O telefonema
Em agosto, meus pais receberam um telefonema do Sr. Buzanfa,
diretor do ensino fundamental
II.
— Talvez ele ligue para todos os alunos novos para dar as
boas-vindas — disse a mamãe.
— São muitas crianças para quem ligar — respondeu o papai.
Então a mamãe retornou a ligação e fiquei ouvindo enquanto
ela falava com ele ao telefone.
Suas exatas palavras:
“Ah, oi, Sr. Buzanfa. Aqui é a Amanda Will, estou retornando
sua ligação. Pausa. Ah,
obrigada! Isso é muito gentil da sua parte. Ele está
ansioso. Pausa. Sim. Pausa. Sim. Pausa.
Ah. Claro. Pausa demorada. Ahhh. Certo. Pausa. Bem, é muita
gentileza sua. Pausa. Claro.
Ahh! Uau! Ahhhh! Pausa superdemorada. Entendo, claro. Tenho
certeza que ele vai. Deixeme
anotar... pronto. Ligarei para o senhor depois que falar com
ele, está bem? Pausa. Não,
obrigada por pensar nele. Tchau!”
Quando ela desligou, perguntei:
— O que foi? O que ele disse?
Minha mãe respondeu:
— Bem, na verdade é uma grande honra, mas também é meio
triste. Sabe, há um garoto que
vai entrar para a escola este ano, e ele nunca estudou em um
colégio de verdade antes, porque
tinha aulas em casa. Então o Sr. Buzanfa pediu a alguns
professores que indicassem quem
eram os alunos mais legais que estavam indo para o quinto
ano, e devem ter dito que você é
um garoto especialmente gentil, o que eu já sabia, é claro.
Por isso o Sr. Buzanfa gostaria de
saber se pode contar com você para receber o menino.
— Tipo deixar que ele ande comigo? — perguntei.
— Isso mesmo. O Sr. Buzanfa chamou de “colega de
boas-vindas”.
— Mas por que eu?
— Já falei. Seus professores disseram que você é um garoto
muito gentil. Estou tão
orgulhosa que eles o tenham em tão alta conta...
— Por que é triste?
— Como assim?
— Você disse que era uma honra, mas também meio triste.
— Ah! — A mamãe assentiu. — Bem, parece que o garoto tem
algum tipo de... hum... acho
que há alguma coisa errada com o rosto dele... ou algo
assim. Não tenho certeza. Talvez ele
tenha sofrido um acidente. O Sr. Buzanfa disse que vai
explicar melhor quando você for à
escola na semana que vem.
— Mas as aulas só começam em setembro!
— Ele quer que você conheça o garoto antes de as aulas
começarem.
— Eu sou obrigado a fazer isso?
Mamãe pareceu um pouco surpresa.
— Bem, não. Claro que não. Mas seria legal da sua parte,
Jack.
— Se não sou obrigado, não quero.
— Você pode ao menos pensar no assunto?
— Estou pensando, e não quero.
— Bem, não vou obrigá-lo a nada — disse ela —, mas pelo
menos pense um pouco mais,
está bem? Só vou dar a resposta ao Sr. Buzanfa amanhã, então
apenas reflita um pouco. Quer
dizer, Jack, realmente não acho que seja pedir demais que
você passe um pouco de tempo com
um aluno novo...
— Não é só porque ele é novo, mãe — rebati. — Ele é
deformado.
— Que coisa horrível de dizer, Jack!
— Mas ele é, mãe.
— Você nem sabe quem é ele!
— Sei, sim — respondi, porque, no instante em que ela
começou a falar, percebi que se
tratava daquele garoto chamado August.
Carvel
Eu me lembro de tê-lo visto pela primeira vez em frente à
sorveteria Carvel, na Amesfort
Avenue, quando tinha uns cinco ou seis anos. Minha babá,
Veronica, e eu estávamos sentados
em um banco do lado de fora da loja, com o Jamie, meu irmão
menor, no carrinho, de frente
para nós. Acho que eu estava ocupado comendo minha
casquinha, porque nem reparei nas
pessoas que se sentaram do nosso lado.
Em certo momento virei a cabeça para sugar o sorvete pela
ponta da casquinha, e foi então
que vi o August. Ele estava bem do meu lado. Sei que isso
não é legal, mas ao vê-lo eu meio
que soltei um grito, porque me assustei de verdade. Achei
que estivesse usando uma máscara
de zumbi ou algo assim. Foi o tipo de grito que você dá
quando está assistindo a um filme de
terror e o vilão pula de uma moita. De todo modo, sei que
fazer isso não foi legal da minha
parte e, embora o menino não tenha me ouvido, sei que a irmã
dele ouviu.
— Jack! Temos que ir! — disse a Veronica.
Ela havia se levantado e estava virando o carrinho, porque o
Jamie, que obviamente também
tinha acabado de notar o garoto, poderia dizer algo
constrangedor. Então levantei meio de
repente, como se uma abelha tivesse pousado em mim, e fui
atrás da babá, que tinha saído
correndo. Ouvi a mãe do garoto dizer às nossas costas:
— Certo, crianças, acho que é hora de irmos.
Então virei para trás e olhei para eles mais uma vez. O
menino estava lambendo seu sorvete
de casquinha, a mãe pegava o patinete dele e a irmã olhava
para mim como se fosse me matar.
Desviei os olhos depressa.
— Veronica, o que aquele menino tinha? — sussurrei.
— Shhh, menino! — disse ela, zangada.
Adoro a Veronica, mas quando ela fica brava, fica brava
mesmo. Enquanto isso o Jamie
estava praticamente caindo do carrinho, tentando dar mais
uma olhada, mas ela o pôs no lugar.
— Mas, Vonica... — protestou meu irmão.
— Vocês se comportaram mal! Muito mal! — brigou a Veronica, assim
que nos afastamos
um pouco mais. — Ficar olhando daquele jeito!
— Foi sem querer! — falei.
— Vonica — chamou Jamie.
— E a gente saindo como saiu... — murmurou ela. — Meu Deus,
coitada daquela moça. É o
que sempre digo, meninos: todos os dias temos que agradecer
ao Senhor por nossas bênçãos,
estão ouvindo?
— Vonica!
— O que foi, Jamie?
— Já é Halloween?
— Não, Jamie.
— Então por que aquele garoto estava de máscara?
A Veronica não respondeu. Às vezes, quando ela ficava
zangada com alguma coisa, fazia
isso.
— Ele não estava de máscara — expliquei ao Jamie.
— Chega, Jack! — disse ela.
— Por que está tão brava, Veronica?
Não pude deixar de perguntar. Achei que isso fosse deixá-la
ainda mais zangada, mas ela só
balançou a cabeça.
— Foi horrível o que a gente fez. Levantar daquele jeito,
como se tivesse acabado de ver o
diabo. Eu estava com medo do que o Jamie poderia dizer,
sabe? Não queria que ele falasse
algo que pudesse magoar o menino. Mas foi muito ruim ir
embora daquele jeito. A mãe dele
percebeu o que estava acontecendo.
— Mas não fizemos de propósito — retruquei.
— Jack, às vezes magoamos as pessoas sem querer. Entende?
Aquela foi a primeira vez que vi o August na vizinhança,
pelo menos que eu lembre. Mas
desde então o vi por ali, algumas vezes na pracinha, outras
no parque. Às vezes ele estava
com um capacete de astronauta. Todas as crianças do bairro
sabiam que era ele. Todo mundo
tinha visto August em algum momento. Todos nós sabíamos seu
nome, embora ele não
soubesse os nossos.
E, sempre que eu o via, tentava me lembrar do que a Veronica
dissera. Mas era difícil. É
difícil não dar uma segunda olhada. É difícil agir
normalmente quando você vê o August.
Por que mudei de ideia
— Para quem mais o Sr. Buzanfa ligou? — perguntei à mamãe
mais tarde naquela noite. —
Ele falou?
— Ele mencionou o Julian e a Charlotte.
— Julian! — exclamei. — Argh! Por que o Julian?
— Você era amigo dele.
— Mãe, isso foi, tipo, no jardim de infância. O Julian é o
garoto mais falso do mundo. E
fica o tempo todo querendo ser popular.
— Bem, pelo menos ele concordou em ajudar o garoto. Temos
que lhe dar algum crédito por
isso.
Não falei nada, porque ela estava certa.
— E a Charlotte? — perguntei. — Ela também topou?
— Sim — respondeu a mamãe.
— Claro que topou. A Charlotte é toda certinha — falei.
— Nossa, Jack! Parece que você está tendo problemas com todo
mundo.
— É só... — comecei. — Mãe, você não tem ideia de como o
garoto é.
— Posso imaginar.
— Não! Não pode! Você nunca o viu. Eu já.
— Talvez não seja quem você está pensando.
— Pode acreditar, é sim. E estou lhe dizendo: é muito, muito
ruim. Ele é deformado, mãe.
Os olhos dele são aqui. — Apontei para minhas bochechas. — E
ele não tem orelhas. E a boca
é como...
O Jamie havia entrado na cozinha para pegar um suco na
geladeira.
— Pergunte ao Jamie — sugeri. — Não é, Jamie? Você se lembra
daquele garoto que vimos
no parque depois da escola, no ano passado? O que se chama
August. O que tem aquela cara.
— Ah, aquele garoto? — disse o Jamie, de olhos arregalados.
— Eu tive até pesadelo!
Lembra, mãe? Aquele pesadelo com zumbis que tive ano
passado?
— Achei que tivesse sido por assistir a filmes de terror! —
respondeu ela.
— Não! Foi depois disso! Quando eu vi aquele garoto, fiquei
meio “Ahhh!” e saí correndo...
— Espere um minuto — disse a mamãe, séria. — Você fez isso
na frente dele?
— Não deu para evitar — falou o Jamie, choramingando.
— É claro que você poderia ter evitado! Meninos, tenho que
dizer que estou muito
decepcionada com o que estou ouvindo. — Ela parecia
decepcionada mesmo. — Quer dizer,
ele é só um garotinho... exatamente como vocês! Jamie,
imagine como ele se sentiu ao ver
você gritando e correndo.
— Não foi um grito — defendeu-se meu irmão. — Foi tipo um
“Ahhh!”.
Ele pôs as mãos nas bochechas e começou a correr pela
cozinha.
— Ora, Jamie! — disse a mamãe, zangada. — Sinceramente,
achei que meus filhos fossem
mais solidários que isso.
— O que é solidário? — perguntou meu irmão, que ainda ia
começar o segundo ano.
— Você sabe muito bem o que eu quis dizer com “solidário”,
Jamie.
— Mas ele é tão horroroso, mamãe... — falou o Jamie.
— Ei! — gritou ela. — Não gosto dessa palavra! Jamie, pegue
o seu suco. Quero conversar
a sós com o Jack. — Assim que meu irmão saiu, ela disse: —
Olha, Jack...
Eu sabia que ela ia começar um sermão.
— Tudo bem, eu topo — falei; o que a deixou chocada.
— Mesmo?
— Sim!
— Então posso ligar para o Sr. Buzanfa?
— Pode, mãe! Já falei que sim!
A mamãe sorriu.
— Eu sabia que faria a coisa certa, garoto. Que bom! Estou
orgulhosa de você, Jack.
Ela bagunçou meu cabelo. Mas foi esse o motivo para eu ter
mudado de ideia: não que eu
quisesse evitar um sermão da minha mãe; nem proteger o
August do Julian, que eu sabia que ia
agir como um completo idiota; só que, quando ouvi o Jamie
contar que correu do August
gritando “Ahhh!”, de repente me senti muito mal. A questão é
que sempre haverá pessoas
como o Julian, idiotas. Mas, se um garotinho como o Jamie,
que geralmente é legal, podia ser
cruel daquele jeito, então o August não teria a menor chance
na escola.
Quatro coisas
Em primeiro lugar: a gente se acostuma com o rosto dele. Nas
primeiras vezes eu pensava:
“Uau, nunca vou me habituar a isso.” Mas então, depois de
mais ou menos uma semana,
comecei a pensar: “Hum, não é tão ruim assim.”
Segundo: ele é muito legal, de verdade. Quer dizer, é bem
engraçado. Tipo, o professor diz
alguma coisa, e o August sussurra algo divertido para mim,
que ninguém mais ouve e me faz
morrer de rir. Ele também é, além de tudo, um cara legal.
Tipo, é tranquilo ficar com ele,
conversar, essas coisas.
Em terceiro lugar, ele é muito inteligente mesmo. Achei que
estaria atrasado em relação a
todo mundo, porque nunca tinha ido à escola. Mas ele é
melhor que eu na maioria das
matérias. Talvez não seja tão inteligente quanto a Charlotte
ou a Ximena, mas está quase lá. E,
ao contrário delas, ele me deixa colar quando realmente
preciso (embora eu só tenha
precisado umas poucas vezes). Ele também me deixou copiar o
dever de casa uma vez,
embora nós dois tenhamos ficado encrencados por isso depois.
— Vocês dois deram exatamente as mesmas respostas erradas no
dever de casa de ontem —
disse a Sra. Rubin, olhando para nós como se esperasse uma
explicação.
Eu não soube o que dizer, considerando que a explicação
seria: “Ah, foi porque eu copiei o
dever do August.”
Mas ele mentiu para me proteger.
— Ah, foi porque fizemos o dever juntos ontem à noite —
falou, o que definitivamente não
era verdade.
— Bem, fazerem o dever de casa juntos é bom — respondeu a
Sra. Rubin —, mas ainda
assim vocês deveriam trabalhar separados, tudo bem? Podem
estudar lado a lado se quiserem,
mas não podem realmente fazer o dever juntos, certo?
Entenderam?
Depois que saímos da sala, falei:
— Cara, obrigado por ter feito isso.
— Não foi nada — disse o August.
Isso foi legal da parte dele.
Em quarto lugar, agora que o conheço, devo dizer que quero
mesmo ser amigo do August.
No início, admito, só fiquei amigo dele porque o Sr. Buzanfa
tinha me pedido para ser
especialmente legal e tudo mais. Mas agora eu escolheria
andar com ele. O August ri de todas
as minhas piadas. E eu meio que sinto que posso contar
qualquer coisa para ele. Ele é um bom
amigo. Tipo, se todos os garotos do quinto ano estivessem
alinhados em uma parede e eu
tivesse que escolher com qual deles iria querer andar, eu
escolheria o August.
Ex-amigos
Pânico? Que diabo é isso? A Summer Dawson sempre foi um pouco
doida, mas isso foi
demais. Tudo o que fiz foi perguntar a ela por que o August
estava agindo como se estivesse
chateado comigo. Achei que ela saberia. E só o que ela disse
foi “Pânico”? Nem entendi o
que isso significava.
É muito estranho, porque, em um dia, o August e eu éramos
amigos. No dia seguinte, ele mal
falava comigo. E eu não fazia a mínima ideia do motivo.
Então perguntei a ele: “Ei, August,
você está chateado comigo?” Ele apenas deu de ombros e se
afastou. Então definitivamente
tomei isso como um sim. E, como eu tinha certeza de que não
havia feito nada para aborrecê-
lo, imaginei que a Summer pudesse me explicar. Mas tudo o
que consegui arrancar dela foi
“Pânico”. É, grande ajuda. Valeu, Summer.
Sabe, tenho muitos outros amigos na escola. Então, se o
August quer se tornar oficialmente
meu ex-amigo, por mim tudo bem, não me importo. Comecei a
ignorá-lo do mesmo modo que
ele estava fazendo comigo. Na verdade isso é meio difícil,
pois nos sentamos juntos em quase
todas as aulas.
Os outros alunos notaram e começaram a me perguntar se eu e
o August brigamos. Ninguém
pergunta a ele o que está acontecendo. Aliás, quase ninguém
fala com ele. Quer dizer, a única
outra pessoa com quem ele anda além de mim é a Summer. Às
vezes ele fica um pouco com o
Reid Kingsley, e os dois Max o chamaram para jogar Dungeons
& Dragons algumas vezes no
recreio. A Charlotte, apesar de ser toda certinha, não faz
mais do que acenar e dizer oi quando
passa por ele no corredor. E não sei se todos ainda fazem o
jogo da praga pelas costas dele,
porque ninguém nunca me falou sobre isso diretamente, mas a
questão é: não é como se ele
tivesse um monte de outros amigos com quem pudesse ficar
além de mim. Se quer me
desprezar, é ele quem sai perdendo, não eu.
Então é assim que as coisas estão entre nós agora. Só
falamos sobre a escola e se for
estritamente necessário. Tipo, eu pergunto: “Qual foi mesmo
o dever de casa que a Sra. Rubin
passou?” E ele responde. Ou então ele pede: “Posso usar seu
apontador?” E eu empresto.
Mas, assim que o sinal toca, cada um segue seu caminho.
O lado positivo é que agora ando com várias outras pessoas.
Antes, quando eu estava com o
August o tempo todo, o pessoal não queria ficar comigo por
causa dele. Ou escondia coisas de
mim, como o caso da praga. Acho que eu era o único que não
participava, sem contar a
Summer e talvez o grupo do D&D. E a verdade é que,
embora ninguém diga abertamente, não
tem quem queira andar com ele. Todo mundo prefere ficar no
grupo dos populares, e ele está o
mais distante possível disso. Mas agora posso andar com quem
eu quiser. Se eu quisesse estar
no grupo dos populares, poderia muito bem fazer isso.
O lado negativo é que, bem, (a) na verdade, não gosto tanto
assim de andar com os
populares, e (b) eu realmente gostava de andar com o August.
Então isso é muito chato. E é tudo culpa dele.
Neve
A primeira vez que nevou foi logo antes do feriado de Ação
de Graças. A escola não
funcionou e ganhamos mais um dia de folga. Fiquei feliz por
isso, porque estava
superchateado com toda a história do August e queria mesmo
um tempo para esfriar a cabeça
sem ter que encontrá-lo todos os dias. Além disso, acordar
quando está nevando é uma das
coisas de que mais gosto no mundo. Adoro aquela sensação de
abrir os olhos pela manhã e
não saber por que tudo parece diferente. Então, de repente,
você entende: tudo está silencioso.
Não há carros buzinando. Não há ônibus passando nas ruas. Aí
você corre para a janela e, lá
fora, tudo está branco: as calçadas, as árvores, os carros
na rua, as vidraças. E quando isso
acontece em um dia de aula e você descobre que a escola está
fechada, bem, não importa
quanto eu cresça: sempre vou achar que essa é a melhor
sensação do mundo. E não vou ser um
desses adultos que usam guarda-chuva quando está nevando —
nunca.
A escola do papai também estava fechada, então ele levou o
Jamie e eu ao parque, para
descer o Skeleton Hill de trenó. Diziam que uma criança
pequena havia quebrado o pescoço
ao descer esse morro alguns anos antes, mas não sei se é
verdade ou só uma lenda. A caminho
de casa, vi um trenó de madeira destruído apoiado em um
monumento. O papai falou para eu
deixar aquilo lá, que era lixo, mas algo me dizia que aquele
seria o melhor trenó de todos os
tempos. Então ele me deixou levá-lo para casa e passei o
resto do dia consertando-o. Juntei as
ripas de madeira com supercola e passei uma fita adesiva bem
resistente em volta delas, para
reforçar. Depois pintei tudo com a tinta branca que eu havia
comprado para a esfinge de
alabastro de Mênfis, que estava fazendo para o projeto do
Museu Egípcio. Depois que secou,
escrevi RELÂMPAGO em letras douradas na tábua do meio e, em
cima, desenhei um pequeno
raio. Devo dizer que ficou bem profissional. O papai falou:
“Uau, Jack! Você estava certo
sobre o trenó!”
No dia seguinte, voltamos para o parque com o Relâmpago. Era
muito rápido — muito,
muito, muito mais rápido que aqueles trenós de plástico que
a gente usava. E, como a
temperatura tinha aumentado, a neve estava mais úmida e
estalava mais; bem boa para esquiar.
Eu e Jamie nos revezamos no Relâmpago a tarde toda.
Brincamos no parque até nossos dedos
congelarem e os lábios ficarem meio azuis. O papai
praticamente teve que nos arrastar para
casa.
Quando o fim de semana acabou, a neve já estava meio cinza e
amarelada, e então uma
pancada de chuva transformou quase tudo em lama. Ao
voltarmos para a escola na segundafeira,
não tinha mais neve alguma.
O primeiro dia depois do feriado foi chuvoso e nojento. Um
dia enlameado. Também era
assim que eu me sentia por dentro.
Acenei e cumprimentei o August assim que o vi. Estávamos em
frente aos armários. Ele
acenou de volta e disse oi.
Queria lhe contar sobre o Relâmpago, mas não fiz isso.
A sorte favorece os bravos
O preceito do Sr. Browne de dezembro foi: “A sorte favorece
os bravos.” Todos nós
devíamos escrever um parágrafo sobre algum momento em nossa
vida em que tivéssemos feito
algo realmente corajoso e sobre como, por causa disso,
alguma coisa boa nos aconteceu.
Para ser sincero, pensei muito. Acho que a coisa mais
corajosa que já fiz foi ficar amigo do
August. Mas é claro que eu não podia escrever sobre isso.
Fiquei com medo de ter que ler em
voz alta ou que o Sr. Browne pendurasse os textos no quadro
de avisos, como faz de vez em
quando. Então, em vez disso, escrevi um parágrafo idiota
sobre como eu tinha medo do mar
quando era pequeno. Ficou muito bobo, mas não consegui
pensar em mais nada.
Imagino sobre o que o August escreveu. Provavelmente, ele
tem um monte de histórias entre
as quais escolher.
Escola particular
Meus pais não são ricos. Estou dizendo isso porque às vezes
as pessoas pensam que todo
mundo que estuda em escola particular é rico, mas nós não
somos. O papai é professor e a
mamãe é assistente social, o que significa que o emprego
deles não é um daqueles em que as
pessoas ganham zilhões de dólares. A gente tinha um carro,
mas vendeu quando o Jamie entrou
para o jardim de infância na Beecher Prep. Não moramos em
uma casa enorme, nem em um
daqueles prédios com porteiros em frente ao parque. Alugamos
o apartamento de uma senhora
chamada Doña Petra, que fica na cobertura de um prédio de
cinco andares sem elevador, do
“outro lado” da Broadway. Esse é o “código” para a área de
North River Heights, onde as
pessoas não querem estacionar. O Jamie e eu dividimos um
quarto. De vez em quando, ouço
sem querer meus pais falarem coisas como “Será que
conseguimos ficar sem ar-condicionado
mais um ano?” ou “Talvez eu possa trabalhar em dois empregos
nesse verão”.
Aí hoje, no recreio, eu estava com o Julian, o Henry e o
Miles. O Julian, que todo mundo
sabe que é rico, estava dizendo:
— Detesto ter que ir a Paris de novo no Natal. É tão chato!
— Mas, cara, é, tipo, Paris — falei que nem um idiota.
— Pode acreditar, é muito chato — disse ele. — Minha avó
mora em uma casa no meio do
nada. É uma cidadezinha muito, muito minúscula, a uma hora
de Paris. Juro por Deus que nada
acontece lá! Quer dizer, é tipo: “Uau, tem outra mosca na
parede! Olhe, um cachorro novo
dormindo na calçada. Iuhuuu.”
Eu ri. Às vezes o Julian era bem engraçado.
— Mas meus pais estão falando em dar uma grande festa este
ano, em vez de ir a Paris.
Estou torcendo. — continuou Julian. — O que você vai fazer
nas férias?
— Vou ficar por aqui — respondi.
— Que sorte a sua — disse ele.
— Espero que neve outra vez — falei. — Tenho um trenó novo
que é incrível.
Eu ia contar a eles sobre o Relâmpago, mas o Miles me
cortou.
— Eu também tenho um trenó novo! Meu pai comprou na
Hammacher Schlemmer. É
supermoderno.
— Como um trenó pode ser supermoderno? — perguntou o Julian.
— Custou uns oitocentos dólares, sei lá.
— Uau!
— Nós poderíamos apostar uma corrida no Skeleton Hill —
sugeri.
— Esse lugar é tão sem graça... — respondeu o Julian.
— Você só pode estar brincando! — falei. — Um garoto quebrou
o pescoço lá. Por isso que
é chamado de Skeleton Hill.
O Julian estreitou os olhos e me encarou como se eu fosse o
maior idiota do mundo.
— O nome é Skeleton Hill porque era um antigo cemitério
indígena, cara. De todo modo,
agora podia ser chamado de monte do lixo, de tão
emporcalhado que está. Da última vez que
fui lá estava muito sujo, com latas de refrigerante e
garrafas quebradas, essas coisas.
Ele balançou a cabeça.
— Deixei meu antigo trenó lá — disse o Miles. — Era um
pedaço de lixo nojento... e
alguém pegou!
— Talvez um mendigo quisesse deslizar na neve! — zombou o
Julian.
— Onde foi que você o deixou? — perguntei.
— Perto daquela pedra grande no pé da montanha. Quando
voltei no dia seguinte, havia
desaparecido. Não dá para acreditar que alguém realmente
pegou aquilo!
— Podemos fazer o seguinte — começou o Julian —, da próxima
vez que nevar, peço para
o meu pai nos levar até o topo de seu campo de golfe, que
faz o Skeleton Hill parecer uma
piada. Ei, Jack, aonde você vai?
Eu havia começado a me afastar.
— Tenho que pegar um livro no armário — expliquei.
Só queria sair de perto deles depressa. Não queria que
ninguém soubesse que eu era o
“mendigo” que tinha roubado o trenó.
Ciências
Não sou o melhor aluno do mundo. Sei que algumas crianças
gostam mesmo da escola, mas,
para ser sincero, eu não. Gosto de algumas coisas, como
educação física e informática. E do
almoço e da hora do recreio. Mas, de modo geral, ficaria bem
sem ir à escola. E o que mais
odeio é a quantidade de dever de casa. Não basta nos
sentarmos lá aula após aula, tentando
ficar acordados enquanto eles enchem nossa cabeça com todas
aquelas coisas de que
provavelmente nunca iremos precisar, como, por exemplo,
calcular a área da superfície de um
cubo ou saber a diferença entre as energias cinética e
potencial. Tipo, quem se importa? Eu
nunca, nunca ouvi meus pais pronunciarem a palavra
“cinética” em toda a minha vida!
Ciências é a matéria que mais odeio. Temos tanto trabalho e
nem ao menos é divertido! E a
professora, a Sra. Rubin, é supersevera com relação a tudo —
até o modo como escrevemos o
cabeçalho! Uma vez perdi dois pontos em um trabalho porque
não pus a data no topo da folha.
Que maluquice!
Quando eu e o August ainda éramos amigos, eu estava indo bem
em ciências, porque ele se
sentava perto de mim e me deixava copiar suas anotações. O
August é o garoto com o caderno
mais organizado que já vi. Mesmo quando não escrevia em
letra de forma, cada curvinha ia
para cima e para baixo perfeitamente em letrinhas pequenas e
redondas. Mas, agora que não
somos mais amigos, não posso mais pedir para copiar as
anotações dele.
Então eu estava meio confuso hoje, tentando anotar o que a
Sra. Rubin dizia (minha letra é
horrível), quando, de repente, ela começou a falar sobre a
feira de ciências do quinto ano e
que todos tínhamos que escolher um projeto.
Enquanto ela dizia isso, eu pensava: “Acabamos de fazer a
droga do projeto do Egito e
agora temos que começar tudo de novo?” Na minha cabeça, eu
gritava “Nããããão!”, como
aquele garoto de Esqueceram de mim, com a boca escancarada e
as mãos no rosto. Era essa a
cara que eu estava fazendo por dentro. Pensei naquela imagem
do rosto de um fantasma
derretendo, que eu tinha visto em algum lugar, com a boca
bem aberta, gritando. De repente
aquilo me veio à cabeça, aquela lembrança, e entendi o que
Summer queria dizer com
“Pânico”. É tão estranho o modo como entendi tudo naquele
segundo! Alguém da turma tinha
ido com essa fantasia no dia do Halloween. Eu me lembrei de
ter visto a máscara a algumas
carteiras de onde eu estava. E depois não vi mais.
Ah, caramba. Era o August!
Tudo isso me ocorreu no meio da aula de ciências, enquanto a
professora estava falando.
Ah, caramba.
Eu estava falando com o Julian sobre o August. Meu Deus!
Agora eu entendi! Fui tão cruel!
E nem sei por quê. Não tenho certeza do que falei, mas foi
ruim. Foi apenas durante um minuto
ou dois. Foi só porque eu sabia que o Julian e todos os
outros me achavam muito estranho por
andar com o August o tempo todo, e me senti idiota. Não sei
por que falei aquelas coisas. Só
falei o que eles queriam que eu falasse. Eu fui um idiota.
Eu sou um idiota. Ai, meu Deus. Mas
ele ia de Boba Fett. Era ele, então com aquela máscara,
sentado na carteira, olhando para nós.
A máscara branca da cara comprida manchada com sangue falso.
A boca escancarada. Como
se estivesse gritando. Era ele.
Achei que ia vomitar.
Duplas
Depois disso, não ouvi uma palavra sequer do que a Sra.
Rubin estava dizendo. Blá-blá-blá.
Projeto da feira de ciências. Blá-blá-blá. Duplas.
Blá-blá-blá. Parecia o jeito como os adultos
falam nos desenhos do Snoopy. Como se fosse embaixo d’água.
Muah-muah-muahhh, muah,
muahh.
Então, de repente, a Sra. Rubin começou a apontar os alunos
da sala.
— Reid e Tristan, Maya e Max, Charlotte e Ximena, August e
Jack. — Ela apontou para nós
ao dizer isso. — Miles e Amos, Julian e Henry, Savanna e...
— Não ouvi o resto.
— Hein? — perguntei.
O sinal tocou.
— Pessoal, não se esqueçam de sentar com sua dupla para
escolher um projeto da lista! —
disse a Sra. Rubin, enquanto todos se levantavam para sair.
Virei-me para o August, mas ele já estava com a mochila nas
costas, praticamente na porta.
Eu devia estar com cara de idiota, porque o Julian se
aproximou e disse:
— Parece que você e seu melhor amigo são uma dupla. — Ele
deu um sorriso forçado ao
falar isso. Eu odiei tanto o Julian naquele momento! — Terra
para Jack Will, câmbio —
insistiu quando não respondi.
— Cale a boca, Julian.
Eu estava guardando meu fichário na mochila e só queria que
ele me deixasse em paz.
— Você deve estar muito chateado por ter que fazer o
trabalho com ele — disse o Julian. —
Devia dizer à Sra. Rubin que quer trocar de dupla. Aposto
que ela deixaria.
— Não, não deixaria — respondi.
— Fale com ela.
— Não, não quero.
— Sra. Rubin — chamou o Julian, virando-se e levantando a
mão.
A professora estava apagando o quadro, mas se virou ao ouvir
seu nome.
— Não, Julian! — sussurrei, mas de modo brusco.
— O que foi, meninos? — perguntou ela, impaciente.
— Poderíamos trocar de duplas se quiséssemos? — disse o
Julian, com um ar muito
inocente. — Eu e o Jack tínhamos uma ideia que queríamos
fazer juntos para o projeto de
ciências...
— Bem, acho que podemos dar um jeito nisso... — começou ela.
— Não, tudo bem, Sra. Rubin — falei depressa, indo para a
porta. — Tchau!
O Julian correu atrás de mim.
— Por que você fez isso? — perguntou ele quando me alcançou
na escada. — A gente
poderia trabalhar em dupla. Você não tem que ser amigo
daquele esquisito se não quiser,
sabe...
Foi aí que dei um soco nele. Bem na boca.
Detenção
Há coisas que não dá para explicar. Não dá nem para tentar.
Impossível saber por onde
começar. Se eu tentasse abrir a boca, todas as frases se
embolariam em um nó gigante.
Quaisquer palavras soariam erradas.
— Jack, isso é muito, muito grave — dizia o Sr. Buzanfa.
Eu estava na sala dele, sentado em uma cadeira de frente
para sua mesa e olhando para
aquele desenho de abóbora atrás dele.
— Alunos são expulsos por coisas assim, Jack! Sei que é um
bom menino e não quero que
isso aconteça, mas você tem que se explicar.
— Você não é assim, Jack — disse a mamãe.
Ela veio do trabalho logo que recebeu a ligação da escola.
Dava para ver que oscilava entre
muito zangada e muito surpresa.
— Achei que você e o Julian fossem amigos — disse o Sr.
Buzanfa.
— Não somos — falei, os braços cruzados.
— Mas daí a dar um soco na boca dele, Jack? — repreendeu a
mamãe, elevando a voz. —
O que você estava pensando? — Ela olhou para o Sr. Buzanfa.
— De verdade, ele nunca bateu
em ninguém antes. Ele não é assim.
— A boca do Julian estava sangrando, Jack — falou o Sr.
Buzanfa. — Você arrancou um
dente dele, sabia disso?
— Era só um dente de leite — retruquei.
— Jack! — advertiu a mamãe, balançando a cabeça.
— Mas foi o que a enfermeira Molly disse!
— Você não está entendendo — gritou ela.
— Só quero saber por quê — disse o Sr. Buzanfa, dando de
ombros.
— Só iria piorar as coisas — falei com um suspiro.
— É só me contar, Jack.
Dei de ombros, mas não falei nada. Não podia. Se eu dissesse
a ele que o Julian tinha
xingado o August, ele iria questionar o Julian, que diria
como eu também havia falado mal do
August, e todo mundo ficaria sabendo.
— Jack! — disse a mamãe.
Comecei a chorar.
— Sinto muito...
O Sr. Buzanfa ergueu as sobrancelhas e assentiu, mas não
disse nada. Em vez disso, soprou
as mãos, como alguém faz quando está com as mãos geladas.
— Jack — disse ele —, realmente não sei o que falar. Quer
dizer, você deu um soco em um
colega. Temos regras sobre esse tipo de coisa, sabe?
Expulsão imediata. E você nem está
tentando se explicar.
A essa altura eu já estava chorando muito e, no instante em
que a mamãe passou os braços
em volta de mim, desabei.
— Vamos, hum... — começou o Sr. Buzanfa, tirando os óculos
para limpá-los. — Vamos
fazer o seguinte, Jack. Na próxima semana começam as férias.
Que tal você ficar em casa pelo
resto desta semana? E então, quando as férias terminarem,
você volta e tudo será
completamente diferente. Um novo começo, por assim dizer.
— Estou sendo suspenso? — perguntei, fungando.
— Bem — disse ele, encolhendo os ombros —, tecnicamente,
sim, mas só por alguns dias.
E vou lhe dizer uma coisa: enquanto estiver em casa, pense
no que aconteceu. E, se quiser me
escrever uma carta explicando, e outra para o Julian,
pedindo desculpas, então não
colocaremos nada disso no seu histórico, certo? Vá para casa
e converse com seus pais, e
talvez pela manhã as coisas estejam mais claras para você.
— Parece uma boa ideia, Sr. Buzanfa — concordou a mamãe,
assentindo. — Obrigada.
— Tudo vai ficar bem — falou o diretor, dirigindo-se à
porta, que estava fechada. — Sei
que você é um bom menino, Jack. E sei que, às vezes, até os
bons meninos fazem coisas tolas,
não é?
Ele abriu a porta.
— Obrigada por ser tão compreensivo — disse a mamãe,
apertando a mão dele junto à
porta.
— Sem problemas.
Ele se inclinou e disse a ela algo que não consegui ouvir.
— Eu sei, obrigada — falou a mamãe, fazendo que sim.
— Então, garoto — ele se virou para mim e pôs as mãos nos
meus ombros —, pense no que
fez, tudo bem? E boas férias. Feliz Chanucá! Feliz Natal!
Feliz Kwanzaa!
Limpei o nariz na manga do casaco e já estava quase saindo
quando a mamãe me parou com
um tapinha no ombro.
— Agradeça ao Sr. Buzanfa — ordenou.
Eu parei e me virei, mas não consegui olhá-lo.
— Obrigado, Sr. Buzanfa.
— Tchau, Jack — respondeu ele.
Então eu saí.
Votos de Natal
Por mais estranho que pareça, quando voltamos para casa, a
mamãe pegou a correspondência
e havia cartões tanto da família do Julian quanto da família
do August. O cartão do Julian era
uma foto dele usando uma gravata, parecendo que ia à ópera
ou algo assim. O do August tinha
a imagem de um cachorro velho e fofo usando galhada de rena
e nariz e botinhas vermelhos.
Havia um balão acima da cabeça do cachorro no qual se lia:
“Ho, ho, ho!” No cartão estava
escrito:
Para a família Will,
paz na Terra.
Com amor,
Nate, Isabel, Olivia, August (e Daisy)
— Que cartão fofo, hein? — falei para a mamãe, que mal tinha
me dirigido a palavra
durante todo o caminho até em casa. Acho que ela realmente
não sabia o que dizer. — Deve
ser o cachorro deles.
— Você quer me dizer o que está passando pela sua cabeça,
Jack? — disse ela, muito séria.
— Aposto que eles colocam uma foto do cachorro no cartão
todos os anos — continuei.
Ela tirou o cartão das minhas mãos e olhou para a foto com
atenção. Então ergueu as
sobrancelhas e me devolveu o cartão.
— Temos sorte, Jack. Há tantas coisas pelas quais devemos
agradecer...
— Eu sei. — Sabia do que a mamãe estava falando sem que ela
precisasse mencionar. —
Ouvi dizer que a mãe do Julian usou o Photoshop para tirar o
August da foto da turma assim
que a recebeu. E deu uma cópia para algumas outras mães.
— Isso é horrível — falou a mamãe. — As pessoas são tão... elas
nem sempre são legais.
— Eu sei.
— Foi por isso que você bateu no Julian?
— Não.
Então disse a ela o porquê do soco. E falei que eu e o
August não éramos mais amigos. E
contei sobre o Halloween.
Cartas, e-mails, Facebook, mensagens
18 de dezembro
Caro Sr. Buzanfa,
Sinto muito mesmo por ter dado um soco no Julian. Foi muito
errado da minha parte. Estou escrevendo uma carta para ele, dizendo a mesma coisa. Se o senhor não
se importar, prefiro não lhe dizer porque fiz aquilo, pois, na verdade, isso não justificaria nada. Além do
mais, não quero criar problemas para o Julian, por ele ter dito algo que não deveria.
Sinceramente,
Jack Will
18 dedezembro
Caro Julian,
Sinto muito por ter batido em você. Muito mesmo. Foi errado
da minha parte. Espero que você esteja bem. Espero que seu dentepermanente cresça depressa. Os meus
sempre crescem.
Sinceramente,
Jack Will
26 de dezembro
Caro Jack,
Muito obrigado por sua carta. Uma coisa eu aprendi depois de
vinte anos como diretor desta escola:
quase sempre uma história tem mais de dois lados. Embora eu
não conheça os detalhes, tenho uma ideia do motivo quegerou seu confronto com Julian.
Embora nada justifique bater em um colega — nunca —, também
sei que, às vezes, vale a pena
defender um bom amigo. Este tem sido um ano difícil para
muitos alunos, como o primeiro ano do ensino fundamental II costuma ser.
Mantenha o bom trabalho e continue sendo o bom menino que
sabemos que você é.
Tudo de bom,
Lawrence Buzanfa
Diretor do ensino fundamental II
Para: lbuzanfa@beecherschool.edu
Cc: johnwill@phillipsacademy.edu; amandawill@copperbeech.org
De:
melissa.albans@rmail.com
Assunto:
Jack Will
Prezado Sr. Buzanfa,
Conversei com Amanda e John Will ontem, e eles expressaram
seu pesar por Jack ter dado um soco na boca de nosso filho, Julian. Estou escrevendo para informá-lo
de que eu e meu marido apoiamos sua decisão de permitir que Jack volte para a Beecher Prep
depois de dois dias de suspensão. Embora eu ache que bater em um colega possa ser motivo de expulsão em
outras escolas, concordo que medidas extremas como essa não precisam ser tomadas aqui. Conhecemos os Will
desde que as crianças estavam no jardim de infância e sabemos que serão tomadas todas as medidas para
que isso não aconteça denovo.
Por outro lado, pergunto-me se o repentino comportamento
agressivo de Jack não seria consequência do excesso de pressão sobre seus jovens ombros. Estou falando
especificamente do aluno novo com
necessidades especiais do qual Julian e Jack foram
solicitados a “ser amigos”. Em retrospecto, e agora tendo visto o garoto em questão em várias atividades
escolares e na foto da turma, acho que pode ter sido demais pedir a nossos filhos que fossem capazes de lidar com
tanto. É claro que, quando Julian nos disse que estava sendo difícil ficar amigo do garoto, nós o
dissemos que “deixasse isso para lá”. Achamos que a transição para o ensino fundamental II já é difícil o
bastante sem termos que impor fardos mais pesados e outras dificuldades a essas mentes jovens. Também devo dizer
que, como membro do conselho escolar, fiquei um pouco incomodada com o fato de, durante o processo
de inscrição desse aluno, não ter sido levado em consideração que a BeecherPrep não é uma escola
inclusiva. Há muitos pais — eu entre eles — questionando a decisão de aceitar tal aluno em nossa escola.
Por fim, fiquei um pouco desconfortável com o fato de essa criança não ter sido submetida aos mesmos
estritos padrões de inscrição (ou seja, entrevista) pelos quais passaram os outros novos alunos.
Atenciosamente,
Melissa Perper Albans
Para: melissa.albans@rmail.com
De: lbuzanfa@beecherschool.edu
Cc: johnwill@phillipsacademy.edu; amandawill@copperbeech.org
Assunto: Re: Jack Will
Prezada Sra. Albans,
Obrigado por seu e-mail expondo suas preocupações. Se eu não estivesse convencido de que Jack Will
está extremamente arrependido de seus atos e se não estivesse seguro de que ele não os repetirá, com
certeza não permitiria que voltasse à BeecherPrep.
Quanto a suas questões com relação a nosso novo aluno, August, por favor, entenda que ele não tem
necessidades especiais. Não é deficiente, limitado, nem tem qualquer atraso no desenvolvimento em nenhum
sentido, portanto não há motivo para que se questione sua admissão na Beecher Prep —
independentemente de esta ser ou não uma instituição inclusiva. Com relação ao processo de inscrição, por
motivos óbvios, o diretor de admissões e eu nos sentimos no direito de fazer a entrevista com August em sua
casa. Achamos que essa pequena quebra de protocolo era justificável e não prejudicava em sentido algum o
processo seletivo. August é excelente aluno e conquistou a amizade de alguns jovens excepcionais, incluindo
Jack Will.
No começo do ano letivo, quando recrutei algumas crianças para formar um “comitê de boas-vindas”
para August, meu intuito era facilitar sua adaptação ao ambiente escolar. Não achei que pedir a essas
crianças que fossem um pouco mais gentis com um novo aluno fosse pôr “um fardo ou dificuldades extras”
sobre seus ombros. Na verdade, achei que isso poderia lhes ensinar sobre empatia, amizade e lealdade.
Como foi provado, Jack Will não precisava aprender nenhuma dessas virtudes — ele já as tem de sobra.
Mais uma vez, obrigado pelo contato.
Sinceramente,
Lawrence Buzanfa
Para: melissa.albans@rmail.com
De: johnwill@phillipsacademy.edu
Cc: lbuzanfa@beecherschool.edu; amandawill@copperbeech.org
Assunto: Re: Jack Will
Oi, Melissa,
Obrigado por ser tão compreensiva com relação ao incidente
com Jack. Como você já sabe, ele está muito arrependido do que fez. Espero que aceite nossa oferta
de pagar a conta do dentista de Julian.
Estamos muito tocados por sua preocupação no que diz
respeito à amizade de Jack com August. Saiba que perguntamos a Jack se ele se sente pressionado com
relação a isso e sua resposta foi um não categórico. Ele gosta da companhia de August e acha que fez um
bom amigo.
Feliz Ano-novo!
John e Amanda Will
Oi, August,
Jacklope Will quer ser seu amigo no Facebook.
Jacklope Will
32 amigos em comum
Obrigado,
A equipe do Facebook
Para: auggiebobipullman@email.com
Assunto: Desculpe!!!!!!
Mensagem:
Oi august. Sou eu, Jack Will. Percebi que não to mais na sua lista de amigos. Espero q vc me add denovo,
pq sinto muito. Só queria dizer isso. Desculpa. Agora sei pq vc ficou chateado cmg. Sinto muito. Não queria
dizer aquilo. Fui idiota. Espero que vc me perdoe.
Tomara q a gente possa ser amigo de novo
Jack
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De: AUGUST
31 dez 4:47PM
recebi sua msg vc sabe pq estou chateado? a Summer contou?
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De: JACKWILL
31 dez 4:49PM
Ela deu a dica “pânico” mas não entendi de primeira depois
lembrei que vi uma máscara do pânico na sala no
Halloween. não sabia q era vc achei que fosse de Boba Fett.
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De: AUGUST
31 dez 4:51PM
Mudei de ideia na última hora. Vc bateu msm no Julian?
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De: JACKWILL
31 dez 4:54PM
Sim bati nele e arranquei um dente. De leite.
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De: AUGUST
31 dez 4:55PM
p q vc bateu nele???????
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De: JACKWILL
31 dez 4:56PM
ñ sei
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De: AUGUST
31 dez 4:58PM
mentira. aposto q ele falou alg coisa de mim né?
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De: JACKWILL
31 dez 5:02PM
ele é um idiota. mas eu tb fui. desculpa mesmo pelo q falei
cara. podemos ser amigos de novo?
1 nova mensagem
De: AUGUST
31 dez 5:03PM
ok.
1 nova mensagem
De: JACKWILL
31 dez 5:04PM
irado!!!!
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De: AUGUST
31 dez 5:06PM
mas me diz a verdade, tá?
vc se mataria de verdade se fosse eu???
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De: JACKWILL
31 dez 5:08PM
não!!!!!
juro pela minha vida
mas cara...
eu ia querer me matar se fosse o Julian ;)
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De: AUGUST
31 dez 5:10PM
lol
sim Cara, somos amigos.
De volta das férias
Apesar do que o Sr. Buzanfa disse, não houve um “novo
começo” quando voltei para a escola
em janeiro. Na verdade, as coisas ficaram completamente
estranhas desde o instante em que
cheguei ao meu armário, pela manhã. Eu estava perto do Amos,
que sempre foi um garoto bem
legal, e perguntei “E aí?”. Ele apenas assentiu com a
cabeça, fechou o armário e foi embora.
Achei isso meio bizarro. Então falei “E aí?” para o Henry,
que simplesmente olhou para outro
lado, sem dar nem um sorrisinho.
Certo, então algo estava acontecendo. Ignorado por duas
pessoas em menos de cinco
minutos. Não que eu estivesse contando. Pensei em tentar
mais uma vez, com o Tristan, e,
bingo!, foi a mesma coisa. Ele até pareceu nervoso, como se
estivesse com medo de falar
comigo.
Eu agora tinha uma espécie de praga, pensei. Essa era a
vingança do Julian.
E as coisas foram assim a manhã inteira. Ninguém falou
comigo. Mentira: as meninas agiram
normalmente. E o August falou comigo, claro. E, na verdade,
os dois Max também, o que me
deixou um pouco mal por nunca, nem uma vez, ter andado com
eles, nos cinco anos em que
estudamos na mesma turma.
Esperava que o almoço fosse melhor, mas não foi. Sentei na
mesa de sempre, com o Luca e
o Isaiah. Como eles não eram do grupo dos superpopulares, e
sim dos atletas, que ficava “no
meio do caminho”, achei que estaria seguro com eles. Mas,
quando falei oi, eles mal me
cumprimentaram com um aceno de cabeça. Aí, quando nossa mesa
foi chamada, eles pegaram
a comida e não voltaram. Vi os dois se sentarem do outro
lado do refeitório. Não na mesa do
Julian, mas bem perto, como às margens da popularidade. De
todo modo, eu havia sido
dispensado. Sabia que mudar de mesa era normal no quinto
ano, mas nunca tinha pensado que
aconteceria comigo.
Foi mesmo horrível ficar sozinho. Eu sentia que todos
estavam me olhando. Isso também me
fez achar que não tinha amigos. Decidi não almoçar e ir para
a biblioteca.
A guerra
Foi a Charlotte quem me deu a dica de por que todo mundo
estava me ignorando. Encontrei um
bilhete no meu armário no fim do dia:
Vá para a sala 301 logo depois das aulas.
Sozinho! Charlotte.
Ela já estava lá quando cheguei.
— E aí? — falei.
— Oi. — Ela foi até a porta, olhou para os dois lados,
depois fechou-a e trancou. Então se
virou para me encarar e começou a roer a unha enquanto
falava. — Olha, estou chateada com
o que está acontecendo e só queria dizer o que eu sei.
Prometa que não vai dizer a ninguém
que fui eu que contei.
— Prometo.
— A questão é que o Julian deu um festão de fim de ano
durante as férias. Tipo, gigante
mesmo. Uma amiga da minha irmã fez o baile de debutante no
mesmo lugar ano passado.
Foram umas duzentas pessoas. Tipo, o lugar é enorme.
— Sim, e daí?
— Sim, e... bem, praticamente todo mundo do quinto ano estava
lá.
— Nem todo mundo — brinquei.
— Certo, nem todo mundo. Dã. Mas, tipo, até os pais estavam
lá, sabe? Meus pais foram.
Você sabe que a mãe do Julian é vice-presidente do conselho
escolar, não sabe? Então ela
conhece muitas pessoas. Então, o que aconteceu na festa foi
que o Julian saiu falando para
todo mundo que você bateu nele por que tem problemas
emocionais...
— O quê?!
— E que você teria sido expulso, mas que seus pais
imploraram para que a escola não
fizesse isso...
— O quê?!
— E que nada disso teria acontecido se o Sr. Buzanfa não
tivesse obrigado você a ser amigo
do Auggie. Ele disse que a mãe dele acha que você, abre
aspas, perdeu a cabeça com a
pressão, fecha aspas...
Eu não podia acreditar no que estava ouvindo.
— Ninguém acreditou nisso, certo? — perguntei.
Ela deu de ombros.
— A questão não é essa. A questão é que ele é muito popular.
E, sabe, minha mãe ouviu
dizer que a mãe dele está tentando obrigar a diretoria a
reavaliar a entrada do August na
escola.
— Ela pode fazer isso?
— É porque a Beecher não é uma escola inclusiva, ou seja,
que mistura alunos normais com
alunos que têm necessidades especiais.
— Isso é idiotice. O August não tem necessidades especiais.
— É, mas ela está alegando que, se a escola está mudando a
forma como costuma fazer as
coisas...
— Mas eles não mudaram nada!
— Mudaram, sim. Você não percebeu que eles trocaram o tema
do trabalho de artes de Anonovo?
Nos anos anteriores, os alunos do quinto ano pintaram
autorretratos, mas este ano eles
nos fizeram pintar aqueles retratos ridículos de nós como
animais, lembra?
— Grande coisa!
— Eu sei! Não estou dizendo que concordo, só o que ela está
falando.
— Eu sei, eu sei. Isso é tão errado...
— Eu sei. Enfim, o Julian disse que acha que a amizade com o
Auggie está prejudicando
você e que, para seu próprio bem, você tem que parar de
andar tanto com ele. Daí, se você
começasse a perder todos os seus antigos amigos, isso seria
um grande alerta. Então,
basicamente, para seu próprio bem, ele vai deixar de ser seu
amigo.
— Tenho uma novidade: parei de ser amigo dele antes!
— Sim, mas ele convenceu todos os meninos a deixarem de ser
seus amigos... para o seu
próprio bem. Por isso ninguém está falando com você.
— Você está falando comigo.
— Sim, bem, é uma coisa dos meninos — explicou ela. — As
meninas estão se mantendo
neutras. Com exceção do grupo da Savanna, porque elas
namoram os garotos do grupo do
Julian. Mas, para todas as outras, essa é uma guerra dos
meninos.
Assenti. Ela inclinou a cabeça de lado e fez um biquinho,
como se estivesse com pena de
mim.
— Tudo bem eu ter contado tudo isso para você? — perguntou.
— Claro! Não me importo com quem fala comigo ou não — menti.
— Isso é tudo uma
grande bobagem.
Ela concordou com a cabeça.
— Ei, o Auggie está sabendo disso?
— Claro que não. Pelo menos, eu não contei.
— E a Summer?
— Acho que não. Olha, tenho que ir. E, só para você saber,
minha mãe acha que a mãe do
Julian é uma completa idiota. Disse que pessoas como ela
estão mais preocupadas com uma
foto bonita da turma do filho do que com fazer o que é
certo. Você soube do Photoshop, não
soube?
— Sim, foi nojento.
— Totalmente — disse ela, assentindo. — Bem, tenho que ir.
Só queria que você soubesse
o que está acontecendo.
— Obrigado, Charlotte.
— Se eu ouvir mais alguma coisa, falo com você.
Antes de sair, ela olhou para os dois lados do corredor,
para ter certeza de que ninguém a
veria. Acho que, embora estivesse neutra, não queria ser
pega comigo.
Trocando de mesa
No almoço do dia seguinte, eu, idiota, me sentei à mesa com
Tristan, Nino e Pablo. Achei que
talvez não tivesse problema porque eles não eram muito
populares, mas também não jogavam
D&D no recreio. Eles eram meio mais ou menos. E, a
princípio, pensei que tivesse
funcionado, porque eles eram legais demais para simplesmente
ignorar minha presença quando
me aproximei da mesa. Mas então aconteceu como na véspera:
nossa mesa foi chamada, eles
pegaram a comida e foram para outro lugar, do outro lado do
refeitório.
Infelizmente, a Sra. G., que estava supervisionando o almoço
nesse dia, viu o que aconteceu
e foi atrás deles. “Isso não é permitido, meninos!”,
repreendeu-os em voz alta. “Esta escola
não é assim. Voltem já para a sua mesa.”
Ah, ótimo. Como se isso fosse ajudar. Antes que eles fossem
obrigados a voltar para a
mesa, eu me levantei com minha bandeja e saí bem depressa.
Percebi a Sra. G. me chamando,
mas fingi que não ouvi e continuei andando para o lado
oposto, atrás do balcão de almoço.
“Vem sentar com a gente, Jack!”
Era a Summer. Ela e o August estavam à mesa deles, e os dois
acenavam para mim.
Por que não me sentei com o August no primeiro dia de aula
Certo, sou completamente hipócrita. Eu sei. Lembro-me de ver
o August no refeitório no
primeiro dia de aula. Todo mundo estava olhando para ele.
Falando dele. Naquela época
ninguém estava acostumado com seu rosto nem sabia que ele ia
estudar na Beecher, por isso a
maioria das pessoas levou um grande susto ao vê-lo.
Então, quando o vi indo para o refeitório à minha frente,
sabia que ele não tinha com quem
se sentar, mas não tive coragem de fazer nada. Eu tinha
passado a manhã inteira com ele,
porque tínhamos muitas aulas juntos, e acho que queria um
pouco de tempo para ficar com o
restante do pessoal. Então, quando o vi indo para uma mesa
do outro lado do balcão de
serviço, intencionalmente escolhi outra o mais longe
possível. Sentei-me com o Isaiah e o
Luca, mesmo sem nunca ter visto os dois antes, passamos o
tempo todo falando de beisebol,
depois jogamos basquete no recreio. Desde então eles se
tornaram meu grupo do almoço.
Ouvi dizer que a Summer havia se sentado com August, o que
me surpreendeu porque eu
sabia que ela não era um dos alunos a quem o Sr. Buzanfa
tinha pedido que fossem amigos do
Auggie. Então eu sabia que ela estava fazendo aquilo só para
ser legal e achei muito corajoso.
Agora ali estava eu, sentado com a Summer e o August, e eles
estavam sendo superlegais
comigo, como sempre. Contei-lhes tudo o que a Charlotte
havia me dito, exceto a parte de eu
ter “perdido a cabeça” por causa da pressão de ser amigo do
Auggie, a parte sobre a mãe do
Julian estar dizendo que o August tem necessidades especiais
e a parte sobre o conselho
escolar. Acho que, na verdade, só contei que o Julian deu
uma festa nas férias e conseguiu pôr
todo o quinto ano contra mim.
— É tão estranho — comentei — as pessoas não falarem com
você, fingirem que você não
existe.
August abriu um sorriso.
— Acha mesmo? — perguntou, sarcástico. — Bem-vindo ao meu
mundo!
Grupos
— Então esses são os grupos oficiais — disse a Summer à mesa
do almoço no dia seguinte.
Ela pegou uma folha de papel dobrada e a abriu. Havia três
colunas com nomes.
Grupos
— Então esses são os grupos oficiais — disse a Summer à mesa do almoço no dia seguinte.
Ela pegou uma folha de papel dobrada e a abriu. Havia três colunas com nomes
— Onde você conseguiu isso? — perguntou o Auggie, olhando
por cima do meu ombro
enquanto eu lia a lista.
— Foi a Charlotte que fez — disse a Summer depressa. — Ela
me deu na última aula. Disse
que acha que você deveria saber quem está do seu lado, Jack.
— É, não é muita gente, com certeza — falei.
— O Reid está — disse a Summer. — E os dois Max.
— Ótimo. Os nerds estão do meu lado.
— Não seja mau — repreendeu ela. — A propósito, acho que a
Charlotte gosta de você.
— É, eu sei.
— Você vai chamá-la para sair?
— Está brincando? Não posso, agora que todos estão agindo
como se eu tivesse a praga.
Assim que as palavras saíram da minha boca, percebi que não
deveria ter dito aquilo.
Houve um momento constrangedor de silêncio. Olhei para o
Auggie.
— Tudo bem — disse ele. — Eu já sabia.
— Foi mal, cara — falei.
— Mas não sabia que eles chamavam de praga. Achei que fosse
algo como o Toque do
Queijo, ou algo assim.
— Ah, é, como em O Diário de um banana — assenti.
— A praga realmente soa melhor — zombou ele. — Como se alguém
pudesse pegar a
“peste negra da feiura”. — Ao dizer isso, ele fez sinal de
aspas com os dedos.
— Acho horrível — comentou a Summer, mas o Auggie deu de
ombros, tomando um gole de
suco.
— De todo modo, não vou chamar a Charlotte para sair —
falei.
— Minha mãe acha que somos muito novos para namorar — disse
a Summer.
— E se o Reid chamasse você? — perguntei. — Você aceitaria?
Dava para ver que ela estava surpresa.
— Não!
— É só uma pergunta — falei, rindo.
Ela balançou a cabeça e sorriu.
— Por quê? O que você sabe?
— Nada! Só estou perguntando!
— Na verdade, concordo com minha mãe. Acho que somos muito
novos para namorar. Quer
dizer, não entendo por que a pressa.
— É, também acho — disse o August. — O que é uma pena, sabe,
com todas essas gatinhas
se jogando em cima de mim e tudo mais...
Ele disse isso de um jeito tão engraçado que o leite que eu
estava tomando saiu pelo meu
nariz quando ri, o que nos fez cair ainda mais na
gargalhada.
A casa do August
Já estávamos na metade de janeiro nem sequer havíamos
escolhido o tema do nosso projeto
para a feira de ciências. Acho que fiquei adiando porque não
queria fazer isso. Por fim, o
August disse: “Cara, temos que fazer o projeto.” Então fomos
à casa dele depois da escola.
Eu estava muito nervoso porque não sabia se o August tinha
contado aos pais sobre o que
chamávamos de “o incidente do Halloween”. Acontece que o pai
dele não estava e a mãe tinha
saído para resolver algumas coisas na rua. Mas tenho
certeza, pelos dois segundos em que
falei com ela, que o August nunca disse uma palavra sobre
aquilo. Ela foi superlegal e
amigável comigo.
Quando entrei no quarto do August pela primeira vez, foi
tipo:
— Uau, Auggie, você é mesmo viciado em Star Wars.
Ele tinha prateleiras cheias de miniaturas de Star Wars, e
um enorme pôster de O império
contra-ataca na parede.
— Eu sei — disse ele, rindo.
Ele se sentou em uma cadeira de rodinhas perto da
escrivaninha e eu me joguei em um pufe
no canto. Foi então que o cachorro deles veio todo animado
para o quarto, direto para cima de
mim.
— Ele estava no cartão de Natal! — falei, deixando-o cheirar
minha mão.
— Ela — corrigiu ele. — Daisy. Pode fazer carinho. Ela não
morde.
Quando comecei a fazer carinho nela, a cachorrinha
praticamente rolou e ficou de barriga
para cima.
— Ela quer que você coce a barriga dela.
— Sério, esse é o bichinho mais fofo que já vi — falei.
— Não é? É a melhor cachorrinha do mundo. Não é, garota?
Assim que ouviu o Auggie falar desse jeito, ela começou a
balançar o rabo e foi para perto
dele.
— Quem é minha garotinha? Quem é minha garotinha? —
perguntava o Auggie enquanto ela
lambia a cara dele toda.
— Eu queria ter um cachorro — falei. — Mas meus pais acham
que nosso apartamento é
pequeno demais. — Comecei a olhar as coisas no quarto enquanto
ele ligava o computador. —
Ei, você tem um Xbox 360? Podemos jogar?
— Cara, viemos aqui para fazer o projeto de ciências.
— Você tem Halo?
— É claro que tenho.
— Por favor, vamos jogar?
Ele havia se conectado ao site da Beecher e estava olhando a
lista dos projetos de ciências
da Sra. Rubin.
— Você consegue ver daí? — perguntou Auggie.
Suspirei e fui sentar em um banco do lado dele.
— Que iMac maneiro — falei.
— Qual o seu computador?
— Cara, eu não tenho nem meu próprio quarto, que dirá um
computador para mim. Meus
pais tem um Dell velho que já está praticamente morto.
— Certo, o que você acha desse? — disse ele, virando a tela
para que eu pudesse ver. Dei
uma olhada rápida na página e meus olhos literalmente
começaram a embaçar. — Um relógio
de sol. Parece legal.
Eu me inclinei para trás.
— Não podemos apenas fazer um vulcão?
— Todo mundo faz vulcões.
— Porque é fácil, cara — falei, fazendo carinho na Daisy de
novo.
— Que tal fazer cristais com sais de banho?
— Parece chato — respondi. — Por que o nome dela é Daisy?
Ele não tirou os olhos da tela.
— Foi minha irmã que escolheu. Eu queria chamá-la de Darth.
Na verdade, o nome
completo dela é Darth Daisy, mas nunca a chamamos assim.
— Darth Daisy! É engraçado! Oi, Darth Daisy — falei para a
cadela, que rolou de costas de
novo para que eu coçasse sua barriga.
— Certo, vai ser esse aqui — disse August, apontando para a
tela, que mostrava a imagem
de um monte de batatas com arames espetados. — Como criar
uma bateria orgânica com
batatas. É legal. Aqui diz que podemos acender uma lâmpada
com isso. Poderíamos chamar de
“Senhor Lâmpada de Batata” ou algo assim. O que acha?
— Cara, parece muito difícil. Você sabe que sou péssimo em
ciências.
— Pare com isso, não é nada!
— Sou, sim! Tirei 54 no último teste. Sou péssimo em
ciências!
— Não é! E isso só aconteceu porque ainda estávamos brigados
e eu não estava ajudando
você. Posso ajudá-lo agora. É um projeto legal, Jack. Temos
que fazê-lo.
— Tudo bem. Tanto faz — falei e dei de ombros.
Nesse momento alguém bateu à porta. Uma adolescente com
cabelos compridos e ondulados
enfiou a cabeça no quarto. Ela não esperava me ver.
— Ah, oi — falou para nós dois.
— Oi, Via — disse o August, voltando a olhar para o
computador. — Via, esse é o Jack.
Jack, essa é a Via.
— Oi — falei, acenando.
— Oi — disse a irmã dele, olhando para mim com atenção.
No instante em que o Auggie disse meu nome, percebi que ele
havia lhe contado tudo o que
eu tinha dito sobre ele. Dava para ver pelo modo como ela me
olhou. Na verdade, o modo
como ela me olhou me fez pensar que se lembrava de mim
daquele dia na sorveteria da
Amesfort Avenue, tantos anos antes.
— Auggie, tenho um amigo que quero apresentar a você, o.k.?
— disse ela. — Ele vai
chegar em alguns minutos.
— É seu novo namorado? — provocou August.
Via chutou o assento da cadeira dele.
— Seja legal — ela falou e saiu do quarto.
— Cara, sua irmã é linda — comentei.
— Eu sei.
— Ela me odeia, né? Você contou a ela sobre o incidente do Halloween?
— Sim.
— Sim, ela me odeia ou sim, você contou a ela sobre o
Halloween?
— As duas coisas.
O namorado
Dois minutos depois, a irmã dele voltou com um garoto
chamado Justin. Parecia um cara bem
legal. Cabelos meio compridos. Oclinhos redondos. Ele carregava
um estojo prateado
brilhante e comprido, com uma das extremidades mais fina.
— Justin, esse é meu irmão mais novo, August — disse Via. —
E esse é o Jack.
— Oi, meninos — falou o Justin, apertando nossas mãos. Ele
parecia um pouco nervoso.
Talvez porque estivesse encontrando o August pela primeira
vez. Às vezes esqueço como é
chocante a primeira vez. — Que quarto maneiro.
— Você é o namorado da Via? — perguntou o Auggie, com
malícia, e a irmã abaixou o
boné dele, cobrindo seu rosto.
— O que tem nesse estojo? — falei. — Uma metralhadora?
— Rá! Essa foi boa — disse o namorado. — Não é um... hum...
violino.
— Justin é violinista — falou a Via. — Ele toca em uma banda
de zydeco.
— O que raios é zydeco? — indagou o Auggie, olhando para
mim.
— É um tipo de música — respondeu o Justin. — Como música
crioula.
— O que é isso? — perguntei.
— Você devia dizer às pessoas que é uma metralhadora —
sugeriu o Auggie. — Ninguém
nunca ia mexer com você.
— É, acho que você tem razão — disse o Justin, assentindo e
botando o cabelo para trás da
orelha. — É um tipo de música da Louisiana.
— Você é de lá? — perguntei.
— Hum... Não — respondeu ele, empurrando os óculos para
cima. — Sou do Brooklyn.
Não sei por que isso me deu vontade de rir.
— Venha, Justin — disse a Via, puxando-o pela mão. — Vamos
para o meu quarto.
— Certo, vejo vocês mais tarde, garotos. Tchau — disse ele.
— Tchau!
— Tchau!
Assim que eles saíram do quarto, Auggie olhou para mim,
sorrindo.
— Sou do Brooklyn — falei, e nós dois começamos a rir
histericamente
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