Caixa de Pássaros - Capítulo 15

— Não vou beber dessa água — afirma Malorie.
Os moradores da casa estão exaustos. Dormiram amontoados no chão da sala, mas ninguém conseguiu dormir por muito tempo.
— Não podemos ficar dias sem água, Malorie — diz Tom. — Pense no bebê.
— É nele que estou pensando.
Na cozinha, sobre o balcão, os dois baldes que Felix encheu ainda não foram tocados. Um a um, os moradores da casa lambem os lábios secos. Já faz vinte e quatro horas e a probabilidade de terem que esperar mais tempo pesa na mente de todos.
Estão com sede.
— Podemos beber água do rio? — pergunta Felix.
— Bactérias — responde Don.
— Depende — diz Tom. — Do quanto a água está fria. Da profundidade. Da velocidade da correnteza.
— Mesmo assim — afirma Jules —, se alguma coisa entrou no poço, tenho certeza de que entrou no rio também.
Contaminação, pensa Malorie. É a palavra do momento.
No porão há três baldes com urina e fezes. Ninguém quer levá-los para fora. Ninguém quer sair de casa. O cheiro está forte na cozinha, só que chega mais fraco à sala de estar.
— Eu beberia água do rio — afirma Cheryl. — Eu correria esse risco.
— Você iria lá fora? — pergunta Olympia. — Pode ter alguma coisa parada bem na nossa porta!
— Não sei direito o que ouvi — retruca Felix.
Ele já repetiu isso várias vezes. Diz que se sente culpado por ter assustado todo mundo.
— Devia ser uma pessoa — opina Don. — Provavelmente alguém que queria nos roubar.
— Será que a gente precisa mesmo descobrir isso agora? — indaga Jules. — Já faz um dia. Não ouvimos nada. Vamos esperar. Mais um dia. Vamos ver se nos sentimos melhor.
— Eu beberia até direto dos baldes — afirma Cheryl. — É um poço, porra. Animais caem em poços o tempo todo. Morrem lá dentro. A gente já devia estar bebendo água com animais mortos esse tempo todo.
— A água do bairro sempre foi boa — diz Olympia.
Malorie se levanta. Vai até a porta da cozinha. A água brilha na borda do balde de madeira, cintila no de metal.
O que isso faria com a gente?, pensa.
— Você consegue se imaginar bebendo um pouquinho de uma delas? — pergunta Tom.
Malorie se vira. Tom está parado atrás dela. O ombro dele roça no dela sob o batente da porta.
— Não consigo, Tom.
— Não pediria isso a você. Mas posso pedir a mim mesmo.
Quando encara os olhos dele, Malorie percebe que o amigo está falando sério.
— Tom.
Ele se vira para observar os outros na sala.
— Vou beber dessa água — diz.
— Não precisamos de um herói — afirma Don.
— Não estou tentando ser um herói, Don. Só estou com sede.
Os moradores da casa ficam em silêncio. Malorie vê no rosto dos outros a mesma coisa que ela está sentindo. Por mais medo que tenha, quer que alguém beba.
— Isso é loucura — comenta Felix. — Por favor, Tom. A gente vai pensar em outra coisa.
Tom entra na sala de jantar. À mesa, olha nos olhos de Felix.
— Me tranque no porão. Vou beber lá.
— Vai enlouquecer com aquele cheiro — lembra Cheryl.
Tom sorri, melancólico.
— Temos um poço bem no nosso quintal — diz. — Se não pudermos usá-lo, não poderemos usar nada. Me deixem fazer isso.
— Sabe com quem você está parecendo? — pergunta Don.
Tom espera.
— Com George. Só que ele tinha uma teoria.
Tom olha para a mesa de jantar, que está apoiada na janela.
— Estamos aqui há meses — diz. — Se alguma coisa entrou no poço ontem, já deve ter entrado antes.
— Você está sendo racional demais — afirma Malorie.
Tom responde sem se virar para ela:
— Temos mais alguma opção? Claro, o rio. Mas podemos ficar doentes. Muito doentes. E não temos nenhum remédio. Tudo que tivemos até agora foi a água do poço. É o único remédio que temos. O que mais podemos fazer? Andar até o próximo poço? E depois? Esperar que nada tenha entrado nesse outro também?
Malorie observa enquanto, um a um, cada morador assente. A rebelião natural no rosto de Don dá lugar a um ar de preocupação. O medo nos olhos de Olympia se transforma em culpa.
Já Malorie não quer que Tom faça aquilo. Pela primeira vez desde que chegou à casa, o papel de Tom, a maneira como ele se dedica a tudo que acontece ali de corpo e alma, a deixa cega.
No entanto, em vez de fazer com que Malorie o proíba, ele a inspira. E ela ajuda.
— No porão, não — diz. — E se você enlouquecesse lá embaixo e destruísse todo o estoque de comida?
Tom a encara.
— Está bem — responde. — Então no sótão.
— Aquelas janelas são muito mais altas do que as do primeiro andar.
Tom encara Malorie nos olhos.
— Vamos ficar no meio-termo — decide. — No segundo andar. Você tem que me trancar em algum local. E não tem nenhum lugar aqui embaixo.
— Pode usar o meu quarto.
— Aquele quarto — explica Don — foi o que George usou para assistir ao vídeo.
Malorie retribui o olhar de Tom.
— Eu não sabia disso.
— Vamos lá — diz ele.
Tom hesita, apenas por um instante, antes de passar por Malorie e entrar na cozinha. Ela vai atrás dele. Em fila, os moradores da casa seguem os dois. Quando Tom tira um copo do armário, Malorie segura o braço do amigo com delicadeza.
— Beba através disto — pede, entregando-lhe um filtro de café. — Sei lá. Um filtro. Quem sabe?
Tom pega o filtro. Ele a olha nos olhos. Depois mergulha o copo no balde de madeira.
Ao tirá-lo, ele o ergue. Os moradores da casa formam um semicírculo ao redor de Tom.
Olham fixamente para o conteúdo do copo.
Os detalhes da história de Felix voltam a causar arrepios em Malorie.
Segurando o copo, Tom sai da cozinha. Jules pega um pedaço de corda da despensa e o segue.
Os outros não dizem nada. Malorie põe uma das mãos na barriga e a outra no balcão. Então tira a segunda rapidamente, como se tivesse acabado de encostar numa substância mortal.
Contaminação.
Mas não havia água onde ela apoiou a mão.
No andar de cima, a porta do quarto se fecha. Malorie ouve Jules amarrar a corda em torno da maçaneta e prendê-la ao corrimão da escada.
Agora Tom está trancado lá dentro.
Assim como George.
Felix anda de um lado para outro. Don se apoia na parede, os braços cruzados, olhando para o chão. Quando Jules volta, Victor vai até ele.
Ouve-se um som vindo do andar de cima. Malorie fica ofegante. Os moradores da casa olham para o teto.
Eles esperam. Escutam. Felix faz menção de subir. Então para.
— Ele já deve ter bebido — afirma Don, baixinho.
Malorie vai até a entrada da sala de estar. A três metros de distância dali, está o pé da escada.
Só há silêncio.
Então eles ouvem uma batida.
E Tom grita.
Tom grita Tom grita Tom grita Tom
Malorie já corre para a escada, mas Jules a ultrapassa.
— Fiquem aqui! — ordena ele.
Ela observa o amigo subir a escada.
— Tom!
— Jules, eu estou bem.
Ao som da voz de Tom, Malorie solta o ar. Então se apoia no corrimão para recuperar o equilíbrio.
— Você bebeu tudo? — pergunta Jules pela porta.
— Bebi. É. Estou bem.
Os outros moradores estão reunidos atrás de Malorie. Começam a falar. A princípio, baixinho. Depois, animados. No segundo andar, Jules solta a corda. Tom sai do quarto com o copo vazio na mão.
— Como foi? — pergunta Olympia.
Malorie sorri. Os outros também. É engraçado, de uma maneira sombria, perguntar como foi beber um copo de água.
— Bem — diz Tom enquanto desce a escada —, provavelmente foi o melhor copo de água que já bebi.
Quando chega ao pé da escada, ele olha Malorie nos olhos.
— Gostei da ideia do filtro — afirma.
Depois que passa por ela, Tom deixa o copo na mesa de canto, junto do telefone. Depois se vira para os outros.
— Vamos colocar os móveis de volta no lugar. Vamos arrumar tudo de novo.

Nenhum comentário :

Postar um comentário

Atenção: para postar um comentário, escolha Nome/Url. Se quiser insira somente seu nome.

Please, no spoilers!

Expresse-se:
(◕‿◕✿) 。◕‿◕。 ●▽●

⊱✿◕‿◕✿⊰(◡‿◡✿)(◕〝◕) ◑▂◐ ◑0◐

◑︿◐ ◑ω◐ ◑﹏◐ ◑△◐ ◑▽◐ ●▂● 

●0● ●︿● ●ω● ●﹏● ●△● ●▽●

Topo