Caixa de Pássaros - Capítulo 1

Malorie está na cozinha, pensando.
Tem as mãos úmidas. Treme. Bate o pé, nervosa, no piso de azulejos rachados. É cedo. O sol ainda deve estar surgindo no horizonte. Ela observa a luz parca clarear as pesadas cortinas pretas e pensa:
Isso foi a neblina.
As crianças dormem sob a grade de arame coberta com tecido preto, no fim do corredor.
Talvez tenham escutado a mãe alguns momentos antes no quintal, de joelhos. Qualquer barulho que ela possa ter feito com certeza passou pelos microfones e chegou até os amplificadores ao lado de suas camas.
Ela olha para as mãos e detecta um brilho sutil à luz da vela. É, estão úmidas. O orvalho da manhã continua fresco sobre elas.
Na cozinha, Malorie respira fundo antes de soprar a vela. Ela observa o pequeno cômodo, notando os utensílios enferrujados e a louça rachada. A caixa de papelão usada como lata de lixo. Algumas das cadeiras que só se mantêm inteiras amarradas com barbante. As paredes estão sujas. Marcas dos pés e das mãos das crianças. Mas há manchas mais antigas também. A parte inferior das paredes do corredor mudou de cor por causa de manchas de um roxo profundo, que foram ficando amarronzadas com o tempo. São de sangue. O carpete da sala de estar também não recupera a cor original, não importa quanto Malorie o esfregue. Não há produtos na casa para ajudá-la a limpá-lo. Muito tempo atrás, Malorie encheu baldes com água do poço e, vestindo um paletó, tentou tirar as manchas da casa inteira. Mas elas se recusaram a sair. Até as menos persistentes se mantiveram, talvez uma sombra do tamanho original, mas ainda eram horrivelmente visíveis. Uma caixa de velas esconde uma mancha no hall de entrada. O sofá da sala fica posicionado em um ângulo estranho para disfarçar duas marcas que, para Malorie, parecem cabeças de lobo. No segundo andar, perto da escada do sótão, uma pilha de casacos mofados camufla riscos roxos entranhados no pé da parede. Três metros à frente fica a mancha mais escura da casa. Malorie não usa aquela parte na extremidade do segundo andar porque não consegue passar por ali.
Um dia, esta já foi uma bela casa em um belo bairro dos arredores de Detroit. Um dia, ela foi segura, perfeita para uma família. Há apenas cinco anos, um corretor de imóveis a teria exibido com orgulho. Mas, nesta manhã, as janelas estão tapadas com papelão e tábuas de madeira. Não há água corrente. Um grande balde de madeira está apoiado na bancada da cozinha. Exala um cheiro ruim. Não há brinquedos convencionais para as crianças. Pedaços da madeira de uma cadeira foram entalhados na forma de pequenos bonecos. Pintaram rostinhos neles. Os armários estão vazios. Não há quadros nas paredes. Fios passam por baixo da porta dos fundos e chegam até os quartos do primeiro andar, onde amplificadores alertam Malorie e as crianças para qualquer barulho que venha de fora da casa. Os três vivem assim. Ficam bastante tempo sem sair. E, quando saem, estão vendados.
As crianças nunca viram o mundo exterior à casa. Nem pelas janelas. E Malorie não o vê há mais de quatro anos.
Quatro anos.
Ela não precisa tomar a decisão hoje. É outubro em Michigan. Está frio. Uma viagem de trinta e dois quilômetros pelo rio vai ser difícil para as crianças. Talvez ainda sejam muito pequenas. E se uma delas cair na água? O que Malorie faria, vendada?
Um acidente, pensa ela. Que horror. Depois de tanta luta, de tanta sobrevivência. Morrer por causa de um acidente.
Malorie olha para as cortinas. Começa a chorar. Quer gritar com alguém. Quer implorar a qualquer pessoa que possa ouvir. Isso não é justo, diria. É cruel.
Ela olha por cima do ombro para a entrada da cozinha e para o corredor que leva ao quarto das crianças. Naquele cômodo sem porta, seus filhos dormem profundamente, cobertos por um tecido preto, escondidos da luz e da vista. Não se mexem. Não mostram sinal algum de estarem acordados. Mas talvez estejam escutando a mãe. Às vezes, por conta de toda a pressão que sofrem para prestarem atenção aos sons, por toda a importância que depositou nos ouvidos deles, Malorie acredita que os dois são capazes de ouvi-la pensar.
Ela poderia esperar por um céu mais ensolarado, por calor, por mais atenção ao barco.
Poderia informar as crianças, ouvir o que têm a dizer. As sugestões delas talvez fossem boas.
Têm apenas quatro anos, mas foram treinadas para ouvir. São capazes de ajudar a guiar um barco às cegas. Malorie não conseguiria fazer a viagem sem elas. Precisa dos ouvidos dos filhos. Será que também poderia considerar os conselhos deles? Será que, aos quatro anos, aquelas crianças poderiam opinar sobre quando seria o melhor momento para abandonar a casa para sempre?
Malorie desaba em uma cadeira na cozinha e luta contra as lágrimas. O pé descalço ainda bate, nervoso, no piso de linóleo gasto. Devagar, ela olha para o alto da escada do porão. Ali conversou certa vez com um homem chamado Tom sobre um homem chamado Don. Olha para a pia, para onde Don, em outra ocasião, levou baldes de água do poço, tremendo, abalado por ter saído da casa. Inclinando-se para a frente, ela é capaz de ver o hall de entrada, onde Cheryl costumava preparar a comida dos pássaros. E entre a cozinha e a porta da frente está a sala de estar, silenciosa e escura, carregada de lembranças demais de pessoas demais, quase impossíveis de digerir.
Quatro anos, pensa ela, querendo socar a parede.
Malorie sabe que quatro anos podem facilmente virar oito. Oito se tornarão doze em um instante. E então as crianças serão adultas. Adultos que nunca viram o céu. Nunca olharam por uma janela. O que doze anos vivendo como gado fariam com suas cabeças? Será que há um momento em que as nuvens do céu passam a existir apenas em suas mentes e o único lugar onde os filhos se sentirão à vontade será atrás do tecido negro das vendas?
Malorie engole em seco e se imagina criando os filhos sozinha até que se tornem adolescentes.
Será que ela conseguiria? Seria capaz de protegê-los por mais dez anos? Conseguiria cuidar deles até que pudessem cuidar dela? E para quê? Para que tipo de vida ela os está protegendo?
Você é uma péssima mãe, pensa Malorie.
Por não encontrar uma maneira através da qual os filhos possam conhecer a vastidão do céu. Por não achar um jeito que os permita correr livres pelo quintal, pela rua, pelo bairro de casas vazias e carros velhos. Ou por nunca conceder a eles uma única olhadela rápida para o espaço, no momento em que o céu de repente escurece e é tomado por lindas estrelas.
Você está salvando a vida deles para que tenham uma vida que não vale a pena.
Com a visão embaçada pelas lágrimas, Malorie observa as cortinas clarearem mais um tom. Se houver uma neblina do lado de fora, não durará muito tempo. E, se aquilo puder ajudá-la, se puder escondê-la com as crianças enquanto caminham até o rio, para o barco a remo, então ela tem que acordá-las naquele momento.
Malorie bate a mão na mesa da cozinha e enxuga os olhos.
Levanta-se, deixa a cozinha, entra no corredor e, depois, no quarto das crianças.
— Garoto! — grita. — Menina! Acordem.
O quarto está escuro. A única janela está tapada com tantos cobertores que, mesmo em seu auge, a luz do sol não consegue entrar. Há dois colchões, um em cada canto do quarto. Acima deles há domos negros. Muito tempo atrás, a grade de arame que sustenta o tecido era usada para cercar o pequeno jardim próximo ao poço, no quintal da casa. Mas, nos últimos quatro anos, ela serviu como armadura, protegendo as crianças não do que poderia vê-las, mas do que elas poderiam ver. Embaixo do arame, Malorie ouve os filhos se movimentarem e se ajoelha para soltar a grade pregada ao chão de madeira do quarto. Já está tirando as vendas do bolso quando as duas crianças olham para ela com expressões sonolentas, surpresas.
— Mamãe?
— Levantem-se. Agora. Mamãe precisa que vocês sejam rápidos.
As crianças reagem depressa. Não reclamam nem choramingam.
— Para onde vamos? — pergunta a Menina.
Malorie entrega a venda a ela e diz:
— Ponha isto. Vamos para o rio.
Os dois pegam as vendas e amarram o tecido preto com firmeza sobre os olhos. Conhecem bem aquele gesto. São especialistas nisso, se é que é possível ser especialista em alguma coisa aos quatro anos. Aquilo parte o coração de Malorie. São apenas crianças e deveriam estar curiosas. Deveriam perguntar à mãe por que estão indo naquele dia para o rio, um rio onde nunca estiveram.
No entanto, apenas fazem o que ela manda.
Malorie ainda não coloca a própria venda. Vai arrumar as crianças primeiro.
— Leve seu quebra-cabeça — pede à Menina. — E peguem os cobertores, vocês dois.
A agitação que ela sente é indescritível. Está mais para histeria. Andando de um cômodo para outro, Malorie confere tudo, pequenos objetos de que podem precisar. De repente, sente-se terrivelmente despreparada. Está insegura, como se a casa e a terra abaixo dela houvessem desaparecido, expondo-a ao mundo exterior. Entretanto, no desespero daquele momento, ela se agarra com força ao conceito da venda. Não importa quais ferramentas leve, não importa qual objeto da casa seja usado como arma, ela sabe que as vendas são a maior proteção para ela e os filhos.
— Tragam seus cobertores! — lembra Malorie às crianças, ouvindo os dois pequenos corpos se prepararem.
Então ela entra no quarto para ajudá-las. O Garoto, pequeno para a idade, mas com uma resistência da qual Malorie se orgulha, está decidindo entre duas camisetas grandes demais para ele. Ambas pertenceram a um adulto, que se foi há muito tempo. Malorie escolhe uma para ele e observa seu cabelo escuro desaparecer em meio ao tecido e depois brotar de novo pela gola. Naquele estado de ansiedade, ela percebe que o Garoto cresceu um pouco nos últimos tempos.
A Menina, de tamanho normal para a idade, está tentando enfiar um vestido pela cabeça, uma roupa que ela e Malorie costuraram a partir de um lençol velho.
— Está frio lá fora, Menina. Um vestido não será suficiente.
A Menina franze a testa. Seu cabelo louro está bagunçado, pois ela acordou há pouco tempo.
— Vou botar uma calça também, mamãe. E vamos levar nossos cobertores.
A raiva irrompe em Malorie. Ela não quer resistência alguma. Não naquele dia. Mesmo que a Menina esteja certa.
— Nada de vestido hoje.
O mundo exterior, os shoppings e os restaurantes vazios, os milhares de carros abandonados, os produtos esquecidos nas prateleiras ociosas das lojas: tudo exerce uma pressão sobre a casa. Tudo sussurra o que os espera lá fora.
Ela pega um casaco para as crianças no armário de um pequeno quarto no fim do corredor.
Então sai do cômodo pelo que sabe que será a última vez.
— Mamãe — chama a Menina, encontrando-a no corredor. — Vamos precisar das buzinas de bicicleta?
Malorie suspira.
— Não — responde. — Vamos ficar todos juntos. A viagem toda.
Enquanto a Menina volta para o quarto, Malorie pensa em como aquilo é patético, o fato de buzinas de bicicleta serem a maior diversão de seus filhos. Os dois brincam com elas há anos.
A vida toda buzinaram pela sala. O barulho alto costumava deixar Malorie irritada. Mas ela nunca proibiu as buzinas. Nunca as escondeu. Mesmo nos primeiros anos ansiosos da maternidade, ela entendia que, naquele mundo, tudo que fazia as crianças rirem era algo bom.
Mesmo que assustassem Victor com aquilo.
Ah, como Malorie sente falta daquele cachorro! Quando começou a criar os filhos sozinha, os planos de navegar pelo rio incluíam Victor, o border collie, sentado ao lado dela no barco a remo. Victor a alertaria se algum animal se aproximasse. Ele poderia até conseguir afastar alguma coisa.
— Certo — diz Malorie, com o corpo magro encostado na porta do quarto das crianças. — Pronto. Agora vamos.
Houve momentos, tardes sossegadas, noites tempestuosas, em que Malorie avisou aos filhos que aquele dia poderia chegar. Sim, ela já havia falado sobre o rio. Sobre uma viagem.
Tomara cuidado para nunca chamar aquilo de “fuga” porque não admitia a possibilidade de as crianças pensarem que a vida delas era algo de que precisavam fugir. Em vez disso, ela os alertava sobre uma possível manhã, quando os acordaria, com pressa, e exigiria que se aprontassem para deixar a casa para sempre. Sabia que os dois percebiam a insegurança da mãe, assim como podiam ouvir uma aranha subindo pelo vidro de uma janela coberta. Durante anos, ela separara uma pequena bolsa de comida, que ficava reservada num canto do armário até estragar, sendo sempre substituída, sempre abastecida. Essa era a prova de Malorie, a evidência de que ela poderia acordá-los como dizia que iria fazer. A comida no armário faz parte de um plano, pensava ela enquanto conferia as cortinas, nervosa, entenderam?
E agora o dia havia chegado. Aquela manhã. Aquela hora. Aquela neblina.
O Garoto e a Menina se aproximam e Malorie se ajoelha diante deles. Ela confere as vendas. Estão bem firmes. Naquele instante, olhando de um rostinho para outro, compreende que, finalmente, a jornada dos três para fora dali começou.
— Escutem o que vou dizer — começa Malorie, segurando o queixo dos filhos. — Vamos descer o rio em um barco a remo hoje. Pode ser uma viagem longa. Mas é fundamental que vocês dois façam tudo que eu mandar. Entenderam?
— Entendemos.
— Entendemos.
— Está frio lá fora. Vocês estão com os cobertores. E com as vendas. Não vão precisar de mais nada agora. Entenderam?
— Entendemos.
— Entendemos.
— Nenhum de vocês pode tirar a venda, sob nenhuma circunstância. Se fizerem isso, vou machucar vocês. Entenderam?
— Entendemos.
— Entendemos.
— Preciso dos ouvidos de vocês. Preciso que escutem com o máximo de atenção que puderem. No rio, vão ter que ouvir além da água, além da floresta. Se ouvirem algum animal na floresta, me avisem. Se ouvirem qualquer coisa na água, me avisem. Entenderam?
— Entendemos.
— Entendemos.
— Não façam perguntas que não tenham relação com o rio. Você vai ficar sentado na frente — diz, dando um tapinha no ombro do Garoto. Depois, toca a Menina. — E você, na parte de trás. Quando entrarmos no barco, vou guiá-los para esses lugares. Vou ficar no meio, remando. Não quero que conversem, a não ser que seja sobre algo que ouviram na floresta. Ou no rio. Entenderam?
— Entendemos.
— Entendemos.
— Não vamos parar por motivo algum. Não até chegarmos aonde estamos indo. Vou avisar quando for a hora. Se ficarem com fome, comam algo desta bolsa.
Malorie leva a bolsa até as pequenas mãos dos filhos.
— Não durmam. Não durmam de jeito nenhum. Preciso dos ouvidos de vocês, hoje mais do que nunca.
— Vamos levar os microfones? — pergunta a Menina.
— Não.
Enquanto fala, Malorie olha de um rosto vendado para o outro.
— Quando sairmos daqui, vamos dar as mãos e seguir o caminho até o poço. Entraremos pela pequena clareira na floresta que fica atrás da nossa casa. O caminho até o rio é cheio de mato. Talvez a gente tenha que soltar as mãos em alguns momentos, então, se for preciso, quero que segurem no meu casaco ou no casaco um do outro. Entenderam?
— Entendemos.
— Entendemos.
Será que estão com medo?
— Prestem atenção. Vamos para um lugar que nenhum de vocês conhece. Nunca estiveram tão longe desta casa. Muitas coisas lá fora podem acabar machucando vocês ou a mamãe se não me ouvirem agora, hoje.
As crianças estão em silêncio.
— Entenderam?
— Entendemos.
— Entendemos.
Malorie treinou bem os filhos.
— Tudo bem — diz, e sua voz revela um sinal de histeria. — Vamos embora. Vamos embora agora. Vamos embora.
Ela pressiona a cabeça dos dois na própria testa.
Depois pega as crianças pela mão. Os três atravessam a casa rapidamente. Na cozinha, trêmula, Malorie enxuga os olhos e tira a própria venda do bolso. Ela a amarra em torno da cabeça e do cabelo escuro e comprido. E para, com a mão na maçaneta, diante da porta que se abre para o caminho que já percorreu tantas vezes para pegar baldes de água.
Está prestes a abandonar a casa. A concretude do momento a deixa atordoada.
Quando abre a porta, o ar frio entra e Malorie dá um passo à frente, a cabeça zonza, cheia de medo e possibilidades terríveis demais para mencionar diante das crianças. Ela gagueja ao falar e quase grita:
— Segurem a minha mão. Os dois.
O Garoto pega a mão esquerda de Malorie. A Menina aperta a direita com seus dedinhos.
Vendados, os três saem da casa.
O poço fica a quase vinte metros dali. Pequenos pedaços de madeira, antes parte de molduras, marcam o caminho e foram colocados para indicar a direção certa. Ambas as crianças já tocaram na madeira com a ponta dos sapatos inúmeras vezes. Malorie, certa vez, disse a elas que a água do poço era o único remédio de que poderiam precisar. Ela sabe que, por isso, seus filhos sempre respeitaram o poço. Nunca reclamaram de buscar água com a mãe. Agora no poço, o chão fica irregular sob os pés dos três. Parece pouco natural, macio.
— Aqui está a clareira — avisa Malorie.
Ela guia as crianças com cuidado. Outro caminho se inicia a dez metros do poço. Sua entrada é estreita e demarca o começo da floresta. O rio fica a menos de cem metros dali. No limite da floresta, Malorie solta a mão das crianças por um instante para procurar a entrada.
— Segurem-se no meu casaco!
Ela tateia os galhos até encontrar uma blusa amarrada a uma árvore no começo da trilha. A própria Malorie a amarrou ali mais de três anos atrás.
O Garoto segura no bolso da mãe e ela sente a Menina agarrar o casaco dele. Ela os chama enquanto caminha, perguntando constantemente se estão segurando um no outro. Galhos de árvores arranham o rosto dela. Malorie não grita.
Logo os três chegam ao marco que ela enterrou na areia. A perna farpada de uma das cadeiras da cozinha, enfiada no meio da trilha para que ela tropece e a reconheça.
Ela descobriu o barco a remo quatro anos atrás, atracado a apenas cinco casas de distância da sua. Faz mais de um mês desde que conferiu pela última vez se ele ainda estava ali, mas ela acredita que esteja. Mesmo assim, é difícil não imaginar o pior. E se alguém o pegou primeiro? Outra mulher, não muito diferente da própria Malorie, que mora a cinco casas dali, na outra direção, e usou cada dia dos últimos quatro anos para reunir coragem suficiente para fugir. Uma mulher que um dia tropeçou na mesma margem escorregadia e sentiu a mesma possibilidade de salvação com a ponta de ferro do barco a remo.
O ar faz os arranhões no rosto de Malorie arderem. As crianças não reclamam.
Isso não é infância, pensa Malorie, conduzindo-as para o rio.
Então ela escuta. Antes de chegar ao cais, ouve o barco balançando na água. Ela para, confere a venda das crianças e aperta os nós das duas. Depois as conduz até a plataforma de madeira.
Pronto, pensa, ele ainda está aqui. Assim como os carros ainda estão estacionados na rua em frente à casa deles. E da mesma forma que as casas da rua continuam vazias.
Faz mais frio ali na floresta, longe de casa. O som da água é tão assustador quanto entusiasmante. Ajoelhando-se onde acha que o barco está, ela solta as mãos das crianças e tateia, procurando a ponta de ferro. Seus dedos encontram a corda que a segura primeiro.
— Garoto — diz Malorie, puxando a ponta gelada do barco para o cais. — Na frente. Entre na frente.
Ela o ajuda. Quando ele está equilibrado, segura o rosto do filho com ambas as mãos e diz mais uma vez:
— Escute. Para além da água. Escute.
Malorie pede à Menina que fique no cais enquanto desamarra a corda às cegas, sobe com cuidado no barco e para em frente ao banco do meio. Ainda mais ou menos de pé, ela ajuda a Menina a subir. O barco balança com violência e Malorie aperta a mão da filha com muita força. A Menina não grita.
Há folhas, gravetos e água no fundo do barco. Malorie vasculha para procurar os remos que guardou no lado direito. A madeira está fria. Úmida. Tem cheiro de mofo. Ela acomoda os remos nos apoios de ferro. Usa um deles para afastar o barco do cais e ele lhe parece firme e forte. E então...
Estão no rio.
A água está calma. Mas há sons ao redor. Movimentos na floresta.
Malorie pensa na neblina. Espera que tenha ocultado a fuga da família.
No entanto, a neblina vai se dissipar.
— Crianças — pede Malorie, ofegante —, escutem.
Enfim, depois de quatro anos de espera e treino, tentando encontrar coragem para ir embora, ela rema para longe do cais, da margem e da casa que protegeu a ela e aos seus filhos pelo que pareceu uma vida inteira.

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