Parte sete

O DICIONÁRIO
E TESAURO DUDEN
COMPLETO
APRESENTANDO:
champanhe e acordeões
uma trilogia
algumas sirenes
um ladrão de céus
uma oferta
a longa caminhada para dachau
paz
um idiota e uns homens de sobretudo

CHAMPANHE E ACORDEÕES

No verão de 1942, a cidade de Molching preparava-se para o inevitável.
Ainda havia quem se recusasse a acreditar que essa cidadezinha dos arredores de Munique pudesse constituir um alvo, mas a maioria da população tinha plena consciência de que não se tratava de se, mas de quando. Os abrigos foram mais claramente marcados, havia janelas em processo de escurecimento para as horas noturnas, e todo o mundo sabia onde ficavam o porão ou a adega mais próximos.
Para Hans Hubermann, esse incômodo desdobramento foi, na verdade, um ligeiro alívio. Numa época desventurada, a sorte, de algum modo, descobriu o caminho para seu ofício de pintor. As pessoas que tinham venezianas ficaram tão desesperadas que contrataram seus serviços para pintá-las. O problema de Hans foi que, normalmente, a tinta preta era mais usada na composição de misturas, para escurecer outras cores, e logo se esgotou e se tornou difícil de achar. O que ele tinha era jeito para ser bom negociante, e um bom negociante tem muitos truques. Ele pegou pó de carvão e foi misturando, e cobrava barato por seu trabalho. Foram muitas as casas de todas as regiões de Molching em que ele confiscou dos olhos inimigos a luz das janelas.
Em alguns de seus dias de trabalho, Liesel o acompanhava.
Eles puxavam a carroça de tinta pela cidade, sentindo o cheiro da fome em algumas ruas e abanando a cabeça para a riqueza de outras. Muitas vezes, na volta para casa, mulheres que nada tinham além de filhos pequenos e pobreza vinham correndo implorar a Hans que pintasse suas janelas.
— Frau Hallah, desculpe, mas não me sobrou nenhuma tinta preta — dizia ele; logo adiante no caminho, entretanto, sempre parava. O homem alto e a rua comprida. — Amanhã bem cedo — prometia, e, no alvorecer da manhã seguinte, lá estava ele, pintando as tais janelas por nada, ou por um biscoito e uma xícara de chá quente. Na noite anterior, descobria outro jeito de transformar azul, verde ou bege em preto. Nunca dizia a essas pessoas que cobrissem as janelas com seus cobertores sobressalentes, pois sabia que estes lhes seriam necessários quando chegasse o inverno. Soube-se até que ele pintou janelas por metade de um cigarro, sentando-se no degrau da frente desta ou daquela casa, e dividindo umas tragadas com seu ocupante. O riso e a fumaça erguiam-se da conversa, antes de Hans e Liesel partirem para o trabalho seguinte.

Quando chegou a hora de escrever, lembro-me com clareza do que Liesel Meminger teve a dizer sobre esse verão. Muitas palavras desbotaram no correr das décadas. O papel sofreu com o atrito do movimento em meu bolso, mas, apesar disso, muitas de suas frases foram impossíveis de esquecer.

• PEQUENA AMOSTRA DE ALGUMAS •
PALAVRAS ESCRITAS POR UMA MENINA
Aquele verão foi um novo começo, um novo fim.
Quando olho para trás, lembro-me de
minhas mãos escorregadias de tinta e
do som dos pés de papai na Rua Munique,
e sei que um pedacinho do verão de 1942
pertenceu a um homem só.
Quem mais pintaria pelo preço de meio cigarro?
Papai era assim, isso era típico, e eu o adorava.

Todos os dias em que trabalhavam juntos, ele contava a Liesel suas histórias. Havia a Grande Guerra e o modo como sua letra infame ajudara a lhe salvar a vida, e o dia em que ele conhecera Rosa. Disse Hans que um dia ela fora bonita e que, na verdade, falava muito baixinho. "E difícil de acreditar, eu sei, mas é a absoluta verdade." Todo dia havia uma história, e Liesel o perdoava quando ele contava a mesma mais de uma vez.
Em outras ocasiões, quando ela se entregava a devaneios, o pai a borrava de leve com o pincel, bem no meio dos olhos. Quando errava o cálculo e exagerava a quantidade, uma trilhazinha de tinta escorria pelo lado do nariz de Liesel. A menina ria e tentava retribuir a gentileza, mas Hans Hubermann era um homem difícil de apanhar, no trabalho. Era onde ele ficava mais vivo.
Sempre que faziam um intervalo para comer ou beber alguma coisa, ele tocava acordeão, e era disso que Liesel mais lembrava. Toda manhã, enquanto o pai empurrava ou arrastava a carroça de tintas, ela carregava o instrumento. "É melhor largarmos a tinta do que esquecermos a música", dizia-lhe Hans. Quando paravam para comer, ele cortava o pão e espalhava o restinho de geleia que houvesse do último cartão de racionamento, Ou, então, punha em cima uma fatiazinha de carne. Os dois comiam juntos, sentados nas latas de tinta, e, com as últimas dentadas ainda no estágios da mastigação, o pai limpava os dedos e desafivelava a caixa do acordeão.
Vestígios de migalhas de pão escondiam-se nas dobras do macacão de Hans. As mãos salpicadas de tinta percorriam os botões e revolviam as teclas, ou sustentavam uma nota por algum tempo. Os braços moviam os foles, dando ao instrumento o ar de que ele precisava para respirar.
Liesel sentava-se todos os dias com as mãos entre os joelhos, nas pernas comprida da luz diurna. Não queria que nenhum desses dias acabasse, e era sempre com desapontamento que via avançarem as passadas da escuridão.

No que concernia à pintura em si, é provável que o aspecto mais interessante para Liesel fosse a mistura. Como a maioria das pessoas, ela presumia que seu pai simplesmente levava a carroça à loja de tintas ou à de ferragens, pedia a cor certa e ir embora. Não se dava conta de que quase toda a tinta vinha em pedaços que tinham forma de tijolos. Em seguida, era aberta feito massa de pastel, com uma garrafa vazia de champanhe. (As garrafas de champanhe, explicou Hans, eram ideais para esse serviço, porque seu vidro era ligeiramente mais grosso que o de uma garrafa comum de vinho.) Concluída essa operação, vinha o acréscimo de água, giz e cola, para não falar nas complexidades de uniformizar a cor certa.
A ciência do ofício do papai granjeava-lhe um nível ainda maior de respeito. Muito bem que eles compartilhassem o pão e a música, mas, para Liesel, era bom saber que Hans também era mais do que competente em sua ocupação. A competência era atraente.

Uma tarde, dias depois da explicação do pai sobre a mistura, os dois estavam trabalhando numa das casas mais abastadas, logo à direita da Rua Munique. No início da tarde, o pai chamou Liesel para dentro. Estavam prestes a seguir para outro trabalho quando ela ouviu o volume inusitado da voz de Hans.
Depois de entrar, foi conduzida à cozinha, onde duas senhoras mais idosas e um homem sentavam-se em cadeiras delicadas, altamente civilizadas. As mulheres estavam bem vestidas. O homem tinha cabelos brancos e costeletas que pareciam sebes. Havia taças altas na mesa. Cheias de um líquido borbulhante.
— Bem — disse o homem —, aqui vamos nós.
Ergueu sua taça e exortou os outros a fazerem o mesmo.
Tinha sido uma tarde quente. Liesel ficou meio perturbada com a fria temperatura de sua taça. Olhou para o pai, em busca de aprovação. Ele sorriu e disse:
— Prost, Mädel. Saúde, menina.
As taças se tocaram, tilintando, e, no instante em que levou a sua à boca, Liesel foi mordiscada pelo gosto efervescente e enjoativamente adocicado do champanhe. Seus reflexos obrigaram-na a cuspir direto no macacão do pai, vendo-o espuma e gotejar. Seguiu-se uma gargalhada de todos, e Hans a incentivou a fazer outra tentativa. Na segunda vez, ela conseguiu engolir o líquido e desfrutar o sabor de uma gloriosa regra desrespeitada. Foi genial. As bolhas morderam-lhe a língua. Pinicaram seu estômago. Quando os dois andaram para o trabalho seguinte, ela ainda sentia o calor das alfinetadas e agulhadas dentro do corpo.
Arrastando a carroça, o pai lhe contou que aquelas pessoas haviam afirmado não ter dinheiro.
— E aí você pediu champanhe?
— Por que não? — fez Hans. Olhou-a, e seus olhos nunca tinham sido tão prateados. — Eu não queria que você achasse que só se usavam garrafas de champanhe para abrir massa de tinta — completou. — só não conte à mamãe — advertiu-a. — De acordo?
— Posso contar ao Max?
— Claro, pode contar ao Max.

No porão, ao escrever sobre sua vida, Liesel jurou que nunca mais tomaria champanhe, pois ele nunca teria um sabor tão gostoso quanto naquela tarde quente de julho.
O mesmo se deu com os acordeões.
Muitas vezes ela teve vontade de perguntar ao pai se ele lhe ensinaria a tocar, mas, por isto ou por aquilo, alguma coisa sempre a impedia. Talvez uma intuição desconhecida lhe dissesse que ela jamais conseguiria tocá-lo como Hans Hubermann. Com certeza, nem mesmo os maiores acordeonistas do mundo seriam comparáveis. Jamais conseguiriam equiparar-se à concentração displicente do rosto de papai. Ou, então, não haveria um cigarro trocado por um serviço de pintura pendendo dos lábios do músico. E eles nunca saberiam cometer um errinho com uma risada retrospectiva em três notas. Não do jeito que ele sabia.
Vez ou outra, naquele porão, Liesel acordava saboreando o som do acordeão nos ouvidos. Sentia a queimação doce do champanhe na língua.
De quando em quando, sentava-se encostada na parede, desejando que o dedo morno de tinta passeasse só mais uma vez pelo lado de seu nariz, ou querendo ver a textura de lixa das mãos de seu pai.
Se ao menos pudesse voltar a ser tão distraída, a sentir tanto amor sem saber, tomando-o por engano pelo riso e pelo pão com um levíssimo cheiro de geleia espalhado por cima.
Foi a melhor época de sua vida.

Mas foi a preparação de um tapete de bombas.
Não se deixe iludir.

Ousada e luminosa, a trilogia de felicidade perduraria por todo o verão e parte do outono. E então seria levada a um fim abrupto, porque o resplendor iluminou o caminho para o sofrimento.
Tempos difíceis estavam por vir.
Como um desfile.

• SIGNIFICADO N° 1 DO DICIONÁRIO DUDEN •
Zufriedenheit — Felicidade:
Proveniente de feliz — que goza
de prazer e contentamento.
Vocábulos correlatos: júbilo, alegria,
sentir-se afortunado ou próspero.

A TRILOGIA

Enquanto Liesel trabalhava, Rudy corria.
Dava voltas no Oval Hubert, corria em torno do quarteirão e disputava com quase qualquer um, da ponta da Rua Himmel até a loja de Frau Diller, dando vantagens variáveis na partida.
Em algumas ocasiões, quando Liesel ajudava a mãe na cozinha, Rosa espiava pela janela e dizia:
— Que é que aquele Saukerlzinho está aprontando desta vez? Toda essa correria lá fora.
Liesel aproximava-se da janela.
— Pelo menos ele não se pintou de preto de novo.
— Bom, já é alguma coisa, não é?

• AS RAZÕES DE RUDY •
Era meados de agosto haveria uma
competição da Juventude Hitlerista, e
Rudy fazia questão de vencer quatro provas:
os 1.500, os 400, os 200 e, é claro, os 100 metros.
Gostava de seus novos guias da Juventude Hitlerista
e queria agradar-lhes, e queria mostrar uma ou duas
coisinhas a seu velho amigo Franz Deutscher.
•••

— Quatro medalhas de ouro — disse a Liesel uma tarde, quando ela o acompanhou nas voltas pela pista do Oval Hubert. — Como o Jesse Owens, em '36,
— Você não continua obcecado com ele, continua?
Os pés de Rudy rimavam com sua respiração.
— Na verdade, não, mas seria bom, não é? Para mostrar a todos aqueles cretinos que disseram que eu era maluco. Eles iam ver que eu não era tão idiota, afinal.
— Mas você pode mesmo ganhar todas as quatro provas?
Diminuíram o ritmo até parar, no fim da pista, e Rudy pôs as mãos nos quadris.
— Tenho que ganhar.

Durante seis semanas, ele treinou, e, quando chegou o dia da competição, em meados de agosto, o céu estava quente de sol e sem uma nuvem. O gramado fervilhava de jovens da Juventude Hitlerista, pais e uma profusão de guias de camisas pardas. Rudy Steiner estava no auge de sua forma.
— Olhe — apontou. — Lá está o Deutscher.
Por entre os aglomerados de gente, o epítome louro dos padrões da Juventude Hitlerista dava instruções a dois integrantes de sua divisão. Eles assentiam com a cabeça e se alongavam, de quando em quando. Um dos dois protegia os olhos do sol, como numa continência.
— Quer ir até lá dizer oi? — perguntou Liesel.
— Não, obrigado. Faço isso depois.
Quando eu tiver vencido.
As palavras não foram ditas, mas decididamente estavam lá, em algum ponto entre os olhos azuis de Rudy e as mãos aconselhantes de Deutscher.

Houve a marcha obrigatória pelo campo.
O hino.
Heil Hitler.
Só depois eles poderiam começar.
•••

Quando o grupo da faixa etária de Rudy foi chamado para os 1.500 metros, Liesel lhe desejou boa sorte em estilo tipicamente alemão.
— Hals und Beinbruch, Saukerl.
Mandou-o quebrar o pescoço e a perna.

Os meninos reuniram-se no extremo oposto do campo circular. Alguns se alongaram, outros se concentraram, e o resto ficou ali porque tinha de estar.
Ao lado de Liesel, a mãe de Rudy, Barbara, sentava-se com os filhos menores. Uma esteira fina fervilhava de crianças e de grama solta.
— Vocês estão vendo o Rudy? — perguntou a mãe. — Ele é o da extrema esquerda.
Barbara Steiner era uma mulher bondosa, cujo cabelo sempre parecia recém-penteado.
— Onde? — perguntou uma das meninas. Provavelmente Bettina, a caçula. — Não estou vendo nada dele.
— É aquele último. Não, lá não. Lá.
Ainda estavam no processo de identificação quando o tiro de partida soltou sua fumaça e seu som. Os Steiner miúdos correram para a cerca.
Durante a primeira volta, um grupo de sete meninos liderou a corrida. Na segunda, caiu para cinco e, na seguinte, para quatro. Rudy foi o quarto corredor em todas as voltas, até a última. Um homem à direita dizia que o menino que vinha em segundo lugar parecia o melhor. Era o mais alto.
— Espere só — disse à sua esposa intrigada. — Quando faltarem duzentos, ele arranca.
O homem estava enganado.
Um oficial gargantuesco, de camisa parda, informou ao grupo que restava uma volta. Ele, com certeza, não vinha sofrendo com o sistema de racionamento. Gritou quando a bateria da frente cruzou a linha, e não foi o segundo menino quem acelerou, mas o quarto. E partiu com duzentos metros de antecipação.
Rudy correu.
Não olhou para trás em nenhum momento.
Como uma corda elástica, espichou a vantagem até que qualquer ideia de outro menino vencer arrebentou-se por completo. Ele avançou pela pista, enquanto os três corredores às suas costas lutavam entre si pelas sobras. Na reta final, não houve nada além de cabelo louro e espaço, e, quando cruzou a linha de chegada, Rudy não parou. Não levantou o braço. Não houve nem mesmo um dobrar o corpo de alívio. Ele apenas andou mais vinte metros e finalmente deu uma olhada por cima do ombro, para ver os outros cruzarem a linha.
Ao voltar para os familiares, primeiro ele se encontrou com seus guias e,em seguida, com Franz Deutscher. Ambos acenaram com a cabeça.
— Steiner.
— Deutscher.
— Parece que todas aquelas voltas que eu o fiz dar compensaram, hein?
— É o que parece.
Rudy se recusava a sorrir, enquanto não vencesse todas as quatro.

• NOTA PARA REFERÊNCIA POSTERIOR •
Agora Rudy era reconhecido não apenas como um
bom aluno. Era também um atleta talentoso.

Para Liesel, houve os 400 metros. Ela terminou em sétimo, depois em quarto, na eliminatória dos 200. Tudo que conseguia enxergar mais adiante eram os tendões e os rabos-de-cavalo balançantes das meninas que iam na frente. No salto, ela gostou mais da areia grudada em seus pés que de qualquer distância, e o arremesso de peso também não foi seu melhor momento. Esse dia, percebeu ela, era de Rudy.
Na final dos 400 metros, ele liderou desde a reta de largada até o fim, e venceu os 200 por uma pequena vantagem.
— Está ficando cansado? — indagou Liesel. Já era o começo da tarde.
— É claro que não — fez Rudy, com a respiração pesada e alongando as panturrilhas. — Do que você está falando, Saumensch? Que diabo você pode saber?
Quando veio a chamada para as eliminatórias dos 100 metros, ele se pôs de pé devagar e seguiu a fileira de adolescentes em direção à pista. Liesel foi atrás.
— Ei, Rudy — puxou-o pela manga da camisa. — Boa sorte.
— Não estou cansado — disse ele.
— Eu sei.
Rudy deu-lhe uma piscadela.
Estava cansado.

Em sua eliminatória, Rudy reduziu o ritmo e terminou em segundo e, após dez minutos de outras corridas, veio a chamada para a final. Outros dois meninos tinham parecido notáveis, e Liesel teve na barriga a sensação de que Rudy não conseguiria vencer essa. Tommy Müller, que terminara em penúltimo lugar em sua eliminatória, ficou com ela junto à cerca.
— Ele vai ganhar — informou-lhe.
— Eu sei.
Não, não vai.
Quando os finalistas chegaram à largada, Rudy se pôs de joelhos e começou a escavar buracos de largada com as mãos. Um camisa-parda meio calvo não tardou a se aproximar e dizer que ele parasse com aquilo. Liesel observou o dedo adulto, apontando, e pôde ver a terra caindo no chão quando Rudy esfregou as mãos.
Quando eles receberam ordem de tomar posição, Liesel apertou a cerca com mais força. Um dos meninos queimou a largada; o revólver disparou duas vezes. Foi Rudy. De novo, o oficial lhe dirigiu algumas palavras e o menino fez um aceno de cabeça. Mais uma vez e ele estaria fora.
Preparados pela segunda vez, Liesel os observou, concentrada, e, nos primeiros segundos, não pôde acreditar no que via. Queimou-se de novo a largada, e foi o mesmo atleta. A sua frente, ela havia criado uma corrida perfeita, na qual Rudy ficava para trás, mas acelerava para vencer nos últimos dez metros. O que realmente viu, porém, foi a desqualificação do amigo. Ele foi conduzido à lateral da pista e obrigado a ficar lá parado, sozinho, enquanto o resto dos meninos dava um passo à frente.
Alinharam-se e correram.
Um garoto de cabelo castanho enferrujado e passadas largas venceu por pelo menos cinco metros de vantagem.
Rudy continuou parado.
•••

Mais tarde, concluído o dia e retirado o sol da Rua Himmel, Liesel sentou-se com o amigo na calçada.
Falaram de todas as outras coisas, desde a expressão de Franz Deutscher depois dos 1.500 metros até o acesso de raiva de uma menina de onze anos, depois de perder a prova do disco.
Antes de eles seguirem para suas respectivas casas, a voz de Rudy aproximou-se e entregou a verdade a Liesel. Esta passou um tempo sentada no ombro da menina, mas, algumas idéias depois, chegou a seu ouvido.

• A VOZ DE RUDY •
— Eu fiz de propósito.

Registrada a confissão, Liesel fez a única pergunta disponível:
— Mas, por quê, Rudy? Por que você fez isso?
Ele estava de pé com uma das mãos no quadril, e não respondeu. Não houve nada além de um sorriso de quem entende das coisas e um andar lento, que o levou com indolência para casa. Os dois nunca mais falaram do assunto.
Por seu lado, Liesel perguntou-se muitas vezes qual teria sido a resposta de Rudy, se ela o houvesse pressionado. Talvez três medalhas houvessem mostrado o que ele queria mostrar, ou talvez ele temesse perder a última corrida. No fim, a única explicação que ela se permitiu ouvir foi uma voz adolescente interna.
— Porque ele não é o Jesse Owens.
Só quando se levantou para ir embora foi que ela notou as três medalhas de imitação de ouro, paradas a seu lado. Bateu na porta dos Steiner e as estendeu a Rudy:
— Você esqueceu isto.
— Não, não esqueci.
Fechou a porta e Liesel levou as medalhas para casa. Desceu com elas ao porão e falou com Max sobre seu amigo Rudy Steiner.
— Ele é mesmo um idiota — concluiu.
— Claramente — concordou Max, mas duvido que se tenha deixado enganar.
E os dois se puseram a trabalhar, Max em seu caderno de desenho, Liesel em O Carregador de Sonhos. Ela estava nas etapas finais do romance, no momento em que o jovem padre punha em dúvida sua fé, ao conhecer uma mulher estranha e elegante.
Quando Liesel o pôs no colo, virado para baixo, Max lhe perguntou quando ela achava que o terminaria.
— Dentro de uns dias, no máximo.
— E depois, um novo?
A menina que roubava livros olhou para o teto do porão.
— Talvez, Max — respondeu, Fechou o livro e se recostou. — Se eu tiver sorte.

• O LIVRO SEGUINTE  •
Não foi o Dicionário e Tesauro Duden,
como você poderia esperar.

Não, o dicionário virá no fim desta pequena trilogia, e esta é só a segunda parte. É o pedaço em que Liesel termina O Carregador de Sonhos e rouba uma história chamada Uma Canção no Escuro. Como sempre, ela foi tirada da casa do prefeito. A única diferença foi que a menina se dirigiu à parte alta da cidade sozinha. Não houve Rudy nesse dia.
Era uma manhã rica em sol e nuvens espumosas.
Liesel parou na biblioteca do prefeito, com a cobiça nos dedos e títulos de livros nos lábios. Sentiu-se suficientemente à vontade, nessa ocasião, para percorrer as prateleiras com os dedos — uma pequena reprise de sua visita original àquele cômodo — e foi murmurando muitos títulos ao avançar.
Sob a Cerejeira.
O Décimo Tenente.
Como era típico, muitos títulos foram tentadores, mas, depois de um bom minuto ou dois na sala, ela se decidiu por Uma Canção no Escuro, provavelmente porque o livro era verde e ela ainda não tinha nenhum dessa cor. O texto gravado na capa era branco e havia uma insigniazinha em forma de flauta entre o título e o nome do autor. Liesel pulou da janela com ele, agradecendo na saída.
Sem Rudy, sentiu uma boa dose de ausência, mas, nessa manhã em particular, por alguma razão, a menina que roubava livros ficou mais feliz sozinha. Executou sua tarefa e foi ler o livro junto ao Rio Amper, bem longe da sede ocasional de Viktor Chemmel e do bando anterior de Arthur Berg. Ninguém apareceu, ninguém interrompeu, e Liesel leu quatro dos capítulos curtíssimos de Uma Canção no Escuro, e ficou contente.
Foram o prazer e a satisfação.
De um bom furto.

Uma semana depois, a trilogia da felicidade completou-se.
Nos últimos dias de agosto, um presente chegou, ou, a rigor, foi notado.
Era fim de tarde. Liesel estava vendo Kristina Müller pular corda na Rua Himmel. Rudy Steiner parou diante dela, derrapando na bicicleta do irmão.
— Você tem um tempo livre? — perguntou-lhe.
Liesel deu de ombros.
— Para quê?
— Acho melhor você vir.
Largou a bicicleta e foi buscar a outra em casa. A sua frente, Liesel observou o pedal girar.

Seguiram para a Grande Strasse, onde Rudy parou e esperou.
— Bem — perguntou Liesel — o que é?
Rudy apontou.
— Olhe com mais atenção.
Aos poucos, os dois se colocaram numa posição melhor, atrás de uma pícea azul. Por entre os galhos espinhosos, Liesel notou a janela fechada e, em seguida, o objeto encostado no vidro.
— Aquilo é...?
Rudy fez que sim.

Debateram o problema por vários minutos, até concordarem em que era preciso fazê-lo. Era óbvio que o objeto fora intencionalmente colocado lá e, mesmo que fosse uma armadilha, valia a pena.
Entre os galhos azuis pulverulentos, Liesel disse:
— Um ladrão de livros iria.
Largou a bicicleta, observou a rua e atravessou o jardim. As sombras das nuvens enterravam-se por entre a grama escura. Seriam buracos em que cair, ou tiras de escuridão extra em que encontrar um esconderijo? Sua imaginação a fez escorregar por um desses buracos até as garras maléficas do próprio prefeito. Que mais não fosse, essas ideias a distraíram e ela chegou à janela ainda mais depressa do que havia esperado.
Parecia uma repetição de O Assobiador.
Os nervos da menina lamberam-lhe as palmas das mãos.
Gritinhos de suor ondulavam em suas axilas.
Quando ela levantou a cabeça, conseguiu ler o título. Dicionário e Tesauro Duden Completo. Voltou-se rapidamente para Rudy e moveu os lábios, pronunciando as palavras.
— É um dicionário.
Ele encolheu os ombros e estendeu os braços.
Liesel trabalhou metodicamente, deslizando a janela para cima e pensando o que é que tudo aquilo pareceria, visto de dentro da casa. Imaginou a visão de sua mão gatuna esticando-se para o alto e fazendo a janela subir, até derrubar o livro. Ele pareceu render-se devagar, como uma árvore que tombasse.
Peguei.
Mal chegou a haver um distúrbio ou um som.
O livro apenas se inclinou em sua direção e ela o pegou com a mão livre.
Chego até a fechar a janela, bem devagarzinho, depois deu meia-volta e refez o percurso pelos poços de nuvens.
— Legal — disse Rudy, entregando-lhe a bicicleta.
— Obrigada.
Foram até a esquina, onde a importância do dia os atingiu. Liesel soube. Foi de novo aquela sensação de ser observada. Uma voz pedalou dentro dela. Duas voltas.
Olhe para a janela. Olhe para a janela.
Foi obrigada.
Como uma comichão que exige uma unha, ela sentiu um desejo intenso de parar.
Pôs os pés no chão e se virou de frente para a casa do prefeito e a janela da biblioteca, e então viu. Com certeza, deveria ter sabido que aquilo podia acontecer, mas não teve como esconder o susto que lhe vagou por dentro ao ver a mulher do prefeito, parada atrás do vidro. Era transparente, mas estava lá. O cabelo felpudo era o de sempre, e os olhos, a boca e a expressão magoados exibiam-se para ser vistos.
Bem devagar, ela ergueu a mão para a roubadora de livros na rua. Um aceno imóvel.
Em seu estado de choque, Liesel nada disse, nem a Rudy nem a si mesma. Apenas se equilibrou e levantou a mão, reconhecendo a presença da mulher do prefeito à janela.

• SIGNIFICADO N° 2 NO DICIONÁRIO DUDEN •
Verzeihung — Perdão:
Parar de sentir raiva, animosidade ou ressentimento.
Vocábulos correlatos: absolvição, indulto, clemência.

A caminho de casa, eles pararam na ponte e inspecionaram o pesado livrovpreto. Ao folhear as páginas, Rudy chegou a uma carta. Pegou-a e olhou lentamente para a menina que roubava livros.
— Tem o seu nome aqui.
O rio correu.
Liesel pegou o papel.

• A CARTA •
Cara Liesel,
Sei que você me acha ridícula e nauseabunda
(consulte essa palavra, se não a conhecer),
mas devo dizer-lhe que não sou tão estúpida
que não veja suas pegadas na biblioteca.
Quando notei a falta do primeiro livro,
achei simplesmente que o pusera no lugar errado,
mas depois vi os contornos de uns pés no chão,
em algumas réstias de luz.
Isso me fez sorrir.
Fiquei contente por você ter levado o que era seu por direito.
Depois, cometi o erro de supor que aquilo seria o fim.
Quando você voltou, eu deveria ter-me zangado, mas não me zanguei.
Pude ouvi-la, da última vez, mas resolvi deixá-la em paz.
Você sempre leva apenas um livro, e serão necessárias mil visitas até
que todos tenham sumido. Minha única esperança é que, um dia, você
bata à porta da frente e entre na biblioteca da maneira mais civilizada.
Mais uma vez, lamento não termos mais podido manter o emprego de
sua mãe de criação. Por último, espero que você ache útil
este dicionário e tesauro, ao ler seus livros furtados.
Cordialmente,
Ilsa Hermann

— E melhor a gente ir para casa — sugeriu Rudy, mas Liesel não foi.
— Você pode esperar dez minutos aqui?
— É claro.
• • •

Liesel galgou de volta a ladeira para o número 8 da Grande Strasse e se sentou no território conhecido da porta de entrada. O livro estava com Rudy, mas ela segurava a carta e esfregava os dedos no papel dobrado, à medida que os degraus iam ficando mais pesados à sua volta. Tentou quatro vezes bater na pele atemorizante da porta mas não conseguiu. O máximo que pôde fazer foi colocar delicadamente os nós dos, dedos no calor da madeira.
Mais uma vez, o irmão veio a seu encontro.
Da base da escada, com o joelho cicatrizando bem, ele disse:
— Ande, Liesel, bata.

Enquanto fugia pela segunda vez, ela não tardou a ver a figura distante de Rudy na ponte. O vento lhe inundava os cabelos. Os pés nadavam com os pedais.
Liesel Meminger era uma criminosa.
Mas não por ter furtado um punhado de livros por uma janela aberta.
Você devia ter batido, pensou, e, embora houvesse uma boa dose de culpa, havia também o vestígio juvenil do riso.
Enquanto pedalava, ela tentou dizer uma coisa a si mesma.
Você não merece ser feliz assim, Liesel. Não merece mesmo.
Pode alguém roubar a felicidade? Ou será que ela é apenas mais um infernal truque interno dos humanos?
Liesel deu de ombros, afastando-se de seus pensamentos. Cruzou a ponte e disse a Rudy para andar depressa e não esquecer o livro.
E lá se foram para casa nas bicicletas enferrujadas.
Rodaram uns três quilômetros, do verão para o outono e de um anoitecer sereno para o sopro barulhento do bombardeio de Munique.

O SOM DAS SIRENES

Com o pequeno punhado de dinheiro que havia ganhado no verão, Hans levou para casa um rádio de segunda mão.
— Assim — disse — poderemos saber quando os ataques aéreos chegarem, antes mesmo de começarem as sirenes. Eles fazem um barulho de cuco e anunciam as regiões que estão em perigo.
Pôs o rádio na mesa da cozinha e o ligou. Também tentaram fazê-lo funcionar no porão, para Max, mas não saiu nada pelos alto-falantes além de estática e vozes quebradas.
Em setembro, não o escutaram enquanto dormiam.
Ou o rádio já estava meio defeituoso, ou foi imediatamente tragado pelo som gritante das sirenes.

Delicadamente, a mão empurrou o ombro de Liesel, adormecida.
A voz do pai a seguiu, temerosa.
— Liesel, acorde. Temos que ir.
Veio a desorientação do sono interrompido, e Liesel mal pôde decifrar o contorno do rosto do pai. A única coisa realmente visível era sua voz.
• • •

No corredor, pararam.
— Esperem — disse Rosa.
Cortando a escuridão, correram para o porão.
A lamparina estava acesa.

Max esgueirou-se de trás das latas de tinta e das mantas de proteção contra respingos. Tinha o rosto cansado e enganchava nervosamente os polegares nas calças.
— Hora de ir, não é?
Hans foi até ele.
— Sim, é hora de ir — disse. Apertou-lhe a mão e deu um tapinha em seu braço. — Vemos você quando voltarmos, certo?
— É claro.
Rosa o abraçou, assim como Liesel.
— Até logo, Max.

Semanas antes, eles haviam discutido se deveriam ficar todos juntos em seu próprio porão, ou se os três deveriam descer a rua, até a casa de uma família de sobrenome Fiedler. Max é que os tinha convencido.
— Eles disseram que aqui não há profundidade suficiente. Já expus vocês a perigos demais.
Hans havia assentido.
— É uma pena não podermos levar você conosco. É uma vergonha.
— É assim que é.

Do lado de fora, as sirenes uivavam para as casas e as pessoas saíam correndo, trôpegas e trêmulas ao deixarem suas casas. A noite vigiava. Alguns a espreitavam de volta, tentando localizar os aviões destruidores que cruzavam os céus.
A Rua Himmel tornou-se uma procissão de pessoas confusas, todas às voltas com seus bens mais preciosos. Em alguns casos, era um bebê. Em outros, uma pilha de álbuns de fotografias ou uma caixa de madeira. Liesel carregava seus livros entre os braços e as costelas. Frau Holtzapfel arquejava com sua mala, esforçando-se na calçada, com seus olhos inchados e seus passinhos miúdos.
Hans, que se esquecera de tudo — até do acordeão —, voltou correndo para ela e resgatou a mala de suas mãos.
— Jesus, Maria e José, que é que a senhora tem aqui?— perguntou. — Uma bigorna?
Frau Holtzapfel caminhou a seu lado.
— As necessidades.

Os Fiedler moravam seis casas adiante. Eram uma família de quatro pessoas, todos com cabelos cor de trigo e bons olhos alemães. Mais importante, tinham um belo porão profundo. Vinte e duas pessoas apinharam-se nele, inclusive a família Steiner, Frau Holtzapfel, Pfiffikus, um rapaz e uma família de sobrenome Jenson. A bem da civilidade do ambiente, Rosa Hubermann e Frau Holtzapfel foram mantidas separadas, embora certas coisas ficassem acima das brigas mesquinhas.
Um globo de luz pendia do teto e o aposento era úmido e frio. As paredes de chapisco se projetavam e cutucavam as pessoas nas costas, enquanto elas conversavam, paradas. O som abafado das sirenes vazava por algum lugar. As pessoas ouviam uma versão distorcida dele, que de algum modo se infiltrava. Embora isso criasse uma apreensão considerável quanto à qualidade do abrigo, ao menos eles poderiam ouvir as três sirenes que assinalariam o fim do bombardeio e a segurança. Não precisariam de um Luftschutzwart — um monitor de defesa antiaérea.
Não demorou muito para que Rudy encontrasse Liesel e parasse a seu lado. Seu cabelo apontava para alguma coisa no teto.
— Isso não é genial?
A menina não pôde resistir a um certo sarcasmo:
— É encantador.
— Ora, vamos, Liesel, não fique assim. Que é o pior que pode acontecer, afora sermos todos achatados ou fritos, ou seja lá o que for que as bombas fazem?
Liesel olhou em volta, avaliando os rostos. Começou a compilar uma lista de quem estava mais amedrontado.

• A LISTA DOS VENCEDORES •
1. Frau Holtzapfel
2. Sr. Fiedler
3. O rapaz
4. Rosa Hubermann

Os olhos de Frau Holtzapfel arregalavam-se, fixos. Seu corpo magro e rijo curvava-se para frente e a boca formava um círculo. Herr Fiedler ocupava-se perguntando às pessoas, às vezes repetidamente, como estavam passando. O rapaz, Rolf Schultz, isolou-se num canto, falando silenciosamente com o ar a seu redor, censurando-o com aspereza. Tinha as mãos cimentadas nos bolsos. Rosa balançava o corpo bem de leve, para frente e para trás.
— Liesel — sussurrou —, venha cá.
Abraçou a menina por trás, apertando firme. Cantarolou uma canção, mas tão baixo que Liesel não conseguiu distinguir qual era. As notas nasciam em sua respiração e morriam em seus lábios. Ao lado delas, o pai permaneceu calado e imóvel. A certa altura, pôs a mão morna sobre o crânio frio de Liesel. Você sobreviverá, dizia a mão, e estava certa.
À esquerda deles ficaram Alex e Barbara Steiner, com as meninas mais novas, Emma e Bettina. As duas meninas agarravam-se à perna direita da mãe. O filho mais velho, Kurt, olhava fixo para frente, numa perfeita postura da Juventude Hitlerista, segurando a mão de Karin, uma criança minúscula até mesmo para seus sete anos. A menina de dez anos, Anna-Marie, brincava com a superfície grumosa da parede de cimento.
Do outro lado dos Steiner estavam Pfiffikus e a família Jenson.
Pfiffikus absteve-se de assobiar.
O Sr. Jenson, barbudo, abraçava apertado sua mulher, enquanto os dois filhos entravam e saíam do silêncio. De vez em quando, implicavam um com o outro, mas se continham quando a coisa se aproximava do início de uma briga de verdade.
Passados cerca de dez minutos, o que mais se destacava no porão era uma espécie de não movimento. Os corpos ficaram grudados, e apenas os pés trocavam de posição ou de pressão. A imobilidade se agrilhoava nos rostos. Eles se entreolhavam e aguardavam.

• SIGNIFICADO N° 3 DO DICIONÁRIO DUDEN •
Angst — Medo:
Emoção desagradável amiúde intensa, causada pelo
pressentimento ou pelo reconhecimento do perigo.
Vocábulos correlatos: terror, pavor, pânico, susto, sobressalto.

De outros abrigos vieram histórias de gente cantando "Deutschland über Alies" ou discutindo, em meio ao bafio de seu próprio hálito. Nada disso aconteceu no abrigo dos Fiedler. Nesse local, houve apenas medo e apreensão, além do canto mudo dos lábios de papelão de Rosa Hubermann.
Pouco antes de as sirenes assinalarem o fim, Alex Steiner — o homem do impassível rosto de madeira — persuadiu as meninas a soltarem as pernas de sua mulher. Conseguiu estender um braço e agarrar a mão livre do filho. Kurt, ainda estóico e de olhos fixos, segurou-a e apertou um pouquinho mais a mão da irmã. Em pouco tempo, todo o mundo no porão estava de mãos dadas, e o grupo de alemães formava um círculo irregular. As mãos frias derretiam-se nas quentes e, em alguns casos, a sensação de outra pulsação humana era transportada. Atravessava as camadas de pele enrijecida e pálida. Alguns fecharam os olhos, à espera da extinção final, ou na esperança de um sinal de que o bombardeio havia enfim terminado.
Será que essas pessoas mereciam algo melhor?
Quantas delas haviam perseguido outras ativamente, seguindo o rastro do olhar de Hitler, repetindo suas frases, seus parágrafos, sua obra? Seria Rosa Hubermann responsável? Ela, que escondia um judeu? Ou Hans? Será que todos mereciam morrer? As crianças?
A resposta a cada uma dessas perguntas me interessa muito, embora eu não possa permitir que elas me seduzam. Só sei que toda aquela gente deve ter intuído minha presença nessa noite, excetuadas as crianças menores. Eu era a sugestão. Eu era o conselho, com meus pés imaginários entrando na cozinha e descendo o corredor.
Como tantas vezes acontece com os seres humanos, ao ler a seu respeito nas palavras da menina que roubava livros, senti pena deles, embora não tanta quanto senti dos que recolhi em vários campos nessa época. Os alemães nos porões eram dignos de pena, sem dúvida, mas ao menos tinham uma chance. Aquele porão não era um banheiro. Eles não tinham sido mandados para lá para tomar banho. Para essas pessoas, a vida ainda era alcançável.

No círculo desigual, os minutos se escoaram, pesados.
Liesel segurava a mão de Rudy e a de sua mamãe.
Só um pensamento a entristecia.
Max.
Como sobreviveria Max, se as bombas chegassem à Rua Himmel?
Olhando ao redor, ela examinou o porão dos Fiedler. Era muito mais sólido e consideravelmente mais profundo que o da Rua Himmel, 33.
Em silêncio, ela fez a pergunta ao pai.
Você também está pensando nele?
Tenha ou não registrado a pergunta muda, Hans fez um rápido aceno de cabeça para a menina. Minutos depois, o aceno foi seguido pelas três sirenes da paz temporária.
As pessoas da Rua Himmel, 45 arriaram de alívio.
Algumas fecharam os olhos e tornaram a abri-los.
Um cigarro passou de mão em mão.
No instante em que estava a caminho dos lábios de Rudy Steiner, foi arrancado por seu pai.
— Você não, Jesse Owens.
As crianças abraçaram seus pais, e levou muitos minutos para que todos se apercebessem plenamente de que estavam vivos, e de que continuariam vivos. Só então foi que seus pés subiram a escada, em direção à cozinha de Herbert Fiedler.
Lá fora, uma procissão caminhava em silêncio pela rua. Muitos erguiam os olhos e agradeciam a Deus por sua vida.

Ao chegarem em casa, os Hubermann rumaram diretamente para o porão, mas Max aparentemente não estava. A lamparina parecia pequena e laranja, e eles não conseguiram vê-lo nem ouvir uma resposta.
— Max?
— Ele sumiu.
— Max, você está aí?

— Estou aqui.

Originalmente, os três acharam que as palavras tinham vindo de trás das mantas de proteção e das latas de tinta, mas Liesel foi a primeira a vê-lo à sua frente. O rosto calejado de Max camuflara-se entre o material de pintura e os panos. Ele estava sentado ali, com olhos e lábios perplexos.
Quando todos se aproximaram, voltou a falar.
— Não pude evitar — disse.
Foi Rosa quem respondeu. Agachou-se para fitá-lo.
— De que você está falando, Max?
— Eu... — lutou ele para responder. — Quando ficou tudo quieto, subi até o corredor, e havia uma frestinha aberta na cortina da sala... dava para eu ver o lado de fora. Espiei, só por alguns segundos.
Fazia vinte e dois meses que ele não via o mundo lá fora.
Não houve raiva nem censuras.
Foi o pai quem falou.
— E o que lhe pareceu?
Max levantou a cabeça, com enorme tristeza e enorme assombro.
— Havia estrelas — disse. — Elas queimaram meus olhos.

Quatro deles.
Duas pessoas de pé. As outras duas permaneceram sentadas.
Todas tinham visto uma ou duas coisas nessa noite.
Aquele lugar era o verdadeiro porão. Aquele era o medo real. Max recompôs-se e ficou de pé, prestes a voltar para trás das mantas. Desejou-lhes boa noite, mas não chegou a entrar embaixo da escada. Com a permissão da mãe, Liesel ficou com ele até de manhã, lendo Uma Canção no Escuro, enquanto ele desenhava e escrevia em seu caderno.
Numa janela da Rua Himmel, escreveu Max, as estrelas puseram fogo em meus olhos.

O LADRÃO DE CÉUS

O primeiro bombardeio, como depois se constatou, não tinha sido bombardeio algum. Se as pessoas houvessem esperado para ver os aviões, teriam ficado lá a noite inteira. Isso explicou o fato de não ter havido pio de cuco no rádio.
O Expresso de Molching informou que um certo operador da torre de artilharia antiaérea ficara meio alvoroçado demais. Jurara ter ouvido o ronco dos aviões e tê-los visto no horizonte. Ele é que tinha dado o aviso.
— Vai ver que ele fez de propósito — assinalou Hans Hubermann. — Você gostaria de ficar sentado numa torre de artilharia antiaérea, atirando em aviões carregados de bombas?
E, com efeito, quando Max continuou a ler a reportagem no porão, informou-se que o homem de imaginação excêntrica fora destituído de sua função original. Seu destino mais provável era algum tipo de serviço noutro lugar.
— Boa sorte para ele — disse Max. Pareceu compreender, enquanto passava às palavras cruzadas.

O bombardeio seguinte foi real.
Na noite de 19 de setembro, houve um pio de cuco no rádio, seguido por uma voz informativa grave. Ela arrolou Molching como um alvo possível.
Mais uma vez, a Rua Himmel tornou-se uma trilha de pessoas e, mais uma vez, Hans deixou seu acordeão. Rosa lembrou-lhe de levá-lo, mas ele se recusou.
— Não o levei da última vez — explicou — e ficamos vivos.
A guerra, obviamente, embotava a distinção entre superstição e lógica.
Um ar sinistro os seguiu até o porão dos Fiedler.
— Acho que hoje é para valer — disse o Sr. Fiedler, e as crianças perceberam depressa que os pais estavam ainda mais amedrontados, dessa vez. Reagindo da única maneira que sabiam, as mais novas começaram a gritar e chorar, enquanto o cômodo parecia balançar.
Mesmo do porão, eles ouviam vagamente a melodia das bombas. O ar fazia pressão para baixo como se fosse um teto, como que para triturar a terra. Umalasca foi tirada das ruas desertas de Molching.

Rosa agarrou-se furiosamente à mão de Liesel.
O som das crianças chorando soltava pontapés e socos.

Até Rudy ficou completamente ereto, fingindo indiferença, retesando-se contra a tensão. Braços e cotovelos lutavam por espaço. Alguns adultos tentaram acalmar os pequeninos. Outros não conseguiam acalmar a si mesmos.
— Façam essa criança calar a boca! — clamou Frau Holtzapfel, mas sua frase foi apenas mais uma voz desafortunada no caos aquecido do abrigo. Lágrimas encardidas soltavam-se dos olhos das crianças, e o cheiro do hálito noturno, do suor nas axilas e de roupas muito usadas foi mexido e ensopado no que era, àquela altura, um caldeirão nadando em seres humanos.
Embora estivessem bem ao lado uma da outra, Liesel foi obrigada a gritar:
— Mamãe! — e de novo: — Mamãe, você está esmigalhando minha mão!
— O quê?
— Minha mão!
Rosa soltou-a e, para se reconfortar, para isolar a algazarra do porão, Liesel abriu um de seus livros e começou a ler. O livro no topo da pilha era O Assobiador, e ela falou em voz alta, para ajudar sua própria concentração. O parágrafo inicial entorpeceu-se em seus ouvidos.
— O que você disse? — rugiu a mãe, mas Liesel a ignorou. Continuou concentrada na primeira página.
Quando ela virou a página dois, foi Rudy quem notou. Atentou diretamente para o que Liesel estava lendo e deu um tapinha no irmão e nas irmãs, dizendo-lhe para fazerem o mesmo. Hans Hubermann aproximou-se e convocou a todos e, em pouco tempo, uma quietude começou a escoar pelo porão apinhado. Na página três, todos estavam calados, menos Liesel.
A menina não se atreveu a levantar os olhos, mas sentiu os olhares assustados prenderem-se a ela, enquanto ia puxando as palavras e exalando-as. Uma voz tocava as notas dentro dela. Este é o seu acordeão, dizia.
O som da página virada cortou-os ao meio.
Liesel continuou a ler.
Durante pelo menos vinte minutos, foi entregando a história. As crianças menores se acalmaram com sua voz, enquanto todos os outros tinham visões do assobiador fugindo da cena do crime. Não Liesel. A menina que roubava livros via apenas a mecânica das palavras — seus corpos presos ao papel, achatados para lhe permitir caminhar sobre eles. Além disso, em algum lugar, nos hiatos entre uma frase e a maiúscula seguinte, também havia Max. Liesel lembrou-se de ter lido para ele quando o rapaz estivera doente. Será que ele está no porão?, pensou com seus botões. Ou estará roubando de novo um vislumbre do céu?

• UMA IDÉIA BONITA •
Uma roubava livros.
O outro roubava o céu.
• • •

Todos esperavam o chão estremecer.
Essa ainda era uma realidade imutável, mas agora, ao menos eles estavam distraídos com a menina e o livro. Um dos garotos menores pensou em chorar de novo, mas, nesse momento, Liesel parou e imitou seu papai, ou até Rudy, aliás. Deu-lhe uma piscadela e recomeçou.
Só quando as sirenes tornaram a se infiltrar no porão foi que alguém a interrompeu.
— Estamos salvos — disse o Sr. Jenson.
— Psiu! — fez Frau Holtzapfel.
Liesel ergueu os olhos.
— Só faltam dois parágrafos para o fim do capítulo — disse, e continuou a ler, sem fanfarra nem aumento da velocidade. Apenas as palavras.

• SIGNIFICADO N° 4 DO DICIONÁRIO DUDEN •
Wort — Palavra:
Unidade significativa de linguagem /promessa/
breve comentário, afirmação ou conversa.
Vocábulos correlatos: termo, nome, expressão.

Por respeito, os adultos permaneceram todos em silêncio e Liesel terminou o capítulo um de O Assobiador.
Na subida da escada, as crianças passaram correndo por ela, mas muitas pessoas mais velhas — até Frau Holtzapfel, até Pfiffikus (o que era muito apropriado, considerando-se o livro do qual ela lera um trecho) — agradeceram à menina pela distração. Fizeram-no ao passar por ela e sair apressadamente da casa, para ver se a Rua Himmel havia sofrido algum dano.
A Rua Himmel estava intacta,
O único sinal de guerra era uma nuvem de poeira que migrava de leste para oeste. Olhava pelas janelas, tentando encontrar um jeito de entrar, e, enquanto se tornava ao mesmo tempo mais densa e mais dispersa, ia transformando a fileira de seres humanos em aparições.
Não havia mais pessoas na rua.
Havia rumores carregando sacos.

Em casa, o pai contou tudo a Max.
— Há neblina e cinzas... acho que nos deixaram sair cedo demais — disse. Olhou para Rosa. — Devo ir lá fora, para ver se precisam de ajuda onde as bombas caíram?
Rosa não se impressionou.
— Não seja tão idiota — retrucou. — Você vai se engasgar com a poeira. Não, não, Saukerl, você fica aqui — e lhe ocorreu uma ideia. Nesse momento, olhou para Hans com muita seriedade. Na verdade, o orgulho se desenhava em creiom no seu rosto. — Fique aqui e conte a ele sobre a menina — sugeriu. Sua voz elevou-se, só um pouquinho. — Sobre o livro.
Max deu-lhe um pouco mais de atenção.
— O Assobiador — informou-lhe Rosa. — Capítulo um — e explicou exatamente o que havia acontecido no abrigo.
Com Liesel parada num canto do porão, Max a observou e passou a mão pelo queixo. Pessoalmente, acho que foi nesse momento que ele concebeu o trabalho seguinte para seu caderno de desenho.
A Sacudidora de Palavras.
Imaginou a menina lendo no abrigo. Deve tê-la visto literalmente distribuindo as palavras. Mas, como sempre, também deve ter visto a sombra de Hitler. E provável que já lhe ouvisse os passos, dirigindo-se à Rua Himmel e ao porão, mais tarde.
Após uma longa pausa, ele pareceu prestes a falar, mas Liesel se antecipou.
— Hoje você viu o céu?
— Não.
Max olhou para a parede e apontou. Nela, todos viram as palavras e o desenho que ele havia pintado mais de um ano antes — a corda e o Sol gotejante.
— Hoje foi só este — e, daí para frente, não se disse mais nada. Nada além de pensamentos.
De Max, Hans e Rosa, eu não posso dar conta, mas sei que Liesel Meminger pensou que, se um dia as bombas caíssem na Rua Himmel, não só Max teria menos probabilidade de sobreviver do que todos os outros, como estaria completamente sozinho.

A OFERTA DE FRAU HOLTZAPFEL

De manhã inspecionaram-se os danos. Ninguém morreu, mas dois prédios de apartamentos foram reduzidos a pirâmides de escombros, e uma enorme tigela tinha sido escavada no campo favorito de Rudy na Juventude Hitlerista. Metade da cidade postou-se em sua circunferência. As pessoas avaliavam sua profundidade, para compará-la com a de seus abrigos. Vários meninos e meninas cuspiram no buraco.
Rudy parou ao lado de Liesel.
— Parece que vão ter que adubar de novo.

Quando as semanas seguintes ficaram livres de bombardeios, a vida quase voltou ao normal. Porém, dois momentos marcantes estavam a caminho.

• OS DOIS EVENTOS DE OUTUBRO •
As mãos de Frau Holtzapfel
O desfile de judeus.

Suas rugas eram como calúnias. Sua voz assemelhava-se a uma surra de pau.
Na verdade, foi uma grande sorte elas terem visto Frau Holtzapfel aproximar-se, pela janela da sala, porque as batidas dela na porta foram duras e decisivas. Falavam sério.
Liesel ouviu as palavras que temia.
— Vá você atender — disse a mãe, e a menina, muito ciente do que lhe convinha, fez o que lhe foi mandado.
— Sua mãe está? — indagou Frau Holtzapfel. Construída de arame de cinquenta anos, postou-se no degrau da frente, virando-se a todo momento para trás, para ver a rua. — Aquela porca da sua mãe está aqui hoje?
Liesel virou-se e chamou-a.

• SIGNIFICADO N° 5 DO DICIONÁRIO DUDEN •
Gelegenheit — Oportunidade:
Chance de avanço ou progresso.
Vocábulos correlatos: perspectiva, abertura, ensejo.

Num instante, Rosa estava atrás dela.
— O que você quer aqui? Agora também quer cuspir no chão da minha cozinha?
Frau Holtzapfel não se deixou intimidar minimamente.
— É assim que você recebe todo o mundo que aparece na sua porta? Que G'sindel!
Liesel observava. Tivera a infelicidade de ficar ensanduichada entre as duas. Rosa a tirou do caminho.
— Bem, vai me dizer por que está aqui ou não?
Frau Holtzapfel olhou mais uma vez para a rua e tomou a se virar.
— Tenho uma oferta para você.
A mãe deslocou o peso de uma perna para a outra.
— É mesmo?
— Não, para você, não — disse, descartando Rosa com um dar de ombros na voz e se concentrando em Liesel. — Você.
— Então, por que me chamou?
— Bom, preciso pelo menos da sua permissão.
Ai, minha santa mãe, pensou Liesel, é só disso que eu preciso. Que diabo a Holtzapfel pode querer de mim?
— Gostei daquele livro que você leu no abrigo.
Não. Você não vai ficar com ele, disso Liesel estava convencida.
— Pois não?
— Eu tinha a esperança de ouvir o resto dele no abrigo, mas parece que estamos seguros, por enquanto — e rolou os ombros, esticando o arame das costas. — Por isso, quero que você vá a minha casa e leia para mim.
— Você é mesmo descarada, Holtzapfel — fez Rosa, enquanto decidia se devia enfurecer-se ou não. — Se está pensando...
— Eu paro de cuspir na sua porta — interrompeu a mulher. — E lhe dou minha quota de café.
Rosa resolveu não se enfurecer.
— E um pouco de farinha de trigo?
— Como, você é judia ou o quê? Só o café. Você pode trocar o café por farinha de trigo com outra pessoa.
Estava resolvido.
Por todo o mundo, menos a menina.
— Certo, então está feito.
— Mamãe?
— Calada, Saumensch. Vá buscar o livro — e a mãe voltou a encarar Frau Holtzapfel. — Qual é o dia que lhe convém?
— Segundas e quartas, às quatro horas. E hoje, agora mesmo.

Liesel seguiu as passadas marciais até a casa de Frau Holtzapfel, logo ao lado, que era uma imagem especular da dos Hubermann. Se tanto, era ligeiramente maior.
Quando Liesel sentou-se à mesa da cozinha, Frau Holtzapfel sentou-se bem em frente a ela, mas voltada para a janela.
— Leia — disse.
— Capítulo dois?
— Não, capítulo oito. É claro que é o capítulo dois! E agora, trate de ler, antes que eu a ponha para fora.
— Sim, Frau Holtzapfel.
— Esqueça o "sim, Frau Holtzapfel". É só abrir o livro. Não temos o dia inteiro.
Santo Deus, pensou Liesel. Esse é o meu castigo por todos aqueles roubos. Finalmente ele me alcançou.

Ela leu durante quarenta e cinco minutos e, quando o capítulo acabou, um saco de café foi depositado na mesa.
— Obrigada — disse a mulher. — É uma boa história.
Virou-se para o fogão e começou a cuidar das batatas. Sem olhar para trás, disse:
— Você ainda está aí, é?
Liesel entendeu que era a deixa para se retirar.
— Danke schön, Frau Holtzapfel.
A porta, ao ver as fotos emolduradas de dois rapazes de uniforme militar, jogou também um "heil Hitler", com o braço levantado na cozinha.
— Sim — fez Frau Holtzapfel, orgulhosa e amedrontada. Dois filhos na Rússia. — Heil Hitler.
Pôs a água para ferver e até reencontrou seus bons modos para percorrer com Liesel os poucos passos até a porta de entrada.
— Bis morgen?
O dia seguinte era sexta-feira.
— Sim, Frau Holtzapfel. Até amanhã.

Liesel calculou que tinha havido mais quatro dessas sessões de leitura com Frau Holtzapfel, antes de os judeus marcharem por Molching.
Estavam a caminho de Dachau, para ficarem concentrados.
Isso soma duas semanas, escreveria ela no porão, tempos depois. Duas semanas para mudar o mundo e quatorze dias para destruí-lo.

A LONGA CAMINHADA PARA DACHAU

Algumas pessoas disseram que o caminhão havia quebrado, mas posso atestar pessoalmente que não foi o que aconteceu. Eu estava lá.
O que aconteceu foi um céu de oceano, com nuvens de crista espumosa.
Além disso, havia mais do que apenas aquele veículo. Três caminhões não quebram de uma vez só.
Quando os soldados pararam, para compartilhar comida e cigarros, o ridicularizar o bando de judeus, um dos prisioneiros desabou de fome e doença.
Não faço ideia do local de onde viera o comboio, mas ficava, talvez, a uns seis quilômetros de Molching e a muitos passos mais do campo de concentração de Dachau.
Entrei no caminhão subindo pelo pára-brisa, achei o homem falecido e saltei pelos fundos. A alma dele era magrinha. Sua barba compunha-se de uma bola e uma corrente. Meus pés desceram ruidosamente no cascalho, porém nenhum som foi ouvido por prisioneiro ou soldado. Mas todos sentiam meu cheiro.
A lembrança me diz que havia muitos desejos no fundo daquele caminhão. Vozes internas que me chamavam.
Por que ele, e não eu?
Graças a Deus não fui eu.
Os soldados, por outro lado, ocupavam-se com uma discussão diferente. O chefe amassou o cigarro e fez aos outros uma pergunta nebulosa:
— Quando foi a ultima vez que levamos esses ratos para pegar um pouco de ar puro?
Seu primeiro-tenente reprimiu uma tossida.
— Eles bem que estão precisando, não é?
— Bem, então, que tal? Temos tempo, não é?
— Sempre temos tempo, senhor.
— E está fazendo um tempo perfeito para um desfile, não acha?
— Sim, senhor.
— Então, que estão esperando?

Na Rua Himmel, Liesel jogava futebol quando o barulho chegou. Doismeninos disputavam a bola no meio-campo quando tudo ficou imóvel. Até Tommy Müller ouviu.
— Que é isso? — perguntou, de seu lugar no gol.
Todos se viraram para o som de pés arrastados e vozes marciais, à medida que eles se aproximavam.
— Isso é uma boiada? — perguntou Rudy. — Não pode ser. O barulho nunca é bem assim, é?
Lentamente, a princípio, a rua de crianças encaminhou-se para o som magnético, em direção à loja de Frau Diller. De quando em quando, havia um aumento da ênfase nos gritos.
Num apartamento alto, logo depois da esquina da Rua Munique, uma senhora de voz agourenta decifrou para todos a fonte exata da comoção. Do alto, à janela, seu rosto parecia uma bandeira branca de olhos úmidos e boca aberta. Sua voz lembrava o suicídio, aterrissando com um baque aos pés de Liesel.
Seu cabelo era grisalho.
Os olhos eram escuros, azuis escuros.
— Die Juden — disse ela. Os judeus.

• SIGNIFICADO N° 6 DO DICIONÁRIO DUDEN •
Elend — Desgraça:
Grande sofrimento, infelicidade e aflição.
Vocábulos correlatos: angústia, tormento,
desespero, miséria, desolação.

Mais gente apareceu na rua, onde uma massa de judeus e outros criminosos já ia sendo empurrada. Talvez os campos de extermínio fossem mantidos em segredo, mas, vez por outra, mostrava-se às pessoas a glória de um campo de trabalhos forçados como Dachau.
Mais adiante, do outro lado, Liesel avistou o homem com a carroça de tintas. Ele passava a mão no cabelo, constrangido.
— Lá — apontou ela, mostrando-o a Rudy. — Meu papai.
Os dois atravessaram e se aproximaram dele e, no começo, Hans Hubermann tentou levá-los embora.
— Liesel — disse —, talvez...
Mas percebeu que a menina estava decidida a ficar, e quem sabe aquilo fosse uma coisa que ela devia ver. Na brisa do ar outonal, Hans postou-se a seu lado. Não falou.

Na Rua Munique, puseram-se a observar.
Outros se deslocaram a seu redor e à sua frente.
Assistiram à passagem dos judeus pela rua, como a um catálogo de cores. Não foi assim que a menina que roubava livros os descreveu, mas posso lhe dizer que era exatamente isso que eles eram, pois muitos iam morrer. Cada qual me saudaria como sua última amiga verdadeira, com os ossos parecendo fumaça e as almas arrastando-se atrás.

Quando eles chegaram de vez, o barulho de seus pés pulsou sobre a rua. Seus olhos eram enormes, nos crânios esfaimados. E a sujeira. A sujeira moldava-se neles. As pernas cambaleavam, à medida que eles eram empurrados pelas mãos dos soldados — alguns passos trôpegos de corrida forçada, antes do lento retorno a um andar desnutrido.
Hans os observava por sobre as cabeças da plateia que se aglomerava. Tenho certeza de que tinha os olhos prateados e tensos. Liesel olhava pelas brechas ou por cima dos ombros.
Os rostos sofredores de homens e mulheres esgotados estendiam-se para eles, implorando não tanto ajuda — já haviam ultrapassado essa fase —, mas uma explicação. Apenas alguma coisa que diminuísse aquela perplexidade.
Seus pés mal conseguiam erguer-se da terra.
Havia estrelas-de-davi coladas em suas camisas, e a desgraça prendia-se a eles como que por designação. "Não te esqueças de tua miséria..." Em alguns casos, crescia neles como uma videira.
A seu lado, os soldados também passavam, dando ordens para eles se apressarem e pararem de resmungar. Alguns desses soldados eram apenas meninos. Tinham o Führer nos olhos.
Ao observar tudo isso, Liesel teve certeza de que aquelas eram as mais pobres almas ainda vivas. Foi o que escreveu sobre elas. Seus rostos macilentos esticavam-se pela tortura. A fome os devorava, enquanto eles seguiam em frente, alguns olhando para o chão, para evitar as pessoas que ladeavam a rua. Alguns lançavam olhares súplices para os que tinham ido observar sua humilhação, esse prelúdio de sua morte. Outros imploravam que alguém, qualquer um, desse um passo à frente e os tomasse em seus braços.
Ninguém o fez.
Quer assistissem a essa parada com orgulho, temor ou vergonha, nenhuma das pessoas se adiantou para interrompê-la. Ainda não.
Vez por outra, um homem ou uma mulher — não, eles não eram homens e mulheres, eram judeus — encontravam o rosto de Liesel na multidão. Iam ao encontro dela, com sua derrota, e a menina que roubava livros só podia retribuir-lhes o olhar, num longo e incurável momento antes de eles tornarem a desaparecer. Só podia esperar que eles conseguissem ler a profundidade da tristeza em seu rosto, reconhecer que ela era verdadeira e não fugaz.
Tenho um de vocês no meu porão!, sentia vontade de dizer. Fizemos juntos um boneco de neve! Eu lhe dei treze presentes quando ele adoeceu!
Liesel não disse absolutamente nada.
De que adiantaria?
Ela compreendeu que era completamente inútil para aquelas pessoas. Era impossível salvá-las e, em poucos minutos, a menina veria o que acontecia com os que tentavam ajudá-las.

Numa pequena brecha na procissão havia um homem mais velho do que os outros.
Usava barba e roupas rasgadas.
Seus olhos eram da cor da agonia e, por mais sem peso que fosse, ele era pesado demais para ser carregado por suas pernas.
Caiu diversas vezes.
O lado de seu rosto achatava-se no chão.
Em cada ocasião, um soldado erguia-se sobre ele.
— Steh' auf — gritava. Levante-se.
O homem se punha de joelhos e lutava para se levantar. E ia andando.
Toda vez que chegava perto o bastante para alcançar o fim da fila, não tardava a perder impulso e tropeçar outra vez, caindo no chão. Havia outros às suas costas — a carga de um caminhão inteiro — e eles ameaçavam ultrapassá-lo e pisoteá-lo.
Era insuportável ver a dor de seus braços, tremendo na tentativa de levantar o corpo. Eles cediam de novo, antes de o homem se reerguer e dar mais meia dúzia de passos.
Estava morto.
O homem estava morto.
Mais cinco minutos, e com certeza cairia na sarjeta alemã e morreria.
Todos o deixariam morrer, e todos olhariam.

E, então, um homem.
Hans Hubermann.
•••

Aconteceu muito depressa.
A mão que segurava com firmeza a de Liesel soltou-a, quando o ancião veio claudicando. Ela sentiu a palma bater em seu quadril.
O pai enfiou a mão na carroça de tintas e pegou alguma coisa. Abriu caminho por entre as pessoas da calçada, até chegar à rua.
O judeu parou à sua frente, esperando outro punhado de zombarias, mas viu, junto com todos os demais, Hans Hubermann estender a mão e lhe oferecer um pedaço de pão, como se fosse mágica.
Quando a oferenda trocou de mãos, o judeu escorregou. Caiu de joelhos e segurou as canelas de Hans. Enterrou o rosto entre elas e agradeceu.
Liesel observou.
Com lágrimas nos olhos, ela viu o homem inclinar-se um pouco mais para frente, empurrando seu pai, para chorar nos tornozelos dele.
Outros judeus passaram, todos observando aquele pequeno milagre inútil. Fluíram feito água humana. Nesse dia, alguns chegariam ao oceano. Receberiam uma touca branca.
Avançando por entre eles, um soldado não tardou a chegar à cena do crime. Estudou o homem ajoelhado e Hans, e olhou para a multidão. Depois de refletir por mais um instante, tirou o chicote do cinto e começou.
O judeu foi açoitado seis vezes. Nas costas, na cabeça e nas pernas.
— Seu lixo imundo! Seu porco!
E o sangue passou a escorrer da orelha do velho.
Depois, foi a vez de Hans.
Uma nova mão segurou a de Liesel e, quando ela olhou para o lado, horrorizada, Rudy Steiner engoliu em seco, enquanto Hans Hubermann era chicoteado na rua. O som enojou a menina, que esperou ver os lanhos surgirem no corpo do pai. Ele levou quatro chicotadas antes de também cair.
Quando o judeu idoso se pôs de pé pela última vez e seguiu adiante, deu um rápido olhar para trás. Lançou uma última olhadela tristonha para o homem agora ajoelhado, cujas costas ardiam com quatro linhas de fogo, cujos joelho doíam no chão. Que mais não fosse, o ancião morreria como um ser humano. Ou, pelo menos, com a ideia de que era um ser humano.
E eu?
Não tenho certeza de que isso seja tão bom assim.

Quando Liesel e Rudy conseguiram passar e ajudaram Hans a se pôr de pé, houve inúmeras vozes. Palavras e sol. Foi assim que ela o recordou. A luz cintilando na rua e as palavras feito ondas, quebrando em suas costas. Só ao se afastarem foi que eles notaram o pão rejeitado na rua.
Quando Rudy tentou apanhá-lo, um judeu que passava o arrancou de sua mão e outros dois lutaram com este por ele, enquanto prosseguiam em sua marcha para Dachau.

E então os olhos de prata foram apedrejados.
Uma carroça foi virada e a tinta escorreu pela rua.
Chamaram-no de amigo dos judeus.
Outros guardaram silêncio, ajudando-o a voltar para a segurança.
Hans Hubermann inclinou-se para frente, apoiando os braços estendidos na parede de uma casa. De repente, sentiu-se invadir pelo que acabara deacontecer.
Veio-lhe uma imagem, célere e intensa.
Rua Himmel, 33 — o porão.
As ideias de pânico ficaram presas na luta entre o entrar e o sair de sua respiração.
Agora eles virão. Eles virão.
Ah, Jesus, ah, Jesus crucificado!
Hans olhou para a menina e fechou os olhos.
— Você está machucado, papai?
Mas ela ouviu perguntas, em vez de uma resposta.
— Em que é que eu estava pensando? — e seus olhos se fecharam com mais força e tornaram a se abrir. O macacão estava amarrotado. Havia tinta e sangue nas mãos de Hans. E migalhas de pão. Que diferença do pão do verão anterior! — Ah, meu Deus, Liesel, que foi que eu fiz?

Pois é.
Tenho que concordar.

Que é que o pai dela tinha feito?

PAZ

Pouco depois das onze horas da mesma noite, Max Vandenburg subiu a Rua Himmel, com uma mala cheia de alimentos e roupas quentes. Havia ar alemão em seus pulmões. As estrelas amarelas estavam em chamas. Quando chegou à loja de Frau Diller, ele se virou para olhar pela última vez para o número trinta e três. Não podia ver a figura na janela da cozinha, mas ela o via. Ela acenou, e Max não retribuiu o aceno.
Liesel ainda sentia a boca do rapaz em sua testa. Cheirava seu hálito de adeus.
— Deixei uma coisa para você — disse Max —, mas você só vai recebê-la quando estiver pronta.
E saiu.
— Max?
Mas ele não voltou.
Já saíra do quarto da menina e fechou a porta em silêncio.
O corredor murmurou.
Ele se fora.
Quando Liesel chegou à cozinha, encontrou a mãe e o pai com o tronco vergado e o rosto inerte. Estavam parados assim fazia trinta segundos de eternidade.

• SIGNIFICADO N° 7 DO DICIONÁRIO DUDEN •
Schweigen — Silêncio:
Ausência de som ou ruído.
Vocábulos correlatos: quietude, calma, paz.

Que perfeição.
Paz.

Em algum lugar perto de Munique, um judeu alemão caminhava pelas trevas. Combinara-se que ele se encontraria com Hans Hubermann dali a quatro dias (isto é, se não o levassem embora). Seria num lugar bem mais adiante, no Amper, onde uma ponte quebrada recostava-se entre o rio e o arvoredo.
Ele chegaria lá, mas não ficaria mais que alguns minutos.
A única coisa a ser encontrada, quando o pai chegou, quatro dias depois, foi um bilhete embaixo de uma pedra, na base de uma árvore. Não era dirigido a ninguém e continha apenas uma frase.

• AS ÚLTIMAS PALAVRAS DE •
MAX VANDENBURG
Vocês já fizeram o bastante.

Agora, mais do que nunca, o número 33 da Rua Himmel tornou-se um lugar de silencio, e não passou despercebido que o Dicionário Duden estava completa e profundamente errado, em especial nos seus vocábulos correlatos.
O silêncio não era quietude nem calma, e não era paz.

O IDIOTA E OS HOMENS DE SOBRETUDO

Na noite do desfile, o idiota sentou-se na cozinha, tomando goles amargos do café da Holtzapfel e ansiando por um cigarro. Esperou a Gestapo, os soldados, a polícia — qualquer um — para levá-lo embora, como julgava merecer. Rosa ordenou que ele fosse dormir. A menina deixou-se ficar no vão da porta. Ele mandou as duas embora e passou a madrugada, até amanhecer, com a cabeça nas mãos, esperando.
Nada.
Cada intervalo de tempo carregava em si o ruído esperado das batidas e das palavras ameaçadoras.
Elas não chegaram.
O único som era o dele mesmo.
— Que foi que eu fiz? — tornou a murmurar.
— Meu Deus, eu adoraria um cigarro — respondeu. Estava sem nenhum.
Liesel ouviu várias vezes as frases repetidas, e foi muito difícil permanecer junto à porta. Ela gostaria de consolá-lo, mas nunca tinha visto um homem tão arrasado. Não havia consolo naquela noite. Max se fora, e o culpado era Hans Hubermann.
Os armários da cozinha tinham o formato da culpa, e as palmas das mãos de Hans estavam oleosas, com a lembrança do que ele fizera. Devem estar suadas, pensou Liesel, porque suas próprias mãos estavam encharcadas até o pulso.

No quarto, ela rezou.
Mãos e joelhos, braços apoiados no colchão.
— Por favor, Deus, por favor, deixe o Max sobreviver. Por favor, Deus, por favor...
Os joelhos sofridos.
Os pés doloridos.

Ao surgir a primeira luz, ela acordou e voltou à cozinha. O pai dormia, com a cabeça paralela ao tampo da mesa, e tinha um pouco de saliva num canto da boca. O cheiro de café era opressivo, e a imagem da bondade idiota de Hans Hubermann ainda pairava no ar. Como um número ou um endereço. E só repeti-lo um número suficiente de vezes que ele fica gravado.
Sua primeira tentativa de acordá-lo não foi sentida, mas a segunda cutucada no ombro tirou-lhe a cabeça da mesa, num sobressalto ascendente.
— Eles chegaram?
— Não, papai, sou eu.
Hans terminou a poça rançosa de café que restara na caneca. Seu pomo de adão subiu e desceu.
— Eles já deviam ter vindo. Por que não vieram, Liesel?
Aquilo era um insulto.
Já deveriam ter chegado e vasculhado a casa, à procura de qualquer indício de amor aos judeus, ou de traição, mas Max parecia ter ido embora sem nenhuma justificativa. Poderia estar dormindo no porão ou desenhando em seu caderno.
— Você não podia saber que eles não viriam, papai.
— Eu deveria saber que não era para dar pão nenhum àquele homem.
Simplesmente não raciocinei.
— Papai, você não fez nada errado.
— Não acredito em você.
Ele se levantou e saiu pela porta da cozinha, deixando-a entreaberta. Para tornar o insulto ainda mais afrontoso, era uma linda manhã.

Passados quatro dias, o pai deu uma longa caminhada à margem do Amper. Voltou trazendo um bilhetinho e o pôs na mesa da cozinha.

Passou-se mais uma semana, e Hans Hubermann continuou à espera do castigo. Os lanhos em suas costas transformavam-se em cicatrizes, e ele passava a maior parte do tempo caminhando por Molching. Frau Diller cuspiu em seus pés. Frau Holtzapfel, fiel a sua palavra, tinha parado de cuspir na porta dos Hubermann, mas houve um substituto conveniente.
— Eu sabia — maldisse-o a lojista. — Seu porco amante de judeus.
Hans continuava a andar, desatento, e muitas vezes Liesel o alcançava no Rio Amper, na ponte. Com os braços apoiados na balaustrada e a parte superior do tronco debruçada sobre a borda. Crianças passavam por ele de bicicleta, céleres, ou então corriam, falando alto e batendo os pés na madeira. Nada disso o afetava minimamente.

• SIGNIFICADO N° 8 DO DICIONÁRIO DUDEN •
Nachtrauern — Lamentar:
Sentir uma tristeza carregada de saudade,
desapontamento ou luto.
Vocábulos correlatos: penalizar-se,
arrepender-se, prantear, contristar-se.

— Você o vê? — perguntou-lhe Hans uma tarde, quando ela se debruçou a seu lado. — Ali, na água?
O rio não corria muito depressa. Nas ondulações lentas, Liesel pôde ver o contorno do rosto de Max Vandenburg. Viu seu cabelo plumoso e o restante dele.
— Ele costumava lutar com o Führer no nosso porão.
— Jesus, Maria e José — disse o pai, comprimindo as mãos na madeira cheia de lascas. — Eu sou um idiota.
Não, papai.
Você é apenas um homem.
Essas palavras lhe ocorreram mais de um ano depois, ao escrever no porão. Liesel gostaria de ter pensado nelas nessa hora.
— Eu sou burro — disse Hans Hubermann à filha de criação. — E bom. O que resulta no maior idiota do mundo. A questão é que eu quero que eles venham me buscar. Qualquer coisa é melhor do que esta espera.
Hans Hubermann precisava de uma confirmação. Precisava saber que Max Vandenburg saíra de sua casa por um bom motivo.
Por fim, após quase três semanas de espera, achou que sua hora havia chegado.

Era tarde.
Liesel vinha voltando da casa de Frau Holtzapfel, quando viu os dois homens de longos sobretudos pretos, e correu para dentro de casa.
— Papai, papai! — quase derrubou a mesa da cozinha. — Papai, eles estão aqui!
A mãe veio primeiro.
— O que é essa gritaria toda, Saumensch? Quem está aqui?
— A Gestapo.
— Hansi!
Ele já havia chegado, e saiu de casa para recebê-los. Liesel quis juntar-se a ele, mas Rosa a deteve e as duas ficaram olhando pela janela.
O pai ficou postado no portão. Estava irrequieto.
A mãe apertou com mais força os braços de Liesel.
Os homens passaram.

•••

O pai olhou para a janela, alarmado, depois saiu portão afora. Chamou-os.
— Ei! Eu estou aqui. Sou eu que vocês querem. Moro nesta aqui.
Os homens de, sobretudo apenas deram uma parada momentânea e checaram seus cadernos de notas.
— Não, não — disseram. Tinham vozes graves e volumosas. — Infelizmente, o senhor é meio velho demais para nossos objetivos.
Continuaram a andar, mas não avançaram muito, parando no número trinta e cinco e cruzando o portão aberto.
— Frau Steiner? — perguntaram, quando a porta se abriu.
— Sim, isso mesmo.
— Vimos ter uma conversa com a senhora.

Os homens de sobretudo postaram-se como colunas encasacadas no umbral da casa dos Steiner, com seu formato de caixa de sapatos.
Por alguma razão, estavam ali pelo menino.
Os homens de sobretudo queriam Rudy.

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