Parte quatro

O VIGIADOR
APRESENTANDO:
o acordeonista
um cumpridor de promessas
uma boa menina
um lutador judeu
a ira de rosa
uma preleção
um dorminhoco
a troca de pesadelos
e algumas páginas do porão

O ACORDEONISTA
(A vida secreta de Hans Hubermann)

Havia um rapaz parado na cozinha. A chave em sua mão parecia enferrujar-se em sua palma. Ele não disse nada parecido com olá, nem por favor, me ajude, nem qualquer outra dessas frases esperáveis. Fez duas perguntas.

• PERGUNTA UM •
Hans Hubermann?

• PERGUNTA DOIS •
O senhor ainda toca acordeão?

Enquanto o rapaz olhava, constrangido, para a forma humana à sua frente, sua voz foi raspada e entregue na escuridão, como se fosse tudo que restava dele.
O pai, atento e consternado, aproximou-se mais.
Dirigindo-se à cozinha, murmurou:
— É claro que sim.
Tudo remontava a muitos anos antes, à Primeira Guerra Mundial.

São estranhas essas guerras.
Cheias de sangue e violência — mas também cheias de histórias igualmente difíceis de esquadrinhar. "É verdade", murmuram as pessoas. "Não me importa se você não acreditar. Foi aquela raposa que me salvou a vida", ou, então, "Eles dois morreram, um de cada lado de mim, e fiquei lá de pé, o único que não levou um tiro entre os olhos. Por que eu? Por que eu e não eles?".
A história de Hans Hubermann era desse tipo. Quando a achei, nas palavras da menina que roubava livros, percebi que ele e eu já nos tínhamos cruzado, aqui e ali, durante aquele período, embora nenhum de nós houvesse marcado um encontro. Pessoalmente, eu tinha muito trabalho a fazer. Quanto a Hans, acho que ele fazia todo o possível para me evitar.

A primeira vez que estivemos nas imediações um do outro, Hans tinha vinte e dois anos e combatia na França. A maioria dos rapazes de seu pelotão estava ansiosa por lutar. Hans não tinha tanta certeza. Eu tinha levado alguns deles pelo caminho, mas pode-se dizer que nunca chegara nem perto de encostar em Hans Hubermann. Ou ele tinha muita sorte, ou merecia viver, ou havia uma boa razão para que vivesse.
No exército, ele não se destacava num extremo nem no outro. Corria medianamente, escalava medianamente e era capaz de atirar com pontaria suficiente para não afrontar seus superiores. E não se destacava o bastante para ser um dos primeiros escolhidos a correr direto para mim.

• UMA OBSERVAÇÃO PEQUENA •
PORÉM DIGNA DE NOTA
Ao longo dos anos,
vi inúmeros rapazes que pensam
estar correndo para outros rapazes.
Não estão.
Eles correm para mim.

Fazia quase seis meses que ele estava na guerra quando foi parar na França, onde, à primeira vista, um estranho acontecimento salvou sua vida. Outra perspectiva sugeriria que, no contra-senso da guerra, aquilo fez perfeito sentido.

Grosso modo, seu período na Grande Guerra o deixara atônito, desde o momento em que entrara no exército. Parecia um seriado. Dia após dia após dia. Após dia.
A conversa dos projéteis.
Homens descansando.
As melhores piadas obscenas do mundo.
Suor frio — o amiguinho maligno — ultrapassando os limites da hospitalidade, nas axilas e nas calças.

O que ele mais gostava era dos jogos de baralho, seguidos pelas poucas partidas de xadrez, embora fosse absolutamente ridículo em todos. E da música. Sempre a música.
Foi um homem um ano mais velho que ele — um judeu alemão chamado Erik Vandenburg — quem lhe ensinou a tocar acordeão. Aos poucos, os dois tornaram-se amigos, graças ao fato de que nenhum deles estava terrivelmente interessado em combater. Preferiam enrolar cigarros a se enrolar na neve e na lama. Preferiam lançar dados a lançar projéteis. Uma sólida amizade alicerçou-se no jogo, no fumo e na música, para não falar no desejo comum de sobrevivência. O único problema foi que, mais tarde, Erik Vandenburg seria encontrado em vários pedaços numa colina cheia de relva. Tinha os olhos abertos e sua aliança de casamento fora roubada. Recolhi sua alma junto com as outras e fomos embora. O horizonte estava cor de leite. Frio e fresco. Derramado entre os corpos.
Tudo que restou de Erik Vandenburg, na verdade, foram alguns objetos pessoais e o acordeão muito manuseado. Tudo, menos o instrumento, foi mandado para sua casa. O acordeão foi considerado grande demais. Quase com autocensura, ficou parado na cama improvisada do dono, no acampamento da base, e foi dado ao amigo dele, Hans Hubermann, que aliás foi o único a sobreviver.

• ELE SOBREVIVEU ASSIM •
Não entrou em combate nesse dia.

E tinha que agradecer a Erik Vandenburg por isso. Ou, para ser mais exata, a Erik Vandenburg e à escova de dentes do sargento.
Naquela manhã em particular, não muito antes de eles saírem, o sargento Stephan Schneider entrou no dormitório e pôs todos em posição de sentido. Era benquisto entre os soldados, por seu senso de humor e pelas peças que pregava, mas principalmente pelo fato de nunca ir atrás de ninguém para a linha de fogo. Sempre ia na frente.
Em certos dias, ele tendia a entrar no cômodo em que os homens descansavam e dizer alguma coisa do tipo "Quem é de Pasing?", ou "Quem é bom em matemática?", ou então, no caso fatídico de Hans Hubermann, "Quem tem a vletra bonita?".
Ninguém jamais se oferecia como voluntário, não depois da primeira vez em que o sargento fez isso. Nesse dia, um jovem soldado ansioso, de nome Philipp Schlink, levantou-se orgulhosamente e disse:
— Sim, senhor, eu sou de Pasing.
Recebeu na mesma hora uma escova de dentes e a ordem de limpar as latrinas.

Quando o sargento perguntou quem tinha a melhor caligrafia, você com certeza há de entender porque ninguém fez questão de se apresentar. Cada um achou que poderia ser o primeiro a receber uma inspeção higiênica completa, ou a lustrar as botas sujas de coco de um tenente excêntrico, antes de sair.
— Ora, vamos — Schneider brincou. Achatado de óleo, seu cabelo brilhava, embora uma pequena mecha ficasse sempre em pé e vigilante no cocuruto. — Pelo menos um de vocês, seus cretinos inúteis, deve saber escrever direito.
À distância, ouvia-se o tiroteio.
Aquilo desencadeou uma reação.
— Olhem — disse Schneider — desta vez não é como nas outras. Levará a manhã inteira, talvez mais — e não pôde resistir a um sorriso. — O Schlink ficou polindo aquela latrina enquanto o resto de vocês jogava cartas, mas, desta vez, vocês estarão lá fora.
A vida ou o orgulho.
Ele claramente esperava que um de seus homens tivesse a inteligência de escolher a vida.
Erik Vandenburg e Hans Hubermann se entreolharam. Se alguém desse um passo à frente naquele momento, o pelotão lhe transformaria a vida num inferno pelo resto do tempo que passassem juntos. Ninguém gosta de covardes. Por outro lado, se alguém fosse indicado...

Nada ainda de voluntários, mas uma voz saiu agachada e se encaminhou a furta-passo para o sargento. Sentou-se a seus pés, à espera de um bom chute. A voz disse:
— Hubermann, senhor.
A voz pertencia a Erik Vandenburg. Obviamente, ele achou que esse dia não era o momento apropriado para seu amigo morrer.
O sargento andou de um lado para outro pelo corredor entre os soldados,
— Quem disse isso?
Era soberbo para andar, esse Stephan Schneider — um homem miúdo, que falava, se deslocava e agia às pressas. Enquanto ele percorria as duas fileiras, para lá e para cá, Hans observou, à espera da notícia. Talvez uma das enfermeiras estivesse doente e eles precisassem de alguém para cortar e substituir ataduras nos membros infeccionados dos soldados feridos. Talvez fosse preciso lamber e selar mil envelopes, e mandá-los para casa com notícias de falecimento.
Nesse momento, a voz se manifestou de novo, levando algumas outras a se fazerem ouvir.
— Hubermann — disseram em eco. Erik chegou até a dizer: — Uma caligrafia impecável, senhor, impecável.
— Então, está resolvido — disse o sargento. Houve um sorriso circular na boca pequena. — Hubermann, é você.
O soldado jovem e desengonçado deu um passo à frente e perguntou qual seria sua tarefa.
O sargento suspirou.
— O capitão precisa que umas doze cartas sejam escritas por ele. Está com um reumatismo terrível nos dedos. Ou artrite. Você as escreverá para ele.
Não era hora de discutir, principalmente quando Schlink tivera ordens de limpar as privadas e o outro, Pflegger, quase se matara de tanto lamber envelopes. Sua língua ficara azul-infecção.
— Sim, senhor — assentiu Hans, e acabou-se a história. Sua capacidade de redação era dúbia, para dizer o mínimo, mas ele se considerou afortunado. Escreveu as cartas o melhor que pôde, enquanto o resto dos homens entrava em combate.
Nenhum deles voltou.

Essa foi a primeira vez que Hans escapou de mim. Na Grande Guerra.
Uma segunda fuga ainda estava por vir, em 1943, em Essen.
Duas guerras para duas fugas.
Uma vez jovem, outra na meia-idade.
Não são muitos os homens que têm a sorte de me tapear duas vezes.

Ele carregou consigo o acordeão durante toda a guerra.
Quando localizou a família de Erik Vandenburg em Stuttgart, ao regressar, a viúva lhe informou que ele podia ficar com o instrumento. Seu apartamento estava cheio deles, e a mulher ficava perturbada demais ao olhar especificamente para aquele. Os outros já eram um lembrete suficiente, assim como sua profissão, antes compartilhada com o marido, de ensiná-lo.
— Ele me ensinou a tocar — informou-lhe Hans, como se isso ajudasse.
Talvez tenha ajudado, porque a mulher arrasada perguntou se ele tocaria para ela, e chorou em silêncio enquanto Hans apertava os botões e as teclas de uma desajeitada "Valsa do Danúbio Azul". Era a favorita de seu marido.
— Sabe — explicou-lhe Hans —, ele salvou minha vida.
A luz do cômodo era fraca e o ar, restrito.
— Ele... se algum dia houver alguma coisa de que a senhora precise... — e fez deslizar pela mesa um pedaço de papel com seu nome e endereço. — Sou pintor profissional. Pinto o seu apartamento de graça, quando a senhora quiser.
Sabia que era uma compensação inútil, mas ofereceu, assim mesmo.
A mulher pegou o papel e, não muito depois, um garotinho entrou e se sentou em seu colo.
— Este é o Max — fez ela, mas o menino era pequeno e tímido demais para dizer alguma coisa. Era magrelo, de cabelo macio, e seus olhos densos e escuros observaram enquanto o estranho tocava mais uma canção na sala pesada. De um rosto para outro, ficou olhando enquanto o homem tocava e a mulher chorava. As diferentes notas mexiam com os olhos dela. Muita tristeza.
Hans se foi.
— Você nunca me contou — censurou ele, dirigindo-se a um Erik Vandenburg morto e à silhueta dos prédios de Stuttgart. — Nunca me disse que tinha um filho.
Depois de uma parada momentânea, com a cabeça abalada, Hans regressou a Munique, esperando nunca mais ouvir falar daquelas pessoas. O que não sabia é que sua ajuda seria definitivamente necessária, mas não pela pintura, e não por mais uns vinte anos.
Passaram-se algumas semanas antes de ele começar a pintar. Nos meses de bom tempo, trabalhava com vigor e, mesmo no inverno, muitas vezes dizia a Rosa que talvez não chovesse trabalho, mas pelo menos haveria uma garoa de vez em quando.
Durante mais de uma década, tudo funcionou.
Nasceram Hans Júnior e Trudy. Que cresceram fazendo visitas ao pai no trabalho, jogando tinta nas paredes e limpando pincéis.
Quando Hitler chegou ao poder, no entanto, em 1933, o trabalho de pintura deu ligeiramente errado. Hans não se filiou ao NSDAP, como fez a maioria das pessoas. Pensou muito nessa decisão.

• O PROCESSO DE RACIOCÍNIO •
DE HANS HUBERMANN
Ele não era muito instruído nem politizado,
porém, que mais não fosse, era um homem
que apreciava a justiça. Um judeu salvara sua
vida, uma vez, e ele não podia esquecer isso.
Não podia filiar-se a um partido que antagonizava
as pessoas daquele jeito. Além disso, tal como
Alex Steiner, alguns de seus fregueses mais fiéis
eram judeus. Como muitos judeus acreditavam,
Hans achava que o ódio não podia durar, e a
decisão de não seguir Hitler foi consciente.
Em muitos níveis, foi desastrosa.

Uma vez iniciada a perseguição, seu trabalho esgotou-se aos poucos. No começo não foi muito ruim, mas ele logo começou a perder clientela. Punhados de pedidos de orçamento pareceram desaparecer no crescente ar nazista.
Hans abordou um antigo cliente fiel, chamado Herbert Bollinger — um homem de cintura hemisférica que falava Hochdeutsch (era de Hamburgo) —, ao vê-lo na Rua Munique. A princípio, o homem olhou para baixo, para o chão, passando pela barriga, mas, quando seus olhos voltaram ao pintor, a pergunta claramente o constrangeu. Não havia razão para Hans perguntar, mas ele perguntou.
— Que está havendo, Herbert? Tenho perdido fregueses mais depressa do que consigo contar.
Bollinger não tornou a se encolher. Empertigando-se, expôs o fato como uma pergunta de sua própria lavra.
— Bem, Hans, você é membro?
— De quê?
Mas Hans Hubermann sabia exatamente de que o homem estava falando.
— Ora, vamos, Hansi — insistiu Bollinger. — Não me faça soletrar.
O pintor alto acenou-lhe um adeus e seguiu em frente.
Com o correr dos anos, os judeus passaram a ser aleatoriamente aterrorizados em todo o país e, na primavera de 1937, quase envergonhado, Hans Hubermann finalmente se submeteu. Fez umas indagações e pediu para se filiar ao Partido.
Depois de entregar seu formulário na sede do Partido Nazista, na Rua Munique, viu quatro homens atirarem vários tijolos numa loja de roupas chamada Kleinmann. Era uma das poucas lojas judaicas ainda em funcionamento em Molching. Lá dentro, um homem miúdo gaguejava de um lado para outro, esmagando vidro quebrado com os pés enquanto fazia a limpeza. Havia uma estrela cor de mostarda borrada na porta. Com letra desleixada, as palavras IMUNDÍCIE JUDAICA escorriam pelas bordas. O movimento no interior da loja minguou de apressado para melancólico, depois cessou por completo.
Hans aproximou-se e enfiou a cabeça do lado de dentro.
— Precisa de ajuda?
O Sr. Kleinmann ergueu os olhos. Uma vassoura prendia-se, impotente, a sua mão.
— Não, Hans. Por favor. Vá embora.
Hans tinha pintado a casa de Joel Kleinmann no ano anterior. Lembrava-se de seus três filhos. Via seus rostos, embora não conseguisse lembrar de seus nomes.
— Eu venho amanhã — insistiu — para repintar a sua porta.
Dito e feito.
Foi o segundo de dois erros.

O primeiro ocorreu imediatamente após o incidente.
Ele retornou ao local de onde viera e deu um murro na porta e, em seguida, na Janela do NSDAP. A vidraça chacoalhou, mas ninguém respondeu. Todos tinham encerrado o expediente e ido para casa. Um último membro andava na direção oposta. Quando ouviu o chacoalhar do vidro, notou o pintor.
Voltou e perguntou qual era o problema.
— Não posso mais me filiar — declarou Hans.
O homem ficou chocado.
— Por que não?
Hans olhou para os nós dos dedos da mão direita e engoliu em seco. Já sentia o gosto do erro, como um comprimido de metal na boca.
— Deixe para lá.
Deu meia-volta e foi para casa.
As palavras o seguiram.
— Pense nisso, Herr Hubermann. E nos informe a sua decisão.
Ele fingiu não ter ouvido.

Na manhã seguinte, conforme o prometido, levantou-se mais cedo que de hábito. Mas não cedo o bastante. A porta da Roupas Kleinmann ainda estava úmida de orvalho. Hans secou-a. Conseguiu igualar a cor, tanto quanto era humanamente possível, e lhe aplicou uma sólida demão.
Inocuamente, um homem passou.
— Heil Hitler — disse.
— Heil Hitler — respondeu Hans.

• TRÊS FATOS PEQUENOS •
MAS IMPORTANTES
1. O homem que passou era Rolf Fischer,
um dos maiores nazistas de Molching.
2. Uma nova afronta foi pintada na porta,
em menos de dezesseis horas.
3. Não se concedeu a Hans Hubermann a
filiação no Partido Nazista.
Pelo menos, ainda não.

Durante o ano seguinte, Hans teve sorte de não haver cancelado oficialmente seu pedido de filiação. Enquanto muitas pessoas eram instantaneamente aprovadas, ele foi acrescentado a uma lista de espera, visto com desconfiança. No fim de 1938, quando os judeus foram completamente expulsos, depois da Noite dos Cristais, a Gestapo fez-lhe uma visita. Revistou a casa e, quando não se encontrou nada nem ninguém suspeito, Hans Hubermann foi um dos afortunados.
Permitiram-lhe que ficasse.
Provavelmente, o que o salvou foi que as pessoas sabiam que, pelo menos, ele estava à espera da aprovação de seu pedido. Por isso foi tolerado, embora não endossado como o pintor competente que era.
Depois, havia seu outro salvador.
Foi o acordeão, muito provavelmente, que o salvou do ostracismo total. Pintores havia, provenientes de todas as partes de Munique, mas, depois dos breves ensinamentos de Erik Vandenburg e de quase duas décadas de sua própria prática sistemática, não havia em Molching ninguém capaz de tocar exatamente como Hans. Não era um estilo de perfeição, mas de calor humano. Até nos erros havia uma sensação agradável.
Ele dizia "heil Hitler" quando lhe pediam e tremulava a bandeira nos dias certos. Não havia nenhum problema visível.
Depois, no dia 16 de junho de 1939 (a data parecia cimento, àquela altura), decorridos pouco mais de seis meses desde a chegada de Liesel à Rua Himmel, houve um acontecimento que alterou irreversivelmente a vida de Hans Hubermann.
Foi num dia em que ele teve trabalho.
Saiu de casa às sete da manhã, em ponto.
Foi puxando sua carroça de tintas, sem se dar conta de estar sendo seguido.
Quando chegou ao local da obra, um jovem estranho aproximou-se. Era louro, alto e sério.
O par se entreolhou.
— O senhor seria Hans Hubermann?
Hans deu-lhe um simples aceno de cabeça. Procurava uma broxa.
— Sim, seria.
— O senhor por acaso toca acordeão?
Dessa vez, Hans parou, deixando o pincel onde estava. Tornou a fazer um aceno.
O estranho esfregou o queixo, olhou em volta e disse, com grande calma, porém com toda a clareza:
— O senhor é um homem que goste de cumprir promessas?
Hans pegou duas latas de tinta e o convidou a sentar numa delas. Antes de aceitar o convite, o rapaz lhe estendeu a mão e se apresentou.
— Meu nome é Kugler. Walter. Venho de Stuttgart.
Sentaram-se e passaram uns quinze minutos conversando baixinho, combinando um encontro para mais tarde, à noite.

UMA BOA MENINA

Em novembro de 1940, quando Max Vandenburg chegou à cozinha da Rua Himmel, número 33, tinha vinte e quatro anos. Sua roupa parecia vergá-lo com o peso e seu cansaço era tamanho, que uma coceira poderia parti-lo ao meio. Ele parou no vão da porta, trêmulo e abalado.
— O senhor ainda toca acordeão?
É claro que a pergunta, na verdade, era: — O senhor ainda está disposto a me ajudar?

O pai de Liesel andou até a porta da frente e a abriu. Com cautela, olhou para fora, de um lado e do outro, e voltou. O veredicto foi "nada".
Max Vandenburg, o judeu, fechou os olhos e se curvou um pouco mais para a segurança. A própria ideia era ridícula, mas ele a aceitou assim mesmo.
Hans certificou-se de que as cortinas estavam bem fechadas. Não poderia aparecer nem uma fresta. Enquanto ele o fazia, Max não aguentou mais. Agachou-se e cruzou as mãos.
A escuridão o atingiu.
Seus dedos cheiravam a mala, metal, Mein Kampf e sobrevivência.
Só quando ergueu a cabeça foi que a luz tênue do corredor chegou a seus olhos. Notou a menina de pijama, parada ali, em plena vista.
— Papai?
Max levantou-se, como um fósforo riscado. A escuridão inflou-se a seu redor.
— Está tudo bem, Liesel — disse o pai. — Volte para a cama.
Ela se demorou um momento, antes de ser arrastadas pelos pés.
Quando parou e furtou uma última olhadela para o estranho na cozinha, decifrou o contorno de um livro sobre a mesa.
— Não tenha medo — ouviu o pai cochichar. — Ela é uma boa menina.
Durante a hora seguinte, a boa menina ficou acordada na cama, escutando o gaguejar baixinho de frases na cozinha.
Ainda faltava jogar um curinga.

BREVE HISTÓRIA DO LUTADOR JUDEU

Max Vandenburg nasceu em 1916.
Cresceu em Stuttgart.
Quando era garoto, passou a gostar, mais do que tudo, de uma boa troca de socos.

Teve sua primeira briga quando era um menino de onze anos, e magro como um cabo de vassoura.
Wenzel Gruber.
Foi com esse que ele brigou.
Tinha a boca suja, o tal garoto Gruber, e o cabelo encaracolado feito arame. O parquinho local exigiu que eles brigassem, e nenhum dos dois estava disposto a discutir.
Lutaram feito campeões.
Por um minuto.
Justo quando ia ficando interessante, ambos foram afastados pelo colarinho. Um pai vigilante.
Um filete de sangue pingava da boca de Max.
Ele o provou, e o gosto era bom.
• • •

Não muita gente vinda do seu bairro era de briga e, quando era, não o fazia com os punhos. Naqueles tempos, diziam que os judeus preferiam simplesmente ficar parados e aguentar as coisas. Suportar calados as ofensas e, em seguida, trabalhar até voltar ao topo. Obviamente, nem todo judeu é igual.

Ele tinha quase dois anos quando seu pai morreu, despedaçado pelos tiros numa colina relvada.
Quando chegou aos nove, sua mãe estava completamente falida. Ela vendeu o estúdio musical que também lhes servia de apartamento, e os dois se mudaram para a casa do tio. Lá ele cresceu com seis primos, que o surravam, chateavam e amavam. As brigas com o mais velho, Isaac, foram o campo de treinamento para suas lutas de socos. Max levava uma esfrega quase todas as noites.

Aos treze anos, a tragédia voltou a se abater, com a morte de seu tio.
Como sugeririam as percentagens, o tio não era esquentado como Max. Era o tipo de pessoa que trabalhava em silêncio, por uma recompensa muito pequena. Vivia no seu canto e sacrificava tudo pela família — e morreu de uma coisa que lhe cresceu na barriga. Uma coisa parecida com uma bola de boliche envenenada.
Como muitas vezes acontece, a família postou-se ao redor da cama e assistiu à sua capitulação.
De alguma forma, entre a tristeza e o luto, Max Vandenburg, já então um adolescente de mãos duras, olhos escuros e dor de dente, também ficou meio decepcionado. Até desgostoso. Ao ver o tio afundar lentamente na cama, decidiu que nunca se permitiria morrer daquele jeito.
O rosto do homem era resignado demais.
Muito amarelo e tranquilo, apesar da arquitetura violenta de seu crânio — do queixo interminável, que se estendia por milhas, das maçãs do rosto protuberantes e dos olhos encovados. Tão sereno, que deu no menino a vontade de perguntar uma coisa.

Cadê a briga?, matutou.
Cadê a vontade de persistir?
É claro que, aos treze anos, ele era meio exagerado em seu rigor. Não tinha ficado cara a cara com uma coisa como eu. Ainda não.
Junto com os outros, ficou em volta da cama e viu o homem morrer — uma fusão sem riscos entre a vida e a morte. A luz na janela era cinza e laranja, da cor da pele do verão, e seu tio pareceu aliviado quando sua respiração desapareceu por completo.
— Quando a morte me pegar — jurou o menino —, vai sentir meu punho na cara.
Pessoalmente, gosto disso. Desse heroísmo idiota.
É.
Gosto muito disso.

Daquele momento em diante, ele começou a lutar com mais regularidade. Um grupo de amigos e inimigos fanáticos juntava-se num terreninho baldio da Rua Steber e lutava ao cair da noite. Alemães arquetípicos, o judeu inusitado, os garotos da zona leste. Não tinha importância. Não havia nada como uma boa briga para soltar a energia adolescente. Até os inimigos ficavam a um centímetro da amizade.

Ele gostava dos círculos compactos e do desconhecido.
Da agridoçura da incerteza.
De ganhar ou perder.
Era uma sensação na barriga, que se agitava até ele achar que não podia mais tolerá-la. O único remédio era dar um passo à frente e soltar murros. Max não era o tipo de menino dado a morrer pensando no assunto.
• • •

Sua briga favorita, agora que pensava nisso, fora a Luta Número Cinco, contra um garoto alto, durão e esguio, chamado Walter Kugler. Os dois tinham quinze anos. Walter vencera todos os quatro embates anteriores, mas, dessa vez, Max sentia uma coisa diferente. Havia nele um sangue novo — o sangue da vitória — que tinha a capacidade de assustar e empolgar.
Como sempre, havia um círculo compacto ao redor deles. Havia o terreno sujo. Havia sorrisos, praticamente amarrados nos rostos dos espectadores. O dinheiro era segurado em dedos imundos, e os gritos e exclamações eram cheios de tamanha vitalidade, que não havia nada melhor do que aquilo.
Nossa, era tanta alegria e medo ali, tanta comoção brilhante!
Os dois contendores agarraram-se com a intensidade do momento, os rostos carregados de expressão, exagerada pela tensão da coisa. Aquela concentração de olhos arregalados.
Depois de mais ou menos um minuto testando um ao outro, começaram a se aproximar e a se arriscar mais. Afinal, era uma briga de rua, não uma luta de uma hora pelo título. Eles não tinham o dia inteiro.
— Anda, Max! — gritou um de seus amigos. Não houve respiração entre as palavras. — Anda, Máxi Táxi, agora você pegou ele, você pegou ele, judeuzinho, você pegou ele, pegou ele!
Miúdo, com mechas macias de cabelo, nariz quebrado e olhos alagadiços, Max era uma boa cabeça menor do que o adversário. Seu estilo de combate era sumamente desgracioso, todo recurvado, avançando aos bocadinhos, desferindo socos rápidos no rosto de Kugler. O outro menino, claramente mais forte e mais habilidoso, mantinha-se erecto, lançando jabes que desciam constantemente sobre as faces e o queixo de Max.
Max continuou a avançar.
Mesmo com a absorção pesada dos murros e do castigo, continuou a avançar. O sangue descoloria seus lábios. Não tardaria a secar em seus dentes.
Houve um grande rugido quando ele foi derrubado. O dinheiro quase trocou de mãos.
Max levantou-se.
Foi derrubado mais uma vez antes de mudar de tática, atraindo Walter Kugler para um pouco mais perto do que ele queria chegar. Quando Walter ficou nessa posição, Max pôde desferir um jabe curto e contundente em seu rosto. Pegou. Exatamente no nariz.
Subitamente cego, Kugler recuou e Max aproveitou a chance. Seguiu-o pela direita, deu-lhe outro jabe e abriu sua guarda com um soco que o atingiu nas costelas. A direita que acabou com ele aterrissou em seu queixo. Walter Kugler ficou no chão, com o cabelo louro salpicado de terra. As pernas afastaram-se num V. Lágrimas parecidas com cristal escorriam por sua pele, apesar de ele não estar chorando. As lágrimas tinham-lhe sido arrancadas a socos.

O círculo fez a contagem.
Sempre contava, pelo sim, pelo não. Vozes e números.
O costume, depois de uma luta, era o perdedor levantar a mão do vencedor. Quando Kugler finalmente se pôs de pé, dirigiu-se emburrado a Max Vandenburg e ergueu seu braço no ar.
— Obrigado — disse Max.
Kugler deu um aviso:
— Da próxima vez, eu mato você.

Ao todo, nos anos seguintes, Max Vandenburg e Walter Kugler lutaram treze vezes. Walter estava sempre procurando vingar-se daquela primeira vitória que Max lhe arrancara, e Max procurava reproduzir seu momento de glória. No fim, o escore ficou em 10 X 3 para Walter.
Os dois se enfrentaram até 1933, quando chegaram aos dezessete anos. O respeito relutante transformou-se numa amizade sincera, e a ânsia de lutar os abandonou. Os dois se empregaram na Fábrica de Máquinas Jedermann até Max ser despedido, junto com o resto dos judeus, em 1935. Isso foi pouco depois de entrarem em vigor as Leis de Nuremberg, que proibiram os judeus de ter a cidadania alemã e proibiram o casamento entre alemães e judeus.
— Nossa! — exclamou Walter, uma noite, quando os dois se encontraram no terreninho de esquina em que costumavam lutar. — Bons tempos aqueles, não é? Não havia nada disso — e deu um tapinha com o dorso da mão na estrela da manga de Max. — Nunca poderíamos lutar daquele jeito agora.
Max discordou:
— Poderíamos, sim. Não se pode casar com um judeu, mas não há nenhuma lei contra lutar com um.
Walter sorriu.
— Provavelmente, há uma lei que recompensa isso... desde que você vença.

Nos anos seguintes, os dois se viram esporadicamente, se tanto. Max, com o resto dos judeus, foi sistematicamente rejeitado e repetidamente humilhado, enquanto Walter desapareceu em seu emprego. Uma gráfica.
Se você é do tipo que se interessa, sim, houve algumas garotas naqueles anos. Uma chamada Tânia, outra, Hildi. Nenhuma das duas durou. Não havia tempo, muito provavelmente por causa da insegurança e da pressão crescente. Max tinha que batalhar por trabalho. Que poderia oferecer àquelas moças? Em 1938, era difícil imaginar que a vida pudesse tornar-se mais difícil.
E então veio o dia 9 de novembro. Kristallnacht. A noite das vidraças quebradas.
Foi justamente esse incidente que destruiu inúmeros de seus conterrâneos judeus, mas se revelou o momento de fuga de Max Vandenburg. Ele tinha vinte e dois anos.

Muitos estabelecimentos judaicos estavam sendo cirurgicamente destroçados e saqueados, quando houve um bater de nós dos dedos na porta do apartamento. Com a tia, a mãe, os primos e os filhos destes, Max estava amontoado na sala de visitas.
— Aufmachen!
A família se entreolhou. Houve uma grande tentação de se dispersarem pelos outros cômodos, mas a apreensão é o que existe de mais esquisito. Ninguém conseguiu se mexer.
De novo:
— Abram!
Isaac levantou-se e foi até a porta. A madeira estava viva, ainda ressoando com as pancadas que acabara de receber. Ele se virou, olhou para os rostos carregados de medo, girou a chave e abriu a porta.
Como se esperava, era um nazista. De uniforme.

— Nunca.
Foi a primeira resposta de Max.
Agarrou-se à mão da mãe e à de Sarah, a mais próxima das primas.
— Não vou embora. Se não pudermos ir todos, também não irei.
Estava mentindo.
Ao ser empurrado pelo resto da família, o alívio debatia-se dentro dele como uma obscenidade. Era algo que ele não queria sentir, mas, ainda assim, sentia-o com tanta intensidade que tinha vontade de vomitar. Como poderia? Como poderia?
Mas pôde.
— Não traga nada — disse-lhe Walter. — só a roupa do corpo. Eu lhe dou o resto.
— Max — era a mãe chamando.
De uma gaveta, ela tirou um antigo pedaço de papel e o enfiou no bolso do paletó do filho.
— Se um dia... — e o segurou pela última vez, pelos cotovelos. — Essa pode ser a sua última esperança.
Max olhou para o rosto envelhecido da mãe e a beijou, com muita força, nos lábios.
— Vamos — puxou-o Walter, enquanto o resto da família se despedia e lhe dava dinheiro e alguns bens de valor. — Está um caos lá fora, e é de caos que nós precisamos.
Saíram sem olhar para trás.
Aquilo o torturou.
Se ao menos tivesse olhado para trás, para ver sua família pela última vez, ao sair do apartamento. Talvez, então, a culpa não fosse tão pesada. Nem um último adeus.
Nenhum reter final dos olhos.
Nada senão a partida.

Nos dois anos seguintes, Max permaneceu escondido, num depósito vazio. Ficava num prédio em que Walter havia trabalhado em anos anteriores. A comida era pouquíssima. Havia muita desconfiança. Os judeus endinheirados que restavam no bairro estavam emigrando. Os judeus sem dinheiro também tentavam fazê-lo, mas sem grande sucesso. A família de Max incluía-se nesta última categoria. Walter ia vê-los ocasionalmente, da maneira mais inconspícua possível. Uma tarde, quando foi visitá-los, outra pessoa abriu a porta.
Quando Max ouviu a notícia, foi como se seu corpo se enroscasse numa bola, feito uma página cheia de erros. Feito lixo.
No entanto, dia após dia, ele conseguia se desamassar e se esticar, enojado e agradecido. Arrasado, mas, de algum modo, não desfeito em pedaços.

Em meados de 1939, pouco mais de seis meses depois de iniciado seu período de escondimento, os dois resolveram que era preciso adotar outro curso de ação. Examinaram o pedaço de papel que Max havia recebido ao desertar. Isso mesmo — desertar, não apenas fugir. Era assim que ele via a coisa, em meio ao caráter grotesco de seu alívio. Já sabemos o que estava escrito no pedaço de papel:

• UM NOME, UM ENDEREÇO •
Hans hubermann
Rua Himmel,33, Molching

— A coisa está piorando — disse Walter a Max. — Agora, eles podem nos descobrir a qualquer momento — completou. Havia muitos gestos encurvados na escuridão. — Não sabemos o que pode acontecer. Posso ser apanhado. Talvez você precise encontrar aquele lugar... Tenho medo demais para pedir ajuda a alguém daqui. Pode ser que me prendam — fez Walter. Só havia uma solução. — Vou até lá procurar esse homem. Se ele tiver virado nazista, o que é muito provável, dou meia-volta e pronto. Pelo menos ficaremos sabendo, richtig?

Max deu-lhe até seu último fênigue para a viagem e, dias depois, quando Walter regressou, os dois se abraçaram e ele prendeu o fôlego:
— E então?
Walter fez um aceno de cabeça.
— O cara é bom. Ainda toca aquele acordeão de que a sua mãe lhe falou, o do seu pai. Não é filiado ao partido. Ele me deu dinheiro.
Nessa etapa, Hans Hubermann era apenas um registro.
— Ele é bem pobre, é casado, e há uma criança.
Isso despertou ainda mais a atenção de Max.
— De quantos anos?
— Dez. Não se pode ter tudo.
— Sim. As crianças são boquirrotas.
— Já temos sorte do jeito que está.
Sentaram-se em silêncio por um tempo. Foi Max quem o quebrou.
— Ele já deve me odiar, hein?
— Acho que não. Ele me deu o dinheiro, não foi? Disse que promessa é dívida.
Uma semana depois, chegou uma carta. Hans informou a Walter Kugler que tentaria mandar coisas para ajudar, sempre que possível. Havia um mapa composto de uma página, mostrando Molching e a Grande Munique, além de uma rota direta de Pasing (a estação de trem mais confiável) até sua porta. Na carta, suas últimas palavras foram óbvias.
Tome cuidado.

Em meados de maio de 1940, chegou Mein Kampf, com uma chave presa com fita adesiva à parte interna da capa.
O homem é um gênio, decidiu Max, mas ainda houve um calafrio quando pensou na viagem para Munique. Claramente, junto com as outras partes implicadas, desejava que ela não tivesse que ser feita.
Nem sempre se consegue o que se deseja.
Especialmente na Alemanha nazista.

De novo, o tempo passou.
A guerra expandiu-se.
Max continuou escondido do mundo, em mais um cômodo vazio.
Até o inevitável.
Walter foi informado de que seria enviado à Polônia, para dar continuidade à afirmação da autoridade nazista, tanto sobre os poloneses quanto sobre os judeus. Um não era muito melhor do que outro. Era chegado o momento.
Max seguiu para Munique e Molching, e agora estava sentado na cozinha de um estranho, pedindo a ajuda por que ansiava e sofrendo a condenação que sentia merecer.
Hans Hubermann apertou-lhe a mão e se apresentou.
Fez café para ele no escuro.
Fazia algum tempo que a menina se fora, mas outros passos aproximaram-se da chegada. O curinga.
Na escuridão, os três estavam completamente isolados. Todos olhavam fixo. Só a mulher falou.

A IRA DE ROSA

Liesel tornara a mergulhar no sono quando a voz inconfundível de Rosa Hubermann entrou na cozinha. Acordou-a num susto.
— Was ist los?
Nessa hora, ela foi vencida pela curiosidade, ao imaginar uma descompostura proferida pela ira de Rosa. Houve um movimento claro e um arrastar de cadeiras.
Após dez minutos de excruciante disciplina, Liesel esgueirou-se até o corredor, e o que viu deixou-a francamente admirada, porque Rosa Hubermann estava junto ao ombro de Max Vandenburg, vendo-o engolir sua famigerada sopa de ervilha.
Mamãe tinha um ar grave.
Seu corpo gorducho luzia de preocupação.
Mas, de algum modo, havia também um ar de triunfo em seu rosto, e não era o triunfo por ter salvo outro ser humano da perseguição. Era algo mais nos moldes de "Viu só? Pelo menos, ele não está reclamando". Ela olhava da sopa para o judeu para a sopa.
Quando tornou a falar, perguntou apenas se ele queria mais.
Max declinou, preferindo, em vez disso, correr para a pia e vomitar. Com as costas convulsas e os braços bem afastados. Seus dedos agarravam o metal.
— Jesus, Maria, José — resmungou Rosa. — Mais um.
Virando-se para ela, Max pediu desculpas. Suas palavras eram escorregadias e miúdas, subjugadas pela acidez.
— Sinto muito. Acho que comi demais. Meu estômago, sabe, faz tanto tempo que... Acho que não consigo segurar tanta...
— Saia — ordenou-lhe Rosa. E começou a limpar.
Quando terminou, ela deparou com o rapaz à mesa da cozinha, profundamente taciturno. Hans sentava-se em frente a ele, com as mãos recurvadas sobre a lâmina de madeira.
Do corredor, Liesel viu o rosto contraído do estranho e, atrás dele, a expressão inquieta que se rabiscava confusamente na mãe.
Olhou para seus pais de criação.

Quem era aquela gente?

UMA PRELEÇÃO PARA LIESEL

Exatamente que tipo de gente eram Hans e Rosa Hubermann não era o problema mais simples de resolver. Gente boa? Gente ridiculamente ignorante? Gente de sanidade questionável?
O mais fácil de definir era o apuro em que estavam.

• A SITUAÇÃO DE HANS E •
ROSA HUBERMANN
Aflitiva como o quê.
Na verdade, assustadoramente aflitiva.

Quando um judeu aparece no seu local de residência nas primeiras horas da madrugada, bem na pátria do nazismo, é provável que você experimente níveis extremos de incômodo. Angústia, incredulidade, paranóia. Cada uma desempenha seu papel, e cada uma leva a suspeita furtiva de que uma consequência não propriamente paradisíaca lhe está reservada no futuro. O medo reluz. Implacável, nos olhos.
O surpreendente a assinalar é que, apesar desse medo iridescente, brilhando como brilhava na escuridão, de algum modo eles resistiram à ânsia da histeria.
A mãe mandou Liesel embora.
— Bett, Saumensch.
A voz foi calma, porém firme. Sumamente incomum.
O pai entrou, minutos depois, e tirou as cobertas da cama vazia.
— Alles gut, Liesel? Tudo bem?
— Sim, papai.
— Como você pode ver, temos visita.
Ela mal conseguia discernir a silhueta de Hans Hubermann no escuro.
— Ele dormirá aqui esta noite.
— Sim, papai.
Minutos depois, Max Vandenburg estava no quarto, silencioso e opaco. O homem não respirava. Não se mexia. Mas, de algum modo, deslocou-se da porta para a cama e ficou embaixo das cobertas.
— Tudo bem?
Era o pai outra vez, agora falando com Max.
A resposta saiu flutuando de sua boca e se moldou no teto feito mancha, tamanha era sua sensação de vergonha.
— Sim. Obrigado.
Disse-o de novo, quando papai assumiu sua posição costumeira na poltrona ao lado da cama de Liesel: — Obrigado.
Passou-se mais uma hora antes de Liesel adormecer.
Dormiu pesado, por muito tempo.

A mão a despertou pouco depois das oito e meia da manhã seguinte.
A voz na ponta da mão informou-lhe que ela não iria à escola nesse dia. Ao que parece, estava doente.
Quando despertou por completo, a menina observou o estranho na cama em frente. O cobertor mostrava só um ninho de cabelo meio inclinado no alto, e não havia nenhum som, como se ele se houvesse treinado até mesmo a dormir mais silenciosamente. Com enorme cuidado, Liesel passou ao longo do corpo do homem, acompanhando o pai em direção ao corredor.
Pela primeira vez na vida, a cozinha e a mãe dormiam. Era uma espécie de silêncio inaugural perplexo. Para alívio de Liesel, só durou alguns minutos.

Vieram a comida e o som da mastigação.
A mãe anunciou a prioridade do dia. Sentou-se à mesa e disse:
— Agora escute, Liesel. Hoje o papai vai lhe dizer uma coisa.
Aquilo era sério — ela nem sequer dissera Saumensch. Era uma façanha pessoal de abstinência.
— Ele vai falar com você e você tem que ouvir. Está claro?
A menina continuava a engolir em seco.
— Está claro, Saumensch?
Desse jeito era melhor.
Liesel fez que sim com a cabeça.

Quando entrou novamente no quarto para buscar a roupa, o corpo na cama em frente tinha-se virado e enroscado. Já não era uma tora comprida, mas uma espécie de Z, que se estendia em diagonal de um canto ao outro. Ziguezagueando a cama.
Nessa hora ela pôde ver-lhe o rosto, sob a luz cansada. A boca estava aberta e a pele era cor de casca de ovo. Havia pêlos cobrindo os maxilares e o queixo, e as orelhas eram duras e achatadas. Ele tinha o nariz pequeno, mas meio torto.
— Liesel!
Ela se virou.
— Ande logo!
Andou, em direção ao banheiro.

Depois de trocar a roupa e chegar ao corredor, ela percebeu que não iria longe. O pai estava parado em frente à porta do porão. Deu um sorriso muito leve, acendeu a lâmpada e a conduziu para baixo.
• • •

Em meio às pilhas de mantas para proteger dos respingos e ao cheiro de tinta, o pai lhe disse que se pusesse à vontade. Acenderam-se nas paredes as palavras pintadas, aprendidas no passado.
— Preciso lhe dizer umas coisas.
Liesel sentou-se no topo de uma pilha de mantas de um metro de altura, e o pai, muna lata de tinta de quinze litros. Por alguns minutos, ele procurou as palavras. Quando as encontrou, levantou-se para entregá-las. Esfregou os olhos.
— Liesel — disse, baixinho — nunca tive muita certeza de que isso viesse a acontecer, de modo que nunca lhe contei. Sobre mim. Sobre o homem que está lá em cima.
Andou de uma ponta à outra do porão, com a luz da lâmpada ampliando sua sombra. Ela o transformava num gigante na parede, andando para lá e para cá.
Quando Hans parou de andar, a sombra ficou pairando às suas costas, observando. Havia sempre alguém observando.
— Sabe o meu acordeão? — perguntou o pai, e ali começou a história.

Hans explicou a Primeira Guerra Mundial e Erik Vandenburg, e depois a visita à viúva do soldado caído.
— O menino que entrou na sala naquele dia é o homem que está lá em cima. Verstehst? Entendeu?
A roubadora de livros ficou sentada, ouvindo a história de Hans Hubermann. Durou uma boa hora, até o momento da verdade, que implicou uma preleção muito óbvia e necessária.
— Liesel, você precisa escutar.
O pai a fez ficar de pé e lhe segurou a mão.

Estavam de frente para a parede.
Sombras escuras e o exercício das palavras.
Com firmeza, ele segurou seus dedos.
— Lembra-se do aniversário do Führer, quando voltamos para casa naquela noite, depois da fogueira? Lembra-se do que você me prometeu?
A menina fez que sim. Fitando a parede, disse:
— Que eu guardaria um segredo.
— Isso mesmo.
Entre as sombras de mãos dadas, as palavras pintadas se espalhavam, empoleiradas em seus ombros, apoiadas em suas cabeças e penduradas em seus braços.
— Liesel, se você falar com alguém sobre o homem que está lá em cima, estaremos todos muito encrencados.
Hans percorreu a linha delicada entre apavorá-la a ponto de deixá-la insensível e relaxá-la o bastante para deixá-la calma. Servia-lhe as frases e observava, com seus olhos metálicos. Desespero e placidez.
— No mínimo, mamãe e eu seremos levados embora.
Ele tinha a clara preocupação de estar prestes a assustá-la em demasia, mas calculou o risco, preferindo errar pelo excesso de medo que pelo medo insuficiente. A obediência da menina tinha que ser uma realidade absoluta, imutável.

Já no final, Hans Hubermann olhou para Liesel Meminger e se certificou de que ela estava concentrada.
Deu-lhe uma lista de consequências.
— Se você falar com alguém sobre esse homem...
Com a professora.
Com Rudy.
Não importava com quem.
O importante era que todos seriam passíveis de castigo.

— Para começar, pegarei cada um dos seus livros, todos eles, e porei fogo — disse o pai. Impassível. — Vou jogá-los no fogão ou na lareira — continuou. Certamente agia como um tirano, mas era necessário. — Entendeu?
O susto cavou um buraco em Liesel, muito nítido, muito preciso.
Os olhos encheram-se de lágrimas.
— Sim, papai.
— Próxima: — ele tinha que se manter duro, e precisou se esforçar para isso — Tirarão você de mim. Você quer isso?
Agora Liesel chorava, aflita.
— Nein.
— Ótimo — e aumentou o aperto nas mãos da menina. — Eles levarão aquele homem para longe daqui, e talvez mamãe e eu também, e nunca mais, nunca mais voltaremos.
E foi o quanto bastou.
A menina começou a soluçar de um modo tão incontrolável, que o pai morreu de vontade de puxá-la para si e abraçá-la apertado. Não o fez. Em vez disso, agachou-se e a fitou diretamente nos olhos. Soltou suas palavras mais mansas até então:
— Verstehst du mich? Está me entendendo?
A menina fez que sim. Chorou e, nessa hora, derrotado, abatido, o pai a abraçou em meio ao ar de tinta e à luz de querosene.
— Eu entendo, papai, entendo.
Sua voz foi abafada contra o corpo do pai, e os dois ficaram assim por alguns minutos, Liesel com a respiração achatada e o pai a lhe afagar as costas.
Lá em cima, ao voltarem, encontraram a mãe sentada na cozinha, só e pensativa. Ao vê-los, ela se levantou e fez sinal para que Liesel se aproximasse, notando as lágrimas secas que lhe riscavam o rosto. Puxou a menina para si e lhe plantou um abraço tipicamente rude em torno do corpo.
— Alies gut, Saumensch?
Não precisou de resposta.
Estava tudo bem.
Mas também era terrível.

O DORMINHOCO

Max Vandenburg dormiu três dias.
Em alguns trechos desse sono, Liesel o observou. Pode-se dizer que, no terceiro dia, tornou-se uma obsessão examiná-lo, ver se ele ainda respirava. Agora a menina já sabia interpretar seus sinais de vida, desde o movimento dos lábios até a barba crescida e os tufos de cabelo que se mexiam muito de leve, quando a cabeça estremecia no estado onírico.
Muitas vezes, quando o velava, vinha-lhe a ideia mortificante de que ele teria acabado de acordar e abriria os olhos para ela — e então a espiaria espiando. A ideia de ser flagrada a atormentava e entusiasmava ao mesmo tempo. Liesel a temia. E a convidava. Só quando a mãe a chamava é que conseguia arrastar-se dali, simultaneamente calma e decepcionada, por talvez não estar presente quando ele acordasse.

Em alguns momentos, quase no fim da maratona de sono, ele falou.
Foi um recital de nomes murmurados. Uma lista de verificação.
Isaac. Tia Ruth. Sarah. Mamãe. Walter. Hitler.
Família, amigo, inimigo.
Estavam todos embaixo das cobertas com ele e, a certa altura, Max pareceu lutar consigo mesmo. "Nein", murmurou. Aquilo foi repetido sete vezes. "Não."
Liesel, no ato de observar, já notava as semelhanças entre esse estranho e ela. Ambos haviam chegado em estado de agitação à Rua Himmel. Ambos tinham pesadelos.
Quando chegou a hora, ele acordou com o alvoroço incômodo da desorientação. Sua boca abriu-se, um instante depois dos olhos, e ele se sentou, em angulo reto.
— Ai!
Um fio de voz escapou-lhe da boca.
Ao ver o rosto invertido de uma menina acima dele, vieram o momento inquieto da falta de familiaridade e o esforço de recordar — de decodificar exatamente onde e quando ele estava sentado. Após alguns segundos, Max conseguiu coçar a cabeça (um farfalhar de gravetos) e olhou para Liesel. Seus gestos eram fragmentados e, agora que estavam abertos, os olhos eram úmidos e castanhos. Densos e pesados.
Num ato reflexo, Liesel recuou.
Foi lenta demais.
O estranho estendeu a mão quente da cama e a segurou pelo braço.
— Por favor.
A voz também a segurou, como se tivesse unhas. Ele a enfiou em sua carne.
— Papai! — alto.
— Por favor! — baixinho.
Era um fim de tarde cinzento e reluzente, mas só uma luz de cor suja tinha permissão de entrar no quarto. Era tudo que o tecido das cortinas permitia. Se você for otimista, pense nela como bronze.
Quando o pai entrou, parou primeiro no vão da porta e notou os dedos apertados de Max Vandenburg e seu rosto desesperado. Os dois se agarravam ao braço de Liesel.
— Vejo que vocês já se conheceram — disse.
Os dedos de Max começaram a esfriar.

A TROCA DE PESADELOS

Max Vandenburg prometeu que nunca mais dormiria no quarto de Liesel. Que é que estava pensando naquela primeira noite? A simples ideia o mortificou.
Racionalizou que, na chegada, sua perplexidade fora tanta que ele havia permitido uma coisa dessas. O porão era o único lugar apropriado para ele, no que lhe dizia respeito. Nem pensar em frio e solidão. Ele era judeu e, se havia um lugar em que estava destinado a existir, tratava-se de um porão, ou qualquer outro desses lugares ocultos de sobrevivência.
— Sinto muito — confessou a Hans e Rosa na escada do porão. — De agora em diante, ficarei aqui embaixo. Vocês não me escutarão. Não farei o menor som.
Hans e Rosa, imbuídos do desespero da situação, não argumentaram, nem mesmo em relação ao frio. Carregaram cobertores para baixo e encheram a lamparina de querosene. Rosa admitiu que não poderia haver muita comida, ao que Max lhe pediu fervorosamente que só lhe levasse sobras, mesmo assim só quando ninguém mais as quisesse.
— Na, na — assegurou-lhe Rosa. — Você será alimentado, da melhor maneira que eu puder.
Também levaram para baixo o colchão da cama sobressalente do quarto de Liesel, substituindo-o por mantas de proteção contra respingos de tinta — uma excelente troca.

• • •

No porão, Hans e Max puseram o colchão embaixo da escada e construíram do lado uma parede de mantas de proteção. As mantas eram tão altas que cobriam toda a entrada triangular e, que mais não fosse, eram fáceis de mover, se Max tivesse uma necessidade aflitiva de mais ar.
O pai se desculpou:
— É mesmo lamentável, eu reconheço.
— É melhor do que nada — assegurou-lhe Max. — Melhor do que eu mereço, obrigado.
Com algumas latas de tinta bem posicionadas, Hans teve de admitir que aquilo parecia simplesmente uma coleção de tralhas reunidas num canto, de qualquer jeito, para ficar fora do caminho. O único problema era que bastaria uma pessoa afastar algumas latas e tirar uma ou duas mantas para farejar o judeu.
— Esperemos que seja suficiente — disse Hans.
— Tem que ser — respondeu Max, rastejando para dentro. E, mais uma vez, repetiu: — Obrigado.

Obrigado.
Para Max Vandenburg, essa era a palavra mais lastimável que ele podia dizer, só encontrando rival em Desculpe. Havia uma ânsia constante de proferir as duas, instigada pela aflição da culpa.
Quantas vezes, nessas primeiras horas desperto, ele sentiu vontade de sair do porão e se retirar completamente da casa? Devem ter sido centenas.
A cada vez, porém, era só uma ferroada.
O que tornava a coisa ainda pior.
Ele queria sair — santo Deus, como queria (ou, pelo menos, queria querer)! —, mas sabia que não o faria. Era exatamente como no dia em que deixara a família em Stuttgart, sob um véu de falsa lealdade.
Viver.
Viver era ficar vivo.
O preço era a culpa, aliada à vergonha.

• • •

Nos primeiros dias no porão, Liesel não quis nada com ele. Negou sua existência. Seu cabelo farfalhante, seus dedos frios e escorregadios.
Sua presença torturada.

Mamãe e papai.
Havia um enorme peso entre os dois, e uma porção de decisões fracassadas.
Eles consideraram se poderiam mudá-lo de lugar.
— Mas para onde?
Sem resposta.
Nessa situação, estavam sem amigos e paralisados. Não havia outro lugar para onde Max Vandenburg pudesse ir. Eram eles. Hans e Rosa Hubermann. Liesel nunca os vira olharem tanto um para o outro, nem com tanta solenidade.
Eram eles que levavam a comida lá embaixo, e separaram uma lata vazia de tinta para os excrementos de Max. O conteúdo seria despejado por Hans, com toda a prudência possível. Rosa também lhe levou uns baldes de água quente para se lavar. O judeu estava imundo.

Do lado de fora, uma montanha do frio ar de novembro esperava à porta de entrada, toda vez que Liesel saía de casa.
A chuva fina caía às bateladas.
Havia folhas mortas derrubadas na rua.

Em pouco tempo, chegou a vez de a roubadora de livros visitar o porão. Eles a obrigaram.
A menina desceu hesitantemente a escada, sabendo que não havia necessidade de palavras. O arrastar de seus pés era o bastante para despertá-lo.
No meio do porão, ela parou e esperou, sentindo-se mais como se estivesse no centro de um grande campo ensombrecido. O sol se punha atrás de uma safra de mantas de proteção colhidas.
Quando Max saiu, segurava o Mein Kampf. Na chegada, oferecera-o de volta a Hans Hubermann, mas ouvira que podia ficar com ele.
Naturalmente, enquanto segurava o jantar, Liesel não conseguia tirar os olhos do livro. Já o vira algumas vezes na BDM, mas ele não fora lido nem diretamente usado nas atividades das meninas. Houvera referências ocasionais a sua grandeza, além de promessas de que haveria uma oportunidade de estudá-lo em anos vindouros, à medida que elas avançassem para uma divisão mais velha da Juventude Hitlerista.
Max, seguindo a atenção de Liesel, também examinou o livro.
— É? — sussurrou a menina.
Havia um filamento curioso em sua voz, aplainado e enroscado em sua boca. O judeu apenas aproximou um pouco mais a cabeça.
— Bitte? Como?
Liesel entregou-lhe a sopa de ervilha e voltou para cima, vermelha, apressada e boba.

— É bom esse livro?
Ficou praticando no banheiro o que queria dizer, diante do espelhinho. O cheiro de urina ainda a envolvia, visto que Max tinha acabado de usar a lata de tinta antes de ela descer. Só ein G'schtank, pensara Liesel. Que fedor.
Nenhuma urina tem um cheiro tão bom quanto a nossa.

Os dias foram manquejando.
Toda noite, antes de cair no sono, Liesel ouvia a mãe e o pai na cozinha, discutindo o que fora feito, o que eles estavam fazendo e o que precisava acontecer a seguir.
O tempo todo, uma imagem de Max pairava junto dela. Eram sempre a expressão ferida e grata de seu rosto e os olhos alagadiços.
Só uma vez houve uma explosão na cozinha.
Papai.
— Eu sei!
Sua voz era abrasiva, mas ele a reconduziu às pressas a um sussurro abafado.
— Mas tenho que continuar a ir, pelo menos algumas vezes por semana. Não posso ficar aqui o tempo todo. Precisamos do dinheiro e, se eu parar de tocar lá, vão ficar desconfiados. Talvez se perguntem por que parei. Eu disse a eles que você estava doente, na semana passada, mas agora temos que fazer tudo como sempre fizemos.
Era aí que residia o problema.
A vida se alterara da maneira mais louca possível, porém era imperativo que eles agissem como se não tivesse acontecido absolutamente nada.
Imagine sorrir depois de levar um tapa na cara. Agora, imagine fazê-lo vinte e quatro horas por dia.
Era essa a tarefa de esconder um judeu.

À medida que os dias se transformaram em semanas, passou a haver, que mais não fosse, uma aceitação sitiada do ocorrido — tudo resultante da guerra, de um cumpridor de promessas e de um acordeão. Além disso, no espaço de pouco mais de um semestre, os Hubermann tinham perdido um filho e ganhado um substituto de proporções epicamente perigosas.
O que mais chocava Liesel era a mudança em sua mamãe. Fosse na maneira calculada pela qual ela dividia a comida, fosse no considerável amordaçamento de sua boca famigerada, ou até na expressão mais delicada de seu rosto de papelão, uma coisa ia ficando clara.

• UM ATRIBUTO DE ROSA HUBERMANN •
Ela era uma boa mulher nas horas de crise.

Mesmo quando a artrítica Helena Schmidt cancelou o serviço de lavagem e passagem de roupa, um mês depois de Max debutar na Rua Himmel, ela simplesmente sentou-se à mesa e aproximou de si a tigela.
— Hoje a sopa está boa.
A sopa estava terrível.

Toda manhã, quando Liesel saía para a escola, ou nos dias em que se aventurava a jogar futebol, ou a completar o que restava da ronda da roupa lavada, Rosa lhe falava baixinho.
— E lembre-se, Liesel... — apontando para a boca, mais nada. Quando a menina acenava que sim, Rosa dizia: — Você é uma boa menina, Saumensch. Agora, vá andando.
Fiel às palavras do pai, e até às da mãe, nesse momento, ela era uma boa menina. Ficava de boca fechada em todos os lugares aonde ia. O segredo estava profundamente enterrado.
Liesel andava pela cidade com Rudy, como sempre fizera, e ouvia sua tagarelice. Vez por outra, eles comparavam observações sobre suas respectivas divisões da Juventude Hitlerista, e Rudy mencionou pela primeira vez um jovem líder sádico, chamado Franz Deutscher. Quando não falava do jeito entusiástico de Deutscher, Rudy tocava seu disco quebrado de praxe, oferecendo traduções e recriações do último gol que havia marcado no estádio de futebol da Rua Himmel.
— Eu sei — assegurava Liesel. — Eu estava lá.
— E daí?
— Daí que eu vi, Saukerl.
— Como é que eu vou saber? Ao que eu saiba, provavelmente você estava em algum lugar do chão, lambendo a lama que deixei pra trás quando fiz o gol.
Talvez fosse Rudy quem a mantinha sã, com a idiotice de sua falação, seu cabelo encharcado no limão e sua presunção insolente.
Ele parecia reverberar uma espécie de confiança em que a vida continuava a não passar de uma piada — uma sucessão interminável de gols e trapaças, e um repertório constante de tagarelice sem sentido.

E havia também a mulher do prefeito, e a leitura na biblioteca de seu marido. Agora fazia frio lá, mais frio a cada visita, mas Liesel continuava incapaz de se afastar. Escolhia um punhado de livros e lia pequenos segmentos de cada um, até que, uma tarde, encontrou um que não conseguiu pôr de lado. Chamava-se O Assobiador. Originalmente, sentira-se atraída por ele por ver esporadicamente o assobiador da Rua Himmel — Pfiffikus. Havia a lembrança dele, recurvado com seu casacão, e seu aparecimento na fogueira no aniversário de Hitler.
O primeiro acontecimento do livro era um assassinato. Um esfaqueamento. Uma rua de Viena. Não muito longe do Stephansdom — a catedral da praça principal.

• UM PEQUENO EXCERTO DE •
O ASSOBIADOR
Ela ficou lá, assustada, numa poça de sangue,
com uma estranha melodia a lhe soar no ouvido.
Relembrou a faca, entrando e saindo, e um sorriso.
Como sempre, o assobiador sorrira,
ao fugir para a noite escura e homicida...

Liesel não soube ao certo se tinham sido as palavras ou a janela aberta que a fizeram tremer. Toda vez que buscava ou entregava roupa na casa do prefeito, ela lia três páginas e estremecia, mas não podia ficar lá para sempre.
Similarmente, Max Vandenburg não poderia suportar muito mais o porão. Não se queixava — não tinha esse direito —, mas, aos poucos, sentiu que deteriorava no frio. Como se veio a constatar, sua salvação deveu-se a um pouco de leitura e redação, e a um livro chamado O Dar de Ombros.
— Liesel — disse Hans, uma noite. — Venha.
Desde a chegada de Max, tinha havido um hiato considerável nos exercícios de leitura de Liesel e seu papai. Claramente, ele achou que esse era um bom momento para recomeçar.
— Na, komm — disse-lhe. — Não quero que você relaxe. Vá buscar um de seus livros. Que tal O Dar de Ombros?
O fator inquietante nisso tudo foi que, quando ela voltou, com o livro na mão, o pai fez sinal para que o acompanhasse à antiga sala de exercícios dos dois. O porão.
— Mas, papai — tentou dizer Liesel. — A gente não pode...
— O que é? Há algum monstro lá embaixo?
Era começo de dezembro e o dia tinha sido gelado. O porão tornava-se mais inóspito a cada degrau de concreto.
— Está muito frio, papai.
— Isso nunca a incomodou antes.
— É, mas nunca ficou frio assim...
Quando os dois chegaram lá embaixo, o pai sussurrou para Max:
— Podemos pegar emprestada a lamparina, por favor?
Com apreensão, as mantas e latas foram afastadas e a luz foi entregue, trocando de mãos. Olhando para a chama, Hans balançou a cabeça e acompanhou o gesto com algumas palavras.
— Es ist já Wahnsinn, net? Isto é maluquice, não?
Antes que a mão do lado de dentro reposicionasse as mantas, Hans a pegou.
— Venha você também. Por favor, Max.
Aos poucos, as mantas foram arrastadas para um lado e o corpo e o rosto emaciados de Max Vandenburg apareceram. A luz úmida, ele ficou imóvel, com um incômodo mágico. Estremeceu.
Hans tocou-lhe o braço, para fazê-lo aproximar-se mais.
— Jesus, Maria e José! Você não pode ficar aqui embaixo. Vai morrer congelado.
Voltou-se para a menina:
— Liesel, encha a banheira. Não muito quente. Deixe assim como quando a água começa a esfriar.
Liesel subiu correndo.
— Jesus, Maria e José.
Foi o que ela tornou a ouvir, ao chegar ao corredor.

Enquanto Max estava na banheira mínima, Liesel ficou escutando à porta do banheiro, imaginando a água morna a se transformar em vapor, ao aquecer o corpo de iceberg do rapaz. Mamãe e papai estavam no auge do debate no cômodo que combinava o quarto e a sala, com suas vozes baixas aprisionadas entre as paredes do corredor.
— Ele vai morrer lá embaixo, eu juro.
— Mas, e se alguém olhar cá para dentro?
— Não, não, ele sobe só à noite. De dia, deixamos tudo aberto. Nada a esconder. E usamos este cômodo, em vez da cozinha. É melhor ficar longe da porta de entrada.
Silêncio. Depois, a mãe:
— Está bem... É, você tem razão.
— Se vamos apostar num judeu — disse o pai, logo depois —, prefiro apostar num judeu vivo.
E, desse momento em diante, nasceu uma nova rotina.

Toda noite, acendia-se a lareira no quarto de mamãe e papai, e Max aparecia silenciosamente. Sentava-se num canto, encolhido e perplexo, muito provavelmente com a bondade daquelas pessoas, a tortura da sobrevivência e, superando aquilo tudo, o brilho do calor.
Com as cortinas bem cerradas, ele dormia no chão, com uma almofada sob a cabeça, enquanto o fogo ia apagando e se transformava em cinzas.
De manhã, voltava para o porão.
Um ser humano sem voz.
O rato judeu, de volta a sua toca.

O Natal veio e se foi, com o cheiro de um perigo a mais. Como se esperava, Hans Júnior não apareceu em casa (uma bênção e uma ominosa decepção), mas Trudy chegou como de hábito e, felizmente, as coisas correram com serenidade.

• AS QUALIDADES DA SERENIDADE •
Max ficou no porão.
Trudy veio e se foi sem nenhuma suspeita.

• • •

Resolveu-se que, apesar de sua índole gentil, não se podia confiar em Trudy.
— Só confiamos nas pessoas em quem temos de confiar — afirmou o pai — e isso somos nós três.
Houve comida extra e um pedido de desculpas a Max por essa não ser a sua religião, mas era um ritual, de qualquer modo.
Ele não se queixou.
Que base tinha para reclamar?
Explicou que era judeu por criação e pelo sangue, mas também que o judaísmo, agora, era mais do que nunca um rótulo — um exemplo desastroso do azar mais idiota que havia.
Foi nesse momento que também aproveitou o ensejo para dizer que lamentava que o filho dos Hubermann não tivessem ido para casa. Em resposta, Hans lhe disse que essas coisas fugiam ao controle deles.
— Afinal — comentou — você mesmo deve saber: um rapaz ainda é um menino, e os meninos às vezes têm o direito de ser teimosos.
Deixaram o assunto nesse pé.

Nas primeiras semanas em frente à lareira, Max ficou mudo. Agora que vinha tomando um banho adequado uma vez por semana, Liesel notou que seu cabelo já não era um ninho de gravetos, mas uma coletânea de plumas que se agitavam em volta de sua cabeça. Ainda tímida diante do estranho, ela cochichou com o pai:
— O cabelo dele parece de penas.
— Como? — fez o pai. A lareira havia distorcido as palavras.
— Eu disse — voltou ela a cochichar, chegando mais perto — que o cabelo dele parece ser de penas...
Hans Hubermann olhou e fez um aceno de cabeça, concordando. Tenho certeza de que gostaria de ter os olhos da menina. Eles não perceberam que Max tinha ouvido tudo.

Ocasionalmente, o rapaz levava o exemplar de Mein Kampf e o lia junto às chamas, enfurecido com o conteúdo. Na terceira vez que o levou, Liesel enfim tomou coragem para fazer sua pergunta.
— Ele é... bom?
Max ergueu os olhos das páginas, fechou os punhos e tornou a abrir os dedos. Afastando a raiva, sorriu para a menina. Levantou a franja emplumada e deixou-a cair nos olhos.
— É o melhor livro que existe — disse. Olhou para Hans, depois novamente para Liesel. — Salvou minha vida.
A menina remexeu-se um pouco e cruzou as pernas. Baixinho, perguntou.
— Como?

Assim começou uma espécie de fase de contar histórias na sala, todas as noites. Eram narradas num tom que mal se fazia ouvir. Os pedaços de um quebra cabeça judaico de lutas foram-se montando diante de todos.
Vez por outra, havia humor na voz de Max Vandenburg, embora sua qualidade física lembrasse o atrito — como uma pedra delicadamente esfregada numa rocha grande. Era profunda em alguns pontos e arranhada em outros, às vezes se interrompendo por completo. Atingia sua gravidade máxima no arrependimento e se interrompia ao final de uma pilhéria ou de uma afirmação autodepreciativa.
"Cristo crucificado!", era essa a reação mais comum às histórias de Max Vandenburg, em geral seguida por uma pergunta.

• PERGUNTAS DO TIPO •
Quanto tempo você ficou naquele quarto?
Onde está Walter Kugler agora?
Você sabe o que aconteceu com a sua família?
Para onde estava viajando a roncadora?
Um escore de derrotas de 10X3!
Por que você quis continuar lutando com ele?

Quando Liesel rememorou os acontecimentos de sua vida, aquelas noites na sala foram algumas de suas lembranças mais vividas. Ela reviu a luz ardente no rosto de casca de ovo de Max e chegou até a provar o sabor humano de suas palavras. O curso da sobrevivência do rapaz foi relatado aos bocadinhos, como se ele recortasse de si cada pedaço e o oferecesse numa bandeja.
— Sou muito egoísta.
Ao dizê-lo, ele usou o braço para proteger o rosto.
— Deixar as pessoas para trás. Vir para cá. Pôr todos vocês em perigo...
Foi tudo saindo dele, e o rapaz começou a lhes fazer súplicas. O arrependimento e a desolação esbofeteavam-lhe o rosto.
— Eu lamento. Acreditam em mim? Eu sinto muito, sinto muito, sinto...
Seu braço encostou no fogo e ele o afastou num reflexo.
Todos o fitaram, em silêncio, até que o pai levantou e se aproximou. Sentou-se ao lado de Max.
— Queimou o cotovelo?

Uma noite, Hans, Max e Liesel sentavam-se diante da lareira. A mãe estava na cozinha. Max lia Mein Kampf outra vez.
— Sabe de uma coisa? — disse Hans. Inclinou-se para o fogo. — A Liesel aqui é mesmo uma boa leitorinha - ao que Max baixou o livro. — E tem mais coisas em comum com você do que se poderia supor. E — certificou-se de que Rosa não estava chegando — ela também gosta de uma boa briga.
— Papai!
Liesel, quase chegando aos doze anos e ainda magra feito um ancinho, encostada na parede, sentiu-se arrasada.
— Nunca entrei numa briga!
— Psssiu! — riu o pai, Fez sinal para que ela falasse baixo e tornou a se inclinar, dessa vez em direção à menina. — Bem, que tal a surra que você deu no Ludwig Schmeikl, hein?
— Eu nunca... — mas ela fora apanhada. Continuar negando seria inútil.
— Como foi que você descobriu isso?
— Estive com o pai dele no Knoller.
Liesel cobriu o rosto com as mãos. Quando o descobriu, foi para fazer a pergunta crucial:
— Contou à mamãe?
— Está brincando? — fez Hans. Piscou para Max e segredou para a menina: — Você ainda está viva, não é?

Aquela noite também foi a primeira vez em meses que o pai tocou seu acordeão em casa. Durou mais ou menos meia hora, até ele fazer uma pergunta a Max:
— Você o estudou?
O rosto no canto observava as chamas.
— Estudei — e fez uma pausa considerável. — Até os nove anos. Nessa idade, mamãe vendeu o estúdio de música e parou de lecionar. Só guardou um instrumento, mas desistiu de mim, não muito depois de eu resistir a estudar. Foi uma bobagem.
— Não — disse Hans. — Você era menino.

Durante as madrugadas, Liesel Meminger e Max Vandenburg lidavam com sua outra semelhança. Em cômodos separados, tinham seus pesadelos e acordavam, uma com um grito em meio a lençóis sufocantes, outro com a respiração ofegante junto a uma lareira fumarenta.
Às vezes, quando Liesel lia com o pai, perto das três horas da manhã, os dois ouviam o momento de despertar de Max. "Ele sonha como você", dizia o pai, e, numa ocasião, agitada com o som da angústia de Max, Liesel resolveu sair da cama. Por ter ouvido a história dele, a menina fazia uma boa idéia do que o rapaz via naqueles sonhos, se não a parte exata da história que o visitava a cada noite.
Andou em silêncio pelo corredor e entrou na sala-e-quarto.
— Max?
O murmúrio foi baixinho, envolto pela garganta do sono.
No começo, não houve som de resposta, mas ele logo se sentou e perscrutou a escuridão.

Com o pai ainda na cama, Liesel sentou-se do outro lado da lareira, em frente a Max. Atrás deles, Rosa dormia ruidosamente. Superava de longe a roncadora do trem.
Agora o fogo já não passava de um funeral de fumaça, a um tempo morto e agonizante. Nessa madrugada específica, também houve vozes.

• A TROCA DE PESADELOS •
A menina: Diga, o que você vê quando sonha assim?
O judeu: ...Eu me vejo virando as costas e dando adeus.
A menina: Também tenho pesadelos.
O judeu: O que você vê?
A menina: Um trem, e meu irmão morto.
O judeu: Seu irmão?
A menina: Ele morreu quando eu me mudei para cá, no caminho.
A menina e o judeu, juntos: Ja - sim.

Seria bom dizer que, depois desse pequeno avanço, nem Liesel nem Max voltaram a sonhar com suas visões ruins. Seria bom, mas falso. Os pesadelos continuaram a chegar como sempre, como faz o melhor jogador do time adversário, quando a gente ouve boatos de que estaria machucado ou doente — mas lá está ele, fazendo o aquecimento com todos os demais, pronto para entrar em campo. Ou como um trem de hora marcada que chega toda noite a uma plataforma, rebocando as lembranças numa corda. Muito arrastar. Muitos rebotes desajeitados.
A única coisa a mudar foi que Liesel disse ao pai que agora já devia ter idade suficiente para enfrentar os sonhos sozinha. Por um momento, ele pareceu meio magoado, mas, como sempre acontecia com o pai, fez o melhor possível para dizer a coisa certa.
— Bem, graças a Deus — com um meio sorriso. — Pelo menos agora posso dormir direito. Aquela cadeira estava me matando.
Pôs o braço nos ombros da menina e os dois foram para a cozinha.

Com o correr do tempo, desenvolveu-se uma clara distinção entre dois mundos — o mundo no interior do número 33 da Rua Himmel e o que residia e girava em torno deste. O xis da questão era mantê-los separados.
No mundo externo, Liesel vinha aprendendo a descobrir mais algumas utilidades. Uma tarde, quando voltava para casa com um saco de roupas vazio, notou um jornal que ressaía de uma lata de lixo. A edição semanal do Expresso de Molching, tirou-o da lata e o levou para casa, onde o deu de presente a Max.
— Achei que você gostaria de fazer as palavras cruzadas para passar o tempo — disse.
Max agradeceu o gesto e, para justificar o fato de Liesel o ter levado para casa, leu o jornal de ponta a ponta e, horas depois, mostrou-lhe as palavras cruzadas completas, faltando só uma palavra.
— Miserável esse dezessete vertical — disse.

Em fevereiro de 1941, em seu décimo segundo aniversário, Liesel ganhou outro livro usado e ficou grata. Chamava-se Os homens de Lama e era sobre um pai e um filho muito estranhos. Ela abraçou a mãe e o pai, enquanto Max ficava constrangido num canto.
— Alies gute zum Geburtstag — sorriu ele, timidamente. "Tudo de bom no seu aniversário." Estava com as mãos nos bolsos. — Eu não sabia, senão teria dado alguma coisa a você.
Era uma mentira flagrante — Max não tinha nada para dar, exceto, talvez, o Mein Kampf, e de jeito nenhum daria aquela propaganda a uma menininha alemã. Seria como o cordeiro entregando uma faca ao açougueiro.
Houve um silêncio incômodo.
Ela havia abraçado mamãe e papai.
Max parecia muito sozinho.

Liesel engoliu em seco.

E foi até ele e o abraçou pela primeira vez.
— Obrigada, Max.
A princípio, ele apenas ficou parado, mas, enquanto ela o abraçava, aos poucos levantou as mãos e as pressionou delicadamente sobre as omoplatas da menina.
Só depois ela descobriria o sentido da expressão de desamparo no rosto de Max Vandenburg. Descobriria também que, naquele momento, ele havia decidido retribuir-lhe alguma coisa. Muitas vezes o imagino deitado, acordado durante aquela noite inteira, ponderando sobre o que poderia oferecer.
Como se constatou, o presente foi entregue em papel, pouco mais de uma semana depois.
Max o levaria à menina nas primeiras horas da manhã, antes de tornar a descer a escada de concreto para o que agora gostava de chamar de sua casa.

PÁGINAS DO PORÃO

Durante uma semana, Liesel foi impedida a todo custo de descer ao porão. Mamãe e papai é que se certificavam de levar a comida de Max.
— Não, Saumensch — dizia a mãe, toda vez que ela se oferecia. Havia sempre um novo pretexto. — Que tal você fazer alguma coisa de útil aqui, para variar, como acabar de passar a roupa? Você acha que carregá-la pela cidade é muito especial? Experimente passá-la!
Pode-se fazer toda sorte de coisas boas disfarçadas, quando se tem uma reputação cáustica. Funcionou.

Nessa semana, Max recortou uma coletânea de páginas de Mein Kampf e as pintou de branco. Depois, pendurou-as com pregadores numa corda, de uma ponta à outra do porão. Quando estavam todas secas, começou a parte difícil. Ele tinha instrução suficiente para se arranjar, mas com certeza não era escritor nem pintor de quadros. Apesar disso, formulou as palavras na cabeça até conseguir contá-las sem erro. Só então, no papel empolado e arqueado pela pressão da tinta ao secar, começou a escrever a história. O que fez com um pincelzinho preto.

O Vigiador.

Max calculou que precisaria de treze páginas, e por isso pintou quarenta, na expectativa de pelo menos duas vezes mais erros que acertos, Houve versões de exercício nas páginas do Expresso de Molching, até ele aperfeiçoar seu trabalho artístico elementar e desajeitado num nível que lhe parecesse aceitável. Enquanto trabalhava, ele ouvia as palavras sussurradas de uma menina. "O cabelo dele", dissera Liesel, "parece ser de penas."
Ao terminar, Max usou uma faca para furar as páginas e amarrá-las com barbante. O resultado foi um livreto de treze páginas, que dizia assim:














No fim de fevereiro, quando Liesel acordou nas primeiras horas da manhã, uma figura entrou em seu quarto. Como era típico de Max, foi o mais próximo possível de uma sombra sem som.
Perscrutando a escuridão, Liesel só pôde sentir vagamente o homem que se aproximava.
— Olá?
Nenhuma resposta.

Nada além do quase silêncio de seus pés, quando ele chegou mais perto da cama e pôs as páginas no chão, junto as meias da menina. As páginas estalaram. Só um pouquinho. Uma de suas bordas recurvou-se no chão.
— Olá?
Dessa vez, houve uma resposta.
Liesel não soube dizer exatamente de onde vinham as palavras. O importante foi que chegaram até ela. Chegaram e se ajoelharam junto à cama.
— Um presente de aniversário atrasado. Olhe de manhã. Boa noite.

Por algum tempo, ela vagou para dentro e para fora do sono, já não sabendo ao certo se havia sonhado com a entrada de Max.
De manhã, ao acordar e se virar na cama, viu as páginas descansando no chão. Estendeu a mão e pegou-as, escutando o papel encrespar-se em suas mãos de manhãzinha.
Toda a minha vida, tive medo de homens velando sobre mim...
Ao virá-las, as páginas eram barulhentas, feito estática em volta da história escrita.
Três dias, disseram-me... E o que encontrei ao acordar?
Lá estavam as páginas apagadas de Mein Kampf, amordaçadas, sufocando sob a tinta enquanto eram viradas.
Isso me fez compreender que o melhor vigiador que eu conheci...

Liesel leu e examinou o presente de Max Vandenburg três vezes, notando um traço ou uma palavra diferente do pincel a cada uma. Terminada a terceira leitura, saiu da cama, da maneira mais silenciosa que pôde, e foi ao quarto de papai e mamãe. O espaço reservado junto à lareira estava vazio.
Pensando bem, ela se deu conta de que seria mesmo apropriado — ou, melhor até, perfeito — que lhe agradecesse onde as páginas tinham sido produzidas.
Desceu a escada do porão. Viu uma fotografia emoldurada imaginária infiltrar-se na parede — um segredo silenciosamente risonho.

Embora não passasse de alguns metros, foi uma longa caminhada até as mantas de proteção contra respingos e o sortimento de latas de tinta que escudavam Max Vandenburg. Ela afastou as mantas mais próximas da parede, até haver um pequeno corredor por onde olhar.
A primeira parte que viu dele foi o ombro e, pela fenda estreita, devagarzinho, dolorosamente, enfiou a mão até apoiá-la nele. A roupa estava fria. Max não acordou.
A menina sentiu a respiração e o ombro dele, movendo-se bem de leve, para cima e para baixo. Observou-o por algum tempo. Depois, sentou-se e se reclinou.
O ar sonolento parecia tê-la seguido.
As palavras rabiscadas dos exercícios expunham-se magnificamente na parede ao lado da escada, irregulares, infantis e doces. Ficaram olhando enquanto os dois dormiam, o judeu escondido e a menina, mão e ombro.
Os dois respiravam.
Pulmões alemães e judeus.
Junto à parede ficou O Vigiador, entorpecido e satisfeito, como um belo anseio aos pés de Liesel Meminger.

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