Parte seis

O CARREGADOR DE SONHOS
APRESENTANDO :
o diário da morte
o boneco de neve
treze presentes
o livro seguinte
o pesadelo de um cadáver judeu
céu de jornal
uma visita
um schmunzeler
e um último beijo em faces envenenadas

DIÁRIO DA MORTE: 1942

Foi um ano para ficar na história, como 79 ou 1346, para citar apenas alguns. Esqueça a foice, diabos, eu precisava era de uma vassoura ou um rodo. E precisava de umas férias.

• UMA VERDADEZINHA •
Eu não carrego gadanha nem foice.
Só uso um manto preto com capuz quando faz frio.
E não tenho aquelas feições de caveira que vocês
parecem gostar de me atribuir à distância.
Quer saber a minha verdadeira aparência?
Eu ajudo. Procure um espelho enquanto eu continuo.

Na verdade, sinto-me muito complacente comigo mesma neste momento, a lhe contar tudo a respeito de mim, mim, mim. Minhas viagens, o que eu vi em '42. Por outro lado, você é um ser humano — deve entender dessa obsessão consigo mesmo. A questão é que há uma razão para eu explicar o que vi naquela época. Muito daquilo teria repercussões para Liesel Meminger. Fez a guerra chegar mais perto Da Rua Himmel, e me arrastou de carona.

Certamente houve muitas rondas a fazer naquele ano, da Polônia à Rússia à África, ida e volta. Talvez você argumente que eu faço a ronda em qualquer ano, mas às vezes a raça humana gosta de acelerar um pouquinho as coisas. Aumenta a produção de corpos e das almas que escapam. Umas tantas bombas costumam resolver a questão. Ou umas câmaras de gás ou a conversinha de canhões distantes. Quando nada disso conclui os procedimentos, pelo menos despoja as pessoas de seus meios de subsistência, e passo a ver gente sem teto por toda parte. É comum eles virem atrás de mim quando vago pelas ruas das cidades violentadas. Imploram que eu os leve, sem perceber que já estou atarefada demais. "A sua hora chegará", eu os convenço, e procuro não olhar para trás. Vez por outra, gostaria de dizer algo como "Não vê que já estou com as mãos cheias?", mas nunca o faço. Reclamo internamente enquanto vou fazendo meu trabalho, e há anos em que as almas e os corpos não se somam, multiplicam-se.

• CHAMADA ABREVIADA DE 1942 •
1. Os judeus desesperados — seus espíritos no meu colo,
ao nos sentarmos no telhado, junto às chaminés fumegantes.
2. Os soldados russos — que só carregam pequenas quantidades
de munição, contando com os tombados para arranjar o resto.
3. Os corpos encharcados de um litoral francês
— encalhados nos seixos e na areia.

• • •

Eu poderia prosseguir, mas resolvi que, por ora, esses três exemplos bastam. Três exemplos, que mais não seja, deixarão em sua boca o gosto de cinza que definiu minha existência durante aquele ano.

Muitos seres humanos.
Muitas cores.

São disparadores dentro de mim. Torturam minha memória. Vejo-os em suas pilhas altas, todos trepados uns por cima dos outros. O ar parece feito de plástico, um horizonte como cola poente. Existem céus fabricados pelas pessoas, perfurados e vazantes, e há nuvens macias, cor de carvão, que pulsam como corações negros.
E depois.
Vem a morte.
Abrindo caminho por aquilo tudo.
Na superfície, imperturbável, resoluta.
Por baixo, abatida, desatada, desfeita.

Com toda a franqueza (e sei que agora estou reclamando demais), eu ainda estava me refazendo de Stalin, na Rússia. Da chamada segunda revolução — o assassinato de seu próprio povo.
E então veio Hitler.
Dizem que a guerra é a melhor amiga da morte, mas devo oferecer-lhe um ponto de vista diferente a esse respeito. Para mim, a guerra é como aquele novo chefe que espera o impossível. Olha por cima do ombro da gente e repete sem parar a mesma coisa: "Apronte logo isso, apronte logo isso." E aí a gente aumenta o trabalho. Faz o que tem que ser feito. Mas o chefe não agradece. Pede mais.

Muitas vezes, tento lembrar-me dos retalhos de beleza que também vi naqueles tempos. Revolvo minha biblioteca de histórias.
Na verdade, estou pegando uma agora.
Creio que você já sabe metade dela e, se vier comigo, eu lhe mostro o resto. Mostro-lhe a segunda metade de uma menina que roubava livros.
Sem saber, ela aguarda inúmeras coisas a que aludi há pouco, mas também espera por você.
Está carregando neve para um porão, imagine só.
Punhados de neve congelada são capazes de fazer quase qualquer um sorrir, mas não nos podem fazer esquecer.
Lá vem ela.

O BONECO DE NEVE

Para Liesel Meminger, os primeiros estágios de 1942 poderiam ser resumidos assim:
Ela completou treze anos. Ainda tinha o peito chato. Não havia menstruado. O rapaz do porão estava agora em sua cama.

• PERGUNTA/RESPOSTA •
Como é que Max Vandenburg
foi parar na cama de Liesel?
Ele caiu.

As opiniões variaram, mas Rosa Hubermann afirmou que as sementes tinham sido plantadas no Natal do ano anterior.
O dia 24 de dezembro fora de fome e frio, mas houve uma grande vantagem — nada de visitas prolongadas. Hans Júnior estava simultaneamente atirando nos russos e dando continuidade a sua greve de interações familiares. Trudy só poderia dar uma passada no fim de semana anterior ao Natal, por algumas horas. Ia viajar com a família para a qual trabalhava. Férias para uma classe muito diferente da Alemanha.
Na noite de Natal, Liesel levou de presente para Max um punhado duplo de neve.
— Feche os olhos — disse. — Estenda as mãos.
Assim que a neve foi transferida, Max estremeceu e riu, mas continuou sem abrir os olhos. Só fez dar uma provadinha rápida na neve, deixando-a derreter em seus lábios.
— Este é o boletim meteorológico de hoje?
Liesel parou a seu lado.
Tocou-lhe delicadamente o braço.
Ele tornou a levar a neve à boca.
— Obrigado, Liesel.
Foi o começo do melhor de todos os Natais. Pouca comida. Nenhum presente. Mas houve um boneco de neve no porão.

Depois de entregar os primeiros punhados de neve, Liesel se certificou de que não havia ninguém do lado de fora e tratou de levar para lá todos os baldes e panelas que pôde. Encheu-os com os montes de neve e gelo que cobriam a pequena tira de mundo que era a Rua Himmel. Depois de cheios, levou-os para dentro e os carregou para o porão.
A bem da justiça, primeiro ela jogou uma bola de neve em Max e recebeu o troco na barriga. Max chegou até a atirar uma em Hans Hubermann quando ele descia a escada do porão.
— Arschloch! — gritou o pai. — Liesel, me dê um bocado dessa neve. Um balde inteiro!
Durante alguns minutos, todos se esqueceram. Não houve mais gritos nem nomes sendo chamados, mas eles não puderam conter os pequenos frouxos de riso. Eram apenas humanos, brincando na neve dentro de casa.
O pai olhou para as panelas cheias de neve.
— Que vamos fazer com o resto?
— Um boneco de neve — respondeu Liesel. — Temos que fazer um boneco de neve.
O pai chamou Rosa.
A voz distante de praxe arremessou-se de volta.
— O que é agora, Saukerl?
— Venha aqui embaixo, sim?
Quando sua mulher apareceu, Hans Hubermann pôs a vida em risco, atirando-lhe uma esplêndida bolada de neve. Errando por pouco, a bola desintegrou-se ao bater na parede, e a mãe teve uma desculpa para xingar por um longo tempo, sem nem parar para respirar. Depois que se recuperou, desceu para ajudá-los. Foi inclusive buscar botões para os olhos e o nariz e um pedaço de  barbante para fazer um sorriso de boneco de neve. E até um cachecol e um chapéu foram providenciados para o que era, na verdade, apenas um homem de neve de sessenta centímetros.
— Um anão — disse Max.
— O que a gente faz quando ele derreter? — perguntou Liesel. Rosa tinha a resposta.
— Você seca com o esfregão, Saumensch, e depressa.
O pai discordou.
— Não vai derreter — e esfregou as mãos, soprando-as. — Está de enregelar aqui embaixo.
Derreter, derreteu, mas, em algum lugar dentro deles, aquele homem de neve continuou de pé. Deve ler sido a última coisa que eles viram naquela véspera Natal, quando enfim adormeceram. Tinham um acordeão nos ouvidos, um boneco de neve nos olhos e, para Liesel, a lembrança das últimas palavras de Max, antes de ela o deixar junto à lareira.

• AS SAUDAÇÕES NATALINAS DE •
MAX VANDENBURG
— Muitas vezes, Liesel, eu gostaria que isso tudo
acabasse, mas aí, de algum modo, você faz uma
coisa como descer ao porão carregando um boneco de neve.

Infelizmente, essa noite assinalou um severo declínio da saúde de Max. Os primeiros sinais foram bastante inocentes, e típicos. O frio constante. As mãos nadando em suor. O aumento das visões do boxe com o Führer. Só quando ele não conseguiu mais se aquecer, depois das flexões e das abdominais, foi que a coisa começou realmente a preocupá-lo. Por mais perto do fogo que se sentasse, ele não conseguia elevar-se a nenhum grau de saúde relativa. Dia após dia, o peso começou a lhe despencar do corpo. Seu regime de exercícios cambaleou e sedesfez, com o rosto encostado no piso áspero do porão.
Durante todo o mês de janeiro, ele conseguiu se aguentar, mas, no começo de fevereiro, Max estava numa forma preocupante. Fazia força para acordar junto à lareira, mas, em vez disso, dormia boa parte da manhã, com a boca torta e as maçãs do rosto começando a inchar. Quando lhe perguntavam, dizia que estava ótimo.
Em meados de fevereiro, dias antes de Liesel fazer treze anos, ele se aproximou da lareira, à beira do colapso. Quase caiu no fogo.
— Hans — murmurou, e seu rosto pareceu contorcer-se. As pernas cederam e a cabeça bateu na caixa do acordeão.
No mesmo instante, uma colher de pau caiu na sopa e Rosa Hubermann pôs-se ao lado dele. Segurou a cabeça de Max e berrou para Liesel, do outro lado do cômodo:
— Não fique aí parada, vá buscar mais cobertores. Leve-os para sua cama. E você — era a vez do marido — me ajude a pegá-lo e carregá-lo para o quarto de Liesel. Schnell!
O rosto de Hans ficou tenso de apreensão. Seus olhos cinzentos tilintaram e ele pegou Max sozinho. O rapaz era leve como uma criança.
— Não podemos deixá-lo aqui, na nossa cama?
Rosa já havia considerado a ideia.
— Não. Nós temos que deixar essas cortinas abertas de dia, senão fica parecendo suspeito.
— Bem pensado — disse Hans, e carregou o rapaz.
Com os cobertores na mão, Liesel observava.
Pés moles e cabelos pendentes no corredor. Um sapato caído do pé.
— Mexa-se.
A mãe marchou atrás deles, com seu gingado de pata.

Uma vez posto Max na cama, os cobertores foram empilhados sobre ele e presos em volta de seu corpo.
— Mamãe?
Liesel não conseguiu dizer mais nada.
— Que foi?
O coque no cabelo de Rosa Hubermann estava tão apertado que, por trás, chegava a assustar. Pareceu apertar-se ainda mais quando ela repetiu a pergunta.
— Que é, Liesel?
A menina se aproximou, com medo da resposta.
— Ele está vivo?
O coque fez que sim.
Então, Rosa virou-se e falou com grande segurança.
— Escute aqui, Liesel. Não recebi esse homem na minha casa para vê-lo morrer. Entendeu?
Liesel acenou com a cabeça.
— Agora, vá embora.

No corredor, o pai a abraçou.
Liesel precisava disso, desesperadamente.

Mais tarde, ouviu Hans e Rosa conversarem na madrugada. Rosa a fizera dormir no quarto dos dois, e ela estava ao lado da cama, no chão, no colchão que tinham trazido do porão. (Houvera uma certa preocupação de que ele pudesse estar infectado, mas os dois concluíram que essas ideias não tinham fundamento. Não era de nenhum vírus que Max estava sofrendo, de modo que eles subiram o colchão e trocaram o lençol.)
Imaginando que a menina dormia, a mãe externou sua opinião.
— Aquela droga de boneco de neve — sussurrou. — Aposto que começou com o boneco de neve... brincar com gelo e neve, naquele frio lá embaixo.
O pai foi mais filosófico.
— Rosa, começou com Adolf — e se levantou. — Precisamos ficar de olho nele.
No decorrer daquela noite, Max recebeu sete visitas.

• A FOLHA DE VISITANTES •
E MAX VANDENBURG
Hans Hubermann: 2
Rosa Hubermann: 2
Liesel Meminger: 3

• • •

Pela manhã, Liesel levou-lhe o caderno de desenhos do porão e o colocou na mesa de cabeceira. Sentia-se péssima por tê-lo olhado no ano anterior e, dessa vez, manteve-o firmemente fechado, por respeito.
Quando o pai entrou, ela não se virou para olhá-lo, mas dirigiu-se à parede, por cima de Max Vandenburg.
—Por que é que eu tinha que levar toda aquela neve lá para baixo? — perguntou.
— Eu comecei tudo isso, não foi, papai? — e juntou as mãos, como quem rezasse. — Por que é que eu tinha de construir aquele boneco de neve?
O pai, reconheça-se o seu mérito permanente, foi categórico:
— Liesel, você tinha que fazer aquilo.

Durante horas, a menina sentava-se ao lado de Max, enquanto ele tremia e dormia.
— Não morra — segredava. — Por favor, Max, não morra.
Ele era o segundo boneco de neve a derreter diante de seus olhos, só que esse era diferente. Era um paradoxo.
Quanto mais frio ficava, mais derretia.

TREZE PRESENTES

Foi a chegada de Max revisitada.
As plumas voltaram a se transformar em gravetos. O rosto liso tornou-se áspero. A prova de que Liesel precisava era aquela. Ele estava vivo.

Nos primeiros dias, ela se sentou e conversou com Max. No dia do aniversário, contou-lhe que havia um bolo enorme esperando na cozinha, se ele quisesse acordar.
Não houve acordar.
Nem havia bolo.

• UM EXCERTO DE ALTA MADRUGADA •
Muito tempo depois, dei-me conta de que havia
realmente visitado a Rua Himmel, 33, durante aquele
período. Deve ter sido num dos poucos momentos
em que a menina não estava com ele, pois só o que
vi foi um homem na cama. Preparei-me para enfiar
as mãos por dentro dos cobertores. Então, houve uma
ressurgência — uma luta imensa contra o meu peso.
Recuei e, com tanto trabalho pela frente, foi bom
que me combatessem naquele quartinho escuro.
Cheguei até a conseguir uma breve pausa de serenidade,
de olhos fechados, antes de me retirar.

No quinto dia, houve um grande alvoroço quando Max abriu os olhos, mesmo por apenas alguns instantes. O que ele viu, predominantemente (e que versão assustadora deve ter sido, vista de perto), foi Rosa Hubermann, praticamente a lhe enfiar uma braçada de sopa boca adentro.
— Engula — aconselhou-o. — Não pense. Só engula.
Assim que a mãe lhe devolveu a tigela, Liesel tentou rever o rosto dele, mas lá estavam as costas de uma doadora de sopa no caminho.
— Ele ainda está acordado?
Quando se virou, Rosa não precisou responder.

Após quase uma semana, Max acordou pela segunda vez, agora com Liesel e o pai no quarto. Os dois observavam o corpo estirado na cama quando houve um pequeno grunhido. Se é que isso é possível, o pai caiu para o alto, saltando da cadeira.
— Olhe — disse Liesel, com a voz entrecortada. — Fique acordado, Max, fique acordado.
O rapaz a olhou brevemente, mas não houve reconhecimento. Os olhos a estudaram como se ela fosse um enigma. E depois se foram outra vez.
— Papai, que aconteceu?
Hans desabou, voltando à cadeira.
Mas tarde, sugeriu que talvez ela devesse ler para Max.
— Vamos, Liesel, você lê tão bem hoje em dia... mesmo que seja um mistério para todos nós de onde veio aquele livro.
— Eu lhe disse, papai. Foi uma das freiras da escola que me deu.
O pai levantou as mãos, num simulacro de protesto.
— Eu sei, eu sei — disse das alturas. — só... — e escolheu aos poucos as palavras — não se deixe apanhar.
Isso dito por um homem que havia roubado um judeu.

Desse dia em diante, Liesel leu O Assobiador para Max em voz alta, durante o tempo em que ele ocupou sua cama. A única frustração era ser forçada a pular capítulos inteiros, porque muitas páginas tinham ficado grudadas. O livro não havia secado bem. Mesmo assim, ela ia batalhando, a ponto de já ter percorrido quase três quartos do texto. O livro tinha 396 páginas.

No mundo externo, Liesel voltava apressada da escola todos os dias, na esperança de que Max houvesse melhorado.
— Ele acordou? Ele comeu?
— Volte lá para fora — implorava-lhe a mãe. — Você está cavando um buraco no meu estômago com toda essa falação. Vá. Saia e vá jogar futebol, pelo amor de Deus.
— Sim, mamãe.
Liesel estava prestes a abrir a porta:
— Mas você vai me buscar se ele acordar, não vai? Invente qualquer coisa. Grite, como se eu tivesse feito alguma coisa errada. Comece a me xingar. Todo o mundo vai acreditar, não se preocupe.
Até Rosa teve que sorrir diante disso. Pôs as mãos nas cadeiras e explicou que Liesel ainda não estava velha demais para evitar uma Watschen, por falar daquele jeito.
— E trate de fazer um gol — ameaçou —, senão é melhor não vir para casa.
— É claro, mamãe.
— Faça dois gols, Saumensch!
— Sim, mamãe.
— E pare de me responder!
Liesel considerou, mas saiu correndo lá para fora, para ser adversária de Rudy na rua enlameada e escorregadia.
— Já era hora, sua coçadora de rabo — acolheu-a Rudy, no jeito costumeiro de os dois disputarem a bola. — Onde é que você andava?
Meia hora depois, quando a bola foi esborrachada pela rara passagem de um carro na Rua Himmel, Liesel descobriu seu primeiro presente para Max Vandenburg. Depois de julgá-la sem conserto, a garotada toda foi embora, desgostosa, e deixou a bola estrebuchando na rua fria e embolotada. Liesel e Rudy ficaram agachados sobre a carcaça. Havia um enorme buraco numa parte da bola, feito uma boca.
— Você quer ela? — perguntou Liesel.
Rudy encolheu os ombros.
— Pra que é que eu quero essa titica de monte esborrachado de bola? Não tem mais jeito de enchê-la de ar, tem?
— Você quer ou não quer?
— Não, obrigado.
Rudy cutucou a bola cautelosamente com o pé, como se fosse um animal morto. Ou um animal que talvez estivesse morto.
Quando Rudy voltou para casa, Liesel pegou a bola e a pôs embaixo do braço. Ainda o ouviu chamar.
— Ei, Saumensch!
Esperou.
— Saumensch!
Ela cedeu.
— Que é?
— Aqui também tem uma bicicleta sem rodas, se você quiser.
— Enfie a sua bicicleta...
Do lugar em que estava na rua, a última coisa que Liesel ouviu foi a risada daquele Saukerl do Rudy Steiner.

Em casa, ela se dirigiu ao quarto. Levou a bola para Max e a colocou na extremidade da cama.
— Desculpe — disse-lhe — não é grande coisa. Mas, quando você acordar, eu lhe conto tudo sobre ela. Eu conto que foi a tarde mais cinzenta que você pode imaginar, e aí um carro com os faróis apagados passou bem em cima da bola. E aí o homem desceu e gritou com a gente. E depois pediu informações sobre o caminho. Que descaramento...!
Acorde!, ela queria gritar.
Ou então sacudi-lo.
Não fez uma coisa nem outra.
Tudo que Liesel conseguiu foi ficar olhando para a bola, com sua pele pisoteada e descascada. Era o primeiro de muitos presentes.

• PRESENTES 2 A 5 •
Uma fita, uma pinha.
Um botão, uma pedra.

A bola de futebol lhe dera uma ideia.
Agora, toda vez que ia e voltava da escola, Liesel ficava à procura de objetos descartados que pudessem ser valiosos para um homem agonizante. No começo, perguntou-se por que aquilo tinha tanta importância. Como podia uma coisa aparentemente tão insignificante consolar alguém? Uma fita na sarjeta. Uma pinha na rua. Um botão descuidadamente encostado numa parede da sala de aulas. Uma pedrinha chata e redonda do rio. Que mais não fosse, isso mostrava que ela se importava, e talvez lhes desse um assunto para conversar quando Max acordasse.
Quando se achava só, ela conduzia essas conversas.
— E o que é isso tudo? — diria Max. — Que é toda essa porcaria?
— Porcaria? — retrucaria Liesel. Mentalmente, estaria sentada ao lado da cama. — Não é só porcaria, Max. Foi isso que fez você acordar.

• PRESENTES 6 A 9 •
Uma pena, dois jornais.
Um invólucro de bala. Uma nuvem.

A pena era linda e estava presa na dobradiça da porta da igreja, na Rua Munique. Projetava-se para fora, meio torta, e Liesel se apressou a resgatá-la. As fibras estavam achatadas do lado esquerdo, mas o direito era feito de bordas delicadas e setores de triângulos irregulares. Não havia outro jeito de descrevê-la.
Os jornais saíram das profundezas frias de uma lata de lixo (é o quanto basta dizer) e o invólucro de bala era liso e desbotado. Ela o achou perto da escola e o segurou contra a luz. Continha uma colagem de marcas de sapatos.
Depois, a nuvem.
Como se dá a alguém um pedaço de céu?
No fim de fevereiro, ela parou na Rua Munique e observou uma nuvem gigantesca aproximar-se por sobre as colinas, como um monstro branco. Escalou as montanhas. O sol foi eclipsado e, em lugar dele, uma fera branca de coração cinzento vigiou a cidade.
— Olhe só para aquilo! — disse ela ao pai.
Hans inclinou a cabeça e declarou o que lhe pareceu óbvio.
— Você devia dá-la ao Max, Liesel. Veja se consegue deixá-la na mesa de cabeceira, como todas as outras coisas.
Liesel o fitou como se ele houvesse enlouquecido.
— Mas como?
Ele lhe deu um piparote de leve na cabeça.
— Decore-a. Depois, escreva-a para ele.

— ...parecia uma grande fera branca —disse a menina, em sua vigília seguinte junto ao leito — e veio por cima das montanhas.
Quando a frase foi concluída, com vários ajustes e acréscimos diferentes, Liesel achou que havia conseguido. Imaginou a visão da nuvem passando de sua mão para ele, através dos cobertores, e a escreveu num pedaço de papel, colocando a pedrinha em cima.

• PRESENTES 10 A 13 •
Um soldadinho de brinquedo.
Uma folha milagrosa.
Um assobiador terminado.
Uma nesga de tristeza.

• • •

O soldado estava enterrado no chão, não muito longe da casa de Tommy Müller. Estava arranhado e pisoteado, o que, para Liesel, era justamente o importante. Mesmo machucado, ele ainda conseguia ficar de pé.
A folha era de bordo e ela a encontrou no armário de vassouras da escola, entre os baldes e os espanadores. A porta estava entreaberta. A folha era seca e dura, feito pão torrado, e havia colinas e vales em toda a sua pele. Não se sabe como, havia percorrido o corredor da escola e entrado naquele armário. Como metade de uma estrela com um cabo. Liesel a pegou e a girou entre os dedos.
Ao contrário dos outros objetos, ela não pôs a folha na mesa de cabeceira. Prendeu-a na cortina fechada, pouco antes de ler as últimas trinta e quatro páginas de O Assobiador.
Nesse fim de tarde, não jantou nem foi ao banheiro. Não bebeu nada. Durante o dia inteiro, na escola, prometera a si mesma que terminaria de ler o livro nesse dia, e Max Vandenburg escutaria. Ele ia acordar.
Papai sentou-se no chão, num canto, desempregado como sempre. Por sorte, logo iria para o Knoller com seu acordeão. Com o queixo apoiado nos joelhos, ouviu a menina a quem lutara para ensinar o alfabeto. Lendo orgulhosamente, ela despejou as ultimas palavras aterradoras do livro em Max Vandenburg.

• OS ÚLTIMOS RESTOS DE •
O ASSOBIADOR
...O ar vienense embaçava as janelas do trem naquela manhã e,
enquanto as pessoas seguiam distraídas para o trabalho, um
assassino assobiava sua alegre melodia. Comprou o bilhete.
Houve trocas educadas de cumprimentos com outros passageiros
e com o condutor. Ele até ofereceu seu lugar a uma senhora
idosa, e conversou polidamente com um jogador que lhe falou de
cavalos norte-americanos. Afinal, o assobiador adorava conversar.
Conversava com as pessoas e as iludia, fazendo-as gostar dele,
confiar nele. Conversava com elas ao matá-las, enquanto as torturava
e girava a faca. Só quando não havia ninguém com quem falar é
que ele assobiava, razão por que o fazia depois dos assassinatos...
— Então, o senhor acha que a pista será boa para o número sete, é?
— E claro — sorriu o jogador. A confiança já
se fizera presente. — Ele virá de trás e vai acabar
com todos eles! — gritou, por cima do barulho do trem.
— Se o senhor insiste... O assobiador deu um risinho de mofa
e pensou durante muito tempo em quando encontrariam
o corpo do inspetor, naquele BMW novo em folha.

— Jesus, Maria e José! — exclamou Hans, sem poder resistir a um tom incrédulo. — Foi uma freira que lhe deu isso? — e se levantou. Aproximou-se e beijou-a na testa. — Tchau, Liesel, o Knoller me espera.
— Até logo, papai.
— Liesel!
Ela ignorou o chamado.
— Venha comer alguma coisa!
Dessa vez, respondeu:
— Estou indo, mamãe.
Na verdade, dirigiu essas palavras a Max, ao chegar mais perto e pôr o livro terminado na mesa de cabeceira, com todo o resto. Ao se debruçar sobre ele, não pôde evitar.
— Anda, Max! — murmurou, e nem mesmo a chegada da mãe às suas costas impediu-a de chorar baixinho. Não a impediu de tirar um pouco de água salgada do olho e colocá-la no rosto de Max Vandenburg.
A mãe a levou.
Seus braços a engoliram.
— Eu sei — disse Rosa.
Ela sabia.

AR PURO, UM ANTIGO
PESADELO E O QUE FAZER COM UM
CADÁVER JUDAICO

Eles estavam à margem do Amper e Liesel acabara de dizer a Rudy que estava interessada em obter outro livro na casa do prefeito. Em vez de O Assobiador, lera várias vezes O Vigiador junto ao leito de Max. Esse só levava alguns minutos para ler. Também havia tentado O Dar de Ombros e até O Manual do Coveiro, mas nenhum deles parecia muito adequado. Quero uma coisa nova, pensara consigo mesma.
— Mas você pelo menos já leu o último?
— É claro que sim.
Rudy atirou uma pedra na água.
— E prestava?
— É claro que prestava.
— É claro que sim, é claro que prestava — remedou-a Rudy. Tentou arrancar outra pedra do chão, mas cortou o dedo.
— Bem feito.
— Saumensch.
Quando a última resposta de uma pessoa era Saumensch, Saukerl ou Arschloch, a gente sabia que a tinha derrotado.

• • •

Em termos de furto, as condições eram perfeitas. Era uma tarde sombria do início de março, poucos graus acima do congelamento — o que é sempre mais incômodo do que dez graus abaixo. Havia pouquíssima gente na rua. E chuva, feito aparas de lápis cinza.
— Nós vamos?
— Bicicletas — disse Rudy. — Você pode usar uma das nossas.

Nessa ocasião, Rudy mostrou-se consideravelmente mais entusiasmado com a ideia de ser ele o entrante.
— Hoje é minha vez — disse, enquanto os dedos de ambos congelavam nos guidões das bicicletas.
Liesel pensou ligeiro.
— Talvez você não deva, Rudy. Lá tem coisas espalhadas por todo canto. E é escuro. É fatal que um idiota como você tropece ou esbarre em alguma coisa.
— Muito obrigado.
Nesse estado de ânimo, Rudy era difícil de conter.
— E tem também a altura. O pulo é mais alto do que você pensa.
— Está me dizendo que acha que eu não consigo?
Liesel ficou em pé nos pedais.
— De jeito nenhum.
Os dois cruzaram a ponte e serpentearam ladeira acima até a Grande Strasse. A janela estava aberta.

Como na vez anterior, inspecionaram a casa. Conseguiam enxergar vagamente o interior, até o ponto em que havia uma luz acesa embaixo, provavelmente no que seria a cozinha. Uma sombra movia-se de um lado para outro.
— A gente vai só dar a volta no quarteirão umas vezes — disse Rudy. — Foi sorte termos vindo de bicicleta, hein?
— Só trate de se lembrar de levar a sua para casa.
— Muito engraçado, Saumensch. Ela é um pouquinho maior do que os seus sapatos nojentos.

Circularam por uns quinze minutos, talvez, e a mulher do prefeito continuava no térreo, meio perto demais para ser conveniente. Como é que se atrevia a ocupar a cozinha com tamanha vigilância? Para Rudy, a cozinha era, sem sombra de dúvida, a verdadeira meta. Ele entraria, roubaria tanta comida quanto fosse fisicamente possível, e se (e somente se) dispusesse de um último minuto de sobra, enfiaria um livro nas calças, na saída. Qualquer livro serviria.
Mas a fraqueza de Rudy era a impaciência.
— Está ficando tarde — disse, e começou a se afastar. — Você vem?
Liesel não foi.
Não havia nada que decidir. Ela arrastara aquela bicicleta enferrujada até lá e não estava disposta a sair sem um livro. Encostou o guidom na sarjeta, olhou em volta à procura de vizinhos e se encaminhou para a janela. Foi em boa velocidade, mas sem pressa. Tirou os sapatos com os próprios pés, empurrando os saltos com os dedos.
Apertou a madeira com as mãos ao pular para dentro.
Dessa vez, nem que fosse um pouquinho, sentiu-se mais à vontade. Em poucos preciosos momentos, circulou pelo cômodo, à procura de um título que a atraísse. Em três ou quatro ocasiões, quase estendeu a mão. Chegou até a pensar em levar mais de um, mas, por outro lado, não quis abusar do que era uma espécie de sistema Por ora, apenas um livro era necessário. Ela estudou as estantes e aguardou.
Uma escuridão extra infiltrou-se pela janela, às suas costas. O cheiro de poeira e furto pairava ao fundo, e ela o viu.
O livro era vermelho, com letras pretas na lombada. Der Traumträger. O Carregador de Sonhos. Liesel pensou em Max Vandenburg e seus sonhos. Na culpa. Na sobrevivência. No abandono da família. Nas lutas com o Führer. Pensou também em seu próprio sonho — seu irmão, morto no trem, e o aparecimento dele na escada, logo na esquina desse mesmo cômodo. A menina que roubava livros viu o joelho ensanguentado do irmão na própria investida de sua mão.
Tirou o livro da prateleira, enfiou-o embaixo do braço, trepou no parapeito da janela e pulou para o lado de fora, tudo num movimento só.
Rudy segurava seus sapatos. Tinha a bicicleta pronta. Uma vez calçados os sapatos, os dois partiram.
— Jesus, Maria e José, Meminger! — e ele nunca a chamara de Meminger até então. — Você é uma lunática completa. Sabia disso?
Liesel concordou, enquanto pedalava feito louca.
— Eu sei.
Na ponte, Rudy resumiu os acontecimentos da tarde.
— Ou essa gente é completamente maluca, ou simplesmente gosta de ar puro.

• UMA PEQUENA SUGESTÃO •
Ou talvez houvesse uma mulher na Grande Strasse
que agora mantinha aberta a janela da biblioteca
por outra razão — mas isso sou apenas eu sendo cínica,
ou esperançosa. Ou ambas as coisas.

Liesel pôs O Carregador de Sonhos embaixo do casaco e começou a lê-lo no minuto em que voltou para casa. Na cadeira de madeira junto à cama, abriu livro e murmurou:
— Este é novo, Max. Só para você — e começou a ler. — Capítulo um: Foi muito adequado que a cidade inteira estivesse adormecida quando o carregador de sonhos nasceu...
Todos os dias, Liesel lia dois capítulos do livro. Um de manhã, antes da aula, e um assim que voltava da escola. Em algumas noites, quando não conseguia dormir ela também lia metade de um terceiro capítulo. Às vezes, adormecia dobrada para frente sobre a lateral da cama.
Aquilo se tornou sua missão.
Ela oferecia O Carregador de Sonhos a Max como se as simples palavras pudessem alimentá-lo. Numa terça-feira, achou que tinha havido um movimento. Poderia jurar que os olhos dele se abriram. Se era verdade, foi só por um instante, e o mais provável é que tenham sido apenas sua imaginação e a racionalização de seus desejos.
Em meados de março, as fissuras começaram a aparecer.
Rosa Hubermann — a que era boa nas crises — estava à beira de explodir, uma tarde, na cozinha. Elevou a voz e tornou a baixá-la depressa. Liesel parou de ler e foi em silencio para o corredor. Por mais perto que chegasse, mal conseguia discernir as palavras da mãe. Quando conseguiu ouvi-las, desejou não tê-lo feito, pois o que ouviu foi horripilante. Foi a realidade.

• O CONTEÚDO DA VOZ DA MAMÃE •
— E se ele não acordar?
E se ele morrer aqui, Hansi?
Diga-me, em nome de Deus, que vamos fazer com o corpo?
Não podemos deixá-lo aqui, o cheiro vai nos matar...
e também não podemos carregá-lo porta afora e
arrastá-lo pela rua. Não podemos apenas dizer:
"Você não vai adivinhar o que achamos
em nosso porão hoje de manhã..."
Vão nos mandar embora para sempre.

Tinha absoluta razão.
Um cadáver judaico era um enorme problema. Os Hubermann precisavam ressuscitar Max Vandenburg, não apenas pelo bem dele, mas também pelo seu. Até o pai, que era sempre a suprema influência tranquilizadora, sentia a pressão.
— Escute — disse em voz baixa, mas pesada. — Se isso acontecer... se ele morrer... simplesmente teremos que descobrir um jeito.
Liesel seria capaz de jurar que o ouviu engolir em seco. Uma engolida como um golpe na traqueia.
— Minha carroça de tintas, umas mantas de proteção contra respingos...
A menina entrou na cozinha.
— Agora não, Liesel.
Foi o pai quem falou, embora não a olhasse. Fitava seu próprio rosto distorcido nas costas de uma colher. Tinha os cotovelos enterrados na mesa.
A roubadora de livros não se retirou. Deu mais uns passos e sentou-se. Suas mãos frias apalparam suas mangas e uma frase lhe caiu da boca.
— Ele ainda não morreu.
As palavras pousaram na mesa e se posicionaram no meio. As três pessoas ficaram a olhá-las. As tênues esperanças não ousaram elevar-se mais do que isso. Ele ainda não morreu. Ele ainda não morreu. Foi Rosa a primeira a falar.
— Quem está com fome?

Possivelmente, a única hora em que a doença de Max não afligia era a do jantar. Não havia como negá-lo, quando os três se sentavam à mesa da cozinha com seu pão extra e sua sopa ou batatas a mais. Todos pensavam nisso, mas ninguém falava.

De madrugada, algumas horas depois, Liesel acordou e se intrigou com a altura de seu coração. (Aprendera essa expressão em O Carregador de Sonhos, que era, essencialmente, a completa antítese de O Assobiador — um livro sobre um menino abandonado que queria ser padre.) Sentou-se e inspirou fundo o ar da noite.
— Liesel? — rolou o pai na cama. — Que foi?
— Nada, papai, está tudo bem.
Mas, no momento mesmo em que terminou a frase, ela soube exatamente o que tinha acontecido em seu sonho.

• UMA IMAGENZINHA •
Na maior parte, era tudo idêntico.
O trem se movia com a mesma velocidade.
Abundantemente, seu irmão tossia.
Dessa vez, porém, Liesel não pôde ver seu
rosto fitando o chão. Inclinou-se devagar.
Sua mão o ergueu com delicadeza, pelo queixo,
e ali, diante dela, estava o rosto
de olhos arregalados de Max Vandenburg.
Ele a fitava. Uma pena caiu no chão.
Agora o corpo era maior, combinando com
o tamanho do rosto. O trem gritou.

— Liesel?
— Eu disse que está tudo bem.
Trêmula, ela saiu do colchão. Entorpecida de medo, foi pelo corredor até Max. Após muitos minutos a seu lado, quando tudo ficou mais lento, tentou interpretar o sonho. Seria uma premonição da morte de Max? Ou uma simples reação à conversa da tarde na cozinha? Teria Max substituído seu irmão? E, se assim fosse, como poderia ela desfazer-se de sua própria carne e osso daquele jeito? Talvez fosse até um desejo profundo de que Max morresse. Afinal, se isso era suficientemente bom para Werner, seu irmão, era suficientemente bom para esse judeu.
— É isso que você acha? — murmurou ela, erguendo-se ao lado da cama. — Não.
Não conseguia acreditar. Sua resposta ficou suspensa, enquanto o torpor da escuridão se desfazia e delineava as várias formas, grandes e pequenas, na mesa de cabeceira. Os presentes.
— Acorde — disse ela.
Max não acordou.
Por mais oito dias.

Na escola, houve uma batida na porta.
— Entre — disse Frau Olendrich.
A porta se abriu e toda a turma de crianças olhou, surpresa, para Rosa Hubermann, parada no vão. Uma ou duas sufocaram um grito ante a visão — um armariozinho de mulher, com um sorriso escarninho de batom e olhos de cloro. Aquela. Era a lenda. Rosa usava sua melhor roupa, mas seu cabelo estava uma bagunça, e era uma toalha de mechas cinzentas elásticas.
A professora ficou visivelmente amedrontada.
— Frau Hubermann...
Seus gestos foram confusos. Ela vasculhou a turma.
— Liesel?
Liesel olhou para Rudy, levantou-se e andou depressa até a porta, para acabar com o constrangimento o mais rápido possível. Fechou-a ao sair, e então se viu a sós no corredor, com Rosa.
Rosa desviou o olhar.
— Que foi, mamãe?
Ela se virou.
— Não me venha com 'o que foi, mamãe', sua Saumenschzinha!
Liesel foi perfurada pela velocidade das palavras.
— Minha escova de cabelo!
Um filete de risadas rolou por baixo da porta, mas foi prontamente puxado de volta.
— Mamãe?
O rosto dela era severo, mas sorria.
— Que diabo você fez com a minha escova, sua Saumensch idiota, sua ladrazinha? Eu já lhe disse mais de cem vezes para deixá-la em paz, mas será que você escuta? É claro que não!

A espinafração prosseguiu por mais um minuto, talvez, com Liesel fazendo uma ou duas sugestões desesperadas sobre a possível localização da referida escova. E acabou de repente, quando Rosa a puxou para junto de si, apenas por alguns segundos. Seu cochicho foi quase inaudível, mesmo com toda a proximidade.
— Você me disse para gritar com você. Disse que todo o mundo acreditaria — e olhou à esquerda e à direita, com a voz parecendo agulha e linha. — Ele acordou, Liesel. Está acordado — e tirou do bolso o soldadinho de brinquedo, com o exterior arranhado. — Mandou eu lhe dar isso. Era o favorito dele.
Rosa o entregou, esticando bem os braços, e sorriu. Antes que Liesel tivesse chance de responder, concluiu a bronca.
— E então? Responda! Você tem alguma outra ideia de onde pode tê-la deixado?
Ele está vivo, pensou Liesel.
— ...Não, mamãe. Desculpe, mamãe, eu...
— Bom, então para que é que você serve?
Soltou a menina, fez-lhe um aceno de cabeça e foi embora.
Por alguns instantes, Liesel continuou imóvel. O corredor era imenso. Examinou o soldado na palma da mão. O instinto lhe dizia para correr imediatamente para casa, mas o bom senso não deixou. Em vez disso, ela pôs o soldado maltrapilho no bolso e voltou para a sala de aulas.
Todos esperavam.
— Vaca idiota — murmurou entre dentes.
Mais uma vez, as crianças riram. Mas não Frau Olendrich.
— O que você disse?
Liesel estava tão zonza que se sentia indestrutível.
— Eu disse —, sorriu, radiante — vaca idiota — e não precisou esperar nem um instante para que a mão da professora a esbofeteasse.
— Não fale assim de sua mãe — disse ela, mas surtiu pouco efeito. A menina só fez ficar parada, tentando conter o riso. Afinal, era capaz de levar uma Watschen dos melhores deles.
— E agora, volte para o seu lugar.
— Sim, Frau Olendrich.
A seu lado, Rudy não se atreveu a falar.
— Jesus, Maria e José — murmurou —, dá para ver a mão dela no seu rosto. Uma manzorra vermelha. Cinco dedos!
— Ótimo — respondeu Liesel, porque Max estava vivo.

Quando chegou em casa, à tarde, ele estava sentado na cama, com a bola murcha de futebol no colo. A barba comichava e seus olhos alagadiços lutavam para ficar abertos. Havia uma tigela vazia de sopa ao lado dos presentes.
Não disseram olá.
Foi mais pelas beiradas.
A porta rangeu, a menina entrou e parou diante dele, olhando para a tigela.
— A mamãe está empurrando isso pela sua goela abaixo?
Max fez que sim, contente, exausto.
— Mas estava ótima.
— A sopa da mamãe? É mesmo?
Não foi um sorriso o que ele lhe deu.
— Obrigado pelos presentes.
Foi mais um ligeiro rasgo da boca.
— Obrigado pela nuvem. Essa O seu pai explicou um pouco mais.
— Não sabíamos o que fazer se você morresse, Max. Nós...
Ele não demorou:
— Quer dizer, como se livrarem de mim?
— Desculpe.
— Não — retrucou ele, sem se ofender. — Vocês tinham razão — concordou, brincando de leve com a bola. — Tinham razão em pensar assim. Na sua situação, um judeu morto é tão perigoso quanto um judeu vivo, se não for pior.
— Eu também sonhei.
Em detalhe, Liesel explicou seu sonho, agarrada ao soldadinho. Estava prestes a pedir desculpas outra vez, quando Max interveio.
— Liesel — e a fez olhar para ele. — Nunca me peça desculpas. Eu é que devo me desculpar com você — e olhou para tudo que a menina lhe levara. — Veja isso tudo, esses presentes — segurando o botão. — E a Rosa me disse que você lia para mim duas vezes por dia, às vezes três.
Nesse momento, fitou as cortinas, como se pudesse enxergar através delas. Sentou-se com o corpo um pouco mais ereto e fez uma pausa de umas doze frases silenciosas. A inquietação invadiu-lhe o rosto, e ele fez uma confissão à menina.
— Liesel — disse, deslocando-se ligeiramente para a direita. — Estou com medo de pegar no sono de novo.
A menina foi resoluta.
— Então, vou ler para você. E dou um tapa no seu rosto, se você começar a cochilar. Fecho o livro e o sacudo até você acordar.
Nessa tarde e pela noite afora, Liesel leu para Max Vandenburg. O rapaz sentou-se na cama e absorveu as palavras, agora desperto, até pouco depois das dez horas. Quando Liesel fez uma pequena pausa em O Carregador de Sonhos, olhou por cima do livro e Max havia adormecido. Nervosa, cutucou-o com o livro.
Ele acordou.
Adormeceu mais três vezes. Em mais duas ela o despertou.
Nos quatro dias seguintes, Max acordou todas as manhãs na cama deLiesel, depois junto à lareira e, por fim, em meados de abril, no porão. Sua saúde estava melhor, a barba se fora e umas tirinhas de peso haviam voltado.
No mundo interno de Liesel, houve grande alívio dessa vez. Do lado de fora, as coisas começavam a parecer incertas. No fim de março, um lugar chamado Lübeck recebeu uma saraivada de bombas. O seguinte seria Colônia e, em pouco tempo, muitas outras cidades alemãs, inclusive Munique.
É, o chefe estava no meu cangote.
— Apronte logo isso, apronte logo isso.

As bombas estavam chegando — e eu também.

DIÁRIO DA MORTE: COLÔNIA

As horas mortas de 30 de maio.
Tenho certeza de que Liesel Meminger dormia a sono solto quando mais de mil bombardeiros voaram para um lugar chamado Colônia. Para mim, o resultado foram umas quinhentas pessoas, por aí. Outra cinquenta mil perambularam sem teto em volta das pilhas fantasmagóricas de escombros, tentando descobrir o que era o que e que lascas de casas destroçadas pertenciam a quem.
Quinhentas almas.
Carreguei-as nos dedos, feito malas. Ou então as jogava por cima do ombro. Só as crianças foi que levei no colo.

Quando terminei, o céu estava amarelo como jornal em chamas. Se olhasse de perto, eu podia ver as palavras, as manchetes das notícias comentando o progresso da guerra e assim por diante. Como gostar de derrubar aquilo tudo, de amarrotar o céu de jornal e jogá-lo foi Meus braços doíam e eu não podia me dar ao luxo de queimar os dedos. Ainda havia muito trabalho a fazer.

Como você poderia esperar, muitas pessoas tiveram morte instantânea. Outras levaram mais um tempo. Havia vários outros lugares para ir, céus com que deparar e almas a recolher e, quando voltei para Colônia mais tarde, não muito depois dos últimos aviões, consegui notar uma coisa singularíssima.
Eu carregava a alma chamuscada de uma adolescente, quando olhei gravemente para cima, para o que já então era um céu sulfúrico. Por perto havia um grupo de meninas de dez anos. Uma delas exclamou:
— Que é aquilo?
O braço se estendeu e o dedo apontou para o objeto preto e lento que caía do alto. Começou como uma pluma negra, inclinando-se, flutuando. Ou como um pedaço de cinza. Depois, ficou maior. A mesma menina — uma ruiva com sardas em forma de pontos — tornou a falar, dessa vez com mais ênfase.
— Que é aquilo?
— É um corpo — sugeriu outra menina. Cabelo preto, rabo-de-cavalo e uma parte torta no meio.
— É outra bomba!
Era lento demais para ser uma bomba.
Com o espírito adolescente ainda ardendo de leve em meus braços, andei umas centenas de metros com o resto delas. Como as meninas, mantive-me concentrada no céu. A última coisa que eu queria era baixar os olhos para o rosto perdido de minha adolescente. Uma menina bonita. Agora, tinha toda a morte pela frente.
Como o resto delas, levei um susto quando uma voz gritou. Era um pai insatisfeito, mandando suas filhas entrarem. A ruiva reagiu. Suas sardas alongaram-se em vírgulas.
— Mas, papai, olhe!
O homem deu vários passinhos e logo descobriu do que se tratava.
— É o combustível — disse.
— Como assim?
— O combustível — repetiu ele. — O tanque.
Era um homem calvo, com a roupa de dormir rasgada.
— Eles usaram todo o combustível daquele e se livraram do tambor. Olhe, há mais um lá.
— E lá!
Como criança é criança, todas saíram numa busca frenética, a essa altura, tentando achar um tambor vazio de combustível flutuando para o chão.
O primeiro aterrissou com um baque surdo.
— Podemos ficar com ele, papai?
— Não.
Estava bombardeado e chocado esse pai, e claramente não se sentia no clima.
— Não podemos ficar com ele.
— Por que não?
— Vou perguntar ao meu pai se eu posso ficar com ele — disse outra menina.
— Eu também.

Logo depois dos destroços de Colônia, um grupo de crianças recolhia tambores vazios de combustível, lançados por seus inimigos. Como de praxe, recolhi seres humanos. Estava cansada. E o ano ainda nem havia chegado à metade.

A VISITA

Encontrara-se uma nova bola para o futebol da Rua Himmel. Essa foi a boa notícia. A notícia meio inquietante foi que uma divisão e NSDAP estava indo para lá.
Eles tinham avançado por toda Molching, rua a rua, casa a casa, agora estavam na loja de Frau Diller, fazendo uma pausa rápida para um cigarro, antes de darem continuidade a seu trabalho.
Já havia um pequeno numero de abrigos antiaéreos em Molching mas ficara decidido, pouco depois do bombardeio de Colônia, que mais alguns certamente não fariam mal. O NSDAP estava inspecionando cada uma das casas, para verificar se o porão era um candidato adequado.
De longe, a meninada observava.
Via a fumaça que se erguia do grupo.
Liesel havia acabado de sair e se aproximara de Rudy e Tommy. Harald Mollenhauer tinha ido buscar a bola.
— Que está acontecendo lá?
Rudy pôs as mãos nos bolsos.
— O partido — disse. Inspecionou o progresso do amigo com bola, na cerca em frente à casa de Frau Holtzapfel. — Estão examinando todas as casas e prédios de apartamentos.
Uma secura instantânea apossou-se do interior da boca de Liesel.
— Para quê?
— Você não sabe nada, é? Diga a ela, Tommy.
Tommy ficou perplexo.
— Bom, eu é que não sei.
— Vocês não têm jeito, vocês dois. Eles precisam de mais abrigos antiaéreos.
— O quê: porões?
— Não, sótão. É claro que são porões! Nossa, Liesel, você é burra mesmo, hein?
A bola estava de volta.
— Rudy!
Rudy começou a jogá-la e Liesel continuou parada. Como poderia voltar para dentro de casa, sem parecer suspeita demais? A fumaça na loja de Frau Diller já desaparecia e o pequeno grupo de homens começava a se dispersar. Foi dessa maneira terrível que se gerou o pânico. Garganta e boca. O ar virou areia. Pense, pensou ela. Ande, Liesel, pense, pense.
Rudy fez um gol.
Vozes distantes lhe deram parabéns.
Pense, Liesel...
Descobriu.
É isso, resolveu, mas tenho que fazer com que pareça real.

Enquanto os nazistas avançavam pela rua, pintando as letras LSR em algumas portas, a bola foi lançada pelo alto para um dos meninos maiores, Klaus Behrig.

• LSR •
Luft Schutz Raum:
Abrigo antiaéreo.

O menino girou com a bola, no exato momento em que Liesel chegou, e os dois se chocaram com tanta força que o jogo parou automaticamente. Enquanto a bola rolava para longe, os jogadores vieram correndo. Liesel segurava o joelho esfolado com uma das mãos e a cabeça com a outra. Klaus Behrig segurava apenas a canela direita, fazendo caretas e xingando.
— Cadê ela? — cuspiu. — Vou matar ela!
Não haveria morte nenhuma.
Foi pior.
Um membro gentil do partido vira o incidente e correu obsequiosamente para o grupo.
— Que houve aqui? — indagou.
— Ora, essa aí é maníaca — respondeu Klaus, apontando para Liesel, o que levou o homem a ajudá-la a se levantar. Seu hálito de tabaco formou uma duna de fumaça diante do rosto dela.
— Acho que você não tem condição de continuar jogando, minha menina — disse o homem. — Onde mora?
— Eu estou bem — retrucou ela — estou mesmo. Posso me arranjar sozinha.
Saia de cima de mim saia de cima de mim!
Foi nessa hora que Rudy se meteu, o eterno intrometido.
— Eu ajudo você a ir para casa.
Por que ele não podia cuidar só da sua vida, para variar?
— De verdade — disse Liesel —, continue jogando, Rudy. Eu vou sozinha.
— Não, não — e não havia como demovê-lo. Ah, a teimosia dele! — Só vai levar um ou dois minutos.
Mais uma vez, Liesel tinha que pensar, e mais uma vez conseguiu. Com Rudy a segurá-la, fez-se desabar de novo no chão, de costas.
— Meu pai — disse. O céu, ela notou, estava profundamente azul. Nem mesmo uma sugestão de nuvem. — Pode chamá-lo, Rudy?
— Fique aqui — ordenou o menino. Virando-se para a direita, gritou: — Tommy, vigie ela, sim? Não deixe ela se mexer.
Tommy entrou em ação num estalo.
— Eu vigio, Rudy — e se pôs a velar sobre Liesel, contorcendo o rosto e tentando não sorrir, enquanto ela ficava de olho no homem do partido.
Um minuto depois, Hans Hubermann erguia-se calmamente ao lado dela.
— Oi, papai.
Um sorriso decepcionado misturou-se com os lábios de Hans.
— Eu me perguntava quando isso ia acontecer.
Pegou-a no colo e a levou para casa. O jogo continuou, e o nazista já batia à porta de uma moradia, algumas portas adiante. Ninguém atendeu. Rudy tornou a chamar:
— Precisa de ajuda, Herr Hubermann?
— Não, não, continue jogando, Herr Steiner.
Herr Steiner. A gente só podia adorar o papai de Liesel.

Uma vez do lado de dentro, Liesel deu-lhe a informação. Tentou encontrar um meio-termo entre o silêncio e o desespero.
— Papai.
— Não fale.
— O partido — sussurrou ela. O pai parou. Lutou contra a ânsia de abrir a porta e olhar a rua. — Eles estão examinando os porões para fazer abrigos.
Hans a pôs no chão.
— Menina esperta — disse, e chamou Rosa.

Eles dispunham de um minuto para produzir um plano. Uma barafunda de ideias.
— É só a gente colocá-lo no quarto da Liesel — foi a sugestão da mãe. — Embaixo da cama.
— Só isso? E se eles resolverem inspecionar nossos quartos também?
— Você tem um plano melhor?
Correção: eles não dispunham de um minuto.
Uma batida em sete socos martelou a porta do número 33 da Rua Himmel, e era tarde demais para transferir qualquer pessoa para qualquer lugar.
A voz.
— Abram!
As batidas de seus corações lutaram umas com as outras, numa atabalhoação de ritmos. Liesel tentou devorar as dela. O gosto de coração não era muito animador.
Rosa sussurrou:
— Jesus, Maria...
Nesse dia, foi o pai quem se mostrou à altura do problema. Precipitou-se para a porta do porão e mandou um aviso escada abaixo. Quando voltou, falou depressa e com fluência.
— Escutem, não há tempo para truques. Poderíamos distraí-lo de cem maneiras diferentes, mas só existe uma solução — e olhou para a porta, resumindo: — Nada.
Não era a resposta que Rosa queria. Seus olhos se arregalaram.
— Nada? Você está maluco?
As batidas recomeçaram.
O pai foi rigoroso.
— Nada. Nem vamos lá embaixo. Sem a menor preocupação no mundo.
Tudo ficou mais lento.
Rosa aceitou.
Apertada de aflição, balançou a cabeça e tratou de atender a porta.
— Liesel — cortou-a a voz do pai — trate apenas de ficar calma, verstehst?
— Sim, papai.
Tentou concentrar-se na perna que sangrava.

— Ah-ha!
A porta, Rosa ainda perguntava qual era o significado daquela interrupção, quando o homem gentil do partido notou Liesel.
— A jogadora de futebol maníaca! — sorriu. — Como está o joelho?
A gente não costuma imaginar os nazistas muito alegrinhos, mas esse homem certamente o era. Entrou e foi se abaixando para examinar o machucado.
Será que ele sabe?, pensou Liesel. Será que fareja que estamos escondendo um judeu?
O pai veio da pia com uma toalha molhada e a pôs no joelho de Liesel.
— Está ardendo?
Seus olhos de prata eram atenciosos e calmos. O medo presente neles podia ser facilmente confundido com uma preocupação com o ferimento. Rosa falou, do outro lado da cozinha.
— Não há como arder demais. Pode ser que isso a faça aprender a lição.
O homem do partido ergueu-se e riu.
— Acho que essa menina não anda aprendendo nenhuma lição, Frau...?
— Hubermann — contorceu-se o rosto de papelão.
— ...Frau Hubermann, eu acho que ela dá lições — e sorriu para Liesel. — A todos aqueles meninos. Estou certo, mocinha?
O pai enfiou a toalha no arranhão e Liesel estremeceu, em vez de responder. Foi Hans quem falou. Um "desculpe" baixinho, dirigido à menina.
Veio então o incômodo do silêncio, até que o homem do partido se lembrou de seu propósito.
— Se não se importam — explicou —, preciso inspecionar seu porão, só por um ou dois minutos, para ver se ele serve de abrigo.
O pai deu uma última pancadinha no joelho de Liesel.
— Você também vai ficar com uma bela mancha roxa aí, Liesel — disse. Em tom despreocupado, respondeu ao homem que se erguia sobre eles. — É claro. Primeira porta à direita. Desculpe a bagunça, por favor.
— Eu não me preocuparia com isso... não pode ser pior do que uns outros que já vi hoje. ...É esta?
— É essa.

• OS TRÊS MINUTOS MAIS COMPRIDOS •
DA HISTÓRIA DOS HUBERMANN
O pai sentou-se à mesa. Rosa ficou rezando no canto,
enunciando as palavras em silêncio. Liesel sentia-se frita:
o joelho, o peito, os músculos dos braços. Duvido que
algum deles tenha tido a audácia de pensar no que faria
se o porão fosse designado como abrigo.
Primeiro, tinham que sobreviver à inspeção.

Ouviram os passos do nazista no porão. Veio o som da fita métrica. Liesel não pôde evitar a ideia de Max sentado embaixo da escada, encolhido com seu livro de desenhos, apertando-o junto ao peito.
O pai se levantou. Outra ideia.
Foi até o corredor e gritou:
— Tudo bem aí embaixo?
A resposta subiu a escada, por cima de Max Vandenburg.
— Só mais um minuto, talvez!
— O senhor gostaria de um café, um chá?
— Não, obrigado.

Ao voltar, Hans ordenou que Liesel pegasse um livro e Rosa começasse a cozinhar. Resolveu que a última coisa que eles deviam fazer era ficar sentados, com ar apreensivo.
— Bom, vamos lá — disse em voz alta — ande logo, Liesel. Não me interessa se o seu joelho está doendo. Você tem que terminar aquele livro, como disse.
Liesel tentou não perder o controle.
— Sim, papai.
— Que está esperando?
Foi um esforço enorme dar-lhe uma piscadela, ela percebeu.
No corredor, a menina quase se chocou com o homem do partido.
— Problemas com o papai, hein? Não se incomode. Também sou assim com meus filhos.
Seguiram seus rumos separados e, quando chegou ao quarto, Liesel fechou a porta e caiu de joelhos, apesar do aumento da dor. Primeiro ouviu a sentença dele: o porão era raso demais, depois as despedidas, uma das quais foi mandada o corredor:
— Até logo, jogadora de futebol maníaca!
Ela se recompôs:
— Auf Wiedersehen! Até logo!
O Carregador de Sonhos fervia em suas mãos.

Segundo o pai, Rosa desmanchou-se junto ao fogão no instante em que o homem do partido se retirou. Os dois pegaram Liesel e desceram ao porão, afastando as mantas de proteção e as latas de tinta bem arranjadas. Max Vandenburg sentava-se baixo da escada, segurando como uma faca sua tesoura enferrujada. Tinha as axilas empapadas de suor, e as palavras saíram-lhe da boca como xingamentos.
— Eu não ia usá-la — disse baixinho. — Eu...— e encostou as lâmina enferrujadas na testa. — Eu sinto muito, muito, tê-los feito passar por isso.
Papai acendeu um cigarro. Rosa pegou a tesoura.
— Você está vivo — disse ela. — Todos estamos.
Era tarde demais para desculpas.

O SCHMUNZELER

Minutos depois, houve uma segunda batida na porta.
— Santo Deus, mais um!
A preocupação recomeçou de imediato.
Max foi escondido.
Rosa subiu com esforço a escada do porão, mas, ao abrir a porta dessa vez, não eram os nazistas. Não era ninguém menos do que Rudy Steiner. Postado ali, de cabelo amarelo e cheio de boas intenções.
— Só passei para ver como está a Liesel.
Quando ouviu sua voz, Liesel começou a subir a escada.
— Desse eu posso cuidar.
— É o namorado dela — mencionou o pai, dirigindo-se às latas de tinta. Soltou outra baforada de fumaça.
— Ele não é meu namorado — protestou Liesel, mas não estava irritada. Isso seria impossível, depois de uma escapada tão difícil por um triz. — Só vou lá em cima porque a mamãe vai começar a gritar a qualquer segundo.
— Liesel!
Ela estava no quinto degrau.
—Viu?

Quando chegou à porta, Rudy mexia-se num pé e no outro.
— Só vim ver... — interrompeu-se. — Que cheiro é esse? — farejou. — Você andou fumando aqui?
— Ah. Eu estava com o papai.
— Você tem cigarros? Quem sabe a gente pode vender alguns.
Liesel não estava com clima para isso. Falou baixo o bastante para que a mãe não ouvisse.
— Eu não roubo do meu pai.
— Mas rouba de uns outros lugares.
— Que tal falar um pouquinho mais alto, não quer?
Rudy schmunzelou.
— Está vendo no que dá roubar? Você está toda preocupada.
— Como se você nunca tivesse roubado nada.
— É, mas você cheira a roubo — insistiu ele. Estava realmente esquentando as turbinas. — Vai ver que isso não é fumaça de cigarro, afinal — e chegou mais perto, sorridente. — Estou é sentindo cheiro de uma criminosa. Você devia tomar um banho.
Voltando-se para a rua, gritou para Tommy Müller.
— Ei, Tommy, você devia vir aqui dar uma cheirada nisso!
— O que você disse? — fez Tommy. Com esse se podia contar. — Não estou ouvindo!
Rudy abanou a cabeça em direção a Liesel:
— É inútil.
Ela começou a fechar a porta.
— Suma daqui, Saukerl, você é a última coisa de que eu preciso agora.
Muito satisfeito consigo mesmo, Rudy foi voltando para a rua. Junto à caixa do correio, pareceu lembrar-se do que tinha querido verificar, desde o começo. Retrocedeu alguns passos.
— Alies gut, Saumensch? Quero dizer, o machucado.
Era junho. Era a Alemanha.
As coisas estavam à beira da decadência.
Liesel não sabia disso. Para ela, o judeu em seu porão não fora descoberto. Seus pais de criação não tinham sido levados embora, e ela mesma contribuíra enormemente para essas duas façanhas.
— Está tudo bem — respondeu, e não falava de nenhum tipo de machucado conseguido no futebol.
Ela estava ótima.

DIÁRIO DA MORTE: OS PARISIENSES

Veio o verão.
Para a menina que roubava livros, tudo corria bem.
Para mim, o céu era da cor dos judeus.

Quando seus corpos acabavam de vasculhar a porta em busca de frestas, as almas subiam. Depois de suas unhas arranharem a madeira e, em alguns casos, ficarem cravadas nela, pela pura força do desespero, seus espíritos vinham em minha direção, para meus braços, e galgávamos as instalações daqueles chuveiros, escalávamos o telhado e subíamos para a largueza segura da eternidade. E continuavam a me alimentar. Minuto após minuto. Chuveiro após chuveiro.
Nunca me esquecerei do primeiro dia em Auschwitz, da primeira vez em Mauthausen. Nesse segundo local, com o correr do tempo, também passei a pegálos no fundo do grande penhasco, onde suas fugas acabavam terrivelmente mal. Havia corpos quebrados e meigos corações mortos. Ainda assim, era melhor do que o gás. Alguns deles eu apanhava ainda a meio caminho da descida. Salvei você, pensava comigo mesma, segurando suas almas no ar, enquanto o resto de seu ser — suas carcaças físicas — despencava na terra. Eram todos leves, como cascas de nozes vazias. E um céu enfumaçado nesses lugares. O cheiro fazia lembrar uma fornalha, mas ainda muito frio.
Estremeço ao recordar — ao tentar desrealizar aquilo.
Bafejo ar quente nas mãos, para aquecê-las.
Mas é difícil mantê-las aquecidas quando as almas ainda tiritam.
Deus.
Sempre pronuncio esse nome, ao pensar naquilo.
Deus.
Duas vezes, eu repito.
Digo o nome d'Ele na vã tentativa de compreender. "Mas não é sua função compreender." Essa sou eu respondendo. Deus nunca diz nada. Você acha que é a única pessoa a quem Ele nunca responde? "Sua tarefa é..." E eu paro de me escutar, porque, para dizê-lo curto e grosso, eu canso a mim mesma. Quando começo a pensar desse jeito, fico inteiramente exausta e não tenho o luxo de me entregar à fadiga. Sou obrigada a continuar, porque, embora isso não se aplique a todas as pessoas da Terra, é verdade para a vasta maioria: a morte não espera por ninguém — e, quando espera, em geral não é por muito tempo.

Em 23 de junho de 1942, havia um grupo de judeus franceses numa prisão alemã, em solo polonês. A primeira pessoa que peguei estava perto da porta, com a mente em disparada, depois reduzida a passadas, depois mais lenta, mais lenta...

Por favor, acredite quando lhe digo que, naquele dia, peguei cada alma como se fosse um recém-nascido. Cheguei até a beijar alguns rostos exaustos, envenenados. Ouvi seus últimos gritos entrecortados. Suas palavras evanescentes. Observei suas visões de amor e os libertei de seu medo.
A todos levei embora e, se houve um momento em que precisei de distração, foi esse. Em completa desolação, olhei para o mundo lá em cima. Vi o céu transformar-se de prata em cinza e em cor de chuva. Até as nuvens tentavam fugir.
Vez por outra, eu imaginava como seria tudo acima daquelas nuvens, sabendo, sem sombra de dúvida, que o Sol era louro e a atmosfera interminável era um gigantesco olho azul.
Eles eram franceses, eram judeus, e eram você.

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