel ficou e assistiu àquilo.
Muitos minutos se escoaram. O desejo da roubadora de livros de ouvir uma nota era fatigante, mas o som não veio. As teclas não foram pressionadas. Os foles não respiraram. Havia apenas o luar, como uma longa mecha de cabelo na cortina, e Rosa.
O acordeão continuou pendurado pelas alças em seu peito. Quando Rosa curvou a cabeça, ele afundou em seu colo. Liesel observou. Sabia que, nos próximos dias, sua mãe andaria pela casa com a marca de um acordeão no corpo. Veio também o reconhecimento de que havia uma grande beleza no que ela estava testemunhando naquele instante, e a menina resolveu não o perturbar.
Voltou para a cama e adormeceu com a visão da mãe e da música silenciosa. Mais tarde, ao acordar de seu sonho habitual e se esgueirar de novo pelo corredor, viu que Rosa continuava lá, assim como o acordeão.
Qual uma âncora, o instrumento a puxava para frente. O corpo dela afundava. Rosa parecia morta.
Ela não pode estar respirando naquela posição, pensou Liesel, mas, quando chegou mais perto, conseguiu ouvir.
A mãe roncava de novo.
Quem precisa de foles, pensou a menina, quando tem um par de pulmões assim?

Quando Liesel enfim voltou para a cama, a imagem de Rosa Hubermann com o acordeão recusou-se a deixá-la. Os olhos da menina que roubava livros permaneceram abertos. Ela aguardou a asfixia do sono.

O COLECIONADOR

Nem Hans Hubermann nem Alex Steiner foram para a frente de batalha. Alex foi mandado para a Áustria, para um hospital do exército nos arredores de Viena. Considerada a sua experiência como alfaiate, deram-lhe uma tarefa que ao menos se assemelhava a sua profissão. Carroças de uniformes, camisas e meias chegavam toda semana, e ele consertava o que precisasse de conserto, mesmo que aquilo só pudesse ser usado como roupa de baixo pelos soldados que sofriam na Rússia.
Hans, ironicamente, primeiro foi mandado para Stuttgart, depois, para Essen. Foi designado para uma das funções mais indesejáveis da frente nacional. A LSE.

• UMA EXPLICAÇÃO NECESSÁRIA •
LSE
Luftwaffe Sondereinheit —
Unidade Especial da Aviação Militar

A tarefa da LSE era permanecer no solo durante os ataques aéreos e apagar incêndios, escorar paredes de prédios e resgatar quem ficasse retido em algum lugar durante os bombardeios. Como Hans não tardou a descobrir, também havia uma definição alternativa da sigla. Os homens da unidade lhe explicaram, em seu primeiro dia, que na verdade ela significava Leichensammler Einheit — Unidade Colecionadora de Cadáveres.
Na chegada, só restou a Hans perguntar-se o que teriam feito aqueles homens para merecer essa tarefa, e eles, por sua vez, perguntaram-se o mesmo a seu respeito. O líder do grupo, sargento Boris Schipper, foi logo fazendo a indagação. Quando Hans explicou o pão, os judeus e o chicote, o sargento de rosto redondo soltou uma risadinha curta.
— Você tem sorte de estar vivo — comentou. Seus olhos também eram redondos e ele os esfregava com freqüência. Ou estavam cansados, ou coçando, ou cheios de fumaça e poeira. — só procure se lembrar de que, aqui, o inimigo não está na sua frente.
Hans estava prestes a fazer a pergunta óbvia, quando uma voz chegou de trás. Ligado a ela estava o rosto magro de um rapaz cujo sorriso lembrava um esgar. Reinhold Zucker.
— Conosco — disse ele —, o inimigo não está do outro lado da montanha nem em nenhuma direção específica. Está em toda parte — e voltou a se concentrar na carta que estava escrevendo. — Você vai ver.
No espaço caótico de poucos meses, Reinhold Zucker estaria morto. Foi morto pelo assento de Hans Hubermann.

À medida que a guerra voou com mais intensidade para a Alemanha, Hans aprendeu que todos os seus turnos de serviço começavam da mesma maneira. Os homens se reuniam junto ao caminhão, para receber instruções sobre o que fora atingido durante seu período de folga, qual seria o alvo subseqüente mais provável e quem estaria trabalhando com quem.
Mesmo quando não havia bombardeios acontecendo, ainda era enorme a quantidade de trabalho a fazer. Eles percorriam cidades destroçadas, fazendo a limpeza. No caminhão iam doze homens recurvados, subindo e descendo, conforme as várias irregularidades do terreno.
Desde o começo, ficou claro que todos tinham um assento.
O de Reinhold Zucker ficava no meio da fileira da esquerda.
O de Hans Hubermann ficava bem no fundo, onde a luz do dia se espreguiçava. Ele aprendeu depressa a ficar atento a qualquer lixo que pudesse ser lançado de qualquer lugar no interior do caminhão. Nutria um respeito especial pelas pontas de cigarro, ainda acesas quando vinham assobiando.

• UMA CARTA COMPLETA PARA CASA •
A minhas queridas Rosa e Liesel,
Está tudo bem por aqui.
Espero que vocês duas estejam bem.
Com amor, Papai.

No fim de novembro, ele teve sua primeira experiência fumacenta de um ataque de verdade. O caminhão foi cercado pelos escombros e houve muita correria e gritaria. Os incêndios se propagavam e as caixas destroçadas dos prédios empilhavam-se em montanhas. As estruturas se inclinavam. As bombas de fumaça pareciam palitos de fósforo no chão, enchendo os pulmões da cidade.
Hans Hubermann estava num grupo de quatro. Eles formaram uma fila. O sardento Boris Schipper foi na frente, com os braços desaparecendo na fumaça. Atrás dele iam Kessler, depois Brunnenweg, depois Hubermann. Enquanto o sargento esguichava a mangueira no fogo, os outros dois esguichavam água no sargento e, só para ter certeza, Hubermann esguichava em todos três.
Atrás dele, uma construção gemeu e tropeçou.
Caiu de cara no chão, parando a poucos metros de seus calcanhares. O concreto cheirava a novo e a muralha de poeira avançou em direção a eles.
— Gottverdammt, Hubermann! — lutou a voz que saía das chamas. Foi imediatamente seguida por três homens. Eles tinham a garganta repleta de partículas de cinza. Mesmo quando dobraram a esquina, afastando-se do centro dos destroços, a névoa do prédio desabado tentou segui-los. Era branca e quente, e rastejava atrás deles.
Abaixados, em segurança temporária, ouviram-se entre eles muitas tosses e palavrões. O sargento repetiu seus sentimentos anteriores. — Maldito seja, Hubermann! — e esfregou os lábios para soltá-los. — Que diabo foi aquilo?
— Ele simplesmente desabou, bem atrás de nós.
— Disso eu já sei. A pergunta é: de que tamanho era? Devia ter uns dez andares.
— Não, senhor, só dois, eu acho.
— Jesus — acesso de tosse —, Maria e José — fez o sargento, dando um puxão na pasta de suor e poeira em suas órbitas. — Você não podia fazer grande coisa a esse respeito.
Um dos outros homens limpou o rosto e disse:
— Só por uma vez, quero estar presente quando eles atingirem um bar, pelo amor de Deus. Estou morrendo de vontade de tomar uma cerveja.
Todos se encostaram.
Cada qual sentiu o gosto da bebida, apagando o incêndio na garganta e reduzindo a fumaça. Era um belo sonho, além de impossível. Todos estavam cônscios de que qualquer cerveja que jorrasse por aquelas ruas não seria cerveja alguma, porém uma espécie de milkshake ou mingau.
Os quatro homens estavam cobertos pelo conglomerado cinza e branco de poeira. Quando se puseram inteiramente de pé, para retomar o trabalho, só se viam pequenas frestas de seus uniformes.
O sargento aproximou-se de Brunnenweg. Escovou-lhe o peito com força. Várias batidas.
— Assim está melhor. Você tinha uma poeirinha aí, meu amigo.
Enquanto Brunnenweg ria, o sargento virou-se para seu recruta mais novo.
— Desta vez, é você primeiro, Hubermann.

Passaram várias horas apagando incêndios e catando tudo que pudessem para convencer os prédios a continuarem de pé. Em alguns casos, quando as empenas tinham sido danificadas, as bordas remanescentes projetavam-se feito cotovelos. Esse era o ponto forte de Hans Hubermann. Ele chegou quase a gostar de encontrar um caibro fumegante ou uma laje desgrenhada de concreto para escorar esses cotovelos, para lhes dar alguma coisa em que se apoiar.
Suas mãos ficaram cravadas de farpas, e os dentes, empastados de resíduos da explosão. Ambos os lábios cobriram-se de poeira úmida endurecida, e não havia um bolso, um fio nem uma dobra oculta de seu uniforme que não estivessem cobertos pela película deixada pelo ar carregado.
A pior parte do trabalho eram as pessoas.
De tempos em tempos, surgia alguém vagando obstinadamente pela neblina, quase sempre com uma palavra só. Eles sempre gritavam um nome.
Às vezes era Wolfgang.
— Você viu o meu Wolfgang?
A impressão das mãos deles ficava gravada na jaqueta de Hans.
— Stephanie!
— Hansi!
— Gustel! Gustel Stoboi!
Reduzida a densidade, a chamada dos nomes ia claudicando pelas ruas devastadas, ora terminando num abraço cheio de cinzas, ora num grito ajoelhado de dor. Eles se acumulavam hora após hora, como sonhos agridoces à espera de acontecer.

Os perigos fundiam-se num só. Poeira, fumaça e as chamas tempestuosas. As pessoas feridas. Como o resto dos homens da unidade, Hans precisaria aperfeiçoar a arte de esquecer.
— Como vai indo, Hubermann? — perguntou o sargento, a horas tantas. O fogo estava junto de seu ombro.
Hans balançou a cabeça, sem jeito, para a dupla.

Ali pela metade do turno, havia um velho cambaleando indefeso pelas ruas. Ao terminar de estabilizar uma construção, Hans virou-se e deparou com ele às suas costas, esperando calmamente sua vez. Havia uma mancha de sangue assinada em seu rosto. Escorria-lhe pela garganta e pelo pescoço. O homem usava uma camisa branca de colarinho vermelho escuro, e segurava sua perna como se ela estivesse a seu lado.
— Será que agora você pode me escorar, rapaz?
Hans o pegou e carregou-o para longe do nevoeiro.

• UMA NOTINHA TRISTE •
Visitei essa ruinha da cidade, com
o homem ainda nos braços de Hans Hubermann.
O céu era de um cinza de cavalo branco.

Só ao depositá-lo num pedaço de grama revestida de concreto foi que Hans notou.
— O que foi? — perguntou um dos outros homens.
Hans só conseguiu apontar.
— Ah — e uma mão o afastou. — Trate de se acostumar, Hubermann.

No resto do turno, ele se atirou ao trabalho. Tentou ignorar os ecos distantes das pessoas que chamavam.
Passadas umas duas horas, talvez, saiu correndo de um prédio, com o sargento e outros dois homens. Não olhou para o chão e tropeçou. Só quando se reequilibrou nos quadris e viu os outros olhando para o obstáculo, aflitos, foi que se apercebeu.
O cadáver estava de bruços.
Jazia num cobertor de pólvora e poeira e tampava os ouvidos.

Era um menino.
De onze ou doze anos, talvez.

Não muito longe, seguindo pela rua, encontraram uma mulher que gritava o nome Rudolf. Os quatro homens a atraíram e ela foi a seu encontro nas brumas. Tinha o corpo frágil e vergado de preocupação.
— Vocês viram o meu menino?
— Quantos anos ele tem? — perguntou o sargento.
— Doze.
Ah, Cristo. Ai, Cristo crucificado.
Todos pensaram a mesma coisa, mas o sargento não conseguiu lhe dizer nem lhe apontar o caminho.
Quando a mulher tentou empurrá-los para passar, Boris Schipper a deteve.
— Acabamos de vir daquela rua — assegurou-lhe. — A senhora não o encontrará lá.
A mulher recurvada continuou a se agarrar à esperança. Saiu chamando por cima do ombro, meio andando, meio correndo.
— Rudy!
Foi quando Hans Hubermann pensou em outro Rudy. O da Rua Himmel. Por favor, rogou a um céu que não conseguia ver, deixe o Rudy ficar em segurança. Naturalmente, seus pensamentos progrediram para Liesel e Rosa e os Steiner, e Max.
Quando o grupo se reuniu com o resto dos homens, ele se deixou cair no chão e deitou de costas.
— Como foi lá? — perguntou alguém.
Os pulmões de papai estavam repletos de céu.

Horas depois, quando já havia tomado banho, comido e vomitado, Hans tentou escrever uma carta detalhada para casa. Suas mãos estavam incontroláveis, obrigando-o a abreviá-la. Se ele conseguisse, o resto seria dito verbalmente, se e quando ele regressasse para casa.
Para minhas queridas Rosa e Liesel, começou.
Levou muitos minutos para escrever essas seis palavras.

OS COMEDORES DE PÃO

Fora um ano longo e acidentado em Molching, e estava finalmente acabando.
Liesel passou os últimos meses de 1942 tomada por ideias sobre o que chamava de três homens desesperados. Perguntava-se onde eles estavam e o que estariam fazendo.
Uma tarde tirou o acordeão da caixa e o poliu com um retalho. Só uma vez, pouco antes de guardá-lo, deu o passo que a mãe não conseguira dar. Pôs o dedo numa das teclas e abriu suavemente o fole. Rosa tivera razão. Só fez aumentar a sensação de vazio na sala.
Sempre que encontrava Rudy, ela lhe perguntava se tivera alguma notícia do pai. Vez por outra, o amigo lhe descrevia em detalhe uma das cartas de Alex Steiner. Em comparação, a única carta enviada por seu próprio pai era meio decepcionante.
Max, é claro, ficava inteiramente por conta de sua imaginação.
Era com grande otimismo que ela o imaginava andando sozinho por uma estrada deserta. De quando em quando, imaginava-o caindo num vão de porta seguro, em algum lugar, com sua carteira de identidade servindo para enganar a pessoa certa.
Os três homens apareciam em todo lugar.
Ela via o pai à janela na escola. Max frequentemente se sentava a seu lado, junto à lareira. Alex Steiner chegava quando ela estava com Rudy, fitando-os quando eles derrubavam as bicicletas na Rua Munique e olhavam para o interior da loja.
— Olhe para aqueles ternos — dizia-lhe Rudy, com a cabeça e as mãos encostadas no vidro. — Todos se estragando.
Estranhamente, uma das distrações favoritas de Liesel era Frau Holtzapfel. Agora as sessões de leitura também incluíam as quartas-feiras, e elas haviam acabado a versão de O Assobiador abreviada pela água, e estavam atacando O Carregador de Sonhos. Às vezes a velhota fazia chá, ou dava a Liesel uma sopa infinitamente melhor que a de sua mãe. Menos aguada.

Entre outubro e dezembro, houve mais um desfile de judeus, e outro a seguir. Como na ocasião anterior, Liesel correu para a Rua Munique, dessa vez para ver se Max Vandenburg estava entre eles. Sentia-se dilacerada entre a ânsia óbvia de vê-lo — de saber que ele ainda estava vivo — e uma ausência que poderia significar um sem-número de coisas, dentre elas a liberdade.
Em meados de dezembro, um pequeno grupo de judeus e outros malfeitores foi novamente tangido pela Rua Munique, em direção a Dachau. Desfile número três.
Rudy desceu com deliberação a Rua Himmel e voltou do número trinta e cinco com um saquinho e duas bicicletas.
— Está a fim, Saumensch?

• O CONTEÚDO DO SAQUINHO DE RUDY •
Seis pedaços de pão dormido,
divididos em quatro partes.
•••

Os dois pedalaram à frente do desfile, rumo a Dachau, e pararam num trecho deserto da estrada. Rudy passou o saquinho a Liesel.
— Tire um punhado.
— Não tenho certeza de que isso é uma boa ideia.
Ele lhe enfiou um punhado de pão na palma da mão.
— O seu pai tinha.
Como poderia ela discutir? Valia uma boa surra de chicote.
— Se formos rápidos, eles não nos pegam — garantiu Rudy, e começou a distribuir o pão. — Portanto, ande logo, Saumensch.
Liesel não pôde impedir-se. Havia a sombra de um sorriso em seu rosto enquanto ela e Rudy Steiner, seu melhor amigo, distribuíam os pedaços de pão pela estrada. Quando terminaram, pegaram as bicicletas e se esconderam entre as árvores de Natal.

A estrada era fria e reta. Não demorou para que chegassem os soldados com os judeus.
À sombra das árvores, Liesel observou o menino. Como as coisas haviam mudado, de ladrão de frutas a doador de pão! O cabelo louro de Rudy, embora mais escuro, parecia uma vela. Ela ouviu o estômago do amigo roncar — e ele estava dando pão às pessoas.
Seria isso a Alemanha?
Seria essa a Alemanha nazista?

O primeiro soldado não viu o pão — não estava com fome —, mas o primeiro judeu o viu.
Sua mão esfarrapada estendeu-se, pegou um pedaço e o enfiou delirantemente na boca.
Seria Max?, pensou Liesel.
Não conseguia enxergar direito e se aproximou para ter uma visão melhor.
— Ei! — exclamou Rudy, lívido. — Não se mexa. Se nos acharem aqui e nos ligarem ao pão, estamos ferrados.
Liesel continuou.
Mais judeus se abaixavam e iam pegando o pão da rua e, da orla das árvores, a menina que roubava livros examinava cada um deles. Max Vandenburg não estava lá.
O alívio durou pouco.
Agitou-se em torno dela, quando um dos soldados notou um prisioneiro baixando a mão para o chão. Todos receberam ordem de parar. A estrada foi criteriosamente examinada. Os prisioneiros mastigavam com a máxima rapidez e silêncio que podiam. Coletivamente, engoliram.
O soldado pegou alguns pedaços e estudou os dois lados da estrada. Os prisioneiros lambem olharam.
— Ali!
Um dos soldados foi andando em direção à menina, junto às árvores mais próximas. Em seguida, viu o menino. Os dois começaram a correr.
— Não pare de correr, Liesel!
— E as bicicletas?
— Scheiss drauf! Prá merda com elas, quem é que se incomoda?
Os dois correram e, após uns cem metros, a respiração encurvada do soldado chegou mais perto. Esgueirou-se para o lado dela, que esperou pela mão concomitante.
Teve sorte.
Tudo que recebeu foi um pontapé no traseiro e um punhado de palavras.
— Continue correndo, garotinha, seu lugar não é aqui!
Liesel correu sem parar por pelo menos mais um quilômetro e meio. Os galhos lanharam seus braços, as pinhas rolaram a seus pés e o gosto das carumas natalinas tilintou em seus pulmões.

Uns bons quarenta e cinco minutos tinham passado quando ela voltou e encontrou Rudy, sentado junto às bicicletas enferrujadas. Ele havia recolhido o que sobrara do pão e mastigava um pedaço dormido e duro.
— Eu disse para você não chegar tão perto.
Liesel mostrou-lhe o traseiro.
— Estou com uma marca de pé?

O CADERNO DE DESENHO ESCONDIDO

Dias antes do Natal, houve outro bombardeio, embora nada tenha caído na cidade de Molching. Segundo o noticiário do rádio, quase todas as bombas caíram em campo aberto.
O mais importante foi a reação no abrigo dos Fiedler. Depois que chegaram os últimos clientes, todos se acomodaram solenemente e aguardaram. Olharam para ela, expectantes.
A voz do pai chegou, soando alto em seus ouvidos.
— E, se houver mais ataques, continue a ler no abrigo.
Liesel aguardou. Precisava ter certeza de que era o que eles queriam.
Rudy falou por todos:
— Leia, Saumensch:
Ela abriu o livro e, mais uma vez, as palavras abriram caminho para todos os presentes no abrigo.

Em casa, depois que as sirenes deram permissão para todos retornarem ao nível do chão, Liesel sentou-se na cozinha com a mãe. Uma preocupação se estampava na expressão de Rosa Hubermann, e não demorou muito para ela pegar uma faca e sair do cômodo.
— Venha comigo.
Foi até a sala e tirou o lençol da beirada do colchão. Na lateral havia uma abertura costurada. Se você não soubesse de antemão que estava ali, seria quase impossível encontrá-la. Rosa a abriu com cuidado e introduziu a mão, enfiando-a por toda a extensão do braço. Quando a retirou, ela segurava o caderno de desenho de Max Vandenburg.
— Ele disse para lhe dar isso quando você estivesse pronta — informou. — Andei pensando no seu aniversário. Depois, antecipei para o Natal.
Rosa Hubermann levantou-se, e estampava no rosto uma expressão estranha. Não era de orgulho. Talvez fosse a densidade, o peso da lembrança.
— Acho que você sempre esteve pronta, Liesel. Desde o momento em que chegou aqui, agarrada àquele portão, você estava fadada a ter isto.
Rosa entregou-lhe o livro.
A capa era assim:

• A SACUDIDORA DE PALAVRAS •
Pequena coletânea de pensamentos
para Liesel Meminger

Liesel segurou-o com leveza nas mãos. Olhou fixamente.
— Obrigada, mamãe.
Abraçou-a.
Houve também um grande anseio de dizer a Rosa Hubermann que ela a amava. Foi uma pena não o ter dito.

Liesel queria ler o livro no porão, para rememorar os velhos tempos, mas a mãe a convenceu do contrário.
— Houve uma razão para o Max adoecer lá embaixo — declarou —, e uma coisa eu lhe digo, menina, não vou deixá-la ficar doente.
Liesel leu na cozinha.
Lacunas vermelhas e amarelas no fogão.
A Sacudidora de Palavras.

•••

Ela percorreu os inúmeros esboços e histórias, assim como os desenhos legendados. Coisas como Rudy num pódio, com três medalhas de ouro penduradas no pescoço. Embaixo dizia: Cabelos da cor de limões. O boneco de neve apareceu, assim como uma lista dos treze presentes, para não falar dos registros de incontáveis noites no porão ou junto à lareira.
É claro que havia muitas ideias, desenhos e sonhos relacionados com Stuttgart, a Alemanha e o Führer. Recordações da família de Max também estavam presentes. No fim, ele não pudera resistir a incluí-las. Tivera que fazê-lo.
E então veio a página 117.
Foi nela que apareceu a própria Sacudidora de Palavras.
Era uma fábula, ou um conto de fadas. Liesel não sabia ao certo. Mesmo dias depois, quando consultou os dois termos no Dicionário Duden, não conseguiu distingui-los.
Na página anterior, havia uma notinha.

•PÁGINA 116 •
Liesel: Quase risquei esta história.
Achei que talvez você já estivesse crescida demais para
esse tipo de conto, mas pode ser que ninguém esteja.
Pensei em você, nos seus livros e palavras,
e esta história estranha me veio à cabeça.
Espero que você encontre alguma coisa boa nela.

Liesel virou a página.









Durante muito tempo, Liesel sentou-se à mesa da cozinha e imaginou onde estaria Max Vandenburg, em toda aquela floresta lá fora. A luz deitou-se à sua volta. A menina adormeceu. A mãe a obrigou a ir para a cama e ela o fez, com o caderno de desenhos de Max apertado junto ao peito.

Horas depois, quando acordou, foi que lhe veio a resposta a sua pergunta.
— É claro — murmurou Liesel. — É claro que eu sei onde ele está — e tornou a dormir.

Sonhou com a árvore.

A COLEÇÃO DE TERNOS DO ANARQUISTA

• RUA HIMMEL, 35 •
24 DE DEZEMBRO
Com a ausência dos dois pais, os Steiner
convidaram Rosa e Trudy Hubermann, e Liesel
Quando elas chegaram, Rudy ainda
estava no processo de explicar sua roupa.
Olhou para Liesel e sua boca se abriu,
mas só um pouquinho.

Os dias que antecederam o Natal de 1942 foram densos e pesados de neve. Liesel leu muitas vezes A Sacudidora de Palavras, desde a história em si até os muitos desenhos e comentários dos dois lados. Na noite de Natal, tomou uma decisão a respeito de Rudy. Que se danasse o ficar na rua até tarde.
Foi à casa ao lado, pouco antes do anoitecer, e lhe disse que tinha um presente para ele, pelo Natal.
Rudy olhou para as mãos e os lados dos pés da menina.
— Bom, e onde é que ele está?
— Nesse caso, esqueça.
Mas Rudy sabia. Já a vira assim antes. Olhos arriscados e dedos pegajosos. O bafio de roubo a cercava por todos os lados, dava até para cheirá-lo.
— Esse presente — avaliou Rudy —, você ainda não o tem, não é?
— Não.
— E também não vai comprá-lo.
— É claro que não. Está pensando que eu tenho dinheiro?
A neve ainda caía. O gelo nas bordas da grama parecia vidro quebrado.
— Você tem a chave? — perguntou Liesel.
— Chave de quê?
Mas Rudy não demorou a entender. Entrou em casa e voltou pouco depois. Nas palavras de Viktor Chemmel, disse:
— É hora de ir às compras.

A luz desaparecia depressa e, a não ser pela igreja, toda a Rua Munique tinha fechado para o Natal. Liesel andou depressa, para acompanhar os passos mais desengonçados do vizinho. Chegaram à vitrine pretendida: STEINER — SCHNEIDERMEISTER. O vidro vestia uma fina película de lama e sujeira, borrifadas nele ao longo das semanas. Do lado oposto, os manequins postavam-se como testemunhas, sérios e ridiculamente elegantes. Era difícil descartar a sensação de que observavam tudo.
Rudy enfiou a mão no bolso.
Era véspera de Natal.
Seu pai estava perto de Viena.
Achou que ele não se importaria se os dois invadissem sua querida loja. As circunstâncias o exigiam.

A porta abriu-se com facilidade e eles entraram. O primeiro instinto de Rudy foi acionar o interruptor, mas a luz já tinha sido cortada.
— Alguma vela?
Rudy desolou-se.
— Eu trouxe a chave. Além disso, a ideia foi sua.
Em meio ao diálogo, Liesel tropeçou num ressalto do piso. Um manequim acompanhou-a na queda. Roçou-lhe o braço e se desmantelou de roupa e tudo em cima dela.
— Tire esse troço de cima de mim!
O manequim quebrou-se em quatro pedaços. O tronco com a cabeça, as pernas e dois braços separados. Quando se livrou dele, Liesel levantou-se e sibilou:
— Jesus, Maria.
Rudy achou um dos braços e lhe deu um tapinha no ombro com a mão. Quando a menina se virou, assustada, estendeu-a em sinal de amizade.
— Prazer em conhecê-la.
Durante alguns minutos, os dois se moveram devagar pelos corredores estreitos da loja. Rudy começou a se dirigir ao balcão. Ao cair por cima de uma caixa vazia, gritou e xingou, depois reencontrou o caminho da entrada.
— Isto é ridículo — disse. — Espere aqui um minuto.
Liesel sentou-se, com o braço do manequim na mão, até ele voltar com uma lamparina acesa da igreja.
Um anel de luz circundava-lhe o rosto.
— E aí, cadê esse presente de que você anda se gabando? É melhor não ser um desses manequins esquisitos.
— Traga a luz aqui.
Quando ele chegou à extrema esquerda da loja, Liesel segurou a lanterna com uma das mãos e, com a outra, tateou os ternos pendurados. Tirou um deles, mas rapidamente o substituiu por outro.
— Não, ainda é grande demais.
Depois de mais duas tentativas, segurou um terno azul-marinho diante deRudy Steiner.
— Este é mais ou menos do seu tamanho?

Enquanto Liesel se sentava no escuro, Rudy experimentou o terno, atrás de uma das cortinas. Havia uma rodinha de luz e uma sombra que se vestia.
Ao voltar, Rudy estendeu a lamparina a Liesel para que ela o visse. Livre da cortina, a luz parecia uma pilastra, brilhando sobre o terno refinado. Também iluminava a camisa suja por baixo e os sapatos surrados do menino.
— E então? — perguntou Rudy.
Liesel continuou o exame. Andou em volta dele e encolheu os ombros.
— Nada mau.
— Nada mau! Minha aparência é melhor do que só "nada mau".
— Os sapatos estragam você. E a sua cara.
Rudy pôs a lamparina no balcão e partiu para cima dela, fingindo-se furioso, e Liesel teve de admitir que começou a ser tomada por um certo nervosismo. Foi com alívio e decepção que o viu tropeçar e cair no manequim desonrado.
No chão, Rudy caiu na gargalhada.
Depois, fechou os olhos, apertando-os com força.
Liesel precipitou-se para ele.
Agachou-se a seu lado.
Beije-o, Liesel, beije-o.
— Você está bem, Rudy? Rudy?
— Sinto saudade dele — disse o menino, de lado, olhando para o chão.
— Frohe Weihnachten — respondeu Liesel. Ajudou-o a se levantar, endireitando o terno. — Feliz Natal.

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