Rachel

RACHEL



QUINTA-FEIRA, 15 DE AGOSTO DE 2013



MANHÃ



Cathy arranjou uma entrevista de emprego para mim. Uma amiga dela montou a própria
agência de relações públicas e precisa de uma assistente. Na realidade é uma vaga de
secretária e paga bem pouco, mas não estou nem aí. Essa mulher aceitou me ver mesmo
sem uma carta de referência — Cathy disse para ela que eu tinha sofrido um colapso
nervoso mas que agora estava totalmente recuperada. A entrevista é amanhã à tarde na
casa dessa mulher — a sede da empresa fica dentro de um escritório construído no
quintal dela —, que, por acaso, fica justamente em Witney. Então minha tarefa hoje seria
atualizar meu currículo e me preparar para a entrevista. E eu estava fazendo isso — só
que Scott me telefonou.
— Eu queria conversar com você — disse ele.
— A gente não precisa... quer dizer, você não precisa falar nada. Foi... nós dois
sabemos que aquilo não passou de um erro.
— Eu sei — concordou ele, com uma voz tão triste, diferente do Scott furioso dos
meus pesadelos, mais parecido com o deprimido que havia se sentado na minha cama e
falado do seu filho morto. — Mas eu queria muito conversar com você.
— Claro — falei. — É claro que podemos conversar.
— Pessoalmente?
— Ah. — A última coisa que eu queria era ter de voltar àquela casa. — Desculpe,
hoje não posso.
— Por favor, Rachel? É importante. — Sua voz soava desesperada e, mesmo sem
querer, senti pena dele. Eu estava tentando pensar numa desculpa quando ele voltou a
falar: — Por favor? — Então acabei concordando, e assim que aceitei, me arrependi.
Os jornais estão comentando sobre o bebê de Megan — o primeiro bebê dela que
morreu. Bem, na verdade é sobre o pai da criança. Eles o rastrearam. O nome dele era
Craig McKenzie, e ele morreu de overdose de heroína na Espanha há quatro anos. Então
não pode ter sido ele. De qualquer forma, nunca me pareceu ser uma motivação provável
— se alguém quisesse castigá-la pelo que fez naquela época, já o teria feito há muitos
anos.
Então, quem sobra? Os suspeitos de sempre: o marido, o amante. Scott, Kamal. Ou
algum homem qualquer que a raptou na rua — um serial killer fazendo a primeira
vítima? Será que ela é a primeira de várias, como Wilma McCann ou Pauline Reade? E
quem disse que o assassino teria de ser homem? Megan Hipwell era uma mulher
pequena. Bem mignon. Não seria necessário aplicar muita força para dominá-la.



TARDE



A primeira coisa que noto quando ele abre a porta é o cheiro. Um ranço azedo de suor e
cerveja, e mais alguma coisa, algo pior. Um cheiro de podre. Ele está de calça de
moletom e camisa de malha cinza manchada, o cabelo está oleoso, a pele vermelha como
a de alguém com febre.
— Está tudo bem com você? — pergunto, e ele sorri.
Andou bebendo.
— Estou bem. Entre, entre.
Não quero entrar, mas entro.
As cortinas da frente da casa estão fechadas, deixando a sala de estar com um tom
avermelhado que combina com o calor e o fedor.
Scott caminha até a cozinha, abre a geladeira e pega uma cerveja.
— Venha, sente-se — convida ele. — Beba alguma coisa. — O sorriso no rosto dele é
forçado, nada natural. Há algo de rude na expressão em seu rosto. O desprezo que vi
sábado de manhã, depois que dormimos juntos, continua ali.
— Não posso me demorar muito — digo. — Tenho uma entrevista de emprego
amanhã, preciso me preparar.
— Sério? — Ele ergue as sobrancelhas. Então se senta e, com o pé, empurra uma
cadeira para eu me sentar. — Sente-se, beba alguma coisa — insiste, como se estivesse
me dando uma ordem.
Eu me sento em frente a ele, que empurra a garrafa de cerveja na minha direção. Eu a
pego e tomo um gole. Lá fora, ouço gritos — crianças brincando em algum quintal na
vizinhança — e, mais ao longe, o ruído fraco e familiar do trem.
— Ontem saiu o resultado do DNA — comenta Scott. — A detetive Riley veio aqui
ontem à noite. — Ele fica esperando um comentário meu, mas estou com medo de dizer a
coisa errada, então fico calada. — O filho não é meu. Não era meu. O curioso é que
também não era de Kamal. — Ele dá uma risada. — Então ela estava se relacionando
com mais alguém. Dá para acreditar nisso? — Ele abre aquele sorriso medonho. — Você
não saberia nada sobre esse assunto, não é? Sobre um outro cara? Ela não se abriu com
você e falou desse outro homem? — O sorriso desaparece do rosto dele e começo a ter
um mau pressentimento, um péssimo pressentimento. Fico de pé e começo a andar em
direção à porta, mas ele está bem na minha frente, segurando meu braço, e me força a
voltar para a cadeira.
— Senta nessa merda de cadeira. — Ele arranca a bolsa do meu ombro e a atira num
canto.
— Scott, não sei o que está acontecendo...
— Como assim? — grita ele na minha cara. — Você e Megan eram tão amigas! Você
devia saber tudo sobre os amantes dela!
Ele sabe. E, quando penso nisso, sei que ele viu na minha expressão, porque se
aproxima mais ainda, seu hálito azedo no meu rosto, e diz:
— Vamos lá, Rachel. Abre o bico.
Faço que não com a cabeça e ele dá um tapa no ar, acertando a garrafa de cerveja à
minha frente. Ela rola da mesa e se espatifa no chão.
— Você nunca nem conheceu a porra da Megan! — berra ele. — Tudo o que você me
disse, tudo, era tudo mentira.
De cabeça baixa, fico de pé, murmurando “sinto muito, sinto muito”. Tento dar a volta
na mesa para pegar minha bolsa, meu celular, mas ele aperta meu braço de novo.
— Por que você fez isso? — pergunta ele. — O que deu em você para fazer isso?
Qual é o seu problema?
Ele está olhando para mim, os olhos fixos no meu, e estou morta de medo, mas ao
mesmo tempo sei que sua pergunta não é descabida. Eu devo uma explicação a ele.
Então não puxo meu braço, deixo seus dedos se enterrarem na minha carne, e tento falar
clara e calmamente. Tento não chorar. Tento não entrar em pânico.
— Eu queria que você soubesse de Kamal — respondo. — Vi os dois juntos, mas você
não teria me levado a sério se eu fosse simplesmente uma garota qualquer do trem. Eu
precisei...
— Ah, você precisou! — Ele me larga, virando de costas para mim. — Ainda vem me
falar do que precisou... — Sua voz está mais suave, está se acalmando. Respiro fundo,
tentando desacelerar o coração.
— Eu queria ajudar você — insisto. — Sei que a polícia sempre suspeita do marido, e
eu queria que você soubesse... que existia outra pessoa...
— Então você inventou isso de conhecer minha mulher? Tem ideia do quanto parece
maluca?
— Tenho, sim.
Vou até a bancada da cozinha, pego um pano de prato, e me agacho para limpar a
cerveja derramada. Scott senta-se com os cotovelos apoiados nos joelhos e a cabeça
baixa.
— Ela não era quem eu pensava — diz. — Eu não tenho ideia de quem ela era.
Torço o pano em cima da pia e lavo as mãos com água fria. Minha bolsa está a poucos
centímetros de distância, em um canto. Começo a andar na direção dela, mas Scott olha
para mim, então paro. Fico ali, de costas para a bancada, as mãos agarrando a beirada
para dar maior estabilidade. Para me dar alguma segurança.
— A detetive Riley me contou — explica ele. — Ela me perguntou sobre você. Se eu
estava me relacionando com você. — Ele dá uma risada. — Me relacionando com você!
Meu Deus. Perguntei a ela se havia olhado bem para minha esposa. Meus padrões não
despencaram assim tão rápido. — Meu rosto está em brasa, mas estou suando frio nas
axilas e nas costas. — Parece que Anna tem se queixado de você. Ela viu você na rua.
Foi assim que tudo se esclareceu. Eu disse: “Nós não estamos num relacionamento, ela é
só uma velha amiga de Megan, ela está me ajudando.” — Ele dá um riso baixo e
desanimado. — Foi aí que ela disse: “Rachel não conhece Megan. Ela não passa de uma
mentirosa compulsiva sem vida própria.” — O sorriso sumiu do rosto dele. — Vocês são
todas umas mentirosas. Todas, sem exceção.
Meu celular apita. Dou um passo em direção à bolsa, mas Scott a alcança antes de
mim.
— Espera um minutinho — diz ele, segurando a bolsa. — Ainda não terminamos. —
Despeja todo o conteúdo da minha bolsa sobre a mesa: celular, carteira, chaves, batom,
absorvente, comprovantes de cartão de crédito. — Quero saber o quanto de tudo que o
você andou me falando era mentira.
Como quem não quer nada, ele pega o celular e olha para a tela. Quando ergue os
olhos para mim, há frieza neles. Ele lê em voz alta:
— “Sua consulta com o Dr. Abdic às 16h30 de 19 de agosto, segunda-feira, está
confirmada. Caso não possa comparecer, favor avisar com no mínimo 24 horas de
antecedência.”
— Scott...
— Que diabos está acontecendo? — pergunta, a voz pouco mais que um murmúrio.
— O que você anda fazendo? O que tem falado para ele?
— Não tenho falado nada... — Ele larga o celular sobre a mesa e parte para cima de
mim, os punhos fechados. Recuo até chegar ao canto entre a porta de vidro e a parede. —
Eu estava tentando descobrir... estava tentando ajudar. — Ele levanta a mão e fecho os
olhos por reflexo, abaixando a cabeça, esperando a dor, e nesse momento percebo que já
fiz isso antes, que senti isso antes, mas não lembro quando foi nem tenho tempo para
pensar nisso agora, porque, embora ele não tenha batido em mim, agarrou meus ombros
com muita força, os polegares enterrados nas minhas clavículas, e dói tanto que dou um
grito.
— Esse tempo todo — rosna através dos dentes trincados —, esse tempo todo fiquei
pensando que você estava do meu lado, mas estava trabalhando contra mim. Passando
informação para ele, não é? Contando coisas sobre mim e Megs. Foi você que tentou
fazer a polícia vir atrás de mim. Foi você...
— Não, por favor, não. Não foi assim. Eu queria ajudar você. — Ele ergue a mão
direita, agarra meu cabelo pela nuca e o retorce. — Scott, por favor, não. Por favor. Você
está me machucando. Por favor. — Ele está me arrastando em direção à porta. Começo a
sentir um grande alívio. Vai me expulsar de casa, me jogar na rua. Graças a Deus.
Só que isso não acontece, ele fica me arrastando pela casa, cuspindo e xingando. Ele
me arrasta escada acima e tento resistir, mas ele é muito forte, não consigo. Estou aos
prantos.
— Por favor, não. Por favor.
E sei que algo terrível está para acontecer. Tento gritar, mas não consigo, o som não
sai.
As lágrimas e o desespero me cegam. Ele me atira dentro de um quarto e bate a porta.
A chave gira na fechadura. A bile quente surge na minha garganta e vomito no carpete.
Espero um pouco e encosto o ouvido na porta. Nada acontece, não vem ninguém.
Estou no quarto extra. Na minha casa, esse quarto costumava ser o escritório de Tom.
Agora é o quarto do bebê deles, o quarto com uma cortina rosa. Aqui, é um depósito de
caixas, cheio de papéis e arquivos, uma esteira de correr dobrável e um Macintosh
antiquíssimo. Há uma caixa de papéis cheios de números — contas, talvez dos negócios
de Scott — e outra abarrotada de cartões-postais antigos — em branco, com restos de
adesivo no verso, como se já tivessem sido colados em alguma parede: uma vista aérea de
Paris, crianças andando de skate em um beco, velhos dormentes de ferrovia cobertos de
musgo, um panorama do mar visto do interior de uma caverna. Vasculho os cartõespostais
— não sei por que nem o que procuro, só estou tentando controlar o pânico.
Estou tentando não pensar na cena que vi no noticiário da TV, no corpo de Megan sendo
retirado da lama. Estou tentando não pensar nos ferimentos dela, no medo que deve ter
sentido quando viu o que ia acontecer.
Estou revirando os postais quando de repente algo me corta e recuo, cambaleando
nos saltos, com um ai. A ponta do meu indicador exibe um talho, e o sangue pinga na
minha calça jeans. Estanco o sangue com a barra da minha camisa de malha e continuo a
mexer nos postais com mais cuidado. Identifico logo o culpado: um retrato com a
moldura espatifada, com um pedaço de vidro faltando na parte de cima, a ponta exposta
manchada pelo meu sangue.
É uma foto que eu não tinha visto antes. Um retrato de Megan e Scott juntos, seus
rostos próximos à câmera. Ela está rindo e ele olha para ela com adoração. Com ciúme?
O vidro está estilhaçado na forma de uma estrela cujas pontas se irradiam a partir do
canto do olho de Scott, então fica difícil ler sua expressão. Fico sentada no chão com a
foto à minha frente e penso em como as coisas quebram o tempo todo por acidente, e
como às vezes você acaba não consertando o que quebrou. Penso em todos os pratos que
foram jogados no chão durante as brigas com Tom, no pedaço arrancado da parede no
corredor de cima.
De algum lugar atrás daquela porta, posso ouvir Scott rindo, e meu corpo todo
congela. Fico de pé aos trambolhões e vou até a janela, abro e me debruço nela, então, na
pontinha dos pés, grito por socorro. Grito por Tom. Não adianta nada. Que patético.
Mesmo que ele estivesse, por algum motivo, no jardim que fica a poucas casas daqui, não
iria me ouvir, a distância é grande. Olho para baixo e perco o equilíbrio, então empurro o
batente da janela para voltar para dentro, sentindo cólicas e começo a chorar.
— Por favor, Scott! — grito. — Por favor... — Odeio o som da minha voz nessa hora,
o tom desesperado. Olho para minha camisa encharcada de sangue e isso me faz lembrar
que não estou tão sem opções assim. Pego a moldura do retrato e a coloco em cima do
carpete. Escolho o caco de vidro mais comprido e o guardo no bolso de trás.
Ouço passos subindo a escada. Encosto na parede oposta à porta. A chave gira na
fechadura.
Scott está com a minha bolsa na mão e a atira aos meus pés. Na outra mão, tem um
pedaço de papel.
— Olha só, se não é Nancy Drew! — diz ele, sorrindo. Imita a voz de uma menininha
e lê em voz alta: — “Ela fugiu com o namorado, que, de agora em diante, vou chamar de
N.” — Ri com escárnio. — “N causou algum mal a ela... Scott causou algum mal a ela...”
— Ele amassa o papel e o joga aos meus pés. — Deus do céu. Você é mesmo patética,
não é? — Olha em volta, reparando no vômito no chão e no sangue na minha camisa. —
Puta merda, o que você andou fazendo? Tentou se matar? Ia fazer meu trabalho por
mim? — Ele ri de novo. — Eu devia quebrar a merda desse seu pescoço, mas, sabe de
uma coisa? Você não vale a dor de cabeça. — Ele dá passagem. — Sai da minha casa
agora.
Pego minha bolsa e corro para a porta, mas, ao fazer isso, ele entra na minha frente e
finge que vai me dar um soco, e por um momento penso que vai me segurar, voltar a me
agredir. Meus olhos devem mostrar meu terror, porque ele começa a rir, rir de
gargalhar. Ainda ouço as risadas dele quando saio pela porta da casa.




SEXTA-FEIRA, 16 DE AGOSTO DE 2013



MANHÃ



Eu quase não dormi. Bebi uma garrafa e meia de vinho na tentativa de cair no sono, de
fazer minhas mãos pararem de tremer, de me acalmar, mas não deu certo. Toda vez que
eu começava a cochilar, acordava assustada. Tinha certeza de que podia sentir a presença
dele no quarto junto comigo. Acendi a luz e fiquei sentada, ouvindo os sons da rua, dos
vizinhos andando pelo prédio. Só quando o dia começou a raiar foi que relaxei o
suficiente para adormecer. Sonhei que estava na floresta de novo. Tom estava comigo,
mas ainda assim eu sentia medo.
Ontem à noite deixei um bilhete para o Tom. Depois que saí da casa de Scott, corri até
o número 23 e esmurrei a porta. Estava tão em pânico que nem liguei para a
possibilidade de Anna estar em casa, ou de ficar irritada por eu ter aparecido. Ninguém
veio atender, então rabisquei um bilhete em um pedaço de papel e o enfiei na caixa de
correio. Não estou nem aí se ela vir o bilhete — acho que uma parte de mim quer que ela
veja. Não entrei em detalhes — só escrevi que queria conversar sobre o outro dia. Não
mencionei o nome de Scott porque não queria que Tom fosse lá confrontá-lo — só Deus
sabe o que poderia acontecer.
Liguei para a polícia assim que cheguei em casa. Tomei duas taças de vinho antes,
para me acalmar. Pedi para falar com o detetive-inspetor Gaskill, mas disseram que não
estava disponível, então acabei falando com Riley. Não era o que eu queria — sei que
Gaskill teria sido mais simpático.
— Ele me prendeu na casa dele — falei. — Ele me ameaçou.
Ela me perguntou por quanto tempo fiquei “presa”. Deu para ouvir as aspas.
— Não sei — respondi. — Talvez meia hora.
Um longo silêncio.
— E ele ameaçou você. Pode me dizer exatamente o que ele disse?
— Ele disse que quebraria meu pescoço. Ele disse... disse que devia quebrar meu
pescoço...
— Ele devia quebrar seu pescoço?
— Ele disse que se eu o incomodasse de novo, ele faria isso.
Silêncio.
— Ele bateu em você? Ele machucou você de alguma forma?
— Hematomas. Só hematomas.
— Ele bateu em você.
— Não, ele me segurou com força.
Mais silêncio.
— Srta. Watson, o que você foi fazer na casa de Scott Hipwell?
— Ele me ligou e me pediu para ir lá. Disse que precisava conversar.
Ela deu um longo suspiro.
— Você foi alertada de que deveria ficar longe disso. Você mentiu para ele, disse que
era amiga da mulher dele, contou um monte de mentiras, e... me deixe terminar... trata-se
de uma pessoa que, na melhor das hipóteses, está vivendo um momento de muita tensão
e um grande estresse. Isso na melhor das hipóteses. Na pior, ele pode até ser perigoso.
— Ele é perigoso, é o que estou dizendo, pelo amor de Deus.
— Isso não ajuda. Você ir até lá, mentir para ele, provocá-lo. Nós estamos no meio da
investigação de um assassinato aqui. Você precisa entender isso. Você pode comprometer
nosso progresso, você pode...
— Que progresso? — pergunto. — Vocês não fizeram droga nenhuma de progresso.
Ele matou a esposa, estou dizendo. Tem um retrato, uma fotografia dos dois, espatifada.
Ele está com raiva, é uma pessoa instável...
— Sim, já vimos essa foto. Demos uma busca na casa. Não é nenhuma prova de
assassinato.
— Então vocês não vão prender o Scott?
Ela deu um longo suspiro.
— Venha amanhã à delegacia. Preste depoimento. E depois deixe que cuidamos disso.
E, Srta. Watson? Fique longe de Scott Hipwell.
Cathy chegou em casa e me viu bebendo. Ela não ficou feliz. O que eu poderia dizer?
Não havia como explicar. Simplesmente pedi desculpas e subi para o meu quarto, feito
uma adolescente enfezada. Então fiquei acordada, tentando dormir, esperando Tom
ligar. Ele não ligou.
Acordo cedo, verifico o celular (nenhuma chamada), lavo o cabelo e me arrumo para a
entrevista, as mãos trêmulas, o estômago revirado. Vou mais cedo porque preciso passar
na delegacia primeiro, para prestar depoimento. Não que eu ache que vá fazer alguma
diferença. Eles nunca me levaram a sério e não é agora que vão começar a levar. Fico me
perguntando o que seria preciso acontecer para começarem a me ver como algo mais que
uma mulher com uma imaginação fértil.
A caminho da estação, não consigo parar de olhar para trás; o barulho súbito de uma
sirene de polícia me faz literalmente pular de susto. Na plataforma da estação ando tão
perto do gradil quanto possível, roçando os dedos pela cerca de ferro, só para o caso de
eu precisar me segurar com força. Percebo o ridículo da situação, mas me sinto
extremamente vulnerável agora que já vi o que ele é, agora que já não existem segredos
entre nós.



TARDE



Devo dar a minha participação nesse assunto como encerrada. Esse tempo todo fiquei
achando que havia algo a ser lembrado, uma peça que faltava. Mas não há. Não vi nada
de importante, nem de terrível. Simplesmente calhou de eu estar na mesma rua. Sei disso
agora, graças ao cara ruivo. Mas, ainda assim, há uma coceira no fundo do meu cérebro
que não consigo coçar.
Nem Gaskill nem Riley estavam na delegacia; prestei depoimento a um entediado
agente de polícia. Vão arquivá-lo e esquecê-lo, acho, a menos que eu apareça morta,
jogada numa vala qualquer. Minha entrevista era do outro lado da cidade em relação à
casa de Scott, mas, ao sair da delegacia, peguei um táxi. Não vou correr nenhum risco. A
entrevista correu tão bem quanto possível: a vaga está bem abaixo do meu nível, mas,
pensando bem, eu mesma tenho andado um bocado abaixo do meu nível nos últimos dois
anos. Preciso voltar à estaca zero. A grande desvantagem (fora o salário ruim e a pouca
importância da vaga em si), vou precisar vir a Witney o tempo todo, andar por essas ruas
e arriscar encontrar Scott ou Anna e a filha.
Porque dar de cara com as pessoas é só o que tem me acontecido nesse fim de mundo.
Essa era uma das coisas de que eu gostava aqui: o clima de cidade pequena a dois passos
de Londres. Você pode até não conhecer todo mundo, mas pelo menos os rostos são
familiares.
Acabei de passar do Crown e estou quase chegando à estação quando sinto uma mão
no meu braço, e eu giro nos calcanhares, escorregando da calçada e indo parar na rua.
— Opa, opa, foi mal. — É ele de novo, o cara ruivo, uma cerveja numa das mãos, a
outra erguida num pedido de desculpas. — Nossa, você se assusta fácil, hein? — Ele ri.
Devo estar com cara de medo, porque o sorriso dele some. — Está tudo bem? Não quis
assustar você.
Hoje ele saiu mais cedo do trabalho, diz, e me convida para beber alguma coisa.
Declino, e então mudo de ideia.
— Eu devo um pedido de desculpas a você — digo quando ele, que se chama Andy,
me traz meu gim-tônica — por como me comportei no trem. Da última vez, digo. Eu
estava tendo um dia ruim.
— Tudo bem — diz Andy.
Seu sorriso é lento e preguiçoso; não creio que seja sua primeira cerveja. Estamos
sentados na área ao ar livre nos fundos do pub; aqui me parece mais seguro do que na
frente, de cara para a rua. Talvez seja aquela sensação de segurança que enche de
coragem. Resolvo arriscar.
— Preciso saber o que aconteceu. Naquela noite, quando a gente se conheceu. A noite
em que Meg... em que aquela mulher desapareceu.
— Ah. Tá. Por quê? Como assim?
Respiro fundo. Sinto meu rosto ficar vermelho. Não importa quantas vezes precise
admitir isso, é sempre uma vergonha, sempre uma provação.
— Eu estava muito bêbada e não me lembro. Tem algumas coisas que eu preciso
entender. Só queria saber se você viu algo, se me viu conversando com alguém, qualquer
coisa assim...
Digo tudo isso olhando para a mesa, incapaz de encará-lo.
Ele cutuca meu pé com o dele sob a mesa:
— Está tudo bem, você não fez nada errado. — Olho para ele, que está sorrindo. —
Eu também estava mamado. Conversamos um pouco no trem, não lembro sobre o quê.
Então saltamos aqui em Witney, e você estava andando meio torto. Escorregou na
escada, não lembra? Eu ajudei você a levantar e você ficou toda envergonhada, vermelha
mesmo, como agora. — Ele dá uma risada. — Saímos da estação juntos, e eu perguntei se
você queria ir ao pub. Mas você disse que tinha que ir encontrar seu marido.
— Só isso?
— Não. Você não se lembra mesmo? Tinha passado um tempo, sei lá, meia hora,
talvez? Eu tinha ido ao Crown, mas um amigo me ligou e disse que estava bebendo num
bar do outro lado da ferrovia, então fui em direção à passagem subterrânea. Você estava
caída no chão. E em péssimo estado. Você tinha se cortado. Fiquei um pouco
preocupado, disse que a levaria em casa se quisesse, mas você não queria nem saber.
Você estava... bem, estava bastante irritada. Acho que tinha acabado de discutir com seu
marido. Ele estava indo embora pela rua, e eu falei que, se você quisesse, eu podia ir atrás
dele, mas você disse que não. Ele partiu com o carro depois disso. Ele estava... ele estava
com alguém.
— Uma mulher?
Ele faz que sim com a cabeça, um pouco constrangido.
— É, os dois entraram num carro juntos. Imaginei que vocês tivessem brigado por
causa disso.
— E depois?
— Depois você foi embora a pé. Você parecia meio... confusa ou coisa assim, e saiu
andando. Você não parava de dizer que não precisava de ajuda. Como falei, eu também
estava meio mamado, então deixei para lá. Atravessei a passagem subterrânea e fui
encontrar meu amigo no pub. Só isso.
Subindo as escadas para o apartamento, tenho certeza de que vejo sombras acima de
mim, ouço passos à frente. Alguém esperando por mim no alto da escada. Mas é claro
que não há ninguém, e o apartamento também está vazio: parece intocado, cheira a vazio,
mas isso não me impede de verificar cada quarto — embaixo da minha cama e da cama de
Cathy, dentro dos guarda-roupas e do armário da cozinha em que não caberia nem uma
criança.
Finalmente, após três rondas pelo apartamento, me permito parar. Subo para o meu
quarto, me sento na cama e penso na conversa que tive com Andy, no fato de que o que
ele falou bate com o que eu me lembro. Não há nenhuma grande revelação: Tom e eu
brigamos na rua, eu escorreguei e me machuquei, ele saiu enfurecido e entrou no carro
com Anna. Mais tarde ele voltou para me procurar, mas eu não estava mais lá. Entrei
num táxi, imagino, ou no trem.
Fico sentada na cama olhando pela janela e me pergunto por que não me sinto
melhor. Talvez seja simplesmente porque não tenho respostas ainda. Talvez seja porque,
embora o que eu me lembre bata com o que outros se lembram, algo ainda parece estar
fora de lugar. De repente, me dou conta do que é: Anna. Não é só o fato de Tom não ter
falado nada sobre ter ido de carro com ela para algum lugar, é o fato de que, quando a vi,
se afastando de mim, entrando no carro, ela não estava segurando a bebê. Onde estava
Evie quando isso aconteceu?




SÁBADO, 17 DE AGOSTO DE 2013




NOITE



Preciso falar com Tom, para organizar as coisas na minha cabeça, porque, quanto mais as
repasso, menos sentido fazem, e não consigo parar de pensar nelas. De qualquer modo,
estou preocupada, pois faz dois dias que deixei o bilhete e ele ainda não me ligou. Não
atendeu o celular ontem à noite, não atendeu nenhuma das minhas ligações o dia todo
hoje. Tem alguma coisa errada, e não consigo deixar de pensar que isso tem a ver com
Anna.
Sei que ele vai querer conversar comigo depois de ouvir o que aconteceu com Scott.
Sei que vai querer ajudar. Não consigo parar de pensar em como ele foi bom naquele dia
no carro, em como as coisas pareceram estar bem entre nós. Então pego o celular e digito
o número dele, sentindo um frio na barriga, como antigamente, a expectativa de ouvir
sua voz tão forte quanto há anos.
— Oi?
— Tom, sou eu.
— Sim.
Anna deve estar lá com ele, pois não quer falar meu nome. Aguardo um momento
para lhe dar tempo de mudar de cômodo, sair de perto dela. Ouço-o suspirar.
— O que foi?
— Hã... eu queria conversar com você... como escrevi no bilhete, eu...
— O quê? — Ele parece irritado.
— Eu deixei um bilhete há dois dias. Achei que devíamos conversar...
— Não recebi nenhum bilhete. — Outro suspiro, mais pesado. — Puta merda. É por
isso que ela anda chateada comigo. — Anna deve ter achado o bilhete, não entregou para
ele. — O que você quer?
Quero mesmo é desligar, discar de novo e começar do zero. Dizer a ele como foi bom
vê-lo na segunda-feira, quando fomos à floresta.
— Eu só queria perguntar uma coisa para você.
— O quê? — pergunta. Ele parece realmente aborrecido.
— Está tudo bem?
— O que você quer, Rachel? — Toda aquela ternura da semana passada desapareceu.
Maldita hora em que fui deixar aquele bilhete; obviamente criei problemas para ele em
casa.
— Queria perguntar uma coisa sobre aquela noite... a noite em que Megan Hipwell
desapareceu.
— Ai, meu Deus. Já falamos sobre isso... não é possível que você já tenha esquecido.
— É que eu...
— Você estava bêbada — diz, levantando a voz, o tom ríspido. — Falei para você ir
para casa. Você não quis me ouvir. Saiu andando. Peguei o carro e saí à sua procura, mas
não encontrei você.
— Onde Anna estava?
— Estava em casa.
— Com o bebê?
— Com Evie, sim.
— Ela não estava no carro com você?
— Não.
— Mas...
— Ah, pelo amor de Deus. Ela tinha marcado de sair e eu ia ficar com a Evie. Então
você apareceu, ela voltou e desmarcou seu compromisso. E eu perdi mais horas da minha
vida correndo atrás de você.
Já me arrependi de ter ligado. Me dar esperanças só para depois destruí-las assim é
como retorcer uma faca enfiada na minha barriga.
— Tá bom — digo. — É só que, eu tenho uma lembrança diferente... Tom, quando
você me viu, eu estava machucada? Eu estava... eu tinha um corte na cabeça?
Mais um daqueles suspiros.
— Estou surpreso por você se lembrar de alguma coisa, Rachel. Você estava podre de
bêbada. Fedendo a bebida. Não conseguia nem andar direito. — Minha garganta começa
a se fechar ao ouvi-lo falar assim. Já o ouvi falar desse jeito antes, nos nossos piores dias,
quando já estava cansado de mim, com nojo de mim. Ele continua, cansado. — Você
tinha caído na rua, estava chorando, dava pena. Por que isso é importante? — Não
consigo encontrar as palavras certas de imediato, demoro demais para responder. Ele
continua: — Olha, preciso desligar. Não me ligue mais, por favor. Já conversamos sobre
isso. Quantas vezes preciso pedir isso a você? Não ligue, não deixe bilhetes, não venha
aqui. Isso chateia a Anna. Tudo bem?
O telefone fica mudo.




DOMINGO, 18 DE AGOSTO DE 2013




DE MADRUGADA



Passei a noite toda na sala, tendo só com a televisão como companhia, o medo indo e
vindo feito a maré. A energia também, indo e vindo. Tenho a ligeira sensação de que
voltei no tempo, a ferida que ele causou há tanto tempo reaberta, recente e fresca. É
bobagem, eu sei. Fui uma idiota em pensar que tinha chance com ele de novo, só por
causa de uma única conversa, alguns instantes que tomei por ternura e que
provavelmente eram nada mais que sentimentalismo e culpa. Ainda assim dói. E preciso
me permitir sentir isso, porque, se não sentir, se continuar abafando essa dor, ela nunca
vai passar de verdade.
E fui uma idiota em me permitir pensar que havia algum tipo de conexão entre mim e
Scott, que eu seria capaz de ajudá-lo. Portanto, sou uma idiota. Estou acostumada com
isso. Não preciso continuar a ser uma, preciso? Não mais. Fiquei aqui deitada a noite toda
e prometi para mim mesma que vou tomar as rédeas da situação. Vou me mudar daqui,
para bem longe. Vou arranjar um emprego. Vou voltar a usar meu nome de solteira,
cortar os laços com Tom, ir para um lugar onde ninguém vai me encontrar. No caso de
alguém me procurar.
Não dormi muito. Fiquei só deitada aqui no sofá, fazendo planos, e toda vez que
começava a cair no sono voltava a ouvir a voz de Tom na minha cabeça, como se ele
estivesse aqui, ao meu lado, a boca colada ao meu ouvido. Você estava podre de bêbada.
Fedendo a bebida. Então acordava assustada, sentindo uma onda de vergonha me
engolfar. Vergonha, mas também uma fortíssima sensação de déjà-vu, porque já ouvi
essas palavras antes, exatamente estas.
E então não conseguia parar de repassar cenas em minha mente: acordando com
sangue no travesseiro, a boca dolorida como se eu tivesse mordido a bochecha, unhas
sujas, uma ressaca danada, Tom saindo do banheiro, aquela expressão no rosto — meio
magoada, meio irritada —, o pavor me inundando por dentro.
— O que aconteceu?
Tom, me mostrando machucados em seu braço, em seu peito, onde eu o havia
atingido.
— Não acredito nisso, Tom. Eu nunca bateria em você. Nunca bati em ninguém na
vida.
— Você estava podre de bêbada, Rachel. Você se lembra de alguma coisa que fez
ontem à noite? Ou de alguma coisa que falou?
E então ele me contava, e ainda assim eu não conseguia acreditar, porque nada do que
ele dizia parecia ter a ver comigo, nada mesmo. E o lance da agressão com o taco de
golfe, aquele buraco na parede, cinzento e vazio como um olho cego que se fixava em
mim toda vez que eu passava por ele, e eu não conseguia associar a violência que ele
relatava com o medo do qual eu me lembrava.
Ou achava que lembrava. Depois de algum tempo, aprendi a não perguntar o que eu
havia feito, nem duvidar quando ele me contava por conta própria, porque eu não queria
saber os detalhes, não queria ouvir o que de pior tinha acontecido, as coisas que eu fiz e
que eu disse quando estava daquele jeito, podre de bêbada. Às vezes ele ameaçava me
filmar, falando que ia me mostrar depois. Mas nunca fez isso. Pequenos atos de piedade.
Depois de algum tempo, aprendi que, quando se acorda daquele jeito, não se pergunta
o que houve, simplesmente diz que sente muito: sente muito pelo que fez, por quem é, e
nunca mais, em momento algum, vai fazer aquilo de novo.
E agora não vou mais fazer, não vou mesmo. Isso eu tenho a agradecer a Scott: estou
com tanto medo que não quero mais sair de madrugada para comprar bebida. Estou com
tanto medo que não quero me permitir nenhum deslize, porque é nessas horas que me
torno vulnerável.
Terei de ser forte, é a minha única opção.
Minhas pálpebras voltam a pesar e minha cabeça cai sobre o peito. Diminuo o volume
da TV até ficar quase sem som, me viro de frente para o encosto do sofá, ajeito o corpo e
me cubro com o edredom. Estou prestes a adormecer, estou sentindo, vou conseguir
dormir, e aí — bam!, o chão vem com força e desperto, assustada, o coração na garganta.
Eu vi. Eu vi.
Eu estava na passagem subterrânea e ele vinha para cima de mim, um tapa na boca e
depois um punho erguido, chaves na mão, a dor excruciante quando o metal serrilhado

acertou minha cabeça.

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