Parte oito



O retiro ecológico do quinto ano


Sempre, na primavera, os alunos do quinto ano da Beecher Prep passam três dias e duas noites
na Reserva Ecológica Broarwood, na Pensilvânia. A viagem de ônibus leva quatro horas. As
crianças dormem em abrigos com beliches. Há fogueiras, biscoitos e marshmallows e longas
caminhadas pela mata. Os professores vêm nos preparando para isso o ano inteiro, e todos os
alunos estão muito animados — menos eu. Não é nem que eu não esteja animado, porque até
estou, só que nunca dormi fora de casa e estou um pouco nervoso.
A maioria das crianças da minha idade já dormiu fora. Muitas já foram para acampamentos
ou ficaram com os avós, ou qualquer coisa assim. Eu não. A menos que você conte as
internações, mas aí o papai e a mamãe sempre passaram a noite comigo. Nunca dormi na casa
dos meus avós, nem na da tia Kate e no tio Po. Quando eu era muito pequeno, não ia porque
havia muitas questões, como meu tubo de traqueostomia que precisava ser limpo de hora em
hora, o tubo de alimentação, que devia ser reconectado caso se soltasse. Mas, quando fiquei
maior, eu simplesmente não tinha vontade de dormir em outro lugar. Houve uma vez em que
quase dormi na casa do Christopher. Tínhamos uns oito anos e ainda éramos melhores amigos.
Nossa família foi visitar a dele, e eu e o Christopher estávamos nos divertindo tanto com os
Legos Star Wars que, quando chegou a hora de voltar para casa, eu não queria ir embora. Nós
meio que imploramos para que eu dormisse lá até nossos pais deixarem, e a mamãe, o papai e
a Via voltaram para casa. O Christopher e eu ficamos acordados até a meia-noite, brincando,
até que a Lisa, a mãe dele, disse: “Certo, meninos, hora de dormir.”
Bem, aí eu meio que entrei em pânico. A Lisa tentou me ajudar a dormir, mas eu comecei a
chorar e dizer que queria ir para casa. Então, à uma da manhã, ela ligou para meus pais e o
papai dirigiu até Bridgeport para me buscar. Só chegamos em casa às três da manhã. Assim,
minha primeira e única tentativa até hoje de dormir fora foi um verdadeiro desastre, e é por
isso que estou um pouco nervoso com o retiro ecológico.
Por outro lado, estou bem animado.


Ficar conhecido

Pedi para a mamãe que comprasse para mim outra bolsa de viagem com rodinhas, porque a
minha antiga tem estampa de Star Wars, e não há a menor chance de eu levá-la para o passeio
do quinto ano. Por mais que eu adore Star Wars, não quero ficar conhecido por isso. Todo
mundo é conhecido por alguma coisa no ensino fundamental. O Reid, por exemplo, ficou
famoso por se interessar muito por animais marinhos, os oceanos e coisas assim. E o Amos
por ser um ótimo jogador de beisebol. A Charlotte é conhecida por ter feito um comercial de
TV quando tinha seis anos. A Ximena, por ser muito inteligente.
A questão é que, no ensino fundamental, você fica conhecido pelas coisas pelas quais se
interessa, e é preciso tomar cuidado. O Max G e o Max W, por exemplo, nunca vão se livrar
da obsessão por Dungeons & Dragons.
Então eu estava tentando pegar leve com Star Wars. Quer dizer, isso sempre vai ser
especial para mim, como é para o médico que fez meu aparelho auditivo. Só não quero que
essa seja minha fama na escola. Não tenho certeza de pelo que quero ser conhecido, mas não é
por isso.
Não, não é bem verdade: eu sei pelo que realmente sou conhecido. Mas, nesse caso, não há
nada que eu possa fazer. Agora, em relação a uma bolsa de Star Wars posso, sim, fazer
alguma coisa.


Fazendo a mala


A mamãe me ajudou a arrumar a mala na noite anterior à grande viagem. Pusemos na cama
todas as roupas que eu iria levar, ela dobrou tudo com cuidado e guardou na mala, enquanto eu
observava. Era uma mala de rodinhas azul, simples: sem logo, nem estampa.
— E se eu não conseguir dormir? — perguntei.
— Leve um livro. Aí, se não conseguir dormir, você pode acender a lanterna e ler um pouco
até pegar no sono — respondeu ela.
Assenti.
— E se eu tiver um pesadelo?
— Seus professores estarão lá, querido. E o Jack. E seus amigos.
— Posso levar o Babu — falei.
Era meu bichinho de pelúcia favorito quando era pequeno. Um ursinho preto com nariz
macio.
— Você já nem dorme mais com ele, não é? — perguntou a mamãe.
— Não, mas ele continua no armário para o caso de eu acordar no meio da noite e não
conseguir dormir de novo — respondi. — Eu posso escondê-lo na mala. Ninguém iria saber.
— Então vamos fazer isso — disse a mamãe, pegando o Babu no armário.
— Queria que eles permitissem celulares — comentei.
— Eu sei, eu também! Mas sei que você vai se divertir muito, Auggie. Tem certeza de que
quer que eu ponha o Babu na mala?
— Sim, mas bem no fundo, para ninguém ver — falei.
Ela enfiou o Babu lá no fundo da bolsa e depois colocou as últimas camisetas por cima.
— Tanta roupa para apenas dois dias!
— Três dias e duas noites — corrigi-a.
— Isso. — Ela concordou, sorrindo. — Três dias e duas noites. — Minha mãe fechou a
mala e a levantou. — Não está muito pesada. Pegue.
Peguei a mala e falei:
— Tudo bem.
Dei de ombros.
A mamãe se sentou na cama.
— Ei, cadê o pôster de O império contra-ataca?
— Ah, eu o tirei há séculos — respondi.
Ela balançou a cabeça e disse:
— Hum, ainda não tinha notado.
— Estou tentando, você sabe, mudar um pouco a minha imagem — expliquei.
— Sei. — Ela sorriu e balançou a cabeça, como se entendesse. — Querido, você tem que
me prometer que não vai se esquecer de usar o repelente, o.k.? Nas pernas, principalmente
quando for caminhar na mata. Está bem aqui, no bolso da frente.
— Ã-hã.
— E passe protetor solar. Não vai querer se queimar demais. E, por favor, não se esqueça
de tirar os aparelhos auditivos se for nadar, ouviu?
— Posso ser eletrocutado?
— Não, mas seu pai vai matar você, porque eles custaram uma fortuna! — disse ela, rindo.
— Pus a capa de chuva no bolso da frente também. O mesmo vale para se chover, Auggie,
tudo bem? Não se esqueça de cobrir o aparelho com o capuz.
— Sim senhor, senhor — falei, batendo continência.
Ela sorriu e me puxou para perto.
— Mal acredito em como você cresceu este ano, Auggie — disse baixinho, segurando meu
rosto.
— Pareço mais alto?
— Sem dúvida — respondeu ela, assentindo.
— Ainda sou o mais baixo da turma.
— Na verdade, não estou falando da sua altura.
— E se eu odiar a viagem?
— Você vai se divertir muito, Auggie.
Fiz que sim. Ela se levantou e me deu um beijinho na testa.
— Muito bem, agora é hora de ir para a cama.
— Mas são só nove da noite, mãe!
— Seu ônibus sai às seis da manhã. Você não vai querer se atrasar. Vamos. Já escovou os
dentes?
Assenti e subi na cama. Ela já ia se deitar ao meu lado.
— Não precisa me pôr para dormir esta noite, mamãe — falei. — Vou ler até pegar no
sono.
— É mesmo? — Ela balançou a cabeça, impressionada. Apertou e beijou minha mão —
Então está bem. Boa noite, meu amor. Tenha bons sonhos.
— Você também.
Ela acendeu a luz de leitura ao lado da cama.
— Vou escrever cartas — falei quando ela estava saindo. — Embora, provavelmente, eu já
vá estar de volta quando elas chegarem.
— Então nós as leremos juntos — disse a mamãe, e me jogou um beijo.
Quando ela saiu do quarto, peguei meu exemplar de O leão, a feiticeira e o guarda-roupa
na mesinha de cabeceira e comecei a ler até pegar no sono.
... a feiticeira pode conhecer a Magia Profunda, mas não sabe que há outra magia
ainda mais profunda. O que ela sabe não vai além da aurora do tempo. Mas, se
tivesse sido capaz de ver um pouco mais longe, de penetrar na escuridão e no
silêncio que reinam antes da aurora do tempo, teria aprendido outro sortilégio.


Aurora


No dia seguinte, acordei muito, muito cedo. Ainda estava escuro no meu quarto e mais escuro
ainda do lado de fora, embora eu soubesse que logo o sol iria raiar. Eu me virei para o lado,
só que não estava mais com sono. Foi então que vi a Daisy sentada perto da minha cama. Quer
dizer, sei que não era a Daisy, mas, por um segundo, vi uma sombra igualzinha a ela. Na hora
não achei que fosse um sonho, mas agora, pensando bem, deve ter sido. Não fiquei nem um
pouco triste por vê-la: isso apenas me encheu de bons sentimentos. Ela desapareceu depois de
um segundo, e não consegui achá-la de novo no escuro.
Bem devagar, o quarto foi ficando claro. Peguei meu aparelho auditivo e o coloquei, e aí o
mundo estava de fato acordado. Eu ouvi o caminhão de lixo descendo a rua e os pássaros no
nosso quintal. Ouvi o despertador da mamãe tocando no fim do corredor. O fantasma da Daisy
tinha feito com que eu me sentisse superforte por dentro, certo de que, aonde quer que eu
fosse, ela estaria comigo.
Levantei da cama, fui até a escrivaninha e escrevi um bilhetinho para a mamãe. Em seguida
fui até a sala de estar e encontrei minha mala ao lado da porta. Eu a abri e a revirei até
encontrar o que estava procurando.
Levei o Babu de volta para o quarto, deitei-o na cama e prendi o bilhetinho para a mamãe
em seu peito com fita adesiva. Em seguida estendi o cobertor por cima dele, para que a mamãe
o encontrasse depois. O bilhete dizia:
Querida mamãe, não vou precisar do Babu, mas, se sentir minha falta, pode dormir com
ele. bj Auggie



Primeiro dia


A viagem de ônibus passou muito rápido. Eu me sentei na janela e o Jack ao meu lado, no
corredor. A Summer e a Maya se sentaram na nossa frente. Todos estavam bem-humorados.
Meio barulhentos, rindo muito. Notei imediatamente que o Julian não estava no nosso ônibus,
embora o Henry e o Miles estivessem. Achei que ele estivesse no outro ônibus, mas ouvi o
Miles dizer ao Amos que o Julian tinha desistido da viagem, porque essa coisa de retiro
ecológico era, abre aspas, uma bobeira, fecha aspas. Fiquei muito contente, porque aturar o
Julian por três dias — e duas noites — seguidos era um dos principais motivos do meu
nervosismo com a viagem. Agora, sem ele por perto, eu podia relaxar e não me preocupar com
mais nada.
Chegamos à reserva por volta do meio-dia. A primeira coisa que fizemos foi deixar as
malas nas cabanas. Cada quarto tinha três beliches, então eu e o Jack jogamos pedra, papel ou
tesoura para ver quem ficaria com a cama de cima, e eu ganhei. Uh-huuu. Os outros garotos do
quarto eram Reid, Tristan, Pablo e Nino.
Depois que almoçamos na cabana principal, fizemos duas horas de caminhada ecológica
com um guia pela mata. Não era como no Central Park: era floresta de verdade. Árvores
gigantes que bloqueavam quase completamente a luz do sol. Emaranhados de folhas e galhos
caídos. Uivos, trinados e pássaros cantando muito alto. Também havia uma neblina leve, como
uma fumaça azul-clara, à nossa volta. Superlegal. O guia nos mostrou tudo: os diferentes tipos
de árvores pelos quais passávamos, os insetos nos troncos caídos na trilha, as marcas que
cervos e ursos deixavam na floresta, que tipos de pássaros estavam cantando e onde procurá-
los. Percebi que meu aparelho auditivo Lobot me fazia escutar melhor do que a maioria das
pessoas, porque eu era sempre o primeiro a ouvir um canto diferente.
Quando estávamos voltando para o acampamento, começou a chover. Peguei a capa de
chuva e vesti o capuz para não molhar meu aparelho, mas minha calça e meus sapatos estavam
encharcados quando chegamos às cabanas. Todo mundo estava ensopado, e foi divertido.
Fizemos uma guerra de meias molhadas.
Como continuou chovendo, passamos a maior parte da tarde de bobeira na sala de
recreação. Havia uma mesa de pingue-pongue e fliperamas antigos, como Pac-man e Missile
Command, e ficamos jogando até a hora do jantar. Por sorte a chuva estiou então fizemos uma
verdadeira fogueira de acampamento. Os bancos de madeira ainda estavam úmidos — nós os
forramos com casacos e nos reunimos em volta do fogo, assamos marshmallows e comemos o
melhor cachorro-quente que já provei na vida. A mamãe estava certa em relação aos
mosquitos: havia milhões. Felizmente, eu tinha passado repelente antes de sair da cabana e
não estava sendo comido vivo como as outras crianças.
Adorei ficar em volta da fogueira à noite. Adorei o modo como a fuligem flutuava e
desaparecia no ar. E como o fogo iluminava o rosto das pessoas. Também adorei o barulho
que a fogueira fazia. E o fato de a floresta ser tão escura que não conseguíamos ver nada à
nossa volta e poder olhar para cima e ver bilhões de estrelas no céu. As noites não eram assim
em North River Heights, mas já tinha visto algo parecido em Montauk: como se alguém
houvesse espalhado sal em uma mesa preta e brilhante.
Quando voltei à cabana estava tão cansado que nem precisei pegar o livro. Pousei a cabeça
no travesseiro e adormeci quase imediatamente. Talvez eu tenha sonhado com estrelas, não
sei.


O parque de exposições


O dia seguinte foi tão bom quanto o primeiro. Fomos cavalgar de manhã e, à tarde, fizemos
rapel em árvores gigantescas com a ajuda dos guias. Quando voltamos para as cabanas na hora
do jantar, estávamos muito cansados. Após a refeição, disseram que tínhamos uma hora para
descansar e que depois faríamos um passeio de quinze minutos de ônibus até o parque de
exposições, para uma sessão de cinema ao ar livre.
Eu ainda não havia tido a chance de escrever uma carta para a mamãe, o papai e a Via,
então foi o que fiz, contando tudo o que acontecera naquele dia e no anterior. Eu me imaginei
lendo a carta em voz alta para eles quando voltasse, porque não havia nenhuma chance de ela
chegar antes de mim.
Chegamos ao parque de exposições e o sol estava começando a se pôr. Devia ser sete e
meia. As sombras na grama estavam muito compridas, e as nuvens eram cor-de-rosa e laranja.
Parecia que alguém tinha pintado o céu com giz de cera e espalhado as cores com os dedos.
Não que eu não tivesse visto lindos pores do sol na cidade — faixas de sol se pondo entre os
prédios —, mas não estava acostumado a ter tanto céu por todos os lados. Ali, no parque de
exposições, entendi por que antigamente as pessoas acreditavam que o mundo fosse plano e o
céu, uma abóboda em cima dele. Era o que parecia, ali, no meio daquele enorme campo
aberto.
Como fomos a primeira escola a chegar, pudemos correr pelo campo o quanto quiséssemos,
até que os professores avisaram que era hora de abrir os sacos de dormir e pegar lugares bons
para assistir ao filme. Estendemos os sacos na grama, feito toalhas de piquenique, em frente à
tela de cinema gigante no meio do campo. Depois fomos aos trailers que vendiam comida,
estacionados ali perto, para nos abastecer de biscoitos, refrigerantes e coisas assim. Também
havia barraquinhas, como em uma feirinha, vendendo amendoins torrados e algodão-doce. Um
pouco mais ao longe havia uma fileira de barracas de brincadeiras, do tipo em que você pode
ganhar bichos de pelúcia se acertar a bola na cesta. O Jack e eu tentamos — e não
conseguimos — ganhar alguma coisa, mas o Amos ganhou um hipopótamo amarelo, que deu
para a Ximena. Essa era a grande fofoca que estava circulando: o atleta e a cê-dê-efe.
Dos trailers de comida dava para ver as plantações de milho atrás da tela. Cobriam cerca de
um terço do campo. O restante era completamente cercado pela mata. À medida que o sol se
punha, as árvores altas nos limites da floresta ficavam azul-escuras.
Quando os ônibus das outras escolas chegaram ao estacionamento, já estávamos de volta
aos nossos sacos de dormir, bem na frente da tela: os melhores lugares que havia. Todo mundo
estava comendo salgadinhos e se divertindo. Jack, Summer, Reid, Maya e eu jogávamos
Imagem & Ação. Dava para ouvir o pessoal das outras escolas chegando, as risadas e as
vozes elevadas vindo dos dois lados do parque, mas não dava para vê-los. Embora o céu
ainda estivesse claro, o sol havia se posto completamente, e tudo no campo estava roxoescuro.
As nuvens agora eram apenas sombras. Tínhamos dificuldade até para enxergar as
cartas do jogo à nossa frente.
Então, sem qualquer aviso, todas as lâmpadas ao redor do campo se acenderam ao mesmo
tempo. Eram como aqueles holofotes grandes dos estádios. Pensei na cena de Contatos
imediatos de terceiro grau, em que a nave alienígena pousa e toca aquela música: pan-panpan-pan-paaan.
Todos começaram a aplaudir e a comemorar, como se algo muito legal
tivesse acontecido.


Sejam gentis com a natureza

Um anúncio veio dos enormes alto-falantes próximos às luzes:
“Sejam todos bem-vindos à vigésima terceira grande sessão de cinema da Reserva
Ecológica Broarwood. Sejam bem-vindos, professores e alunos da... Escola William Heath...”
Uma grande vibração se fez ouvir do lado esquerdo do campo. “Sejam bem-vindos,
professores e alunos da Academia Clover...” Outra comemoração, dessa vez do lado direito.
“E sejam bem-vindos, professores e alunos da... Beecher Prep!” Todo o nosso grupo gritou o
mais alto que conseguiu. “Estamos muito felizes por tê-los como nossos convidados aqui esta
noite e por o tempo estar cooperando. Vocês já viram que noite linda está fazendo?” Mais uma
vez, todos gritaram. “Então, enquanto preparamos o filme, pedimos que deem alguns minutos
de atenção a este comunicado importante. A Reserva Ecológica Broarwood, como vocês
sabem, se dedica a preservar nossos recursos naturais e o meio ambiente. Pedimos que não
deixem lixo espalhado. Limpem o que sujarem. Sejam gentis com a natureza e ela será gentil
em retribuição. Pedimos que tenham isso em mente ao passearem por aí. Não se aventurem
para além dos cones alaranjados que delimitam o parque de exposições. Não entrem nas
plantações de milho nem na floresta. Por favor, evitem perambular por aí. Mesmo que não
estejam interessados em assistir ao filme, seus colegas podem estar, portanto, por favor, sejam
educados: não conversem, não ouçam música, não corram. Os banheiros estão localizados
atrás das barracas de lanche. Depois que o filme acabar, ficará muito escuro, por isso
pedimos que permaneçam com suas escolas no caminho de volta até os ônibus. Professores,
em geral há pelo menos um grupo perdido nas noites de cinema: não deixem que aconteça com
vocês. O filme de hoje será... A noviça rebelde!”
Comecei a bater palmas imediatamente, mesmo já tendo assistido ao filme algumas vezes,
porque era o favorito da Via. Mas fiquei surpreso por que um monte de crianças (não da
Beecher) vaiou, assobiou e riu. Alguém do lado direito do campo atirou uma lata de
refrigerante na tela, o que pareceu surpreender o Sr. Buzanfa. Eu o vi se levantar e olhar na
direção de onde a lata havia sido jogada, embora não fosse possível ver nada no escuro.
O filme começou logo em seguida. As luzes diminuíram. A noviça Maria estava de pé no
topo da montanha, girando e girando. De repente ficou frio, então vesti meu casaco com capuz
amarelo de Montauk, ajustei o volume do meu aparelho e me recostei na mochila para ver o
filme.
The hills are alive...


A floresta ganha vida

Em algum momento da parte chata, quando o rapaz chamado Rolf e a filha mais velha do
capitão Von Trapp estão cantando “You are sixteen, going on seventeen”, o Jack me cutucou.
— Cara, tenho que fazer xixi.
Nós dois nos levantamos e meio que fomos passando por cima das crianças sentadas ou
deitadas nos sacos de dormir. A Summer acenou quando passamos, e acenei de volta.
Havia muita gente de outras escolas nos trailers de comida, nas barraquinhas de brincadeira
ou apenas andando por ali.
É claro que tinha um fila imensa para o banheiro.
— Deixe para lá, vou fazer em uma árvore — disse o Jack.
— Isso é nojento, Jack. Vamos esperar — falei.
Mas ele já estava se dirigindo para a fileira de árvores nos limites do campo, atrás dos
cones alaranjados, que fomos avisados de forma bem clara para não ultrapassar. Obviamente
eu o segui. E obviamente tínhamos esquecido de levar nossas lanternas. Enquanto andávamos
pela mata, estava tão escuro que não enxergávamos dez passos à frente. Por sorte, havia a
claridade do filme, por isso, quando vimos uma lanterna vindo na nossa direção, soubemos de
cara que eram Henry, Miles e Amos. Deduzi que eles também não tivessem esperado na fila
para usar o banheiro.
Miles e Henry ainda não estavam falando com o Jack, mas o Amos tinha desistido da guerra
já havia um tempo. Ele acenou quando nos viu.
— Cuidado com os ursos! — gritou o Henry, e se afastou com o Miles, rindo.
O Amos balançou a cabeça para nós como se dissesse: “Não liguem para eles.”
O Jack e eu andamos um pouco, até estarmos na mata. Então ele procurou pela árvore
perfeita e finalmente fez o que queria, embora tenha parecido que levou uma eternidade.
A mata estava cheia de barulhos altos e estranhos, piados e coaxos, como se uma onda de
som viesse da floresta. Então começamos a ouvir estalos não muito longe de nós, como tiros
de espoleta, algo que, definitivamente, não era o ruído de insetos. E ao longe, como se fosse
em outro mundo, podíamos ouvir “Raindrops on roses and whiskers on kittens”.
— Ah, muito melhor agora! — disse Jack, fechando o zíper.
— Agora eu tenho que fazer xixi — falei, e fiz na árvore mais próxima. Sem chance de eu
me embrenhar na mata como Jack tinha feito.
— Está sentindo esse cheiro? Parecem bombinhas — comentou ele, se aproximando de
mim.
— Ah, sim, é isso mesmo — respondi, fechando o zíper. — Estranho.
— Vamos.



Alien


Voltamos pelo mesmo caminho, na direção da tela gigante. Foi então que demos de cara com
um grupo que não conhecíamos. Eles simplesmente surgiram da floresta, fazendo coisas que eu
tinha certeza que não queriam que os professores vissem. Agora eu sentia o cheiro da fumaça,
tanto de cigarro quanto de bombinha. Eles apontaram a lanterna para nós. Eram seis: quatro
meninos e duas meninas. Pareciam estar no sétimo ano.
— De que escola vocês são? — perguntou um dos garotos.
— Beecher Prep! — respondeu o Jack, e de repente uma das meninas começou a gritar.
— Ah, meu Deus! — berrou ela, cobrindo os olhos com as mãos, como se estivesse
chorando.
Achei que um grande inseto tivesse voado para seu rosto ou algo assim.
— Não acredito! — gritou um dos garotos, e começou a agitar as mãos no ar, como se
houvesse tocado em algo quente. Então cobriu a boca. — Não acredito, cara! Não acredito!
Então todos eles começaram a meio rir, meio tapar os olhos, empurrando uns aos outros e
falando palavrões.
— O que é isso? — perguntou o garoto que estava apontando a lanterna para nós.
Só então percebi que a luz focalizava meu rosto e que eles estavam falando aquilo —
gritando — por minha causa.
— Vamos embora daqui — disse o Jack baixinho, puxando a manga do meu casaco e
começando a se afastar deles.
— Espere aí! — gritou o da lanterna, parando na nossa frente. Ele apontou o feixe de luz na
minha cara de novo, e agora estava a apenas um metro e meio de distância. — Caraca!
Caraca! — exclamou, balançando a cabeça, a boca escancarada. — O que aconteceu com o
seu rosto?
— Pare com isso, Eddie — disse uma das meninas.
— Não sabia que íamos assistir a O senhor dos anéis hoje! — falou ele. — Vejam, é o
Gollum!
Isso fez seus amigos rirem que nem uns loucos.
Tentamos nos afastar de novo, e mais uma vez o garoto chamado o Eddie nos deteve. Ele era
pelo menos um palmo mais alto que Jack, que era cerca de um palmo mais alto que eu, então,
para mim, parecia enorme.
— Não, cara, é Alien! — disse um dos outros.
— Não, não, não, cara. É um ogro!
O Eddie riu, apontando de novo a lanterna para o meu rosto. Dessa vez ele estava bem na
nossa frente.
— Deixem meu amigo em paz, o.k.? — disse o Jack, empurrando a mão com a qual Eddie
segurava a lanterna.
— Vai me obrigar? — desafiou o Eddie, dessa vez apontando a lanterna para o rosto do
Jack.
— Qual é o seu problema, cara? — disse o Jack.
— O seu namorado é o problema!
— Jack, vamos embora — falei, puxando-o pelo braço.
— Meu Deus, isso fala! — gritou o Eddie, a lanterna no meu rosto de novo.
Então um dos outros garotos atirou uma bombinha nos nossos pés.
O Jack tentou passar pelo Eddie, mas ele pôs as mãos nos seus ombros e o empurrou com
força, fazendo-o cair para trás.
— Eddie! — gritou uma das meninas.
— Olhe só — falei, parando na frente do Jack e erguendo as mãos, como se fosse um guarda
de trânsito. — Somos muito menores que você...
— Está falando comigo, Freddie Krueger? Não acho que você vá querer confusão comigo,
sua aberração! — disse o Eddie.
E nesse momento eu vi que deveria sair correndo o mais rápido que pudesse, mas o Jack
ainda estava no chão e eu não o deixaria para trás.
— Ei, cara — disse uma nova voz atrás de nós. — O que está havendo?
O Eddie se virou e apontou a luz para a voz. Por um segundo, não acreditei em quem era.
— Deixe os dois em paz, cara — disse o Amos, com Henry e Miles logo atrás dele.
— Quem é você? — perguntou um dos garotos que estavam com o Eddie.
— Só deixe os dois em paz — repetiu o Amos, calmo.
— Você é uma aberração também? — provocou o Eddie.
— Eles são todos um bando de aberrações! — instigou um de seus amigos.
O Amos não respondeu, mas olhou para nós.
— Venham. Vamos embora. O Sr. Buzanfa está nos esperando.
Eu sabia que era mentira, mas ajudei o Jack a se levantar e começamos a andar na direção
do Amos. Então, do nada, Eddie agarrou meu capuz quando passei por ele e puxou com muita
força, de modo que fui arrastado para trás e caí de costas. Foi uma queda e tanto, e machuquei
feio o cotovelo em uma pedra. Não consegui ver o que aconteceu em seguida, só que o Amos
partiu para cima do Eddie como um caminhão e os dois caíram no chão perto de mim.
Tudo ficou muito confuso depois disso. Alguém me puxou pela manga da roupa e gritou
“Corre!”, ao mesmo tempo outra pessoa gritou “Atrás deles!”, e, por alguns segundos, duas
pessoas ficaram puxando meu casaco em direções opostas. Ouvi os dois praguejando, até que
o casaco se rasgou e o primeiro garoto agarrou meu braço e começou a me puxar atrás dele
enquanto corríamos o mais rápido possível. Eu ouvia os passos nos perseguindo, as vozes
gritando, as garotas berrando, mas estava escuro demais e eu não sabia de quem eram as
vozes, só que tudo parecia estar debaixo d’água. Corríamos como loucos, e estava um breu, e,
sempre que eu começava a diminuir a velocidade, o garoto que estava me puxando gritava:
“Não pare!”



Vozes na escuridão


Por fim, depois de uma corrida que pareceu durar uma eternidade, alguém gritou:
— Acho que despistamos os caras!
— Amos?
— Estou bem aqui! — disse ele, a voz vindo de alguns metros atrás de nós.
— Já podemos parar! — gritou o Miles, de mais longe.
— Jack! — chamei.
— Ei! — disse ele. — Estou aqui.
— Não estou vendo nada!
— Tem certeza de que os despistamos? — perguntou o Henry, soltando meu braço.
Foi então que percebi que era ele quem estava me puxando enquanto corríamos.
— Tenho.
— Shhh! Vamos ouvir!
A gente ficou bem quieto, tentando ouvir passos na escuridão. Só o que dava para escutar
eram grilos, sapos, e nossa respiração ofegante. Estávamos sem fôlego, curvados, com as
mãos nos joelhos e a barriga doendo.
— Despistamos eles — disse o Henry.
— Uau! Isso foi intenso!
— O que aconteceu com a lanterna?
— Eu deixei cair!
— Como vocês souberam? — perguntou o Jack.
— Tínhamos visto aqueles caras antes.
— Pareciam idiotas.
— Você se jogou em cima dele — falei para o Amos.
— É, eu sei — disse ele, rindo.
— Ele não teve nem como se defender! — falou o Miles.
— Foi tipo “Você também é uma aberração?” e você, bam! — comentou o Jack.
— Bam! — repetiu o Amos, dando um soco no ar. — Mas depois que eu o acertei, pensei:
“Corra, Amos, seu idiota, ele é dez vezes maior que você!” Então me levantei e comecei a
correr o mais rápido que pude!
Todos começamos a rir.
— Eu segurei o Auggie e gritei “Corra!” — disse o Henry.
— Eu nem sabia que era você quem estava me puxando — falei.
— Isso foi louco — declarou o Amos, balançando a cabeça.
— Totalmente louco.
— Seu lábio está sangrando, cara.
— Consegui dar alguns socos certeiros — respondeu o Amos, limpando a boca.
— Acho que eles eram do sétimo ano.
— Eram enormes.
— Imbecis! — gritou o Henry bem alto, mas a gente fez ele se calar.
Escutamos por um segundo, para ter certeza de que ninguém tinha ouvido o grito.
— Mas onde é que a gente está? — perguntou o Amos. — Não consigo nem ver a tela.
— Acho que nas plantações de milho — respondeu o Henry.
— Dã, com certeza a gente está na plantação de milho — disse o Miles, empurrando uma
espiga para o Henry.
— Tudo bem, sei exatamente onde estamos — disse o Amos. — Temos que seguir nesta
direção. Vamos acabar na parte de trás do campo.
— Valeu, galera — agradeceu o Jack, erguendo a mão no ar. — Foi muito legal vocês terem
voltado para nos ajudar. Legal mesmo. Valeu.
— Não foi nada — respondeu o Amos, batendo na mão de Jack.
Em seguida o Miles e o Henry fizeram a mesma coisa.
— É, caras, valeu — falei, levantando a mão como o Jack tinha feito, embora eu não tivesse
certeza de que eles fossem me cumprimentar também.
O Amos olhou para mim e assentiu.
— Foi legal a maneira como você aguentou firme, carinha — disse ele, e bateu na minha
mão.
— É, Auggie — concordou o Miles, também me cumprimentando. — Você ficou, tipo:
“Somos menores que vocês...”
— Eu não sabia o que dizer! — falei, rindo.
— Muito legal — disse o Henry, batendo na minha mão também. — Foi mal por ter rasgado
seu casaco.
Olhei para baixo e minha roupa estava rasgada ao meio. Uma das mangas havia se soltado e
a outra estava tão esticada, que chegava ao joelho.
— Ei, seu cotovelo está sangrando — disse o Jack.
— É.
Eu dei de ombros. Aquilo estava começando a doer bastante.
— Você está bem? — perguntou o Jack, ao ver meu rosto.
Assenti. De repente tive vontade de chorar e estava tentando me controlar com todas as
forças.
— Espere, seu aparelho auditivo sumiu! — exclamou o Jack.
— O quê? — gritei, tocando minhas orelhas. O aparelho definitivamente havia sumido. Era
por isso que eu parecia estar debaixo d’água! — Ah, não!
Aí não consegui segurar mais. Tudo o que havia acabado de acontecer me atingiu e não pude
evitar: comecei a chorar. Chorar de verdade, tipo o que a mamãe chamava de “dilúvio”.
Fiquei tão constrangido que escondi o rosto com o braço, mas não conseguia conter as
lágrimas.
Porém, os meninos foram muito legais comigo. Eles me deram tapinhas nas costas.
— Tudo bem, cara. Tudo bem — disseram.
— Você é muito bacana e corajoso, sabia? — disse o Amos, passando o braço nos meus
ombros.
Como continuei chorando, ele pôs os dois braços em volta de mim, como meu pai teria feito,
e me deixou chorar.


A guarda imperial

Durante uns bons dez minutos vasculhamos o caminho que tínhamos percorrido para ver se
encontrávamos meu aparelho, mas estava escuro demais para enxergarmos qualquer coisa.
Literalmente tínhamos que segurar a camisa uns dos outros e andar em fila indiana para não
tropeçar. Era como se tivessem derramado tinta preta em tudo à nossa volta.
— Isso é inútil — disse o Henry. — Pode estar em qualquer lugar.
— Talvez a gente possa voltar com uma lanterna — sugeriu o Amos.
— Não, tudo bem — falei. — Vamos embora. Obrigado mesmo assim.
Voltamos pelas plantações de milho e depois atravessamos o campo até avistarmos a parte
de trás da tela gigante. Como ficava virada para o outro lado, não pudemos tirar proveito da
claridade do filme até cruzarmos de novo os limites da floresta. Só então, finalmente, vimos
alguma luz.
Não havia sinal dos garotos do sétimo ano em lugar nenhum.
— Para onde acham que eles foram? — perguntou o Jack.
— De volta para os trailers de comida — disse o Amos. — Devem achar que vamos fazer
queixa deles.
— Nós vamos? — indagou o Henry.
Eles olharam para mim. Fiz que não com a cabeça.
— Certo — disse o Amos —, mas, cara, não volte a andar por aí sozinho, está bem? Se
precisar ir a algum lugar, fale com a gente que vamos todos juntos.
— Tá — concordei.
Conforme nos aproximávamos da tela, ouvi “High on a hill was a lonely goatherd” e senti o
cheiro do algodão-doce vindo de uma das barraquinhas perto dos trailers de comida. Havia
um monte de crianças andando por ali, então puxei o que havia sobrado do meu capuz e fiquei
de cabeça baixa e mãos nos bolsos, enquanto seguíamos o caminho pela multidão. Fazia muito
tempo que eu não saía sem o aparelho auditivo, e a impressão era de que eu estava muitos
quilômetros debaixo da terra. Parecia aquela música que a Miranda cantava para mim: Torre
de controle para Major Tom, seu circuito pifou, há algo errado...
Enquanto andava, percebi que o Amos tinha ficado bem do meu lado. E o Jack estava perto,
do outro. O Miles estava à nossa frente, e o Henry, atrás. Eles me cercavam enquanto
atravessávamos o mar de crianças. Era como se eu tivesse minha própria guarda imperial.


Hora de dormir


Ao saírem do vale, viu logo do que se tratava. Pedro, Edmundo e todo o resto do
exército de Aslam lutavam desesperadamente contra uma imundície de gente, seres
hediondos, como os da véspera. À luz do dia, eram ainda mais estranhos, mais
malignos e monstruosos.
Parei aí. Eu estava lendo havia mais de uma hora e o sono ainda não tinha chegado. Eram
quase duas da manhã. Todos estavam dormindo. Eu segurava a lanterna dentro do saco de
dormir, e talvez fosse a luz que estivesse atrapalhando, mas eu estava assustado demais para
apagá-la. Tinha medo da escuridão fora do saco de dormir.
Quando voltamos para nosso lugar, perto da tela de cinema, ninguém nem tinha notado que
havíamos saído. O Sr. Buzanfa, a Sra. Rubin, a Summer e todas as outras crianças
continuavam assistindo ao filme. Não faziam ideia de que algo ruim quase acontecera comigo
e com o Jack. É tão estranho como uma noite pode ser a pior da sua vida, mas, para o restante
das pessoas, ser apenas uma noite normal. No meu calendário, em casa, eu marcaria esse dia
como um dos piores. Esse e o dia em que a Daisy morreu. Mas, para o resto do mundo, era
apenas um dia normal. Talvez até feliz. Talvez alguém tenha ganhado na loteria.
Amos, Miles e Henry nos acompanharam até onde eu e o Jack estávamos sentados antes,
com a Summer, a Maya e o Reid. Depois se afastaram e se sentaram com a Ximena, a Savanna
e o restante do seu grupo. De certo modo, tudo voltara exatamente ao que era antes de irmos
ao banheiro. O céu era o mesmo. O filme era o mesmo. O rosto de todos estava igual. O meu
também.
Mas algo era novo. Alguma coisa havia mudado.
Pude ver Amos, Miles e Henry contando ao seu grupo o que tinha acabado de acontecer.
Sabia que estavam falando disso porque ficavam olhando para mim. Embora o filme ainda não
tivesse terminado, as pessoas cochichavam no escuro. Notícias assim se espalham rápido.
Era disso que todos falavam no ônibus, na viagem de volta até as cabanas. Todas as garotas,
mesmo as que eu não conhecia direito, me perguntavam se eu estava bem. Os garotos falavam
de revanche contra o grupo de imbecis do sétimo ano, tentando descobrir qual era a escola
deles.
Eu não pretendia contar aos professores o que havia acontecido, mas eles descobriram
mesmo assim. Talvez tenha sido o casaco rasgado e o cotovelo sangrando. Ou apenas porque
os professores escutam tudo.
Quando voltamos ao acampamento, o Sr. Buzanfa me levou à sala de primeiros socorros e,
enquanto a enfermeira limpava meu cotovelo e fazia um curativo, ele e o diretor do
acampamento estavam na sala ao lado conversando com Amos, Jack, Henry e Miles, tentando
obter uma descrição dos encrenqueiros. Mais tarde, quando o Sr. Buzanfa me perguntou sobre
os garotos, falei que não me lembrava nem um pouco dos rostos, o que não era verdade.
São esses rostos que vejo toda vez que fecho os olhos para dormir. O olhar de pavor da
menina quando me viu pela primeira vez. O modo como o garoto com a lanterna, o Eddie, me
olhava e falava comigo, como se me odiasse.
Como um cordeiro indo para o abate. Eu me lembrei do papai, quando ele disse isso,
séculos atrás — nessa noite acho que, enfim, entendi o que significava.


Consequências


Quando o ônibus chegou, a mamãe estava me esperando na porta da escola com todos os
outros pais. Na viagem para casa, o Sr. Buzanfa me contou que eles haviam ligado para os
meus pais e dito a eles que acontecera um “problema” na noite anterior, mas que todos
estavam bem. Ele disse que o diretor do acampamento e vários monitores foram procurar meu
aparelho auditivo pela manhã, enquanto nadávamos no lago, mas que não conseguiram
encontrá-lo. A Broarwood iria nos reembolsar o valor do aparelho. Estavam se sentindo mal
pelo que havia acontecido.
Eu me perguntei se o Eddie teria levado o aparelho com ele, como um tipo de recordação.
Algo para se lembrar do ogro.
A mamãe me deu um abraço apertado quando desci do ônibus, mas não me encheu de
perguntas, como imaginei que faria. Seu abraço era bom e eu não me afastei, como outras
crianças estavam fazendo com seus pais.
O motorista do ônibus descarregava nossas malas e fui buscar a minha, e mamãe conversava
com o Sr. Buzanfa e a Sra. Rubin, que tinham ido até ela. Enquanto eu puxava a bagagem até
eles, um monte de crianças, que em geral não falava comigo, acenava e me dava tapinhas nas
costas conforme eu ia passando por elas.
“Está pronto?”, perguntou mamãe, quando me viu. Ela pegou minha mala e não tentei
impedi-la: tudo bem se a carregasse. Para ser sincero, se ela quisesse me levar no colo, por
mim estaria tudo bem também.
Quando estávamos indo embora, o Sr. Buzanfa me deu um abraço rápido e apertado, mas
não disse nada.


Em casa


Minha mãe e eu não falamos muito no caminho até em casa, e quando chegamos à varanda,
olhei automaticamente para a janela, porque, por um segundo, esqueci que a Daisy não estaria
lá, como sempre, no sofá, com as patas dianteiras no peitoril, esperando a gente chegar. Isso
me deixou um pouco triste quando entramos. Do lado de dentro, a mamãe largou minha mala,
me abraçou e me beijou na cabeça e no rosto, como se estivesse me respirando.
— Tudo bem, mãe, estou bem — falei, sorrindo.
Ela assentiu e segurou meu rosto. Seus olhos brilhavam.
— Sei que está — disse ela. — Senti tanto a sua falta, Auggie!
— Também senti a sua.
Eu podia ver que ela queria dizer um monte de coisas, mas estava se controlando.
— Está com fome? — perguntou.
— Morrendo. Posso comer um queijo quente?
— Claro — disse ela e começou a preparar o sanduíche na mesma hora, enquanto eu tirava
o casaco e me sentava ao balcão da cozinha.
— Onde está a Via? — perguntei.
— Ela vem para casa com o papai hoje. Ela está com muita saudade de você, Auggie.
— É? Ela ia gostar da reserva. Sabe que filme nós vimos? A noviça rebelde.
— Você vai ter que contar isso a ela.
— Então, quer ouvir primeiro a parte boa ou a parte ruim? — perguntei após alguns
minutos, apoiando a cabeça na mão.
— A que você quiser contar — respondeu ela.
— Bem, sem contar a última noite, eu me diverti muito — falei. — Quer dizer, foi incrível.
É por isso que estou tão chateado. É como se eles tivessem estragado toda a viagem.
— Não, querido, não deixe que eles façam isso com você. Você ficou lá mais de quarenta e
oito horas e essa parte ruim só durou uma. Não deixe que tirem isso de você, está bem?
— Eu sei. — Assenti. — O Sr. Buzanfa contou sobre o aparelho auditivo?
— Sim, ele nos ligou hoje de manhã.
— O papai ficou zangado? Porque foi muito caro?
— Ah, meu Deus, é claro que não, Auggie! Ele só queria saber se você estava bem. É só
isso que importa para nós. E que você não deixe aqueles... brutamontes... estragarem sua
viagem.
Eu meio que ri do modo como ela falou “brutamontes”.
— O que foi?
— Brutamontes — provoquei. — É uma palavra meio velha.
— Certo, idiotas. Bobocas. Imbecis — disse ela, virando meu sanduíche na frigideira. —
Cretinos, como diria minha mãe. Chame como quiser. Se eu os visse na rua, eu...
Ela balançou a cabeça.
— Eles eram bem grandes, mãe. — Sorri. — Acho que do sétimo ano.
— Sétimo? O Sr. Buzanfa não nos contou isso. Meu Deus!
— Ele contou como o Jack me defendeu? — perguntei. — E o Amos se jogou em cima do
líder deles. Os dois caíram no chão, como em uma luta de verdade! Foi incrível! O lábio do
Amos sangrou e tudo.
— Ele nos contou que houve uma briga, mas... — disse ela, olhando para mim com as
sobrancelhas erguidas. — Eu só... uau... ainda bem que você, Amos e Jack estão bem. Quando
penso no que poderia ter acontecido... — Ela deixou a frase inacabada e virou o sanduíche de
novo.
— Meu casaco de Montauk ficou destruído.
— Bem, podemos comprar outro. — Ela passou o queijo quente para um prato e o pôs na
minha frente no balcão. — Leite ou suco de uva?
— Leite com achocolatado, por favor? — Comecei a devorar o sanduíche. — Ah, você
pode fazer daquele seu jeito especial, com espuma?
— Mas como você e o Jack foram parar na floresta, para começo de conversa? — perguntou
ela, despejando leite num copo alto.
— O Jack precisava ir ao banheiro — respondi, de boca cheia. Enquanto eu falava, ela pôs
o achocolatado no leite e começou a rolar um batedor entre as palmas das mãos, bem
depressa. — Mas a fila estava enorme e ele não quis esperar. Então fomos para a mata.
Ela me olhou enquanto batia o leite. Eu sabia que estava pensando que não deveríamos ter
feito isso. O chocolate no copo agora tinha cinco centímetros de espuma.
— Parece ótimo, mãe. Obrigado.
— E o que aconteceu depois? — Ela me entregou o copo.
Tomei um longo gole do achocolatado.
— Tudo bem se não falarmos mais disso agora?
— Ah, tudo bem.
— Prometo que vou contar todos os detalhes depois, quando o papai e a Via chegarem. Só
não quero ter que ficar repetindo a história várias vezes, entende?
— Perfeitamente.
Com mais duas mordidas terminei o sanduíche e tomei o restante do leite.
— Uau. Você praticamente engoliu o sanduíche. Quer outro?
Fiz que não com a cabeça e limpei a boca com as costas da mão.
— Mãe? Sempre vou ter que me preocupar com idiotas desse tipo? — perguntei. — Tipo,
mesmo quando eu crescer, vai ser sempre assim?
Ela não respondeu de imediato. Em vez disso, pegou meu prato e meu copo, pôs na pia e
enxaguou.
— Sempre haverá idiotas no mundo, Auggie — falou, olhando para mim. — Mas seu pai e
eu acreditamos, de verdade, que há mais pessoas boas que más na Terra, e que as pessoas
boas olham umas pelas outras, cuidam umas das outras. Assim como o Jack ficou do seu lado.
E o Amos. E os outros garotos.
— Ah, sim, Miles e Henry — falei. — Eles também foram incríveis. É estranho, porque não
foram nem um pouco legais comigo o ano todo.
— Às vezes as pessoas nos surpreendem — disse a mamãe, bagunçando meu cabelo.
— É, acho que sim.
— Quer outro copo de leite?
— Não, tudo bem. Obrigado, mãe. Na verdade, estou meio cansado. Não dormi bem noite
passada.
— Você deveria tirar uma soneca. Aliás, obrigada por deixar o Babu comigo.
— Viu meu bilhete?
Ela sorriu.
— Dormi com ele as duas noites.
A mamãe estava prestes a dizer mais alguma coisa, mas o celular tocou e ela atendeu.
Enquanto ouvia, começou a sorrir.
— Ah, meu Deus, jura? De que tipo? — perguntou, animada. — Sim, ele está bem aqui. Ia
tirar uma soneca. Quer falar com ele? Ah, certo, nos vemos em dois minutos. — Ela desligou.
— Era seu pai — disse, eufórica. — Ele e a Via estão no fim do quarteirão.
— Ele não está no trabalho?
— Saiu mais cedo porque não podia esperar para ver você. Então não vá dormir ainda.
Cinco segundos depois, meu pai e a Via chegaram. Corri para os braços do papai e ele me
pegou no colo, me girou e me beijou. Fez isso por um minuto inteiro, até que eu disse:
— Já chega, pai.
Então foi a vez da Via, e ela me deu vários beijos, como fazia quando eu era pequeno.
Foi só depois que ela parou que notei a grande caixa branca de papelão que eles haviam
trazido.
— O que é isso? — perguntei.
— Abra — disse o papai, sorrindo.
Ele e a mamãe se olharam como se compartilhassem um segredo.
— Abra logo, Auggie! — falou a Via.
Abri a caixa. Nela havia o cachorrinho mais fofo que eu já tinha visto. Era preto e peludo,
com o focinho pequeno e pontudo, olhos pretos brilhantes e orelhinhas caídas.


Urso


Demos ao filhote o nome de Urso, porque, quando a mamãe o viu pela primeira vez, disse que
parecia um filhote de urso.
— É assim que vamos chamá-lo — falei, e todos concordaram que seria o nome perfeito.
No dia seguinte não fui à escola — não porque meu cotovelo estivesse doendo, embora até
estivesse, mas para poder brincar com o Urso o dia todo. A mamãe também deixou a Via ficar
em casa, então nos revezamos fazendo carinho no Urso e brincando de cabo de guerra com ele.
Tínhamos guardado todos os brinquedos da Daisy, e os pegamos de volta para ver de qual ele
iria gostar mais.
Foi divertido passar o dia inteiro com a Via, só nós dois. Foi como nos velhos tempos, antes
de eu frequentar a escola. Naquela época, eu mal podia esperar que ela chegasse em casa,
para brincar comigo antes de fazer o dever. Mas, agora que somos mais velhos, que vou à
escola e tenho meus amigos, nunca mais fizemos isso.
Foi legal ficar com a Via, rindo e brincando. Acho que ela também gostou.


A mudança



Quando voltei para a escola no dia seguinte, a primeira coisa que notei foi que tudo havia
mudado muito. Era uma diferença monumental. Sísmica. Talvez até cósmica.
Independentemente de como você queira chamá-la, foi uma grande mudança. Todo mundo —
não só no quinto ano, mas em todos os outros — tinha ouvido falar do que acontecera entre
nós e aqueles garotos do sétimo ano, e, de repente, eu não era mais famoso pelo motivo de
sempre, mas por esse outro acontecimento. E a história ficava maior a cada vez que era
contada. Dois dias depois, o que se dizia era que o Amos se envolvera em uma grande briga
com o garoto, e Miles, Henry e Jack também tinham dado uns socos nos outros. E a fuga pelo
milharal se transformou em uma grande aventura por um labirinto de milho, no meio da mata
escura. A versão do Jack provavelmente era a melhor, porque ele era muito engraçado. Mas,
em qualquer história, duas coisas eram sempre iguais: eles tinham caçoado de mim por causa
do meu rosto, o Jack me defendeu e os outros garotos — Amos, Henry e Miles — me
protegeram. E, agora que haviam me protegido, eu era diferente para eles. Eu era um deles.
Todos me chamavam de “carinha” — até os atletas. Aqueles caras grandões que eu mal
conhecia agora me cumprimentavam pelos corredores.
Outra consequência do episódio foi que o Amos se tornou superpopular e o Julian, por ter
perdido a coisa toda, ficou de fora. O Miles e o Henry estavam andando com o Amos o tempo
todo, como se tivessem trocado de melhor amigo. Eu gostaria de poder dizer que o Julian
também começou a me tratar melhor, mas não é verdade. Ele ainda me lançava olhares
contrariados do outro lado da sala. Continuava sem falar comigo nem com o Jack. Mas agora
era o único. E eu e o Jack não estávamos nem aí.


Patos



Na véspera do último dia de aula, o Sr. Buzanfa me chamou à sala dele para dizer que tinha
descoberto os nomes dos tais alunos do sétimo ano. Ele leu alguns nomes que não reconheci, e
então falou o último:
— Edward Johnson.
Eu assenti.
— Reconhece esse nome?
— Os outros o chamavam de Eddie.
— Certo. Bem, encontraram isso no armário do Edward. — Ele me entregou o que havia
sobrado do meu aparelho auditivo. A parte direita tinha desaparecido e a esquerda estava toda
torta. O arco entre elas estava dobrado ao meio. — A escola dele quer saber se você quer dar
queixa — disse o Sr. Buzanfa.
Olhei meu aparelho auditivo.
— Não, acho que não. — Dei de ombros. — Já vou tirar as medidas para um aparelho novo
mesmo...
— Hum. Por que não conversa sobre isso com seus pais hoje? Ligarei para sua mãe amanhã
e falarei com ela também.
— Eles iriam para a cadeia? — perguntei.
— Não, para a cadeia, não. Mas provavelmente passariam pelo juizado de menores. E
talvez aprendessem uma lição com isso.
— Pode acreditar em mim: aquele tal de Eddie não é capaz de aprender lição nenhuma —
brinquei.
O Sr. Buzanfa se sentou à sua mesa.
— Auggie, por que não se senta um instante?
Fiz isso. As coisas na escrivaninha eram as mesmas de quando entrei naquele escritório
pela primeira vez, no verão anterior: o mesmo cubo espelhado, o mesmo globo pequeno
flutuando. Parecia que fazia séculos.
— Difícil acreditar que o ano esteja quase acabando, não é? — disse ele, quase como se
estivesse lendo meus pensamentos.
— É.
— Foi um bom ano para você, Auggie? Foi tudo bem?
— Sim, tem sido bom.
— Sei que, em termos acadêmicos, seu ano foi ótimo. Você é um de nossos melhores alunos.
Parabéns pela Lista de Honra.
— Obrigado. É, foi legal.
— Mas sei que você teve sua cota de altos e baixos — disse ele, erguendo as sobrancelhas.
— Com certeza aquela noite na reserva foi um dos pontos baixos.
— É! — Assenti. — Mas meio que foi bom também.
— Em que sentido?
— Bem, você sabe, o modo como as pessoas me defenderam e tal...
— Isso foi maravilhoso — disse ele, sorrindo.
— É.
— Sei que, às vezes, as coisas ficaram um pouco complicadas com o Julian.
Tenho que admitir: ele me surpreendeu com aquilo.
— Você sabe disso? — perguntei.
— Diretores têm suas maneiras de saber de muitas coisas.
— Vocês têm, tipo, câmeras de segurança secretas nos corredores? — brinquei.
— E microfones por todo lado — disse ele, rindo.
— Não! Sério?
Ele riu de novo.
— Não, não é sério.
— Ah!
— Mas os professores sabem mais do que os alunos imaginam, Auggie. Eu gostaria que
você e o Jack tivessem vindo falar comigo sobre aqueles bilhetes maldosos deixados nos
armários.
— Como sabe disso?
— Estou lhe dizendo: diretores sabem de tudo.
— Isso não foi nada de mais — respondi. — E nós também deixamos bilhetes.
Ele sorriu.
— Não sei se já se tornou público, mas em breve será: Julian não voltará para a Beecher
Prep no próximo ano.
— O quê?!
Não consegui esconder minha surpresa.
— Os pais dele não acham que a Beecher Prep seja boa para o filho — explicou o Sr.
Buzanfa, encolhendo os ombros.
— Uau, essa é uma grande notícia — falei.
— É, achei que você deveria saber.
De repente, notei que o retrato de abóbora que ficava atrás da mesa dele havia sumido e
que, emoldurado em seu lugar, estava o Autorretrato como um animal que eu havia desenhado
para a exposição de Ano-novo.
— Ei, aquele é o meu desenho — apontei.
O Sr. Buzanfa se virou como se não soubesse do que eu estava falando.
— Ah, é mesmo! — disse, dando um tapinha na testa. — Eu queria lhe mostrar isso há
meses.
— Meu autorretrato como um pato.
— Adoro esse desenho, Auggie. Quando sua professora de artes me mostrou, perguntei se
poderia ficar com ele para o meu escritório. Espero que não se importe.
— Não. Claro que não! E onde está o retrato da abóbora?
— Bem atrás de você.
— Ah, sim. Legal.
— Queria lhe perguntar desde que o pendurei... — disse ele, olhando para o desenho. —
Por que você escolheu se retratar como um pato?
— Como assim? Essa era a tarefa.
— Sim, mas por que um pato? Eu estaria certo se deduzisse que foi por causa da história do
patinho... hum... que se transforma em cisne?
— Não! — Eu ri, balançando a cabeça. — É porque eu acho que pareço um pato.
— Ah! — exclamou o Sr. Buzanfa, arregalando os olhos. E começou a rir. — Sério? Hum. E
eu aqui procurando simbolismos e metáforas... Às vezes um pato é só um pato!
— É, acho que sim — falei, sem entender direito por que ele tinha achado aquilo tão
engraçado.
Ele riu sozinho por uns bons trinta segundos.
— Enfim, Auggie, obrigado por conversar comigo — disse, então. — Eu só gostaria que
você soubesse que é um grande prazer tê-lo aqui na Beecher Prep e que estou ansioso pelo
próximo ano. — Ele estendeu a mão por cima da mesa e eu a apertei. — Vejo você amanhã na
formatura.
— Até amanhã, Sr. Buzanfa.


O último preceito


Quando entramos pela última vez na aula de inglês do Sr. Browne, estava escrito no quadro:
PRECEITO DO SR. BROWNE DE JUNHO:
APENAS SIGA O DIA E BUSQUE O SOL!
(ThePolyphonic Spree)
Boas férias, turma 5B!
Foi um ótimo ano e vocês foram um grupo maravilhoso.
Se lembrarem, por favor, me mandem um cartão-postal neste verão com o SEU preceito pessoal. Pode ser algo que tenham criado ou que tenham lido em algum lugar, e que signifique algo para vocês. (No segundo caso, não se esqueçam do crédito, por favor!) Estou ansioso para recebê-los.
Tom Browne
563 Sebastian Place
Bronx, NY 10053


A carona


A cerimônia de formatura foi no auditório do ensino médio da Beecher Prep. Ficava a apenas
quinze minutos andando da nossa casa, mas o papai me levou de carro porque eu estava todo
arrumado e com sapatos novos pretos e lustrosos, que ainda não tinham sido amaciados — e
eu não queria ficar com o pé doendo. Os alunos deviam chegar ao auditório com uma hora de
antecedência, mas acabamos chegando antes disso, então ficamos sentados no carro e
esperamos. O papai ligou o CD player e nossa música favorita começou a tocar. Nós dois
sorrimos e balançamos a cabeça no ritmo.
Meu pai cantou:
— Andy would bicycle across town in the rain to bring you candy.
— Ei, minha gravata está no lugar? — perguntei.
Ele olhou e a endireitou um pouco, enquanto continuava cantando:
— And John would buy the gown for you to wear to the prom...
— O cabelo está legal?
Ele sorriu e assentiu.
— Perfeito. Você está ótimo, Auggie.
— A Via passou um pouco de gel de manhã — falei, abrindo o para-sol e me olhando no
espelhinho. — Não está muito espetado?
— Não, está muito, muito, muito legal, Auggie. Acho que você nunca usou o cabelo tão
curto, não é?
— Não. Cortei ontem. Acho que me faz parecer mais velho, não acha?
— Definitivamente! — Ele estava sorrindo, olhando para mim e assentindo. — But I’m the
luckiest guy on the Lower East Side, ’cause I got wheels, and you want to go for a ride. Olhe
só para você, Auggie — disse ele, sorrindo de orelha a orelha. — Olhe para você, parecendo
tão crescido e bem-vestido. Mal posso acreditar que está se formando no quinto ano!
— Eu sei. É incrível, não é?
— Parece que foi ontem que você entrou para a escola.
— Lembra que eu ainda tinha aquela trança do Star Wars?
— Ah, meu Deus, é verdade! — disse ele, esfregando a testa com a palma da mão.
— Você odiava aquela trança, não é, pai?
— Odiar é uma palavra muito forte, mas eu realmente não a adorava.
— Você a odiava, vamos, confesse — provoquei.
— Não, não odiava. — Ele sorriu, balançando a cabeça. — Mas admito que odiava aquele
capacete de astronauta que você usava, lembra?
— O que a Miranda me deu? Claro que eu lembro! Eu usava o tempo todo.
— Meu Deus, eu odiava aquela coisa.
Ele riu, mais para si mesmo.
— Fiquei tão arrasado quando ele sumiu... — falei.
— Ah, ele não sumiu — disse ele em tom casual. — Eu o joguei fora.
— Espere aí, como é que é?
Não acreditei que tivesse ouvido direito.
— The day is beautiful, and so are you — cantou ele.
— Pai! — falei, diminuindo o volume.
— O que foi?
— Você jogou o capacete fora?!
Ele finalmente olhou para mim e viu como eu estava zangado. Não dava para acreditar que
ele estivesse tratando tudo aquilo de modo tão banal. Quer dizer, para mim era uma grande
revelação, e ele estava agindo como se não tivesse importância.
— Auggie, eu não aguentava mais ver aquela coisa cobrindo o seu rosto — disse ele, sem
jeito.
— Pai, eu amava aquele capacete! Significava muito para mim! Você não imagina como
fiquei arrasado quando o perdi... Não lembra?
— É claro que lembro, Auggie — disse ele, baixinho. — Ah, Auggie, não fique zangado.
Desculpe. Eu só não aguentava mais vê-lo com aquilo na cabeça, entende? Não achava que
fosse bom para você. — Ele estava tentando me olhar nos olhos, mas eu não queria encará-lo.
— Ora, vamos, Auggie, por favor, tente entender — continuou, pondo a mão no meu queixo e
erguendo meu rosto. — Você usava aquele capacete o tempo inteiro. E a grande verdade é: eu
sentia falta do seu rosto, Auggie. Sei que você nem sempre gosta dele, mas, precisa entender...
Eu adoro. Eu amo seu rosto, Auggie, completa e apaixonadamente. E meio que partia meu
coração o fato de você escondê-lo o tempo todo.
Ele estava olhando para mim fixamente, como se quisesse mesmo que eu entendesse.
— A mamãe sabe? — perguntei.
Ele arregalou os olhos.
— De jeito nenhum! Está brincando? Ela teria me matado!
— Ela revirou a casa inteira procurando o capacete, pai — falei. — Quer dizer, ela passou,
tipo, uma semana inteira procurando em todos os armários, na lavanderia, em tudo que era
canto.
— Eu sei! — falou ele, assentido. — E é por isso que ela me mataria!
Então ele olhou para mim, e algo em sua expressão me fez começar a rir, o que o fez abrir
muito a boca, como se tivesse acabado de se dar conta de algo.
— Espere um minuto, Auggie — falou, apontando para mim. — Você tem que me prometer
que nunca vai contar nada disso à sua mãe.
Sorri e esfreguei as palmas das mãos, de um jeito muito malévolo.
— Vamos ver — falei, coçando o queixo. — Vou querer o novo Xbox, quando for lançado
no mês que vem. E, sem dúvida, vou querer meu próprio carro daqui a uns seis anos: um
Porsche vermelho seria legal. E...
Ele começou a rir. Adorei o fato de que era eu que o estava fazendo rir, já que normalmente
o cara engraçado, que diverte todo mundo, é ele.
— Caramba, garoto. Você cresceu mesmo.
A parte da música que mais gostávamos de cantar começou, e aumentei o volume. Nós
cantamos juntos.
I’m the ugliest guy on the Lower East Side, but I’ve got wheels and you want to go for a
ride. Want to go for a ride. Want to go for a ride. Want to go for a riiiiiiiiiiiiiiiiiiiiide.
Sempre cantamos essa parte a plenos pulmões, tentando sustentar a última nota por tanto
tempo quanto o cantor, o que sempre nos faz rir. Enquanto ríamos, vimos que o Jack tinha
chegado e estava andando na nossa direção. Fiz menção de descer do carro.
— Espere aí — disse o papai. — Só quero ter certeza de que você me perdoou, o.k.?
— Sim, eu perdoo você.
Ele me olhou com gratidão.
— Obrigado.
— Mas nunca mais jogue nada meu fora sem me consultar!
— Prometo.
Abri a porta e saí no momento em que o Jack chegava ao carro.
— Oi, Jack — falei.
— Oi, Auggie. Oi, Sr. Pullman.
— Como vai, Jack? — perguntou meu pai.
— Vejo você mais tarde, pai — falei, fechando a porta.
— Boa sorte, rapazes! — gritou papai, abrindo a janela. — Vejo vocês do outro lado do
quinto ano!
Nós acenamos enquanto ele virava a chave na ignição e dava a partida, mas então corri de
volta e ele parou o carro. Pus a cabeça para dentro da janela, para que Jack não ouvisse o que
eu estava dizendo.
— Será que vocês poderiam não me beijar muito depois da formatura? — pedi, baixinho. —
É meio constrangedor.
— Vou fazer o possível.
— Avise à mamãe, por favor?
— Acho que ela não vai conseguir resistir, Auggie, mas vou dar o recado.
— Tchau, meu querido e velho pai.
Ele sorriu.
— Tchau, meu filho, meu filho.


Sentem-se, todos


O Jack e eu entramos no prédio logo atrás de alguns alunos do sexto ano e os seguimos até o
auditório.
A Sra. G. estava na entrada, entregando os programas e dizendo às crianças aonde ir.
“Quinto ano no fim do corredor à esquerda”, disse ela. “Sexto ano à direita. Entrem todos.
Entrem. Bom dia. Vão para seus lugares. Quinto ano à esquerda, sexto ano à direita...”
O auditório era enorme. Grandes lustres brilhantes. Paredes de veludo vermelho. Fileiras e
mais fileiras de assentos estofados de frente para um palco gigantesco. Descemos o longo
corredor e seguimos as sinalizações até a área do quinto ano, que era um grande espaço à
esquerda do palco. Lá, na parte da frente do auditório, havia quatro filas de cadeiras
reservadas, de onde a Sra. Rubin, de pé, acenava para nós assim que entrávamos.
— Certo, alunos, para os seus lugares. Para os seus lugares — dizia ela, apontando para as
filas de cadeiras. — Não se esqueçam de que vocês vão se sentar em ordem alfabética.
Vamos, sentem-se, todos.
Ainda não haviam chegado muitas crianças, mas as que estavam lá não lhe davam ouvidos.
O Jack e eu fizemos rolinhos com o programa e estávamos brincando de luta de espadas.
— Oi, meninos.
Era a Summer, que vinha na nossa direção. Ela estava usando um vestido rosa-claro e, acho,
um pouco de maquiagem.
— Uau, Summer, você está linda! — falei, porque ela estava mesmo.
— Sério? Obrigada, você também, Auggie.
— É, você está bonita, Summer — disse o Jack, meio sem jeito.
E, pela primeira vez, percebi que ele tinha uma quedinha por ela.
— Isso é tão empolgante, não é? — comentou a Summer.
— É, um pouco — falei, assentindo.
— Meu Deus, olhem esse programa! — disse o Jack, coçando a testa. — Vamos passar o
dia inteiro aqui.
Li o meu.                                                          

                                               Discurso de abertura do Reitor:
                                                       Dr. Harold Jansen  
                                    Discurso do Diretor do ensino fundamental II: 
                                                   Sr. Lawrence Buzanfa 
                                                    “Light and Day” 
                                      Coral do ensino fundamental II
                                 Discurso de entrega de diplomas dos alunos do quinto ano:
                                                        Ximena Chin
                                       “Canon em Ré maior” , de Pachelbel
                                 Orquestra de Câmara do ensino fundamental II 
                          Discurso de entrega de diplomas dos alunos do sexto ano:
                                                    Mark Antoniak 
                                                  “Under Pressure”
                                        Coral do ensino fundamental II 
                       Discurso da Coordenadora do ensino fundamental II:
                                                 Sra. Jennifer Rubin
                                    Entrega dos prêmios (ver apêndice) 
                                                 Entrega dos diplomas   

— Por que você acha isso? — perguntei.
— Porque os discursos do Sr. Jansen duram uma eternidade — disse o Jack. — Ele é pior
que o Sr. Buzanfa!
— Minha mãe disse que chegou a dormir durante o discurso dele no ano passado —
acrescentou a Summer.
— O que é entrega dos prêmios? — perguntei.
— É quando eles entregam medalhas para os maiores cê-dê-efes — respondeu o Jack. — O
que significa que a Charlotte e a Ximena vão ganhar todas as do quinto ano, como ganharam
todas do quarto e do terceiro.
— Do segundo, não? — falei, rindo.
— Eles não dão prêmios no segundo ano — disse ele.
— Talvez você ganhe este ano — brinquei.
— Só se eles derem prêmios para o maior número de notas C — falou o Jack, rindo.
— Sentem-se, todos! — A Sra. Rubin agora começou a gritar mais alto ainda, como se
estivesse ficando irritada com o fato de que ninguém prestava atenção. — Temos muito o que
fazer, por isso, sentem-se. Não se esqueçam da ordem alfabética! De A a G na primeira fila!
De H a N na segunda; O a Q na terceira; R a Z na última. Vamos, pessoal!
— Temos que nos sentar — disse a Summer, indo para a parte da frente do auditório.
— Vocês vão à minha casa depois, certo? — gritei para ela, que estava de costas.
— Com certeza! — disse a Summer, sentando-se ao lado da Ximena Chin.
— Quando foi que a Summer ficou tão bonita? — murmurou o Jack no meu ouvido.
— Cale a boca, cara — retruquei, rindo, enquanto caminhávamos para a terceira fila.
— Sério, quando foi que isso aconteceu? — sussurrou ele, sentando-se ao meu lado.
— Sr. Will! — gritou a Sra. Rubin. — Até onde sei, o W fica entre o R e o Z, certo?
Jack olhou para ela, sem entender.
— Cara, você está na fileira errada — falei.
— Estou?
A cara que ele fez quando se levantou era uma mistura de completa confusão e de quem
estava fazendo graça, o que me fez morrer de rir.


Uma coisa simples

Cerca de uma hora depois, estávamos todos sentados no imenso auditório esperando que o Sr.
Buzanfa fizesse seu discurso. O lugar era ainda maior do que eu imaginava que seria — maior
até que na escola da Via. Olhei em volta e devia haver um milhão de pessoas na plateia.
Certo, talvez não um milhão, mas com certeza, muitas.
— Obrigado, Reitor Jansen, por suas gentis palavras de apresentação — disse o Sr.
Buzanfa, pondo-se de pé atrás do púlpito no palco e pegando o microfone. — Sejam bemvindos,
amigos professores e membros do corpo docente... Sejam bem-vindos, pais, avós,
amigos e convidados de honra, e, sobretudo, sejam bem-vindos, meus alunos do quinto e do
sexto anos... Sejam bem-vindos à cerimônia de formatura do ensino fundamental da Beecher
Prep!!!
Todos aplaudiram.
— Todos os anos — continuou o Sr. Buzanfa, lendo suas anotações com os óculos de leitura
na ponta do nariz —, tenho a incumbência de escrever dois discursos: um para a cerimônia de
formatura do quinto e do sexto anos, que acontece hoje, e outro para a do sétimo e do oitavo,
amanhã. E todos os anos digo a mim mesmo que deveria poupar trabalho e escrever um único
discurso que servisse para as duas ocasiões. Não deveria ser tão difícil, não é? E, mesmo
assim, apesar das minhas intenções, sempre acabo com dois discursos diferentes, e este ano
descobri por quê. Não é, como vocês podem estar imaginando, simplesmente porque amanhã
vou falar para uma plateia mais velha, com mais experiência nesta escola, enquanto a maior
parte do que vocês viverão aqui ainda está por vir. Não, acho que tem mais a ver com essa
idade específica que têm agora, este momento especial na vida de vocês, que ainda me
emociona, mesmo vinte anos depois de eu ter sido um aluno com essa idade. Porque vocês
estão no limite, crianças, na fronteira entre a infância e tudo o que vem depois. Estão em
transição.
O Sr. Buzanfa tirou os óculos e usou-os para apontar para todos nós na plateia.
— Estamos todos reunidos aqui hoje — continuou —, seus parentes, amigos e professores,
para celebrar não só suas conquistas deste último ano, mas suas infinitas possibilidades.
Quando refletirem sobre este ano, quero que vejam onde estão agora e onde estiveram antes.
Todos ficaram um pouco mais altos, um pouco mais fortes, um pouco mais inteligentes...
espero.
Algumas pessoas da plateia riram.
— Mas a melhor maneira de medir quanto vocês cresceram não é por centímetros, nem por
quantas voltas conseguem dar na pista, ou mesmo por sua média de notas, embora essas
coisas, sem dúvida, sejam importantes. A melhor medida é o que vocês fizeram com seu
tempo, como escolheram passar os dias e quem cativaram. Para mim, essa é a melhor medida
do sucesso. Há uma frase maravilhosa em um livro de J. M. Barrie... e não, não é Peter Pan, e
não vou pedir que batam palmas se acreditam em fadas...
Todos riram mais uma vez.
— Mas em outro livro de J. M. Barrie, chamado O pequeno pássaro branco, ele escreve…
— O Sr. Buzanfa começou a folhear um pequeno livro até encontrar a página que estava
procurando, e então voltou a pôr os óculos. — “Vamos criar uma nova regra de vida... sempre
tentar ser um pouco mais gentil que o necessário?”
Então ele olhou para a plateia.
— “Mais gentil que o necessário” — repetiu. — Que frase maravilhosa, não é? Mais gentil
que o necessário. Porque não basta ser gentil. Devemos ser mais gentis do que precisamos.
Adoro essa frase, essa ideia, porque ela me lembra que carregamos conosco, como seres
humanos, não apenas a capacidade de ser gentil, mas a opção pela gentileza. O que isso
significa? Como isso é medido? Não podemos usar uma régua. É como eu estava dizendo
antes: a questão não é medir quanto vocês cresceram este ano. Não dá para quantificar com
precisão, não é? Como sabemos que fomos gentis? O que é ser gentil, a propósito?
Ele pôs os óculos de novo e começou a folhear outro livrinho.
— Aqui está mais uma passagem, de um outro livro, que gostaria de compartilhar com
vocês. Se tiverem a gentileza de esperar enquanto procuro... Ah, aqui está. Em Under the eye
of the clock, de Christopher Nolan, o personagem principal é um jovem que está enfrentando
desafios extraordinários. Há uma parte em que alguém o ajuda: um garoto da mesma turma.
Aparentemente, é um gesto pequeno. Mas, para o jovem, chamado Joseph, é... bem, se me
permitem...
Ele pigarreou para limpar a garganta e leu:
— “Era em momentos como aquele que Joseph reconhecia a face de Deus em forma humana.
Cintilava para ele em sua gentileza, brilhava em sua solidariedade, mostrava-se em sua
preocupação, até mesmo o afagava em seu olhar.”
Ele fez uma pausa e mais uma vez tirou os óculos.
— “Cintilava para ele em sua gentileza” — repetiu, sorrindo. — Uma coisa tão simples, a
gentileza. Tão simples. Uma palavra de incentivo quando precisamos. Um gesto de amizade.
Um sorriso breve.
Ele fechou o livro e se inclinou para a frente no púlpito.
— Crianças, o que quero transmitir a vocês hoje é o entendimento do valor dessa coisa tão
simples que se chama gentileza. E isso é tudo o que desejo deixar para vocês hoje. Sei que sou
infame por minha... hum... verborragia...
Todos riram de novo. Acho que ele sabia que era conhecido pelos longos discursos.
— ...mas o que quero que vocês, meus alunos, levem de sua experiência no ensino
fundamental — prosseguiu — é a certeza de que, no futuro que vão construir para si, tudo é
possível. Se cada pessoa nesse auditório tomar por regra que, onde quer que esteja, sempre
que puder, será um pouco mais gentil que o necessário, o mundo realmente será um lugar
melhor. E, se fizerem isso, se forem apenas um pouco mais gentis que o necessário, alguém,
em algum lugar, algum dia, poderá reconhecer em vocês, em cada um de vocês, a face de
Deus.
Ele fez uma pausa e encolheu os ombros.
— Ou seja qual for a representação politicamente correta de bondade em que acreditem —
apressou-se em acrescentar com um sorriso, o que arrancou da plateia algumas risadas e
muitos aplausos, sobretudo no fundo do auditório, onde os pais estavam sentados.


Prêmios


Gostei do discurso do Sr. Buzanfa, mas tenho que admitir: eu meio que viajei durante alguns
dos outros.
Voltei a prestar atenção quando a Sra. Rubin começou a ler os nomes dos alunos que
estavam na lista de honra, porque tínhamos que ficar de pé quando nosso nome fosse chamado.
Então ouvi e esperei minha vez, enquanto ela lia a lista em ordem alfabética de sobrenome.
Reid Kingsley. Maya Markowitz. August Pullman. Fiquei de pé. Então, quando ela terminou,
pediu que nos virássemos e nos curvássemos, cumprimentando a plateia, e todos aplaudiram.
Eu não tinha a menor ideia de onde, no meio daquela multidão, meus pais estavam sentados.
Tudo o que vi foram os flashes das câmeras fotográficas e pais acenando para os filhos.
Embora não pudesse vê-la, imaginei a mamãe acenando para mim de algum lugar.
Então o Sr. Buzanfa voltou ao palco para entregar as medalhas de excelência acadêmica, e o
Jack estava certo: Ximena Chin ganhou a medalha de ouro de “melhor desempenho acadêmico
do quinto ano”. A Charlotte ficou com a prata e também ganhou a medalha de ouro em música.
O Amos ganhou a medalha pelo melhor desempenho nos esportes, o que me deixou muito feliz,
porque, desde o retiro ecológico, eu o considerava um dos meus melhores amigos na escola.
Mas fiquei muito, muito animado quando o Sr. Buzanfa chamou a Summer para receber a
medalha de ouro em escrita criativa. Eu a vi tapar a boca com a mão quando seu nome foi
chamado. “Uhuuuu, Summer!”, gritei o mais alto que consegui ao vê-la subir no palco, mas
acho que ela não me ouviu.
Depois que o último nome foi chamado, todos que haviam ganhado prêmios ficaram lado a
lado no palco, e o Sr. Buzanfa disse para a plateia:
— Senhoras e senhores, tenho a honra de lhes apresentar os destaques deste ano da escola
Beecher Prep. Parabéns a todos!
Aplaudi quando quem estava no palco se curvou, agradecendo. Eu estava muito feliz pela
Summer.
— O último prêmio desta manhã — disse o Sr. Buzanfa, depois que todos voltaram aos
lugares — é a medalha de honra Henry Ward Beecher, destinada a alunos que se destacaram
ou foram exemplares em certas áreas durante o ano letivo. Tradicionalmente, esta medalha tem
sido nosso modo de reconhecer o trabalho voluntário e a prestação de serviços à escola.
Deduzi de imediato que a Charlotte ganharia o prêmio, por ter organizado a campanha do
agasalho, então meio que me desliguei de novo. Olhei para o relógio em meu pulso: 10h56. Eu
já estava ficando com fome.
— ...esta escola foi batizada em homenagem a Henry Ward Beecher, o abolicionista do
século XIX e fervoroso defensor dos direitos humanos — dizia o Sr. Buzanfa quando voltei a
prestar atenção. — Enquanto pesquisava sobre sua vida, a fim de me preparar para esta
premiação, encontrei algo que ele escreveu que me pareceu particularmente coerente com os
assuntos que abordei mais cedo, assuntos sobre os quais venho refletindo durante todo o ano.
Não restritos à natureza da gentileza, mas sobre a natureza da gentileza de uma pessoa. O
poder da amizade de uma pessoa. A retidão de caráter de uma pessoa. A força da coragem de
uma pessoa...
Naquele momento algo muito estranho aconteceu: a voz do Sr. Buzanfa falhou, como se ele
estivesse engasgado. Ele chegou a limpar a garganta e tomou um grande gole de água. Comecei
a prestar atenção, para entender o que ele estava falando.
— A força da coragem de uma pessoa — repetiu ele baixinho, assentindo e sorrindo. — Ele
ergueu a mão direita como se estivesse contando. — Coragem. Bondade. Amizade. Caráter.
Essas são as qualidades que nos definem como seres humanos e acabam por nos conduzir à
grandeza. E é disso que se trata a medalha Henry Ward Beecher: reconhecer a grandeza. Mas
como fazemos isso? Como podemos mensurar algo como a grandeza? Mais uma vez, não há
uma régua. Como nós a definimos? Bem, Beecher, de fato, tem uma resposta.
Ele pôs os óculos de novo, folheou um livro e começou a ler:
— “A grandeza”, escreveu Beecher, “não está em ser forte, mas no uso correto da força...
Grande é aquele cuja força conquista mais corações...”
Ele engasgou mais uma vez, de repente. Antes de continuar, levou dois dedos aos lábios por
um segundo.
— “Grande é aquele cuja força conquista mais corações pela atração do próprio coração.”
Sem mais delongas, este ano tenho muito orgulho de conferir a medalha Henry Ward Beecher
ao aluno cuja força discreta conquistou a maioria dos corações... August Pullman, por favor,
venha receber seu prêmio.


Flutuando



As pessoas começaram a aplaudir antes mesmo que eu registrasse as palavras do Sr. Buzanfa.
Ouvi a Maya, que estava do meu lado, dar um gritinho de alegria ao escutar meu nome, e o
Miles, do outro lado, deu um tapinha nas minhas costas. “Levanta, vai lá!” diziam as crianças
à minha volta, e senti um monte de mãos me empurrando para que eu saísse da cadeira, me
guiando até o fim da fileira, batendo nas minhas costas e na minha mão. “Mandou bem,
Auggie! É isso aí, Auggie!” Ouvi até as pessoas gritando meu nome.
“Auggie! Auggie! Auggie!”
Olhei para trás e vi o Jack liderando o coro, com o punho erguido no ar, sorrindo e fazendo
gestos para que eu seguisse em frente. Também vi o Amos gritando, com as mãos em concha
na frente da boca: “ Uhuuu, carinha!”
Então vi a Summer sorrindo quando passei por sua fileira e, quando me pegou olhando para
ela, discretamente fez um sinal de positivo com a mão e, sem emitir nenhum som, só com o
movimento dos lábios, disse: “Maneiro.”
Sorri e balancei a cabeça, como se não conseguisse acreditar. E não conseguia mesmo.
Acho que eu estava sorrindo. Talvez eu estivesse radiante, não sei. Enquanto caminhava
pelo corredor em direção ao palco, tudo o que vi foi um borrão de rostos felizes olhando para
mim, de mãos me aplaudindo. E ouvi pessoas gritando coisas como: “Você merece, Auggie!”
“Que bom, Auggie!”
Vi todos os meus professores em seus assentos, o Sr. Browne, a Sra. Petosa, o Sr. Roche, a
Sra. Atanabi, a enfermeira Molly e tantos outros: estavam vibrando por mim, gritando e
assobiando.
Eu me senti flutuando. Foi tão estranho! Como se o sol estivesse brilhando com toda a força
no meu rosto, o vento soprando. Quando me aproximei do palco, vi a Sra. Rubin acenando
para mim na primeira fileira e, ao lado dela, a Sra. G. chorando histericamente — choro de
felicidade —, sorrindo e batendo palmas sem parar. E, quando subi os degraus, a coisa mais
incrível aconteceu: todos começaram a se levantar. Não apenas as primeiras fileiras, mas toda
a plateia de repente ficou de pé, gritando e aplaudindo loucamente. Uma ovação. Para mim.
Cruzei o palco até o Sr. Buzanfa, que segurou minha mão entre as dele em um cumprimento e
sussurrou no meu ouvido:
— Muito bem, Auggie.
Então ele pôs a medalha de ouro no meu pescoço, exatamente como fazem nas Olimpíadas, e
me virou de frente para a plateia. Parecia que eu estava em um filme, era quase como se eu
fosse outra pessoa. Feito a última cena de Star Wars Episódio IV: Uma nova esperança ,
quando Luke Skywalker, Han Solo e Chewbacca são aplaudidos por terem destruído a Estrela
da Morte. Enquanto estava no palco, eu quase podia ouvir a música do filme tocando em
minha cabeça.
Na verdade, eu nem tinha certeza do motivo de estar ganhando aquela medalha.
Não, isso não é verdade. Eu sabia, sim.
É como aquelas pessoas que às vezes você vê e não consegue imaginar como seria estar no
lugar delas, seja alguém em uma cadeira de rodas, ou alguém que não pode falar. Eu sei que
sou essa pessoa para os outros, talvez para todas as pessoas naquele auditório.
Para mim, porém, sou apenas eu. Um garoto comum.
Mas, se quiseram me dar uma medalha por ser eu mesmo, tudo bem. Aceito. Não destruí a
Estrela da Morte nem nada parecido, mas consegui passar pelo quinto ano. E isso não é fácil,
mesmo que você não seja eu.


Fotos



Em seguida houve uma recepção para os alunos do quinto e do sexto anos sob uma tenda
enorme nos fundos da escola. Todos foram encontrar os pais e eu não me importei nem um
pouco quando a mamãe e o papai me abraçaram como loucos, nem quando a Via passou os
braços em volta de mim e me balançou de um lado para o outro umas vinte vezes. Então o
vovô e a vovó me abraçaram, e depois a tia Kate, o tio Po e o tio Ben — todos emocionados e
com o rosto molhado. Mas a Miranda foi a mais engraçada: ela estava chorando mais que todo
mundo e me apertou tanto que a Via praticamente teve que me libertar dela, o que fez as duas
rirem.
Todos começaram a sacar suas câmeras e me fotografar, então o papai juntou a Summer, o
Jack e eu para que tirássemos uma foto em grupo. Pusemos os braços nos ombros uns dos
outros e, pela primeira vez desde que consigo lembrar, eu não estava pensando no meu rosto.
Apenas sorria — um sorriso largo e feliz — para as diferentes câmeras viradas para mim.
Flash, flash, click, click: sorrindo quando os pais do Jack e a mãe da Summer começaram a
fotografar. Então o Reid e a Maya se aproximaram. Flash, flash, click, click. Aí a Charlotte
veio e perguntou se podia tirar uma foto conosco, e dissemos: “Claro, com certeza!” E então
os pais dela começaram a clicar nosso pequeno grupo, com os pais de todo mundo.
Em seguida me dei conta de que os dois Max tinha se juntado a nós, e também o Miles e a
Savanna. Depois vieram o Amos e a Ximena. E todos estávamos reunidos em um abraço
grande e apertado enquanto os pais fotografavam, como se estivéssemos em um tapete
vermelho. Luca. Isaiah. Nino. Pablo. Tristan. Ellie. Perdi a conta de quem mais se juntou ao
grupo. Quase todo mundo. Tudo o que eu sabia, com certeza, era que todos ríamos e nos
espremíamos uns nos outros, e parecia que ninguém se importava se meu rosto estava perto
demais. Na verdade, sem querer me gabar, meio que parecia que todos queriam ficar perto de
mim.


A caminho de casa



Depois da recepção, iríamos para a minha casa, para comer bolo e sorvete. O Jack, com os
pais e o irmão mais novo, Jamie. A Summer e a mãe. O tio Po e a tia Kate. O tio Ben, o vovô e
a vovó. O Justin, a Via e a Miranda. A mamãe e o papai.
Era um daqueles dias maravilhosos de junho em que o céu está completamente azul e o sol
está brilhando, mas não tão quente a ponto de você querer estar na praia. O dia perfeito.
Todos estavam felizes. Eu ainda me sentia flutuando, com a música de Star Wars na cabeça.
Eu caminhava com a Summer e o Jack e não conseguíamos parar de rir. Tudo nos fazia cair
na gargalhada. Estávamos com aquele humor em que basta alguém nos olhar para começarmos
a rir.
Ouvi a voz do papai à frente e olhei em sua direção. Ele estava contando a todos uma
história engraçada enquanto descíamos a Amesfort Avenue. Todos os adultos também estavam
rindo. É como a mamãe sempre dizia: meu pai poderia ser um comediante.
Percebi que a mamãe não estava com os adultos, então olhei para trás. Ela se mantinha um
pouco afastada, sorrindo consigo mesma como se pensasse em algo bacana. Parecia feliz.
Voltei alguns passos e a surpreendi abraçando-a enquanto ela andava. Ela pôs os braços à
minha volta e apertou de leve.
— Obrigado por me fazer ir para a escola — falei baixinho.
Ela me abraçou mais apertado, se inclinou e deu um beijo no alto da minha cabeça.
— Eu é que agradeço, Auggie — respondeu ela.
— Pelo quê?
— Por tudo o que nos deu. Por entrar nas nossas vidas. Por ser você.
Inclinou-se de novo e sussurrou em meu ouvido:
— Você é mesmo extraordinário, Auggie. Você é extraordinário.


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